sábado, 30 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Sobre o sentido da Vida" de Viktor Frankl (Parte 1)

 



Viktor Frankl é marcado como um dos maiores intelectuais do século XX. O fato dele ter vivenciado o holocausto, a dura realidade do campo de concentração e ter saído de lá portando uma teoria que revolucionou todo ambiente psicoterapêutico mundial é ainda mais notável. Como um indivíduo é capaz de entrar num ambiente em que há um movimento de profunda anulação do ser e sair dali plenamente fortalecido em sua individualidade? E mais do que isto: fortalecido de forma tão substancial ao ponto de alterar a realidade mental de inúmeras pessoas num grande levantamento de metanoias e de expansão de consciências?


Em primeiro lugar, vamos a alguns dados filosóficos e sociológicos:

1. O Um representa o indivíduo em sua subjetividade.;

2. O Múltiplo representa o meio (social, político, econômico, material, etc) que o indivíduo (Um) se insere;

3. É observável que o Múltiplo (meio) sempre tenta anular o Um (sujeito);

4. Em situações de coletivização radical da sociedade, sejam por motivos políticos, religiosos ou culturais, a subjetividade se torna um risco em potencial ao projeto tribalizador seitizante do coletivo;

5. No nazismo, tal situação tornar-se-ia radicalmente deplorável.


Dito isto, é impressionante que Viktor Frankl tenha saído se fortalecido e não se dissolvido. O martírio social ao qual passou transcende em muito a situação que passamos hoje - mesmo que a idolatria social ainda seja imposta a ferro e fogo.


Para Frankl, o destino exterior (a realidade) apresenta a possibilidade dum movimento interior. Há um movimento interno que pode ser tomado em face de cada realidade que se apresenta. O posicionamento interno pode estar atrelado a uma vitória interna mesmo quando há uma derrota externa. E a derrota externa não significa a dissolução do indivíduo enquanto tal, visto que o indivíduo pode vencer internamente ao não se deixar dominar pelo terrorismo da multiplicidade.


O posicionamento interior, a realidade intraestrutural de cada humano, pode ser uma chama que irradia mesmo dentro do mais sombrio, denso e assustador oceano. Para cada circunstância, uma possibilidade atitudinal.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Amores Proibidos na história do Brasil" de Maurício Oliveira




Nada melhor do que terminar o ano lendo sobre o amor, não é mesmo? Este livro traz uma perspectiva intensamente interessante: partes da história de nosso país contada através da situação romântica de homens e mulheres que marcaram a história do Brasil. Um prato cheio para quem busca estudar nossa história sem o fardo de se perder no vaivém burocratizante e sonífero que toma conta da nossa história extremamente academicizada e pouco apaixonada.


Aqui o leitor entra em contato com uma realidade que transcende a banalidade oficialesca que é usual nossa forma histórica-narrante, isto é, ele sai das condições do castelo de marfim dos padrões normativos e adentra nos terrenos ocultos e íntimos do amor. O leitor, pouco a pouco, compreende que os grandes homens e mulheres de nosso país não eram tão somente figuras de ação política, cultural ou econômica: eram homens e mulheres normais, infinitamente normais, e, portanto, ligadas ao ato profundamente humano e normal que é o ato de amar.


O que move a história é mais do que uma gigantesca maçaroca de idealidade abstrata. O que move a história é muitas vezes o desejo de amar e ser amado. E esta necessidade leva os seres a grandes ideias. O amor precede tudo. O amor é o guião da inteligência e dos grandes atos. Até mesmo a ciência está envolta deste calor efervescente a qual poderia chamar de chamas do amor. A ideia de que estamos separados do imaginário e da busca do Ordo Amoris em todos os nossos atos nada mais é do que uma construção da própria imaginação humana e a objetividade nada mais é do que um fruto dum desejo subjetivo.


O leitor corre um grande risco ao entrar em contato com esse livro: o de ver-se humano. Quando nos vemos como humanos, apaixonamo-nos e deixamo-nos a mercê dos ventos da impotência da volatilidade do desejo. E, quiçá, em uma época tão dominada pela idealidade vazia dum maquinacismo vil, exato e proporcionalmente desumano, esta ação de se deixar levar seja a nossa principal lição.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Paulo Francis, Polemista Profissional" de Paulo Eduardo Nogueira

 



O que define um intelectual marcado pelo paradoxo? Sua aversão à crescente coletivização da consciência acadêmica em prol duma seitização do debate me encanta. Sabemos que, hoje, há uma tendência perniciosa que confunde escolas de pensamento com unidades doutrinais de sistemas teológicos que só podem ser aderidos por inteiro ou negados por inteiro. Com tal comportamento, vemos a negação sistemática do livre pensamento, do livre exame e, por fim, da consciência individual como consequência lógica deste encadeamento trágico.


Paulo Francis é um homem contraditório, de erros e acertos. Isto não é uma desqualificação: é a própria natureza humana que assim o é. A humanização do debate, se considerada seriamente, começaria pela aceitação da subjetividade humana. Isto é, em vez da classificação e adesão restrita aos conteúdos unitários de escolas de pensamento - tomadas em sentido religioso -, teríamos que considerar a pessoa, sua subjetividade e a individualidade de sua construção intelectual. Atualmente o que temos é um classificacionismo que visa, antes de tudo, transformar o debate em ordens tribais em que as pessoas são justificadas perante a sua tribo e condicionadas a elas.


A própria hipótese de que alguém possa, por livre exame, chegar a uma construção intelectual autêntica soa como uma heresia e é tomada com desdém ou com incredulidade. Em vez de pensar na pessoa em si, pensa ela em relação ao grupo e ao suposto grupo que pertence. O debate sempre terá frases como "isso vai em contradição com o seu grupo" ou "você está em contradição com a sua escola". Aos partidários dessas seitas infernais, uma resposta é necessária: minha escola é o mundo e meu método é o livre exame. Intimamente a consciência individual importa mais do que o (auto)condicionamento irrestrito.


Francis errava, como todo ser humano. E errar é da natureza humana. As críticas a Francis escondem mais do que ao erro "X" ou "Y", escondem uma postura disciplinada de tribalismo coercetivo que condena sobretudo a quem pertence supostamente ao grupo que se odeia ou ao grupo que se deve aderir fielmente como crente.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Teatro Completo: Peças Psicológicas" de Nelson Rodrigues

 



"E se, todavia, quereis saber, ainda, o que quer dizer 'Viúva, porém honesta', eu vos direi: sua mensagem é demoníaca. Por 'demoníaco' entendo eu esse impulso que vem de dentro, das profundezas, esse grito irredutível contra tudo e contra todos que falsificam os valores da vida. É essa negação da ordem social, política, familiar ou religiosa que já apodreceu ou que representa verdades esgotadas"

Nelson


Já terminei de ler mais e de analisar mais da metade das peças teatrais de Nelson Rodrigues. Não dum tradicional, visto que o faço de "modo abstrato" para evitar dar spoilers ao possível futuro leitor e pelo fato de que o objetivo das análises postadas no Instagram é o de serem curtas, breves e rápidas de serem lidas.


Ler Nelson Rodrigues em sua forma teatral vem mudando toda minha percepção da realidade. Sempre fui muito próximo de sua obra jornalística e a sua obra literária mais voltada ao romance, mas como não fui muito próximo ao teatro, nunca tive muito interesse em ler a sua expressão teatral. Em minha vida, tinha lido poucos textos teatrais. A leitura dessas obras é fruto dum gosto muito recente. Juntei o útil (ler um gênero literário que eu tinha pouco contato) ao agradável (ler a obra de Nelson Rodrigues).


Pretendo, todavia, só terminar a leitura da obra teatral de Nelson Rodrigues ano que vem. Atualmente tenho que terminar uma série de outros estudos e para adiantá-los preciso largar um pouco de minhas chamadas "leituras livres" - que não deixam nem por um momento de serem intelectualmente proveitosas.


Creio que se pudesse dar uma recomendação aos estudiosos, recomendaria a leitura mais acentuada do corpo literário de Nelson Rodrigues. Apesar das diferenças culturais geradas pelo tempo e a suavização dos costumes que Nelson criticava, ainda há um quê que nos escapa profundamente: a angústia da desejabilidade que temos enquanto seres humanos de natureza essencialmente transcendental. O nosso desejo se choca com o mundo e nem sempre o mundo lhe corresponde, e isto leva a um sofrimento e é deste sofrimento (desejo x contradição) que a obra de Nelson trata particularmente bem.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Anti-Nelson Rodrigues" de Nelson Rodrigues

 



Nesta obra temos uma inversão do método rodrigueano, mas executado de forma magistral. Isto é, Nelson Rodrigues escreveu uma obra em que a virtude vence o pecado. Esta fórmula inverte a fórmula muito conservadora de Nelson Rodrigues. Não compreendeu o "muito conservadora"? Pois bem, explico: enquanto a esquerda crê num otimismo antropológico, a direita crê no pessimismo antropológico. Para a esquerda, o homem é bom por natureza; para a direita, o homem é mau por natureza.


Há quem considere a obra rodrigueana como progressista, mas estes incautos caem no desconhecimento profundo do que verdadeiramente é o pensamento conservador. O pensamento conservador é aquele que crê que o homem é mau por natureza. Nelson Rodrigues fez críticas variadas aos erros sociais, fez por ser um autêntico moralista que expõe a nudez da sociedade em que vive. No entanto, tais críticas, mesmo quando direcionadas aos setores mais retrógrados e comportamentos tirânicos, não colocam Nelson no rol de pensadores progressistas.


É natural que um conservador condene a opressão desnecessária e a hipocrisia. É natural que um conservador seja um reformador social. Conservadorismo é, por excelência, um reformismo profundo dum cético abismado. A incapacidade de compreender essa essência e, por conseguinte, a intencionalidade conservadora torna o debate ininteligível para a maioria dos debatentes que tateiam no escuro sem chegar a uma conclusão real.


Se pudermos dizer, Freud também atacou opressões desnecessárias. No entanto, Freud entendia que a opressão (ou repressão) é pedra basilar no contínuo do progresso civilizacional. Neste sentido, Freud também seria perfeitamente conservador e daí surge, aparentemente, a briga que ele teve com Wilhelm Reich. Nelson Rodrigues não se torna progressista por ser aliar a esquerda no que é necessário aliar-se a ela. Visto que o conservadorismo é preservar o que deve ser momentaneamente preservado e alterar aquilo que deve ser alterado, logo a tradição conservadora não é, de forma alguma, estritamente de direita. Dualidade incompreensível para a maioria dos acadêmicos.

Acabo de ler "Viúva, porém honesta" de Nelson Rodrigues

 



"E vou provar o seguinte, querem ver? Que falsa é a família, falsa a psicanálise, falso o jornalismo, falso o patriotismo, falsos os pudores, tudo falso!"
Diabo da Fonseca (personagem da obra)

Gosto dessa obra pelo cinismo geral que a conduz. Isto é, essa peça de teatro é recheada dum cinismo que transcende uma sátira banal, é um cinismo que visa uma crítica metódica e organizada da sociedade e das organizações vigentes.

Vemos que tudo que ali existe é propriamente uma farsa: o motivo da viúva não querer trair seu marido, o jornalismo, a crítica de teatro, o psicanalista, o médico. Todos são farsantes que estão presos a vínculos meramente performáticos com suas carreiras, nunca um objetivo sincero para com o que se propõem a fazer. A obra visa, em seu fundo, demonstrar através do teatro que há um teatro na vida e este é um teatro que é, no fundo, um teatro horrendo por ser obrigatório. Graças aos condicionamentos sociais, somos obrigados a performar traindo o que nos há de mais essencial e verdadeiro. O preço do sucesso na sociedade é a perda de autenticidade, por consequência a perda do ser e, no fim, a perda de si mesmo em prol duma performance.

A obra não deixa de ser extremamente engraçada e fará o leitor dar boas risadas enquanto se delicia com os eventos tragicômicos que se sucedem. As frases que aparecem trazem uma imensa dose de efeito cômico pois possuem uma desvalorização de tudo aquilo que a sociedade tradicionalmente vê como bom, mas que intimamente não segue. A diferença é que, ali, é dito a verdade da dualidade da vida: existem regras de performance e a realidade da vida, visto que a imagem pública é para ser condicionada e a imagem privada é para ser secreta.

Qual é o sentido de tudo isto? O marido é homossexual, a viúva é fiel ao marido morto pois o melhor tipo de marido é o morto pois não enche o saco, o psicanalista é farsante, a ex-prostituta é farsante, o otorrinolaringologista é farsante, o jornal só existe para "espinafrar" e chamar atenção do público através de choques sentimentais.

Por vezes é necessário rir de si mesmo para se libertar da cegueira dos próprios olhos.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Valsa N° 6" de Nelson Rodrigues

 



Uma peça que apresenta um jogo de quebra cabeças em que a personagem precisa, pouco a pouco, esmiuçar para descobrir a própria identidade através dum soliloquio. A primeira vista, não parece muito complexa e tampouco interessante. Certamente não é uma das obras mais complexas de Nelson, todavia ainda é uma boa peça.


O que interessa nessa obra é a qualidade da estrutura psicológica de autodescoberta. Às vezes é preciso que um homem reveja seus pensamentos como se fosse um estranho para que ele entenda a si mesmo através de outro ponto. A autoanálise é uma boa forma de dialética: em primeiro lugar, o estranhamento de si; em segundo lugar, uma reflexão; e, em terceiro, um retorno a si mesmo. O ser, para descobrir-se, oculta a si mesmo para poder revelar-se mais profundamente a si mesmo.


Se isso não é, ao fim, uma demonstração de profundo entendimento psicológico da realidade do homem enquanto ser de imensa tonalidade subjetiva, não sei o que é. O fato é que Nelson demonstra sua genialidade mesmo em suas pequenas obras. Talvez essa não tenha um lado bastante voltado a uma complexificaçāo magistral, mas é sem dúvida uma peça que demonstra um rasgo sublime de seu autor.


Essa obra é também um convite: estranhar-se, alienar-se de si para si, arrancar os próprios olhos e pô-los distantes do próprio corpo. Tudo isto para se ver alienado da própria realidade. Não como uma pessoa completamente distante de si mesma, o que impossível, mas como uma pessoa que está numa eterna jornada de mergulho no oceano da própria alma.


Para que o leitor leia essa obra, recomendo que tenha lido outras obras e já compreenda a forma de trabalho intelectual do Nelson. Se não, corre o risco de passar por cima duma obra que revela traços sutis da substancialidade de um grande mestre.

Acabo de ler "Vestido de Noiva" de Nelson Rodrigues

 



"Vestido de noiva em outro meio consagraria um autor. Que será aqui? Se for bem aceita, consagrará... o público"

Manuel Bandeira


Existem aquelas obras que, quando escritas, mudam o autor. A pessoa em si já não é mais a mesma, chegou num horizonte de consciência mais elevado em abarcabilidade. Já existem obras que mudam o público, demonstrando uma diferença notória entre quem leu e quem não leu. Existem obras que marcam cidades inteiras. Porém existem obras que, quando bem entendidas, estão muito além de marcar o autor, o público, a cidade e o país. Existem obras que marcam a humanidade, tornando-a mais rica e sabedora de si mesma.


Quando falamos em "Vestido de Noiva" pensamos não em "uma" obra. Pensamos naquela exata e específica obra. Uma obra que mudou tudo de modo tão irreversível que seria impossível não pensá-la do ponto de vista duma anomalia. Existem coisas, pessoas, atos, feitos que, pelo simples fato de existirem ou terem existido, alteram estruturalmente o mundo. Ou seja, são precisamente o "sal" que dá vida à Terra.


Nesta obra, vemos diferentes planos sendo realizados de forma mais ou menos desordenada. Estes diferentes planos são uma inovação, mas igualmente são a realidade da humanidade: não vemos as coisas como são, vemos elas através de lentes múltiplas. Existe o plano da realidade, o plano do simbólico, o plano da imaginação, isto na linguagem psicanalítica de Lacan. Em certo sentido, Nelson Rodrigues trouxe este grande conflito para o plano dramaturgia.


Sua grandeza está na forma com que ele dirige as diferentes realidades, os diferentes planos, as esferas alternantes que se passam. Ele soube dar uma substancialidade que deu uma vida imensa a sua obra. Há, em cada personagem, uma imensa tonalidade de cores que revela individualmente sua inegável condição humana.


Nelson Rodrigues é um dos maiores escritores da história de nosso país e, igualmente, da história da humanidade. O verdadeiro profeta do óbvio ululante e, quiçá, nosso único profeta, visto que só profetas enxergam o óbvio.

Acabo de ler "Em Defesa de Stalin" de Vários Autores (Parte 12)

  Essa é a última parte de Emil Ludwig, indo da página 185 à 208. Aqui termina a triunfalmente rica e arguta análise de Ludwig. E talvez sej...