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sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Memória Cadavérica #4 — Massas Acéfalas

 



Memórias Cadávericas: um acervo de textos aleatórios que resolvi salvar (no blogspot) para que essas não se perdessem.


O problema da direita brasileira sempre foi a ausência de intelectuais responsáveis e sérios em um nível majoritário. Cita-se muito Nelson Rodrigues, mas poucos leram as suas obras teatrais. Já existem outros que se perdem completamente: Gustavo Corção, Leonel Franca, José Guilherme Merquior, Bruno Tolentino, nenhum deles é lido ou citado. Há uma diferença enorme entre o conservadorismo/liberalismo letrado e as massas acéfalas que seguem em sua galerosidade de massa de manobra.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Acabo de ler "Teatro Completo: Peças Míticas" de Nelson Rodrigues

 



Com esse texto se encerra, por fim, a mais grandiloquente saga de microanálises desse perfil: um passeio imortal pela obra do homem que se fez eterno pela sua produção teatral. É, para mim, um grande momento. Eu tenho a honra de dizer que sou daqueles que conseguiu ler toda a produção teatral de Nelson Rodrigues. E não só li, como analisei. Talvez não com a grandeza que mereceria um autor de estatura tão universal quanto Nelson Rodrigues, mas ainda assim, em minha pequeneza, pude divulgar as suas obras.


Nelson é um homem sem o qual nada faria sentido. Lembro-me até hoje que estava isolado, numa casa desocupada, lendo Pondé. E Pondé detalhou Nelson com uma infinidade de detalhes, tão belos e tão maravilhosos, que me fez, logo após terminar o seu livro, buscar um livro de Nelson Rodrigues na biblioteca para poder ler. Daí para frente, tudo mudou num absurdismo mágico.


Eu lhes digo orgulhosamente, sem medo de passar uma impressão de monotonia intelectual, que leio Nelson Rodrigues há onze anos. Não houve, desde meus 16 anos de idade, um ano que não tenha pego um livro de Nelson Rodrigues para ler. E isso demonstra todo triunfo de impotência apaixonada que essa obra me causa. Ela é como uma bomba que, ao explodir, causa um choque estremecedor cujo o impacto, na pele, não é o de dor e sim o de espantamento admirativo.


Nelson é, para mim, meu pai espiritual em duas grandes áreas: na dramaturgia e na crônica. Nessas duas áreas, Nelson reina na minha consciência, como uma espécie de imperador ululante e eu sou apenas parte do cenário que existe tão somente para justificar a beleza lírica de sua obra, tal qual a estranha Cabra Vadia que ficava comendo capim ou mato enquanto Nelson realizava suas hilariantes entrevistas imaginárias - dizia ele, em seu saber profético, que essas eram mais verdadeiras que as entrevistas reais.


O tempo passa, leio e leio vários e vários autores, numa maquinal erudição acumulativa. Só que eu tenho a certeza absoluta de que, em toda minha vida, lerei Nelson Rodrigues e/ou escritos sobre Nelson Rodrigues. Nelson Rodrigues é e sempre será isso: o trágico fulminante!

Acabo de ler "Teatro Completo: Tragédias Cariocas II" de Nelson Rodrigues

 



(Texto publicado atrasado. Já havia sido lançado do Instagram e Facebook)

Ler Nelson Rodrigues é um ato de ex-covardia. O homem expôs para nós o que escondíamos em nossos corações amaldiçoados pela falsificação contínua do discurso para negação continuada de nossa realidade psíquica. A sua obra é um contínuo enfrentamento da condição perfomática que a sociedade nos insere.


Nelson quis deixar a sociedade nua. Talvez por uma forma de vingança, talvez uma forma de ser um professor moral, talvez pelo simples desejo de ver a verdade sendo pouco a pouco revelada. A sua obra é duma somatória de confissões e revelações que dão os contornos das almas humanas e brasileiras em toda a sua veracidade trágica.


E, no fim, não é na confissão em que se reside a verdadeira postura filosófica e psicológica? Só nos damos por conhecer quando somos verdadeiros, só alcançamos degraus mais altos de filosofia quando expressamos nossas ideias de fato como elas são. Criar adornos verbais imposibilita a própria capacidade evolutiva e prende a vida num ciclo de mentiras ilusórias que fazem com que percamos o nosso tempo de vida vivendo uma vida falsa.


A intenção do moralismo mortal de Nelson Rodrigues é que a ontologicidade humana não se autodevore em nome duma adequação social de caráter puramente normativa e perfomática, o moralismo de Nelson Rodrigues é daquele que confessa a radicalidade de sua subjetividade. O moralismo rodrigueano é o moralismo confessional. Porém a confissão é um dos maiores atos de coragem, ela é pressuposto e antecedente de toda autenticidade.


Nelson Rodrigues deve ser estudado como um filósofo, como um poeta, como um psicólogo, mas sobretudo como um verdadeiro mestre da ciência ontológica. É ele que nos ensina que devemos voltar a estar nus perante Deus sem a falsidade do discurso moral.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Acabo de ler "Senhora dos Afogados" de Nelson Rodrigues

 



Essa peça é bastante misteriosa. Muitas vezes, vemos cenas de personagens que possuem gradações em suas percepções da realidade. Ora se encontram numa realidade plenamente fática, por outras se encontram num pequeno estado de desequilíbrio poético. É como se a fala deles anunciasse uma outra realidade, uma que viesse do próprio inconsciente.


É interessante ter lido de forma plena cada fase da obra dramatúrgica de Nelson Rodrigues. E ver como ele foi, pouco a pouco, construindo a obra que lhe consagrou como um autor que estava acima da média. E como ele conseguiu se tornar o maior dramaturgo brasileiro. 


Quando pensamos na frase "por antonomasia" queremos dizer alguém que represente algo por substituição. Quando dizemos isso queremos dizer que existe uma perfeição na capacidade de uma pessoa representar algo. É por isso que quando dizemos "O Filósofo" referimo-nos a Aristóteles. É por isso que quando dizemos "O Teólogo" referimo-nos a Paulo de Tarso. Agora, ao dizermos, "O Dramaturgo Brasileiro" referimo-nos a Nelson Rodrigues.


A beleza da sua obra demonstra uma grandeza que transcende, em muito, a própria qualidade de obras de pessoas de países mais conhecidos como referência em produção cultural. Ele se ergue, junto com a sua percepção trágica e mística da vida, num patamar deixado apenas aos maiores intelectuais da história.


Louvado seja, senhor Nelson Rodrigues, por ter uma obra que consagrou o Brasil na história do teatro universal. Louvado seja, senhor Nelson Rodrigues, por ter nos presenteado num quadro de perfeição as misérias humanas para que nos purifiquemos em processo catártico.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Acabo de ler "Dorotéia" de Nelson Rodrigues

 



Por vezes uma sociedade padece, se entristece, pela ausência da liberdade. Essa peça pode ser encarada de uma forma psicanalítica, sobretudo na psicanálise de Reich, por causa do desafio proposto por ela: o que é o ser proibido na esfera de sua sexualidade? Aí é que está a chave que pretendo utilizar nessa análise.


Veja que faz parte do regulamento do ser o orgasmo. A ausência do orgasmo pode ser sublimada por um esforço produtivo, mas será que esse esforço deveria ser compulsório? Sociedades mais fechadas buscam minar a sexualidade e as sociedades fortemente telúricas - como as fascistas - buscam até reprimir a sexualidade com tudo que estiver ao alcance de suas mãos. Não por acaso, a repressão à sexualidade feminina, a minorias sexuais (LGBTs), a busca pela padronização, tudo isso marca o regime fascista. Todavia não estamos nesse contexto, embora seja salutar observar tal parte.


É preciso compreender que a ausência de uma liberdade de desejo, de liberação de desejo, de satisfação pulsional é uma forma de criar uma sociedade adoentada e suscitar nela os mais terríveis delírios. A insatisfação pulsional gerará constantemente crises psíquicas. E essas crises gerarão um estado exacerbação. Esse estado posteriormente poderá ser utilizado metodologicamente para uma missão. E é assim que a sociedade extremo-telúrica se alimenta e retroalimenta: da insatisfação de seu desejo em conjunto com uma condução coercitiva de esforços a um inimigo determinado para o reforço de sua mentalidade coletivo-normativa.


Nelson Rodrigues, ao escrever essa peça, caçoa dos pensamentos bizarros sobre o que é a humanidade e todo o misticismo por trás das proibições e negações que grupos sociais criam para si mesmos para se negarem. O que é bastante interessante, visto que é sociologicamente útil para compreender os dramas sexuais que existiam nessa época.


Como sempre, a obra rodrigueana é marcada por uma capacidade de abertura que possibilita uma análise crítica duma série de conjunturas. Demonstrando a genialidade do grande mestre que é e foi Nelson Rodrigues.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Acabo de ler "O Anjo Negro" de Nelson Rodrigues

 



O que faz dum grande autor um grande autor? Ser grande é, antes de tudo, uma posição de relevância. Só que essa condição de relevância está inserida nos conflitos que existem no seio duma sociedade. As condições que Nelson Rodrigues explorará são as condições que existem no seio dum Brasil racista. Isto é, um Brasil determinado por conflitos raciais que, hoje em dia, se suavizaram sem deixar de existir.


Temos vários personagens. O protagonista é marcado por ser um homem negro que odeia a própria pele. Custa muito vestir a própria pele. E ele tenta, acima de tudo, negar-se para realizar-se. É a pulsão pela negação da sociedade, que lhe rejeita; junto com a pulsão que lhe é própria, visto que aceitar o juízo social, começa a negar a si mesmo em sua negritude. Um esforço de automutilamento identitário: uma alienação do ser perante a si mesmo.


Mas veja que um negro tentando se tornar branco é, ainda hoje, uma impossibilidade. O padrão desejável, sendo impossível, torna a tarefa um exercício custoso. O que significa que a sua dor será uma dor dupla: um padrão que deve perseguir sempre, sem jamais adentrá-lo plenamente. E essa dor, contínua e aguda, permeia toda obra.


O desprezo social combinado ao autodesprezo leva uma vida altamente marcada pela tensionalidade irredutível. E o protagonista carrega uma chaga, seja no âmbito psicológico ou no âmbito social, da qual não poderá se livrar. E mesmo que aceite a própria pele: não poderá ser aceito na sociedade racista a qual está inserido. Tornar-se um homem letrado, de caráter social e econômico superior, não o livrou da condenação: seja a de si mesmo, seja a dos outros.


É nessa trama, uma tragédia total, que vemos como Nelson Rodrigues tece algo extremamente louvável: um conflito social que a tudo se vê psicologicamente e, ao mesmo tempo, sociologicamente. Há uma feição em Nelson, não só na dramaturgia, como na psicologia e na sociologia. Nelson não é só um pensador no âmbito psicológico, é também um sociólogo de primeira grandeza.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Acabo de ler "Álbum de Família" de Nelson Rodrigues

 



"O céu, não depois da morte; o céu, antes do nascimento - foi teu útero"

Edmundo (Personagem de Álbum de Família)


Neste livro, Nelson demonstra um profundo conhecimento sobre psicanálise. A peça trata sobre o Complexo de Édipo e Complexo de Electra. Embora hoje tais complexos não sejam mais vistos como anteriormente eram pensados pela comunidade psicanalítica, é bom entender que existe o contexto da época que pesa muito. Mesmo assim, a peça traz importantes reflexões sobre a natureza da moralidade, as relações familiares, a natureza da pulsão humana e a realidade do afeto.


A temática do primeiro trauma humano é bem abordada: o céu como útero materno é, para todos nós, uma incógnita. Quando somos fetos, nossos desejos são prontamente atendidos pelo aparelho biológico de nossas mães. Desejo e realização, por assim dizer, são o mesmo e dão-se harmonicamente. O reino da necessidade e a realização dessa necessidade estão de par a par. O feto vive, sem saber, o paraíso. É por isso que o processo de nascimento é tão traumático: ele priva o bebê da realização automatizada de suas necessidades e ele terá que passar por processos de privação.


Há nessa peça um trabalho muito cuidadoso com uma temática que, até hoje, faz roer os ouvidos dos mais bem pensantes e, também, dos mais atávicos reacionários: o incesto. Não que Nelson apoie o incesto, Nelson é um moralista: ele expõe os pecados humanos para que exista um processo de ascese. Essa ascese é provocada pela própria exposição do desejo humano em sua brutal realidade devastadora. A peça de Nelson, seu trabalho dramatúrgico, expõe os vícios para purificar. Não por acaso Nelson Rodrigues é chamado de "Anjo Pornográfico".


Como sempre, temos uma peça bastante complexa e com uma série de reflexões que não poderiam - e nem devem - ser lidas de forma descuidada. Nelson é, como nosso maior dramaturgo, um homem duma complexidade ensurdecedora. 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Teatro Completo: Peças Psicológicas" de Nelson Rodrigues

 



"E se, todavia, quereis saber, ainda, o que quer dizer 'Viúva, porém honesta', eu vos direi: sua mensagem é demoníaca. Por 'demoníaco' entendo eu esse impulso que vem de dentro, das profundezas, esse grito irredutível contra tudo e contra todos que falsificam os valores da vida. É essa negação da ordem social, política, familiar ou religiosa que já apodreceu ou que representa verdades esgotadas"

Nelson


Já terminei de ler mais e de analisar mais da metade das peças teatrais de Nelson Rodrigues. Não dum tradicional, visto que o faço de "modo abstrato" para evitar dar spoilers ao possível futuro leitor e pelo fato de que o objetivo das análises postadas no Instagram é o de serem curtas, breves e rápidas de serem lidas.


Ler Nelson Rodrigues em sua forma teatral vem mudando toda minha percepção da realidade. Sempre fui muito próximo de sua obra jornalística e a sua obra literária mais voltada ao romance, mas como não fui muito próximo ao teatro, nunca tive muito interesse em ler a sua expressão teatral. Em minha vida, tinha lido poucos textos teatrais. A leitura dessas obras é fruto dum gosto muito recente. Juntei o útil (ler um gênero literário que eu tinha pouco contato) ao agradável (ler a obra de Nelson Rodrigues).


Pretendo, todavia, só terminar a leitura da obra teatral de Nelson Rodrigues ano que vem. Atualmente tenho que terminar uma série de outros estudos e para adiantá-los preciso largar um pouco de minhas chamadas "leituras livres" - que não deixam nem por um momento de serem intelectualmente proveitosas.


Creio que se pudesse dar uma recomendação aos estudiosos, recomendaria a leitura mais acentuada do corpo literário de Nelson Rodrigues. Apesar das diferenças culturais geradas pelo tempo e a suavização dos costumes que Nelson criticava, ainda há um quê que nos escapa profundamente: a angústia da desejabilidade que temos enquanto seres humanos de natureza essencialmente transcendental. O nosso desejo se choca com o mundo e nem sempre o mundo lhe corresponde, e isto leva a um sofrimento e é deste sofrimento (desejo x contradição) que a obra de Nelson trata particularmente bem.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Anti-Nelson Rodrigues" de Nelson Rodrigues

 



Nesta obra temos uma inversão do método rodrigueano, mas executado de forma magistral. Isto é, Nelson Rodrigues escreveu uma obra em que a virtude vence o pecado. Esta fórmula inverte a fórmula muito conservadora de Nelson Rodrigues. Não compreendeu o "muito conservadora"? Pois bem, explico: enquanto a esquerda crê num otimismo antropológico, a direita crê no pessimismo antropológico. Para a esquerda, o homem é bom por natureza; para a direita, o homem é mau por natureza.


Há quem considere a obra rodrigueana como progressista, mas estes incautos caem no desconhecimento profundo do que verdadeiramente é o pensamento conservador. O pensamento conservador é aquele que crê que o homem é mau por natureza. Nelson Rodrigues fez críticas variadas aos erros sociais, fez por ser um autêntico moralista que expõe a nudez da sociedade em que vive. No entanto, tais críticas, mesmo quando direcionadas aos setores mais retrógrados e comportamentos tirânicos, não colocam Nelson no rol de pensadores progressistas.


É natural que um conservador condene a opressão desnecessária e a hipocrisia. É natural que um conservador seja um reformador social. Conservadorismo é, por excelência, um reformismo profundo dum cético abismado. A incapacidade de compreender essa essência e, por conseguinte, a intencionalidade conservadora torna o debate ininteligível para a maioria dos debatentes que tateiam no escuro sem chegar a uma conclusão real.


Se pudermos dizer, Freud também atacou opressões desnecessárias. No entanto, Freud entendia que a opressão (ou repressão) é pedra basilar no contínuo do progresso civilizacional. Neste sentido, Freud também seria perfeitamente conservador e daí surge, aparentemente, a briga que ele teve com Wilhelm Reich. Nelson Rodrigues não se torna progressista por ser aliar a esquerda no que é necessário aliar-se a ela. Visto que o conservadorismo é preservar o que deve ser momentaneamente preservado e alterar aquilo que deve ser alterado, logo a tradição conservadora não é, de forma alguma, estritamente de direita. Dualidade incompreensível para a maioria dos acadêmicos.

Acabo de ler "Viúva, porém honesta" de Nelson Rodrigues

 



"E vou provar o seguinte, querem ver? Que falsa é a família, falsa a psicanálise, falso o jornalismo, falso o patriotismo, falsos os pudores, tudo falso!"
Diabo da Fonseca (personagem da obra)

Gosto dessa obra pelo cinismo geral que a conduz. Isto é, essa peça de teatro é recheada dum cinismo que transcende uma sátira banal, é um cinismo que visa uma crítica metódica e organizada da sociedade e das organizações vigentes.

Vemos que tudo que ali existe é propriamente uma farsa: o motivo da viúva não querer trair seu marido, o jornalismo, a crítica de teatro, o psicanalista, o médico. Todos são farsantes que estão presos a vínculos meramente performáticos com suas carreiras, nunca um objetivo sincero para com o que se propõem a fazer. A obra visa, em seu fundo, demonstrar através do teatro que há um teatro na vida e este é um teatro que é, no fundo, um teatro horrendo por ser obrigatório. Graças aos condicionamentos sociais, somos obrigados a performar traindo o que nos há de mais essencial e verdadeiro. O preço do sucesso na sociedade é a perda de autenticidade, por consequência a perda do ser e, no fim, a perda de si mesmo em prol duma performance.

A obra não deixa de ser extremamente engraçada e fará o leitor dar boas risadas enquanto se delicia com os eventos tragicômicos que se sucedem. As frases que aparecem trazem uma imensa dose de efeito cômico pois possuem uma desvalorização de tudo aquilo que a sociedade tradicionalmente vê como bom, mas que intimamente não segue. A diferença é que, ali, é dito a verdade da dualidade da vida: existem regras de performance e a realidade da vida, visto que a imagem pública é para ser condicionada e a imagem privada é para ser secreta.

Qual é o sentido de tudo isto? O marido é homossexual, a viúva é fiel ao marido morto pois o melhor tipo de marido é o morto pois não enche o saco, o psicanalista é farsante, a ex-prostituta é farsante, o otorrinolaringologista é farsante, o jornal só existe para "espinafrar" e chamar atenção do público através de choques sentimentais.

Por vezes é necessário rir de si mesmo para se libertar da cegueira dos próprios olhos.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Valsa N° 6" de Nelson Rodrigues

 



Uma peça que apresenta um jogo de quebra cabeças em que a personagem precisa, pouco a pouco, esmiuçar para descobrir a própria identidade através dum soliloquio. A primeira vista, não parece muito complexa e tampouco interessante. Certamente não é uma das obras mais complexas de Nelson, todavia ainda é uma boa peça.


O que interessa nessa obra é a qualidade da estrutura psicológica de autodescoberta. Às vezes é preciso que um homem reveja seus pensamentos como se fosse um estranho para que ele entenda a si mesmo através de outro ponto. A autoanálise é uma boa forma de dialética: em primeiro lugar, o estranhamento de si; em segundo lugar, uma reflexão; e, em terceiro, um retorno a si mesmo. O ser, para descobrir-se, oculta a si mesmo para poder revelar-se mais profundamente a si mesmo.


Se isso não é, ao fim, uma demonstração de profundo entendimento psicológico da realidade do homem enquanto ser de imensa tonalidade subjetiva, não sei o que é. O fato é que Nelson demonstra sua genialidade mesmo em suas pequenas obras. Talvez essa não tenha um lado bastante voltado a uma complexificaçāo magistral, mas é sem dúvida uma peça que demonstra um rasgo sublime de seu autor.


Essa obra é também um convite: estranhar-se, alienar-se de si para si, arrancar os próprios olhos e pô-los distantes do próprio corpo. Tudo isto para se ver alienado da própria realidade. Não como uma pessoa completamente distante de si mesma, o que impossível, mas como uma pessoa que está numa eterna jornada de mergulho no oceano da própria alma.


Para que o leitor leia essa obra, recomendo que tenha lido outras obras e já compreenda a forma de trabalho intelectual do Nelson. Se não, corre o risco de passar por cima duma obra que revela traços sutis da substancialidade de um grande mestre.

Acabo de ler "Vestido de Noiva" de Nelson Rodrigues

 



"Vestido de noiva em outro meio consagraria um autor. Que será aqui? Se for bem aceita, consagrará... o público"

Manuel Bandeira


Existem aquelas obras que, quando escritas, mudam o autor. A pessoa em si já não é mais a mesma, chegou num horizonte de consciência mais elevado em abarcabilidade. Já existem obras que mudam o público, demonstrando uma diferença notória entre quem leu e quem não leu. Existem obras que marcam cidades inteiras. Porém existem obras que, quando bem entendidas, estão muito além de marcar o autor, o público, a cidade e o país. Existem obras que marcam a humanidade, tornando-a mais rica e sabedora de si mesma.


Quando falamos em "Vestido de Noiva" pensamos não em "uma" obra. Pensamos naquela exata e específica obra. Uma obra que mudou tudo de modo tão irreversível que seria impossível não pensá-la do ponto de vista duma anomalia. Existem coisas, pessoas, atos, feitos que, pelo simples fato de existirem ou terem existido, alteram estruturalmente o mundo. Ou seja, são precisamente o "sal" que dá vida à Terra.


Nesta obra, vemos diferentes planos sendo realizados de forma mais ou menos desordenada. Estes diferentes planos são uma inovação, mas igualmente são a realidade da humanidade: não vemos as coisas como são, vemos elas através de lentes múltiplas. Existe o plano da realidade, o plano do simbólico, o plano da imaginação, isto na linguagem psicanalítica de Lacan. Em certo sentido, Nelson Rodrigues trouxe este grande conflito para o plano dramaturgia.


Sua grandeza está na forma com que ele dirige as diferentes realidades, os diferentes planos, as esferas alternantes que se passam. Ele soube dar uma substancialidade que deu uma vida imensa a sua obra. Há, em cada personagem, uma imensa tonalidade de cores que revela individualmente sua inegável condição humana.


Nelson Rodrigues é um dos maiores escritores da história de nosso país e, igualmente, da história da humanidade. O verdadeiro profeta do óbvio ululante e, quiçá, nosso único profeta, visto que só profetas enxergam o óbvio.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Acabo de ler "A Mulher sem Pecado" de Nelson Rodrigues

 



Creio que a principal questão dessa peça seja a angústia que é desejar. Se o desejo é um sentimento e o sentimento é volúvel, nunca sabemos se a pessoa que amamos nos ama de verdade - ao menos não de forma permanente. Não havendo como averiguar isto de forma definitiva, fazemos por meio de testes periódicos que, muitas vezes, só demonstram nossa própria fragilidade e insegurança.


Quantas vezes pomos o "o objeto" de nosso desejo em situação constrangedora para nos sabermos amados? A ridicularidade da insegurança sempre explode em gesto amargo. O doce, quando exigido e quanto mais exigido, torna-se mais e mais salgado. Nelson Rodrigues nos fala, por meio do extremismo típico de sua obra, do patético profundo de nossa inseguridade emocional.


Há um jogo de contradição aí: é profundamente humano desejar ser desejado, todavia ser desejado não é um "direito" e tampouco uma "obrigação" do próximo e, muito menos, do nosso interesse romântico-sexual. É neste sentido que o desejo é triste: ele está sempre atado a uma complexidade dinâmica e nosso coração sempre pena por conta disto. Há sempre um jogo que escapa a compreensão de nosso intelecto e aos anseios de nossos corações.


Adequarmo-nos ao anseio do outro e coagirmos o outro a adequar-se aos nossos anseios, eis a verve tiranicamente patética de nossas relações pautadas em medos, inseguranças, cobranças e castrações. Nada mais humano, nada mais desumano, nada mais simples e nada mais complexo. Humano, demasiadamente humano e, como tal, além do bem e do mal, além dos maniqueísmos conceitualescos que escapam da tensionalidade difusa e inconceituável  que é a vida em si.


Ler Nelson é, como sempre, uma forma de libertação. Há sempre um apontamento para uma humanidade que temos em cada um de nós, mas que sempre escapa devido ao nosso medo de nos descobrirmos falhos e humanos. Ou melhor, descobrirmo-nos falhos pois somos humanos e humanos são falhos.

sábado, 11 de novembro de 2023

Acabo de ler "Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária" de Nelson Rodrigues

 



Sabe aquelas obras em que você demora pra sentir o gosto real e fica de perguntando quando é que as terminará ou deixará de ler, mas repentinamente a sua relação com elas melhora vertiginosamente e, de repente, você se sente tão atado à leitura quanto está preso no chão pela força gravitacional?


De progressão lenta, essa não é uma obra para quem está começando ao estudo de Nelson Rodrigues. Recomendo que se leia Nelson com calma, numa escala progressiva e enquadrando-o numa série de leituras complementares que deem um delineamento de compreensão mais cabal de sua complexa obra. Nelson Rodrigues se estuda com calma, com paciência, tal como se amadurece na vida mesma.


Nesta obra, tal como todas as obras rodrigueanas, há um questionamento acerca da moral. É muito fácil enquadrar o problema da moralidade humana em fórmulas abstratas, porém a realidade psíquica é o substrato que sempre nos falta e nos devora em nossas parcas análises. Na vida real, as questões sempre se complexificam numa teia relacional que escapa a qualquer desafio de inteligibilidade. 


A tensão esmagadora do real é poderosa demais para simplismos. E é tentando demonstrar o esmagamento do ideal que Nelson Rodrigues tece sua brilhante obra, detalhando minuciosamente o drama da alma humana e a razão de muitos males. Uma obra que busca a perfeição demonstrando as falhas humanas é, em si mesma, uma contradição tão doce e curiosa quanto a própria existência de nossa consciência.


Esta é uma obra que termina com tragédia e ternura. Em Nelson Rodrigues, até a doçura tem tragédia e os atos mais amorosos surgem dos suspiros de agônicas angústias. Certamente valeu-me a pena a leitura.

domingo, 5 de novembro de 2023

Acabo de ler "Toda Nudez Será Castigada" de Nelson Rodrigues

 



"O ser humano é louco! E ninguém vê isso, porque só os profetas enxergam o óbvio!"

Patrício (personagem de Nelson Rodrigues)


Enquanto que uma pessoa normal é vista como aquele que é a réplica da média social da sociedade em que se inscreve, a pessoa neurótica é uma em que o próprio desejo, e não a adequação social, é o impulso ordenador e dirigente da vida em si mesma. Logo o neurótico dá voltas em torno de si mesmo, de forma mais ou menos obsessiva.


A obra de Nelson Rodrigues é uma galeria de neuróticos. Neuróticos compulsivos. Pessoas portadoras dos desejos mais viscerais e mais sombrios. Capazes dos atos mais ensandecidos, das ações mais sanguinárias, dos amores mais mortais. A atrelação ao próprio desejo cumpre uma função trágica: essa guia a uma série de desentendimentos que, pouco a pouco, carregam as personagens da trama numa série de complexidades e complexos que posteriormente lhes esmagarão. Em Nelson Rodrigues, o desejo é triste pois (seu desfecho) é trágico.


Pode-se questionar a cultura em que Nelson Rodrigues estava imerso: a repressão social nas ações de indivíduos levava a quadros de extremização de conflitos. O corpo social atuava tiranamente - mais do que nos tempos modernos -, e a singularidade do ser era enfraquecida diante da própria impotência perante uma sociedade marcada por impulsos normatizadores. O desejo daqueles que são anormais são vistos como passíveis de ódio e logo passam pelo tribunal inquisitorial da sociedade.


O ser deseja e, na medida em que deseja, se vê diante da impossibilidade de desejar sem ser punido. Se o desejo vem de sua essência e ser a si mesmo é o mesmo que ser punido, a vida em si mesma é intolerável e deste conflito surge uma grande pulsão destrutiva. E é disto que a obra de Nelson Rodrigues retrata dramaticamente bem: a pessoa em sua mais triste singularidade a ser punida pelos desejos que não desejou ter. O pior tipo de punição é a punição sem escolha, essa mata o ser pouco a pouco.


A obra de Nelson Rodrigues nos faz repensar a nós mesmos e a nossa sociedade em conjunto. E também se somos o que somos ou a negação do que somos.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Acabo de ler "O Beijo no Asfalto" de Nelson Rodrigues

 



"Eu não beijaria na boca um homem que não estivesse morrendo"

Arandir


Toda obra de Nelson Rodrigues traz uma complexidade astronômica, mas essa é de longe uma das mais complexas. Iniciando-se com um estranho caso: um homem é atropelado, fica entre a vida e a morte, outro homem aparece e, antes que o primeiro homem morra, beija-o na boca. Uma obra que fala sobre um beijo homoafetivo em pleno 1961 não poderia deixar de ser polêmica.


Antes de tudo, o drama não se trata de homossexualidade e sim de bissexualidade. O personagem central é chamado de "gilete" (homem que corta pros dois lados) em um momento da trama. Mas isto não tira o fato de que a relação da sociedade com pessoas identitariamente distintas do padrão é bem esmiuçada na obra, servindo também para localizar e entender padrões culturais da época no trato de homens bissexuais e homossexuais - embora a trama se centre na bissexualidade masculina.


Falar em bissexualidade masculina é mais incômodo do que falar em bissexualidade feminina, visto que a última é mais bem aceita socialmente. E é nisso que Nelson Rodrigues se destaca neste empreendimento: esmiuçar a tragédia do martírio social do homem bissexual. Abordando toda uma exposição desnecessária, inquisição tribal e tentativas radicais de marginalização e exclusão.


O padrão social é definido pela sua repetição. Normalidade é, em sentido sociocultural, repetir a estrutura cultural na qual se está inserido. Pessoas que fogem do padrão são consideradas como anormais. O organismo social, que é uma soma de indivíduos que não conseguem fazer autocrítica dos padrões que foram condicionados a seguir, marginaliza todos aqueles que fogem as regras estruturalmente impostas.


Temos aqui uma luta: a de um homem bissexual sendo perseguido socialmente, tendo o seu direito a individualidade negado e a de uma sociedade "bifóbica" que age em forma de seita inquisitorial tentando persegui-lo por fugir dum padrão. O leitor provavelmente se deleitará ainda mais com a leitura se tiver algum grau de conhecimento nos âmbitos da psicologia e da sociologia.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Acabo de ler "A Serpente" de Nelson Rodrigues

 



As peças que começo a analisar a partir de agora são do segundo volume das Tragédias Cariocas. Isto é, aquelas que Nelson Rodrigues fez no final de sua vida. Como esta é a segunda parte, ela traz as últimas obras escritas pelo genial mestre.


A escrita de Nelson Rodrigues é simples de se compreender, todavia carrega algo além duma objetividade e simplicidade que se façam inteligíveis ao homem médio: carregam uma beleza poética assustadora. Isto é, é uma linguagem que tem uma duplicidade sintética: é de fácil assimilação e, todavia, tem em si uma substancialidade que transcende em muito o universo de banalidades do "homem massa".


Outro paradoxo rodrigueano é: suas obras poderiam se passar com qualquer um. Não é necessário ser uma pessoa de tipo excepcional na maioria delas. Porém é aí que se encontra, mais uma vez, uma maestria notável: Nelson traduz a psiquê humana com um grau de técnica que deixaria até Freud espantado.


Nesta peça temos unicamente um capítulo. O princípio imperante é o caos e este conduz todos os personagens até levá-los ao abismo. O esgotamento contínuo da sanidade até o desmoronamento cruel. Essa particularidade, a da destruição sistemática, faz dessa obra um caso singular na obra de Nelson. Visto que, em obras anteriores, a tragédia era mais focada em alguns personagens da trama e não em todos.


Caso o leitor venha a se interessar pela obra teatral de Nelson Rodrigues, recomendo que comece a leitura pelas peças psicológicas, depois indo para as peças míticas e só depois para as tragédias cariocas.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Acabo de ler "Teatro Completo: Tragédias Cariocas I" de Nelson Rodrigues

 



A leitura dessa análise pode ser precedida pelas análises anteriores, visto que essa só é análise final do conteúdo que vem sido exposto por aqui já a algum tempo.


Empenho-me em analisar toda a obra teatral de Nelson Rodrigues e disponibilizar uma análise que seja sucinta, porém que tenha algo de minuciosidade e subjetividade. O que não é algo fácil, porém que me disponho a fazer com certa satisfação, visto que Nelson é um dos meus autores prediletos.


Resolvi adentrar na análise das tragédias cariocas, última fase do autor, em vez de ir por aquilo que lhe seria mais "inicial" por assim dizer. Espero que o formato não desagrade aos leitores que esperavam algo mais metódico em ordem de leitura.


Essa série de textos que venho feito é, antes de tudo, um convite para aqueles que me seguem: leiam a obra de Nelson Rodrigues. Ela pode ser uma forma de se libertar e de amadurecer, encarando o mundo de forma mais sóbria e adulta.


Ler Nelson, nestes tempos de solidão, tem sido um pouco de alívio nessa escala de terrores contínuos, de preocupações inenarráveis, na qual se alinha a presente fase de minha vida. E creio que pode lhes ser útil lê-lo também.

domingo, 22 de outubro de 2023

Acabo de ler "Boca de Ouro" de Nelson Rodrigues

 



Nos segredos da impotência, se encontram os segredos da alma. Só o homem frente a realidade avassaladora que é a morte que ele se encontra com si mesmo em sua mais pura e plena face: a vontade de ontologizar-se e dar cabo a última pergunta que lhe conduz a vida que quer viver. Isto é, se não nos perguntarmos sobre a morte, não nos perguntaremos sobre a vida e adentraremos num círculo de vaidades que diluem a autenticidade de nossa existência num jogo de multiplicidades que se alternam.


Nelson é o mestre de ensinar a vida como ela é. Em vez de personagens plenipotenciários que alteram o mundo com o seu poder onipotente, onipresente e onisciente, temos o ser humano em sua condição mais primária e natural: a impotência. E é nessa impotência que se encontra a raiz das ações de nossos personagens, que lutam para ter alguma significação num mundo que, não estruturado para lhes satisfazer, atua antagônica e estruturalmente contra eles.


Quem, em sua humanidade, não se depara com os afetos transviados que se conduzem não a realização do desejo, mas a negação triunfal de suas expectativas mais tenras? Aqui temos personagens que são movidos pelas vísceras, sentindo-se traídos pelas dinâmicas psicossociais que sempre geram conflitos. O desejo de ser desejado é um dos aspectos mais determinantes da obra.


Boca de Ouro, personagem mitologizado ao limite, traz consigo uma mensagem: a pessoa que se marca para ser afetivamente marcada, seja no sentido bom ou mau. E é nisso que suas desventuras levam: a tragicidade do ser humano em seu ofício de ser querido. Já foi dito que o âmbito da cultura é o espetáculo do homem para o homem, visto que o homem quer mais do que um objeto, ele tem por objetivo ser amado.


Se tudo isso só leva a uma série de ações que visam demonstrar potência, temos uma série de fios que enforcam o personagem central da mitologização no momento em que ele se julgava mais poderoso. Tal lição, demonstrando a penosa realidade da vida, é uma verdadeira odisseia para quem se aventura na vida como ela é: um vaivém da potência e da impotência.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Acabo de ler "Os Sete Gatinhos" de Nelson Rodrigues

 



Nelson Rodrigues é um autor difícil de digerir. É como se tivéssemos uma doença mortal e, de repente, a cura fosse anunciada com um custo: um remédio tão desgostoso que nos fizesse chorar tamanha amargura. Um remédio tão amargo quanto a nossa própria enfermidade.  Mas um remédio que cura nossa doença mortal. E essa doença mortal é nossa vida de mentiras.


Com uma brutal hostilidade, Nelson Rodrgues é o profeta do óbvio ululante. É o reacionário que reage contra tudo que não presta. É o libertário libertino. É aquele que, no auge de sua padecida humanidade, resolveu revelar aquilo que há de mais misterioso, oculto e mentiroso em nós: nossa alma em sua essência.


Adão e Eva, na tragédia cristã, ao comerem o fruto proibido colocaram roupas. A roupa não é uma roupa física, mas a própria moralidade. A moralidade nada mais é que uma ilusão, uma mentira, um acobertamento de nossas vaidades. Ela é o fenômeno da racionalização: a justificação triunfal de nosso autoengano. Colocar-se nu perante Deus é dizer o que pensamos, tal como de fato pensamos, não a partir duma justificação social, dum enquadramento performático, mas da realidade nua e crua de nossa miserável e pusilânime subjetividade.


Quando a humanidade se defrontará perante Deus em si mesmo, face a face, revelando não a sua filosofia, porém a teologicidade de sua esperança? Este é o sentido profundamente cristão e moralista da obra de Nelson Rodrgues: a revelação da alma humana, a vida como ela é. Nelson não era tarado, a humanidade o é; Nelson não era louco, a humanidade o é; Nelson era um ex-covarde, a humanidade não.


Enquanto não ouvirmos a crueza da sinceridade confessional rodrigueana, seremos como uma gigantesca Israel: matando profetas para matarmos a própria possibilidade de nossos erros serem revelados. Pois há, em cada abismo humano - e todo homem carrega um abismo do tamanho de Deus -, um inconsciente que se esconde e um pecado que não quer se revelar. Neste sentido, tão podre quanto nossa própria essência incorruptível, Nelson era profundamente cristão.