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quinta-feira, 21 de março de 2024

Acabo de ler "Teatro Completo: Peças Míticas" de Nelson Rodrigues

 



Com esse texto se encerra, por fim, a mais grandiloquente saga de microanálises desse perfil: um passeio imortal pela obra do homem que se fez eterno pela sua produção teatral. É, para mim, um grande momento. Eu tenho a honra de dizer que sou daqueles que conseguiu ler toda a produção teatral de Nelson Rodrigues. E não só li, como analisei. Talvez não com a grandeza que mereceria um autor de estatura tão universal quanto Nelson Rodrigues, mas ainda assim, em minha pequeneza, pude divulgar as suas obras.


Nelson é um homem sem o qual nada faria sentido. Lembro-me até hoje que estava isolado, numa casa desocupada, lendo Pondé. E Pondé detalhou Nelson com uma infinidade de detalhes, tão belos e tão maravilhosos, que me fez, logo após terminar o seu livro, buscar um livro de Nelson Rodrigues na biblioteca para poder ler. Daí para frente, tudo mudou num absurdismo mágico.


Eu lhes digo orgulhosamente, sem medo de passar uma impressão de monotonia intelectual, que leio Nelson Rodrigues há onze anos. Não houve, desde meus 16 anos de idade, um ano que não tenha pego um livro de Nelson Rodrigues para ler. E isso demonstra todo triunfo de impotência apaixonada que essa obra me causa. Ela é como uma bomba que, ao explodir, causa um choque estremecedor cujo o impacto, na pele, não é o de dor e sim o de espantamento admirativo.


Nelson é, para mim, meu pai espiritual em duas grandes áreas: na dramaturgia e na crônica. Nessas duas áreas, Nelson reina na minha consciência, como uma espécie de imperador ululante e eu sou apenas parte do cenário que existe tão somente para justificar a beleza lírica de sua obra, tal qual a estranha Cabra Vadia que ficava comendo capim ou mato enquanto Nelson realizava suas hilariantes entrevistas imaginárias - dizia ele, em seu saber profético, que essas eram mais verdadeiras que as entrevistas reais.


O tempo passa, leio e leio vários e vários autores, numa maquinal erudição acumulativa. Só que eu tenho a certeza absoluta de que, em toda minha vida, lerei Nelson Rodrigues e/ou escritos sobre Nelson Rodrigues. Nelson Rodrigues é e sempre será isso: o trágico fulminante!

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Acabo de ler "Sobre o sentido da Vida" de Viktor Frankl (Parte 4)

 



Dizer sim a vida, apesar de tudo. Esta é a condição para viver, embora não seja fácil. Sendo a vida a indagadora de tudo, temos que escolher como agir e não questionar as questões da vida. O que podemos questionar, e isso sim nos cabe, é como agir. Somos livres comportamentalmente, mas não somos livres quanto às questões apresentadas pela vida. Ela é, e sempre foi, tal qual o destino.


Frankl nos conta um lado profético, até mesmo poético, do campo de concentração de Buchenwald: "queremos, apesar de tudo, dizer sim para a vida". O que esses prisioneiros fizeram, cantar em meio há tanto sofrimento, transcende qualquer concepção. É aceitação da vida até as últimas consequências. Mesmo com o sofrimento, mesmo com a dor, mesmo com a morte. E a vida existe e tem sentido apesar de todas as realidades conjunturais que se apresentem circunstancialmente. Isto é, o questionamento que a vida apresenta é variável, mas o sentido não. O sentido existe apesar de toda situação apresentada. Tal qual "Deus é", o "sentido é". Pode mudar de figura, de forma, de conjectura, mas não deixa de existir.


É preciso que exista, dentro de nós, um ímpeto de responder tal questionamento. Já que, como disse Frankl, a vida é um jogo existencial e todo esse jogo só pode ser respondido existencialmente. Ser é assumir a responsabilidade e agir. Ser alegre na resposta que iremos tomar, pois toda decisão assume a roupa de eternidade. Toda ação tomada se registra na eternidade. Fazer algo é, em última instância, realizá-lo eternamente. Não fazê-lo é eternamente deixar de o fazer naquele momento em específico que se registrou na eternidade.


Frankl está, para mim, como uma das melhores leituras de 2023/2024. Me ajudou - e me ajuda - em muito nesse processo existencial que tenho passado. Há, em mim, o desejo de viver apesar de tudo que tenho passado, de toda angústia psíquica que venho, nos últimos tempos, sofrido. Tenho o desejo que continuar a caminhar - ou, melhor, marchar -, apesar das circunstâncias desfavoráveis.

terça-feira, 12 de julho de 2022

Acabo de zerar "The Legend of Zelda: a Link to the Past" do Super Nintendo

 



Fazem anos que não zero um jogo de Super Nintendo, ainda mais um jogo longo e complicado como Zelda. Pra matar minha nostalgia, resolvi zerar esse grande diamante bruto do SNES. Demorei dias, é claro. Só que finalmente consegui zerar.

É incrível como uma franquia pode marcar a nossa cabeça sem que a gente se dê conta. Lembro-me de que, ao receber meu Wii em casa, eu disse a mim mesmo que zeraria Zelda. Dito e feito: o primeiro foi Wind Waker, o segundo foi Skyward Sword e o terceiro Twilight Princess. Hoje coloca mais um em minha lista: a Link to the Past, que optei por zerar num emulador.

É sempre fantástico entrar no complexo e lindo mundo de Zelda. Tudo no jogo é um gigantesco quebra-cabeças no melhor sentido do termo. E a necessidade de pensar faz parte da magia do jogo. Novamente estive a quebrar a minha cabeça para resolver todos os difíceis calabouços. Agora o que tenho é um recompensado orgulho de ter conseguido, mais uma vez, ter encarado tudo e vencido até o final.

O pensamento que tenho é que a vida, em si, é um grande Zelda - complicada e cheia de quebra-cabeças que te deixam com dor de cabeça. Se encararmos tudo até o final, quiçá Demise apareça, tal como em Skyward Sword e diga: "Você é o melhor de sua espécie". A vida é problemática e nisso concordo com Chesterton em uma frase: “Uma inconveniência é apenas uma aventura erroneamente considerada; uma aventura é uma inconveniência corretamente considerada.”

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Há um buraco no meu peito!

Há um buraco no meu peito amargo. Há um buraco que ninguém mais vê. Ninguém mais vê, ninguém nunca viu absolutamente nada. Ando a sangrar a cada dia, ando padecendo a cada instante. Em cada camiseta, há um sangue invisível escorrendo do meu peito. Eu tenho fôlego, folego o suficiente para caminhar sem coração. Sou esperto o suficiente para dizer que em palavras sutis, vejo conjurações. Conjurações diabólicas do inferno que são os outros. Tudo que quero hoje é chorar, tudo que quero hoje é esquecer até da mais feliz reminiscência, já que mesmo nelas me mergulho em ressentimento.


Eu não tenho esperança. O futuro não é incerto, ele é trágico. De onde vem tal certeza autovitimada? De onde vem a loucura que me abarca. Sinto meu nariz sangrar enquanto não sangra. Sinto meus olhos chorarem enquanto não choram. Sinto minha boca gritar enquanto não grita. Pessoalmente, pareço normal. Tão normal quanto qualquer pessoa normal pode ser. Só que meu grito silencioso só é silencioso externamente. Internamente ele é tão audível quanto real, não só real, é tão real quanto desesperador. Quem pode livrar o moderno átomo da consciência atormentada? É como se vermes invisíveis crescessem em minha cabeça anuviada, mexendo-se interminavelmente em minha consciência precária.

Eu vi o reflexo do espelho. Eu o vi. Ninguém mais o viu, só eu o vi, só eu ouvi, só eu senti. Ele gritava. Gritava enquanto saia sangue de seus olhos, de sua boca e nariz. Eu tive que fugir do banheiro em que estava o seu abjeto ser, para fugir do reflexo. Tão logo fugia, igualmente, da imagem da câmera frontal de meu celular. Tão logo fugia de cada encontro desencontrado. Minha boca secou, secou depois de imensamente gritar em gritos inaudíveis. Isso não é biológico, não é natural gritar sem gritar e depois cansar de tanto não gritar. Não é natural, não é normal, é sumamente antinatural e sobrenatural, portanto nada mais é mais estranho e mais humano.

As ideações suicidas são pensamentos ou projeções imagéticas? As ideações suicidas são pensamentos ou previsões de um futuro não tão incerto? O que eu quero é uma arma em minha boca seca, separando cada pedaço de meu cérebro num equidistante eterno. Eu quero ver, perto de uma estação de trem, um trem a passar na caminha cabeça, tal como se passasse num monótono trilho velho, livrando-lhe do que há de torpe. Eu quero morrer e mesmo assim ver todas as faces horrorizadas dessa cidade desalmada, conquanto que abundante em almas. Almas não mais conscientes, mas doentiamente alienadas.

Se tudo que vejo são demônios, é natural que eu igualmente o seja. Se o fim do homem é a felicidade, quão corrupto sou eu e quão corrupta é a nossa sociedade. Eu não posso mais beber para esquecer, já que o anjo da morte está sempre ao meu lado. Não posso fumar, nem a tranquilidade tóxica ao meu peito invade. Pelo contrário, sou bomba atômica em perene externalidade. É como se a tensão gravitacional ao meu ser esmagasse. É como se eu já soubesse: há mais coisas entre o Inferno e a Terra que a nossa vã esperança pode conceber. É impossível não falar tamanha heresia que no meu peito vazio e niilista se cria: preferível é a sorte do aborto, já que o destino do homem é caminhar em desalegria.

sábado, 16 de outubro de 2021

Comprei algumas coisinhas




Comprei um conjunto de coisas hoje.

1- Caderno:

Servir-me-á para o estudo de psicologia. Separo cadernos diferentes para diferentes anotações de estudo, assim garanto maior organização de estudo e uma variedade de assuntos analisados - aumentando meu horizonte conhecimento. Costumo chamar essa variedade ordenada de: "dieta intelectual". 

2- Tratado sobre a Tolerância: 

Achei esse maravilhoso livro por apenas dez reais, comprei-o pelo baixíssimo custo e também pela qualidade da obra. É uma obra que tive sempre uma especial curiosidade.

3- Caderninho Amarelo:

Será útil para anotações de livros com baixo nível de abstração, já que neles eu anoto bem menos.

4- "Pack de Canetas":

Como tenho um método de anotação dividido em etapas e gosto de anotar em diferentes cores para me localizar melhor na leitura, elas servirão exatamente para isso. Já que costumo escrever todos os dias, sempre tenho que pegar novas canetas.

5- Fones de Ouvido:

Servirão para meu celular, já que gosto bastante de ouvir música e também para meu 2DS quando eu jogar de noite.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Acabo de ler "A Cruz Azul" de Chesterton


 "— Você atacou a razão — disse o Padre Brown. — Isso é má teologia"


    Acabo de ler "A Cruz Azul". Esse é o primeiro conto em que o Sherlock Holmes católico, o Padre Brown, aparece. Ele descobre tudo mais pela introspecção sobre a natureza humana do que por uma metodologia científica - apesar de não negá-la. 


    Na teologia cristã, até a onipotência divina obedece a lógica. E isso se dá por uma razão precisa: a esperança superará o desespero por causa da esperança ser um fim supremo e a desesperança ser só a privação da esperança. A aparente desordem será um dia compreendida e quem crê em Deus crê na ordem, mesmo que esteja na mais profunda noite do espírito, na mais profunda depressão: um dia tudo há de ser salvo. E a salvação da criação é o mais profundo desejo cristão. É por isso que tudo nesse conto não parece ter sentido até chegar ao final. E no final tudo é salvo, tudo é ordenado, por uma boa razão: o fim da humanidade é retornar ao Jardim do Éden, para viver o paraíso da perfeita plenitude.


    Poderia dizer muitas coisas, mas seria privar esse magnânimo conto de falar por si só:


"— Ah! Sim, esses infiéis modernos apelam para a sua razão; mas quem seria capaz de olhar para aqueles milhares de mundos e não sentir que podem existir universos maravilhosos acima de nós, onde a razão é completamente irracional?"


"— Não — disse o outro padre —, a razão é sempre racional, mesmo no último limbo, na fronteira perdida das coisas. Eu sei que as pessoas acusam a Igreja de desvalorizar a razão, mas na verdade é o contrário. Sozinha na Terra, a Igreja torna a razão realmente suprema. Sozinha na Terra, a Igreja afirma que o próprio Deus é limitado pela razão." 


"O outro padre ergueu a face austera para o céu cintilante e disse: — Além disso, quem sabe se naquele universo infinito?..."


"— Infinito apenas fisicamente — disse o pequenino padre, voltando-se com energia energia em seu banco —, não infinito no senso de escapar das leis da verdade"


    O que há de se afirmar é que: o ser é. O sofrimento terá fim. É isso que aprendi com esse conto. O fim é a ordem suprema. O mal acabará. Essa é a razão da esperança e do caminhar. Essa é a fé cristã: o fim de tudo é a felicidade.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Acabo de ler: "Os Estudos na Ordem Dominicana"

 “In dulcedine societatis quarere veritatem"

(Na suave harmonia de uma comunidade fraterna, procurar a verdade em um estudo constante)




    Acabo de ler "Os Estudos na Ordem Dominicana" de Frei Carlos Josaphat OP.

    Esse "livreto" de 32 páginas foi a minha leitura diurna de hoje. Estou realmente feliz por ter entrado em contato com esse pequeno documento. Ele era a porta que eu precisava para entender a Ordem dos Pregadores (vulgo Ordem Dominicana). A forma com que essa ordem se liga a um exercício constante de estudo e de oração, em que cada convento é em si uma "escola", demonstra que o mundo ainda pode ter locais de contínua edificação. Usualmente estamos presos a rotinas emburrecedoras que têm a educação como algo meramente utilitário para a vida - e talvez até dispensável. Não se estuda porquê o estudo é também vida, mas sim por alguma razão utilitária - ascender a algum cargo, ter algum diploma ou conquistar alguma coisa. Os dominicanos têm uma relação mais pura com a vida intelectual e isso me encanta bastante.


    "Uma Ordem religiosa, uma comunidade que tendesse à perfeição evangélica, mediante a consagração da inteligência e fizesse do estudo sua grande ascese, nascia, portanto, como uma aspiração e uma exigência da Igreja, plenamente e em boa hora compreendidas por um grande Santo" 

    A Ordem Dominicana é muito interessante em muitos aspectos, só que é caracterizadamente intelectual. E sua inteligência é algo visto na amplitude de seus membros, todos dedicados a vida intelectual. O próprio convento é, em si, um local edificante: faz-se que se tenha tempo para o estudo e o estudo é élan vital da Ordem. A Ordem Dominicana é cheia de cursos e intelectuais. Um recanto de sabedoria e inteligência num mundo pouco amante da sabedoria e da vida intelectual como o nosso. Amar o estudo, consagrar-se ao estudo, é cumprir não só uma vocação puramente humana, mas também divina. O dominicano não pode ser só em coração dominicano, mas também em inteligência. Por tudo isso, a Ordem Dominicana é amável e, não só amável, como perfeitamente desejável e um exemplo de vida e inteligência para todos.

domingo, 1 de agosto de 2021

Nem eu sou, nem tu és - Covil de Máscaras


"Minha maneira de caminhar"
"Eu não mudei, só ganhei alguém pra me acompanhar"
"A vida inteira que eu quis voar"
"O que pesava demais eu deixei e fiz minha mente decolar"

 

    Nem eu sou, nem tu és. E como nenhum de nós podia ser ao lado do outro, é melhor não ter um laço que prende para dividir. Esse é certamente o texto mais triste que já escrevi. Eu de fato cresci ao teu lado e talvez tenha crescido ao meu. Foi um milagre enquanto durou. E de fato foi um milagre: de todas as combinações possíveis, essa talvez tenha sido a melhor. A amizade é uma forma de loucura. Ela do nada aparece e nos tira a máscara. De repente na amizade percebemos: somos quem somos e somos quem somos já que estamos com alguém com quem podemos ser. Na amizade, você não se justifica, você é tão leve tanto quanto nasceu. Isso é a amizade e esse é o dom da amizade: a transparência da sinceridade. A amizade, o amor e a família são bons na mesma medida em que não têm peso. O filho se afasta da mãe e do pai na medida em que já não pode ser sincero com sua mãe e com seu pai. O namorado abandona a namorada quando já não suporta mais ter que fingir. A amizade dura até que tenhamos que vestir roupas morais - a amizade dura até quando podemos ser quem somos ao lado do amigo, aí a amizade acaba. Depois disso, há peso, cansaço e morte. 


    Num belo dia, andávamos de ônibus. Foi a primeira vez que você esboçou ódio com tanta claridade. Eu senti todo teu ódio na inteireza de meu coração. Naquele momento, eu percebi que ao seu lado, não poderia ser eu. E que ao meu lado, você não poderia ser você. Libertá-lo era simultaneamente libertar-me. Nosso laço agora era um abismo para cada um. Nossos corações já não se tocavam, cada qual se autocentrava em seu mundo. Cada qual num perfeito e sincrônico divórcio - e de separação talvez você entenda mais do que eu, já que é disso que mais tem orgulho. Éramos não mais amigos, éramos estranhos. Só que isso era para mim um fato desde que te conheci: nunca tivemos semelhanças reais. E conforme o tempo passava nossas dessemelhanças cresciam. Ignorávamos o óbvio destino dissoluto como tolas crianças num jardim de infância. Você era como um liberal extrovertido impondo a sua ditadura liberal ao mundo e eu era como um introvertido nato lutando pela preservação de meu espaço - não, não sou duginista, mas isso é o que sinto realmente. Segundo Robert A. Johnson, há dois caminhos para a masculinidade: o cavalheirismo e o eremitismo. Embora hajam infinitas variações para os dois. Você, desde que te conheço, é um homem que escolheu ser cavalheiro, ascender socialmente. E eu quero ser um eremita, buscando meu desenvolvimento interior. Logo busco apenas subsistência para continuar em minha prática religiosa e intelectual. Isso não quer dizer que não procure um emprego, vou começar a buscar a partir de amanhã. Faz parte de minha reforma vivencial planejada há um pequeno tempo, mas afastar-me de ti é algo que penso desde que te falei do "Incolor Tsukuru".


    A vestimenta moral é um eterno desastre. Adão se vestiu perante Deus e, desde então, a humanidade não era mais o que puramente era, mas um jogo de justificações em que a consciência individual se perdeu. A vontade de poder só existe por causa da inaturalidade da personalidade humana que não pode mais ser, mas estar numa qualidade relativa de maior ou menor plenitude. Ao decair do paraíso, havia a escassez de recursos. Nela, na queda do homem, criou-se o reino da necessidade de qual falam os socialistas Agora a possibilidade de ser se vinculava a preservação física do próprio ser. O homem tinha que escolher entre ter um emprego e ser um sincero filósofo que questiona a sociedade e também a si mesmo. Para que alguém seja o que é, é preciso que ela saia da casa de seus pais. De algum modo, você deve ter sentido isso com sua família e largou-a para buscar maior liberdade de ser. E, de fato, onde se tinha respostas diretas, rápidas e certeiras, agora se há racionalizações. A criança cresce e não pode mais falar e nem pensar com a mesma liberdade de outrora ao lado dos pais. Adão não estava mais nu. Seu discurso moral agora pesava, era um discurso "justificacionista". Em outras palavas, Adão se tornou falso na medida em que tinha que se justificar. Ele não podia falar o que de fato queria falar. Eu senti algo semelhante ao teu lado: fazia poses inaturais que gastavam energia. Nossa relação começou leve, tão leve quanto o vento, no fim se tornou grave de tanto peso: para mim e para ti. Ao teu lado, eu não era mais eu. Justificar-se, posar, fingir: tudo isso envolve peso. Só que peso é gravidade. Quando menos percebi, estava vivendo um jogo de vivo ou morto: levante-se para mentir, sente-se para ficar livre momentaneamente. Estar ao teu lado tirava a autenticidade e pureza de meu ser. E de igual modo, privo-lhe de ser autêntico ao meu lado. No ônibus, pensei o seguinte: "se a gravidade aumentar mais um pouco, não seremos mais estranhos, seremos inimigos". E já que não somos mais amigos, não quero fazer com que sejamos algo mais estranho que estranhos, não quero que nos tornemos inimigos. Como eu prefiro não ter inimigos, afasto-me de ti. Já que com inimigos só posso ter batalha por sobrevivência.


    A diferença entre mim e você, é que eu sei que há uma adesão normativa em qualquer grupo ou pensamento que se filie. Eu sei que, no momento em que fui do mundo, aderi normativamente uma mentalidade hedonista e liberal do mundo ao mesmo tempo em que rejeitava o cristianismo. Ao mesmo tempo em que parcialmente rejeitava trazer pessoas religiosas ao meu íntimo. No íntimo, só podem haver iguais. E como eu era liberal, hedonista e niilista, só poderia ser autêntico com liberais, hedonistas e niilistas. Não se pode falar sobre uma vida sexual liberal para um colega que defende a vida monogâmica. A intimidade se perde na ausência de autenticidade. E como eu quero que você seja você e que eu seja eu, o melhor a fazer é separar. Você escolheu se afastar de pessoas religiosas num ato de liberdade, mas possivelmente condenaria pessoas religiosas que se afastam de pessoas irreligiosas em um ato de liberdade. Cristianismo, para ti, é um retrocesso. Em sua forma de ver, todo avanço em direção à religião é um erro, ao menos para ti. Isso se dá pela seguinte razão: para você a religião não importa, para você a religião é um engodo. Para mim, o mesmo não se segue. Só que para ti a evolução natural da história é essa. Isso é obviamente um mito hipotético esquerdista, mito que talvez seja também hipnótico, em que o autor da história sempre se confere o maior avanço no tempo. E isso faz com que você inconscientemente repugne e afaste pessoas com algumas diferenças intelectuais. Do mesmo modo que um religioso se afasta de irreligiosos, você se afasta de religiosos. Uma frase minha que sempre me lembro e sempre me falo é: "os parcialistas parcializam a razão". Você é vítima de sua própria parcialidade sem sabê-lo. Quanto a mim, a totalidade do mundo abarcado me faz querer não me parcializar, mas para tal devo afastar as paixões que me parcializam. Minha parcialidade é recusar a parcialização pelo amor a Deus, essa é a delimitância indelimitada.


    A crescente complexidade de meu pensamento necessita de Deus para aceitar todas as coisas para se tornar mais complexa. Não posso, então, parcializar-me. A vida para mim não é sexo. A vida para mim não é bebida. A vida para mim não é economia. A vida para mim não é raça. A vida para mim não é nem política. A vida para mim não é você. A vida para mim é tudo e isso e ainda mais. Logo não posso ser limitado por isso. Deus é, para mim, tudo isso em perfeição e em plenitude. Logo é a pura liberdade, Deus é pura liberdade e a religião me liga com todas as coisas e pessoas. Só que só posso me ligar com todas as coisas e pessoas por um preço: nenhuma delas pode pseudotranscendentalmente me levar ao esquecimento de Deus. Esse para mim é o sentido profundo da liberdade cristã e expresso por Paulo na Carta aos Romanos.

Romanos 13,13-14:

[13]Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de contendas, nada de ciúmes.

[14]Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites.

    

    E sei que, no final, todos os avisos e argumentos teológicos lhe soam estúpidos. Já que eu odeio aquilo que mais ama e você odeia aquilo que mais amo. E você dirá: "esse alienado, alienou-se e foi-se embora por causa de sua religião". O que para ti é tragédia, para mim é comédia. O que para você é comédia, para mim é tragédia. Isso deve ser superado pela aceitação paradoxal das duas coisas, só que essa aceitação não pode ser autoanulativa tal como o símbolo da cobra que come a si mesma. Isso deve ser superado levando ao crescimento dos dois. O fim do paradoxo é não só a circularidade continuativa, mas o crescimento dessa mesma circularidade. Devo, para isso, fazer com que você não seja mais meu melhor amigo. Podo a árvore para que ela cresça saudavelmente. Julgar-me-á um fanático, julgar-me-á um preso e um alienado. O que sinto por ti é o mesmo: esse alienado alienou-se e pretende largar o próprio emprego por causa de sua irreligião e seu pensamento. Esse alienado alienou-se ao ponto de querer afastar-se de todos por conta de sua irreligião e seu pensamento. Esse alienado fez a si mesmo um monumento, no qual se vê como imperativo histórico categórico e a qual todas as pessoas do tempo devem se curvar e se tornar como ele. A única coisa que peço a um homem é que seja o que escolheu ser, o que é e o que idealmente segue. Não peço a um islâmico a adaptação a um regime liberal. Vejo que em ti a liberdade consiste em Nietzsche, a vontade de poder. Só que isso é uma aderência normativa a ele, embora você possa fingir que adere a si mesmo. Em mim, não há uma real "aderência normativa" no sentido ideológico - nego a imanentização escatológica e ideologias me são como religiões deformadas por causa de sua má estrutura fôntica: a teologia me oferece uma constante necessidade de purificação epistemológica que aumente a abarcabilidade de meu horizonte de consciência. É por isso que o centro de meu pensamento não é um homem, não sou antropoteísta para declarar o homem como limite transcendental e o homem como um deus, o meu fôntico é um Deus onisciente, onipresente e onipotente. Nunca o abarcarei, mas numa delimitância indelimitada dedicarei a minha vida a isso. Se eu desisto disso, acabo por me perder numa parcialidade qualquer que obscurece a minha capacidade de pensar. É por isso que aquilo que eu chamava de loucura verde era pensada no "ser-mais-ser" e não numa crença, vício ou ato que parcializasse o ser. O fim supremo do ser é ser um ser ser que é. Logo o ser só é ser enquanto absoluto. Sendo o absoluto Deus, o ser só é ser enquanto o busca. Essa, para mim, é a liberdade e a pura liberdade. A única loucura saudável era o crescimento do ser em nível de plenitude perfeita. Aderência normativa e aderência heteronormativa - aqui não no sentido que o movimento LGBT usa - são, em Deus, o mesmo, visto que ele é os dois - e também é os três: Pai, Filho e Espírito Santo. A única liberdade é dizer: "o ser é", e buscar ser pela vida toda. A filosofia é venerável, mas creio que só a teologia é adorável. A filosofia é boa, mas pode ser infinitamente errante. Logo digo que: Philosophia Ancilla Theologiae (a filosofia é serva da teologia).


     Você sempre se lembra de quando saiu da casa de seus pais. Pensando congruentemente, quando deixamos de ser amigos de nossos pais? Isso ocorre quando não podemos mais ser. A vida ao lado de nossos pais se torna um grande jogo de justificações. Não à toa se busca outra morada. Por vezes em peito de novos humanos amigos, por outras em moradas físicas distantes do originário lar. É-se amigo dos pais até o momento em que se tenha que se vestir, tal como Adão, perante Deus. E não mais sendo, fica-se pesado estar ao lado daqueles que antes eram a fonte de nosso poder - o centro de poder é a comunidade a qual nos inserimos, a primeira é o lar. Sim, eu creio que o centro do poder deve servir ao interesse do ser, é por isso que sou "anticapitalista". O desenvolvimento da personalidade é, por vezes, um crime insustentável para o próprio sujeito. O custo da personalidade é um "divórcio" que se separa para crescer. Já que personalidade indica ao mesmo tempo ser e devir. O ser e sua caminhada são o mesmo, se não o ser não é ser. Se um se desconstrói, outro se destrói. É por isso que o homem caminha de acordo com sua fé. Como viver ao lado de quem amamos, se aqueles que amamos nos dividem e sentimo-nos destruídos ao lado dessas pessoas? Torna-se insuportável. Amar e gostar já não são o mesmo. Aquele que gosta quer por perto, só que não podemos ter por perto quem nos divide. Eu te amo, meu ex-amigo. Te amo o suficiente para dizer que te amo e para mim o amor é eterno. Para mim, se o amor acaba, não era amor. Amo-te o suficiente para querer que você seja quem você é. Para amá-lo perfeitamente, abandoná-lo-ei para que você seja quem é. Amo-te, mas não gosto de você. Só gosto de quem eu posso ter por perto e ainda ser eu mesmo. Só gostamos de quem podemos puramente ser, se não se perde a autenticidade. Você não pode ser ao lado de sua família, você não pode ser ao meu lado. E, não estranhamente, eu não posso ser ao teu lado. Embora meu frágil coração queira estar sempre ao teu lado, como quer estar ao seu lado agora, sou um homem racional e de compromisso com a verdade: ser filósofo é preferir a sabedoria. Você limitou meu intelecto conforme eu cedia as coisas mais por sociabilização do que amor pela verdade. E se eu continuasse seguindo meu caminho, teria de te fazer ceder. Como resultado, eu e você inexistiríamos. Seríamos perfeitamente limitados um pelo outro em uma relação indecorosa que humilharia dois estudantes de filosofia, já que cada um seria impedido pelo outro de ser filósofo. E eu não seria só impedido de ser filósofo, também seria impedido de ser teólogo. Cada um seria indigno de si mesmo, cada um seria a negação de si mesmo.


    Eu poderia fingir que ainda somos amigos quando na verdade não suportamos mais estar ao lado um do outro. Eu poderia privar-me, você poderia privar-se. Só que isso geraria uma ruptura interna em nossas duas consciências. Éramos amigos, mas não podemos idolatrar a amizade e nem fingir que ainda somos amigos. Quando ela deixa de ser edificante, tornando-se para os envolvidos privação-de-si, deve haver separação para que se haja união.  Afasto-me de ti para não lhe irritar. E também afasto-lhe de mim para que eu possa continuar a crescer. Poderia muito bem negar minha consciência. Poderia muito bem dizer não a mim por mais um tempo. Poderia achar que a consciência que tenho agora deve acabar. Só que, tal como no livro de Eclesiastes, tudo isso é vaidade. Eu cansei de mentir. Eu cansei de fingir. Quando eu te conheci, eu era alguém. Alguém que podia ser ao seu lado. Eu sempre lhe disse que a sua aderência normativa era grande demais e que você era ordenado demais. Era uma projeção: eu que sempre almejei a ordem. E percebo que secretamente amei a ordem. Amei  suficiente e secretamente até chegar o ponto de querer assumi-la. Talvez a ordem tenha sido a única coisa que de fato amei. Não quero ser mais uma figura conservadora lhe pesando os ombros, tal como a sua família. E como eu sigo ao lado de Apolo e você segue ao lado de Dionísio, que cada um siga a sua vida conforme o que ama. Se ficarmos ao lado um do outro, teremos de ser hipócritas, fingidos, falsos. Um odeia o que o outro ama. E se ficarmos juntos, teremos que cair na heresia da idolatria social em que a sociabilidade está acima da verdade intelectual tomada por cada um. E a maior heresia no campo do pensamento é tirar o critério intelectual da verificação intelectual e substitui-lo pelo critério social. Já que isso é a negação da consciência individual - portanto, a negação de si mesmo em prol de uma opressão social aqui assumida em forma de martírio social. Eu teria que parar de ser eu, você teria que parar de ser você. É por isso que Tomás de Aquino dizia: "Ser amigo é amar as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas. Não seja amigo de quem odeia o que você ama".  


    Seria, no entanto, mentira dizer que faço tudo por motivos religiosos, também faço em parte por questões filosóficas, políticas, adictas, românticas e sexuais.  A filosofia é primeiramente uma análise da vida que visa se tornar autêntica e só se tornando autêntica aceita a verdade. O discurso só existe na medida em que o ser expressa a sua vida de forma autêntica, se a análise discursiva precede a própria vida e como se vive: perde-se a própria filosofia que trata da vida. Só há filosofia na confissão. A coisa mais filosófica da Igreja Católica é o sacramento da confissão. Não sou ainda um rigoroso confissionalista, mas quero sê-lo. Como isso é uma carta filosófica, não pode deixar de ser verdadeira sem se tornar antifilosófica. O amor a verdade existe na medida em que a verdade é a expressão do ser que é e o ser deixa de ser quando mente. Eu preciso falar de tudo que sinto. Se eu não for verdadeiro, não serei filósofo. Se eu for falso, Deus deixar-me-á em minha própria mentira. O drama da filosofia é a tensão da expressão do ser. Se o ser não se expressa ou falsamente se expressa, ele deixa de ser e deixa de filosofar. O drama tensional da personalidade é visto naquela famosa frase: "ser ou não ser, eis a questão?". Esse é enigma que corresponde a frase: a vida é um esforço comunicacional. O ser pode mentir, mas se mentir deixa de sê-lo. Todavia tem que mentir, tem que mentir para assegurar a sua subsistência. Só que chega uma hora que a pura materialidade do reino da necessidade não pode ser mais soberano. Chega a hora em que César não pode ser declarado sumo pontífice, visto que isso seria uma tirania na ordem espiritual. O poder temporal existe, o poder temporal tem que ser respeitado: mas damos a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Você não pode e nem deve habitar em meu espírito, isso seria uma tirania sua em mim. Já não estaria comigo, estaria em mim. Como meu caminho é idealmente distinto de ti, afastar-me é não impor também a minha ditadura em você. Como não pode, nenhum de nós, ser-com-o-outro, mas ser-no-outro, faz-se necessário o afastamento para a preservação da liberdade e da consciência.


    Com o tempo, você me era uma mistura de diferentes desgostos. Não vou dizer que faço uma separação baseado num espírito puramente estóico e virtuoso. Isso não é uma reação furibunda de um santo fugindo do pecado. Não sou uma pessoa ilibada que fala do alto. Era uma mistura. Orgulhava-me de ter um amigo pegador, mas odiava o fato de eu mesmo não ter sorte com mulheres. E inveja-lhe na medida em que tinha "sorte". Sempre lhe acreditei inteligente, sempre foi muito bom falar contigo. Debater ideias é sempre fantástico, mas se vive por ideais. Debate-se ideias, vive-se por ideais. Ideia é debatido, ideal é vivido. A vida é um caminhar ideal. Nossas vidas, com o tempo, se debateriam idealmente. Cada qual caminhando por seu ideal. A separação era tão óbvia quanto também era necessária. Talvez eu seja mais um idiota atacando pedras no Muro de Berlim, na expectativa de fugir de seu controle. Ou um russo voltando para Igreja Ortodoxa como a verdadeira salvação após a derrocada do comunismo soviético - não só derrocada física e institucional, mas na mente do indivíduo que abraçou a fé e agora acredita no Reino de Deus e não mais no reino da pós-escassez comunista do Evangelho da Guerra de Classes e de Marx segundo Stalin. Era-me difícil sustentar ao teu lado meus ideais, visto que tinha medo de feri-lo, de magoá-lo ou decepcioná-lo. Tinha de ser menos eu ao teu lado. O sentimento se tornou maior que a razão e a mente se fechou ao pensamento. Já lhe amava mais do que amava a verdade. Já lhe amava mais do que a filosofia. Não conseguiria mais pensar ao teu lado, já que sua presença era maior que meu pensamento. Do mesmo modo que você saiu da casa de seus pais, eu deveria sair de sua aterradora presença.


    Faço uma ação pecaminosa baseado em algumas invejas veladas. Há pecado em minha ação, há muito pecado em minha ação, mas há também virtude. Um teólogo católico tradicionalista diria que o divórcio é um pecado mortal e que o fim do homem é a união. Há quem advogue o fim do divórcio, visto que o casamento é eterno. Há quem diga que o Estado não pode casar ninguém, casamento é coisa de Deus. Só que muitas vezes existem uniões que nos tornam menores. Se, por um lado, poderei não mais sentir inveja de seu ajustamento social e facilidade com mulheres. Por outro lado posso me separar dos rolês infames em que eu me entregava a toda sorte de vícios ao teu lado. Acabo por facilitar minha reforma vivencial: torno-me uma pessoa melhor afastado de ti. Posso finalmente assumir com mais inteireza o meu jeito de ser. Ser uma pessoa religiosa já estava em potência dentro de mim, sobretudo pelo esforço e tempo dedicado ao estudo disso. A matéria que mais gostei da faculdade era a teodicéia (ou filosofia da religião), sempre estudei mais filosofia cristã e meu TCC é feito com base na filosofia e teologia cristã. O jeito que sempre fui é aquilo que resolvi assumir. A graça não altera a natureza, contudo a aperfeiçoa. É como a música Beach Punx de Rodolfo Abrantes: "Minha maneira de caminhar/ Eu não mudei, só ganhei alguém pra me acompanhar/ A vida inteira eu quis voar/ O que pesava demais eu deixei e fiz minha mente decolar".


    Poderia te dizer que você se tornou outra pessoa. Só que, para mim, você é o mesmo desde que te conheci. Logo é uma mentira: quem mudou fui eu. Na verdade, quem cedeu ao que não se era, fui eu. Eu que larguei o tradicionalismo para lhe seguir como um condenado e subordinar-me a tua imagem. Você sempre foi muito organizado, educado e metódico em setores que eu não era. Em alguns aspectos, mais normativo que eu. Em outros aspectos, menos normativo que eu. A constância no emprego, a capacidade de manter relações, a facilidade de construir relações. Com o tempo, percebi que desgostava de ti, mas bastava-me tornar mais liberal. Não consegui, não consegui parar de ler os autores que amava. Nem parar de ler livros religiosos. Senti-me um exilado. Exilei-me por bastante tempo de mim mesmo. Quanto mais eu me exilava de mim, não compactuando com as minhas próprias leituras, mais me odiava e mais te odiava. Um autista não pode enganar tanto o seu hiperfoco. Quando comecei a escrever esse texto, já desgostava de ti fortemente há um bom tempo, mas desde que uma de nossas amigas conversou comigo, dizendo atos que você praticou junto a outro amigo nosso e atribuiu a nós três, passei a ver uma crescente necessidade desvinculativa. Eu estava lá, conversando com todos, tal como uma pessoa real: entretanto, eu não era eu. Outras mulheres ali estavam, falaram-me mal de ti. Senti-me ambíguo: ao mesmo tempo em que odiava o que diziam, sentia que finalmente era benquisto socialmente como uma pessoa diferenciada e desvinculada de ti. Senti a necessidade de finalmente competir. 


    Não posso fugir dos dias em que conhecemos elas. Foi a segunda que me despertou, mas a primeira barbaramente dançou comigo e me tratou com carinho. Sabe como são as garotas gentis, sabe como a gentileza delas pode ser facilmente confundida com amor. Só que na primeira o meu coração não tinha se fincado tão fortemente nas trevas da rivalidade. Foi a segunda, foi com ela que as espessas penumbras fincaram-se em meu peito. Naquele dia, foi a primeira vez que ficamos com uma mesma mulher. Beijava a mesma mulher que você beijava num jogo tão democrático quanto estranho. Por um instante, igualei-me a ti, ao menos que em aparência. Era delicioso a sensação de aparente igualdade. Foi algo que envolveu poder, mas igualmente calor humano. O fato de envolver poder em minha mente, não tira a pureza do ato: eu era participante de tudo. Naquele momento, amava os dois e queria os dois. Era como vivenciar o dogma da trindade. Só que essa mesma pessoa que eu chamei brigou comigo atribuindo a mim atos que eram teus. Para ela, não éramos dois homens, éramos um homem só. Sua imagem era por demasiado grande para me verem como uma entidade diferente de ti. E isso dói. Dói como olhar para o espelho e ver que o coração foi raptado. Ali meu ser foi negado. Ali eu parei momentaneamente de existir como pessoa. Era como o livro do H. G. Wells: "O Homem Invisível".


    Como eu era tão somente uma pequena sombra a parasitar uma grande estátua pós-moderna num museu um tanto hedônico, decidi cair fora e visitar o museu da arte sacra - e é o único museu que eu poderia amar sem sentir vergonha. Secretamente juntava forças para me converter. Isso eu já antevia em H. G. Wells. Todos os seus personagens eram excêntricos e de algum modo participavam da discussão de sociabilização e dissociabilização. Alguém é mais ou menos sociável, alguém é mais ou menos dissociável. Eu me enquadrava mais, por minha excentricidade, no aspecto dissociável. Logo poderia me encaixar em sociedades fechadas. É por isso que eu fui channer por um grande período de minha vida. Já antevia que eu deveria seguir meu próprio caminho, tal como a Nintendo caiu fora da briga pelo melhor hardware na sétima geração de consoles, eu deveria fazer como ela, criando meu próprio "Nintendo Wii" de ser. Não competiria contigo vendo quem era mais progressista e mais "transudo". Deveria apostatar de minha vida hedoniilista para fugir da constante desigualdade. Assumir a assimetria como parâmetro e dissociar-me de grande parte do que fiz parte e que me caracterizou particularmente por um grande período de tempo. Tudo isso é gravidade, tudo isso é pecado, mas também coparticipante de meu desejo de ser santo. Sim, tudo isso é inveja. Só que o que é em parte inveja, pode ser reintegrado a outras coisas e participar de meu desejo de santidade. Sim, tudo isso é também uma forma de bissexualidade e poliamorismo. A estranha pergunta: "você namoraria com uma mesma mina que eu?" agora reaparecia. Só que não pude evitar o inevitável. E nem o posso. Você se tornou uma grande estátua pós-moderna: liberal, progressista, adicto, sexualmente liberal, reformista das tradições mitológicas, poliamorista, conversador nato, aderente da filosofia da esquerda progressista. Você era o artigo principal. 


    Didaticamente falando, meu caro, você era um grande PlayStation 2, o console que mais vendeu na história humana. Quem ficou em segundo lugar mal se comparou. Eu era como o último console da Sega, o Dreamcast, a ponto de falir. E de Sega eu entendo bem: alguns momentos de sucesso e muitos momentos de crise e fracasso. Só que mesmo quando a Sega fazia sucesso e dava certo, ficava em segundo lugar. Ao teu lado, eu sempre fui um marginalizado posto em segundo lugar. Por vezes eu era o Beta, mas em muitas eu era o Ômega. Não tinha conexão com nada e ninguém queria estar ao meu lado. Só me suportavam por eu ser seu amigo. Se tivesse muita gente, não me conectava integralmente com ninguém. Ficava na reserva em meu canto, não podendo falar para não criar constrangimento. Mesmo que eu te amasse enormemente como o melhor amigo que eu já tive, mesmo que você me quisesse ao teu lado, os encontros públicos com outras pessoas da faculdade me faziam ver que eu não poderia nunca estar em pé de igualdade com a sua pessoa e ter conexão real com elas. Nesse ponto, eu era como um grande Nintendo 64: meus pensamentos eram como cartuchos competindo com CD's. Enquanto você recebia coisas, eu recebia a conta gotas.  Acho que eles desgostavam de mim, mas eu secretamente desgostava de quase todos. Sua imagem é um álbum conceitual de uma banda indie bastante moderna. Sua vida é uma série da netflix cheia de um pluriverso de lacração. Você é a união de atributos que a sociedade gosta. Eu sou a união de atributos que ela desgosta.


    Constantemente eu pensava no meu eu anterior. O eu que era antes de ser internado em Santa Catarina. Sempre alternei entre o conservadorismo e o tradicionalismo e o liberalismo e o socialismo. Quando criança, quis ser padre. O cristianismo vinha e saia de minha vida - preferencialmente o católico. Só que eu nunca pude largá-lo em totalidade mesmo na época em que eu era ateu militante, eu sempre tinha que voltar ao meu hiperfoco autístico da religiosidade. Converter-me e desconverter-me era rotina constante. Eu sempre fui ordenador em certo aspecto. Sigo de forma estruturada e ordenada. Isso transparecia em meu método de anotação, mas logo começou a transparecer em outras coisas. Eu sempre organizo a comida de uma mesma maneira. Eu sempre sigo a mesma tática de gameplay em alguns jogos. Parece-me que a condição autística é ordenadora por ser viciada em reprodução. É nisso que consiste o meu "vício" em cultura japonesa: o foco deles na aprimoração do processo é fantástico e embora existam fórmulas semelhantes, o processo as torna diferente. Só que havia uma dúvida: eu era tão progressista, mas também era tão conservador; eu era tão liberal, mas também era tão tradicionalista. A unificação do eu se perdia com constância nos vaivéns. Coube-se a Chesterton, com a sua epistemologia da complexidade, unificar minha mente tão dividida. Foi assim que meu eu religioso encontrou-se com o irreligioso. Agora eu poderia finalmente integrar uma consciência que se envolvia em constantes jogos tensionais. 


    Só que foi na terceira mulher, aquela que tem nome daquela que aparece só de quatro em quatro anos, que a relação se tornou insuportável. Eu ouvi, vi e senti o inferno. Eu tinha encontrado uma mulher que eu poderia amar. Poderia até mesmo amar ela a teu lado. Completamente heterossexual, perfeitamente bissexual. Estávamos numa manifestação e talvez esse tenha sido um dos rolês mais loucos. Você ficou muito mal. Eu fiquei tão preocupado que segurei a tua mão. Tive medo, por ti. A filha de nosso outro amigo nasceu e morreu no dia anterior. Como alguém nasce e morre no mesmo dia? Voltando de ônibus, passamos pelo local em que eu passava, em que eu fazia tratamento, quando estava no pior período de minha vida. Naquele dia, dormimos na mesma cama. Você estava muito louco, mas naquele momento você estava acabado e dormiu como um urso em hibernação. Dormi pouco, visto que não consigo dormir sem remédios. E eu me lembrei de quando tinha dezessete anos. Lembrei-me de quando eu dormia o tempo todo. Dopava-me para dormir que nem um louco. Era como o livro: "Como me tornei estúpido" de Martin Page. Só que, em contrapartida, minha forma de impossibilitar o meu pensamento era via sono. Tomava remédios para dormir que nem um louco. Visto que, quando acordava, sentia dor e mais dor. Enquanto eu lembrava de meu sofrimento, enquanto eu recordava de como eu sofria ao estar acordado você dormia. Eu não podia fugir de meu sofrimento dormindo, tal como outrora. Naquele fatídico momento, eu me lembrei da opressão do não-ser. Eu senti tanto medo que tremi. Tremi e chorei. Não conseguia nem falar. Quis fugir. Quis me matar. Só que me controlei. Acordei-lhe, falei contigo enquanto me derretia em lágrimas. Você voltou a dormir após a breve conversa. Joguei Mario 3D Land enquanto arrumava meus pensamentos. Decidi que me tornaria um ex-covarde. Que arrumaria as opressões de minha vida. Que tiraria tudo que me particularizava. Agora tudo o que via em ti era a reprodução da opressão do período em que passei o maior sofrimento de minha vida. Eu não queria mais estar ao teu lado. O instinto vital bateu tão forte que me deixou novamente nu perante Deus. Tão nu que senti o frio do inverno do inferno, senti o quanto estava afastado de Deus no calor de teu lado. Quis mudar a minha vida, antes que ela terminasse numa tragédia grega. Conforme o tempo passava, Deus se tornava quente. Você se tornava frio. Por amor a ti, fiquei mais tempo ao teu lado. Só que não posso assim continuar: na noite em que dormi ao teu lado, cuidei de ti de forma que você nunca cuidaria de mim. E a frase que surgia de minhas entranhas era: "ele não faria o mesmo por mim". Senti raiva, uma raiva brutal. Navegar é preciso, é precisa relativizar o ídolo para se dar bem com Deus. Afastava-me, desde daquele dia, de ti e tua presença. Primeiro, mentalmente. Agora depois de tanto preparo, posso finalmente abandoná-lo com clareza e retidão. Embora meu coração ainda lhe queira como fiel amigo, devo seguir a razão. Naquele mesmo dia, eu mesmo lhe disse: "não há dependência e nem autonomia absoluta". Essa frase cravou mais meu peito do que o seu. Ela era a necessidade paradoxal-dialética, na qual comecei a minha pequena reforma.


    A "virada conservadora" não é um produto pensado por um curto prazo, pensava em iniciá-la até mesmo ao lado de minha ex-namorada e antes dela. Pensava, já naquele estranho momento, ter uma melhor gestão. Sair da sombra de ti. O plano não deu certo, mas foi prorrogado. Nada é feito a partir de nada. Toda conversão e toda apostasia é criada por uma sucessão de momentos até que adentrem na inteireza do ser. Eu marinava lentamente numa panela. Era preparado num jogo de temperos. Comentários aqui, pensamentos ali, vivências acolá, estudos para cá. Tudo me preparava para isso. Foi algo intencional, mas foi preciso juntar coragem. Conversei com meus dois mestres de filosofia algumas vezes sobre a minha possível reconversão, lentamente eu me preparava. O plano original ao entrar na faculdade era o de fazer filosofia enquanto eu me preparava parar entrar numa ordem religiosa. Depois era apenas estudar teologia. Com o tempo, o plano foi se alterando demais de seu percurso. De forma lamentável e lenta, eu já não era quem eu era. Meu ser ligava-se demasiadamente ao teu. Logo precisava tirá-lo lentamente de ti. Como eu mesmo lhe disse: não se pode tirar um braço na esperança de superar um vício, um pensamento ou alguém. Num sonho, faltava-lhe um braço. Só que eu também perdi meu braço. Eu perdi a mim mesmo. Deveria recuperar-me. Só se pode superar alguém por relativização, o que é grande de alguma forma deve ficar menor. Só se pode superar através de novas conexões. Todo ato agora era replanejado para ficar maior. Prenuncia-se a virada conservadora. Era preciso retomar o controle do corpo para retomar o controle da vontade. Era preciso preparar a inteligência para abdicar do mal. Era preciso fazer crescer a inteligência e a vontade para gerar a intencionalidade. Armei-me da filosofia cristã e de algumas outras mais tradicionais. Ato contínuo, aprontava-me cada vez mais. Primeiro, largar o cigarro. Depois estudar o suficiente para se preparar para a reconversão - não estranhamente meu TCC era de filosofia cristã. Ao escrever o TCC, lembrava-me constantemente que era a construção dessa grande retomada de controle de minha própria vida. Agora, era preciso parar de ver pornografia e afastar-se das outras drogas. Estou conseguindo com relativo sucesso parar de ver pornografia. Sem estar ao seu lado, as outras drogas saem facilmente, visto que só as utilizava socialmente. Conforme o tempo passava, eu ia galgando de controle em controle. Ao teu lado, habituava-me ao mal. Desviar-me de ti rapidamente era preciso, mas eu demorei para ceder nesse plano. Só que não poderia pausar a minha "virada conservadora" que alterava substancialmente a teia de relações com reformas que se prosseguiam. Procurar uma ordem ou arrumar uma namorada. Conseguir um emprego para conseguir pagar alguns cursos que quero entrar. Reformas e mais reformas. Só que toda essa autonomia que fui ganhando, foi um esforço contínuo de oração e reeducação da vontade. 


    Estar ao teu lado era a impotência perante a desordem. Enquanto estive contigo, não poderia tomar rumo na vida. Era desordem atrás de desordem. Tornei-me um extremista. Em meu jogo de pensamento, só havia a desordem em extremismo. A condição da aceitação do paradoxo, ou seja, da ordem junto a desordem foi necessária para o meu desenvolvimento. Tive que reconstruir a minha vivência religiosa de pouco a pouco para conseguir me manter sem me matar. Fui pouco a pouco acolhendo a Deus em meu coração. Tudo isso, é claro, foi um gigantesco processo. Simone Weil conseguiu também reestruturar a minha visão sobre Deus, a incapacidade de vê-lo uniformemente agora já não era um problema, era até um auxílio teológico. A leitura de Leonardo Boff ajudou em certo aspecto. Com eles, parei de me assemelhar contigo na visão sobre a ordem. Agora Deus era plena ordem e ordem nada mais era que desordem não assimilada. Aquilo que é momentaneamente ininteligível nos soa como loucura, mas conforme vamos avançando acabamos por nos tornar mais ordenados. Como pessoa influencia pelo conservadorismo e tradicionalismo, a filosofia é para mim uma constante ordenação do ser. Só que eu não fujo do conflito tensional da desordem: ela deve ser encarada, acumulada e inserida para o desenvolvimento do ser que ordena a desordem que assimilou: o homem sensato tem a tragédia em seu coração e a comédia em sua cabeça. O filósofo é amante da desordem, mas na mesma medida em que torna o dado ininteligível da desordem em ordem inteligível. A ilusão moderna é pegar sistemas pré-inteligibilizados para ordenar o mundo, a isso chamo de adesão coletiva-dogmática em que se pega a doutrina de outrem. Você pode reclamar disso da seguinte maneira: "há, há, há, mas você pegou a doutrina católica!". E eu lhe digo: recentemente Bento XVI afirmou que a pureza doutrinal é um engodo, a doutrina é filha de uma vida. Logo a doutrina é algo vinculado ao espaço-tempo e nele se insere. Não há pureza doutrinal, há uma doutrina que surge expressa pelo jogo tensional da vida. O religioso não tem como parâmetro algo falível como a guerra de classes, o mercado, o individualismo ou o coletivismo. O religioso tem como parâmetro a transcendência absoluta - Deus - em que os parâmetros crescem cada vez mais, isso torna a complexidade cada vez maior e inabarcável. O intelectual progressista só é inovador no sentido em que pega um aspecto do real, assume-o como realidade absoluta e cria argumentações com esse fetiche mental. O intelectual conservador pode não inovar, mas ele não tira a complexidade da realidade. Nesse sentido, prefiro tentar ser conservador.


    E conforme seguia meu ritmo de Apolo, mais me tornava um apologeta de Apolo. E, por ironia do destino, Apolo e apologeta rimam: um é um nome de um deus pagão, outro é costumeiramente empregado a defensores de alguma religião - sobretudo a cristã. Jovens feios e bobos como eu não "têm" escolha "além do idealismo". Somos platônicos na mesma medida em que não damos sorte com mulheres. Pessoas como eu, jogam de Nosferatu em Vampire Bloodlines: uma classe de personagens feios, excêntricos e que vivem no esgoto. Quando saímos de nosso esgoto, sentimos o martírio social. Somos repugnados do mundo. E você sempre prestou e prestará culto a Maia, deusa eterna do mundo físico e do mundanismo, vista que deusa da ilusão do aparente. Logo você é mais dionisíaco. Isso, para mim, é só um jogo de personalidades e não uma luta de verdade. Não sou "ideologicamente" introvertido, sou introvertido. Isso não é um problema, é um fato.


    Lembro-me que eu te falava, na rua, que há oprimidos que também são opressores. E você, para defendê-los, disse que pessoas que sofreram opressões tendem a se tornar reprodutoras da opressão de alguma maneira. E achei meio curioso, meio nojento e meio hipócrita: "um filósofo que defende a inconsciência irracional. Um aluno de psicologia que gosta de Freud e defende o reino perpétuo da opressão do inconsciente no sujeito, escravizando ele num período intemporal de opressão". Por outra ironia ou talvez por outra coincidência, estava assistindo a missa no momento em que comecei a pensar nesse texto e me senti extremamente feliz e liberto. Uma frase de São Paulo me libertou: "Eis, pois, o que eu digo e atesto no Senhor: não continueis a viver como vivem os pagãos, cuja inteligência os leva para o nada." (Efésios 4,17). E é aparentemente isso que sinto em sua frase: a defesa do nada. O vencimento do não-ser sobre o ser, da opressão sobre o homem, da antifilosofia sobre a filosofia. Para ti, o que reina é a desordem. Para mim, desordem é uma forma de loucura, mas a loucura deve ser abrida para que se torne sã: é o jogo paradoxal-dialético. Ordem é loucura assimilada. O homem para ser são deve transformar a desordem em ordem, isso é um esforço intelectual absurdo, mas necessário. É por isso que, creio eu, que Boff diz que fé é desordem: já que ela é a abertura do ser para uma complexidade que aumenta o seu horizonte de consciência e vivência na mesma medida em que o ser aceita a sua inabarcabilidade. Deus é ordem em perfeição, mas o religioso só pode assimilá-lo como desordem até que se torne ordem. Esse é o dom da fé.


    Quando eu me tornava cristão, um estranho fenômeno ocorreu. Para a maioria das pessoas, era como se eu fosse Anakin virando Darth Vader. Era como se Obi-Wan aparecesse e dissesse:

- Você se tornou tudo aquilo que jurou destruir. 

    É cômico como tal imagem aparece ao lado da imagem de Pedro fazendo a tripla confirmação perante Cristo, depois de negá-lo três vezes. Eu neguei a Cristo várias vezes para ser teu amigo. É ainda mais cômico como eu aparento ser um Judas Iscariotes reverso, tinha que escolher a autenticidade do ser ou ser teu amigo. Ou um apóstolo Paulo que não era um fariseu, mas um Agostinho inculto em sua vida sexual desregrada: eu tive que escolher entre a vida que tinha ao teu lado e a vida que eu realmente desejava ter. E embora eu adorasse falar para ti sobre meu passado sexual liberal e que hoje julgo perverso, nunca disse que amei o meu passado. Nunca amei e, não ironicamente, nunca fui amado. Não amava e nem era amado. Pertencia a descendência amaldiçoada de Caim: não era amaldiçoado naturalmente, mas sim pelo que eu acreditava erroneamente e fazia. Só que você adorava lembrar de quando nos conhecemos e o que lhe contei. "Você sabe o que você me disse quando me conheceu?", sim, eu sei. Eu sei que tenho vergonha do que te contei. E também sei o que sentia quando te conheci e o que sentia pelo o que te disse quando te conheci: dor. O que lhe contei só demonstrava a minha vida errante, reduzida as cinzas de uma diletante loucura. O que havia em mim e o que houve em grande parte do tempo era aquilo que se chamava desespero.


    Um jovem autista e imaturo é uma tragédia na escola, visto que se torna alvo perpétuo de quem descola. O descolado sempre me pareceu um vilão descomprometido. E como eu era forçado a aderir a descolagem para me manter vivo nessa sociedade hiperextrovertida, neguei-me por muito tempo. Veja, por exemplo, o programa Pânico na TV e Pânico na Band. Os personagens são descolados que vivem a irritar e perturbar. No fundo, todo programa do Pânico era para mim uma profunda e contínua sessão de humilhação. Minha real felicidade era a leitura e o videogame. Só que como somos condicionados, tive que admitir a falsa verdade do mundo: diversão é extroversão. Logo eu devia aderir uma vida vácua. E estar ao seu lado sempre foi um curso de extensão em bullying em sentido figurado. Você nunca me oprimiu, mas os seus (anti)valores sempre me foram opressivos. E esses mesmos (anti)valores foram a causa de minha punição cega no fundamental e no ensino médio. Você era o mesmo descolado descomprometido que sempre odiei e em parte sempre busquei adquirir alguns benefícios.  Só que não estou aqui para buscar uma forma "channer" de "orgulho falho", já que não sou mais "channer": o que tenho orgulho é da introspecção que faz parte profundamente de minha personalidade e de minha vida. A introspecção é mais benquista no meio religioso. Sou um introvertido que deve sair do armário da ideia. E sempre me orgulharei de preferir mergulhar em livros do que fazer sexo. É por isso que muito tempo quis e ainda sinto querer entrar na vida religiosa. 


    Conhecemo-nos há três anos atrás. Hoje sou "outro" alguém, e esse alguém que eu sou não suporta mais estar ao seu lado. Já que estar com você é gravidade. É peso. Já não suportava muitas de suas doxas. Tal como quando você me atacou gratuitamente na sala de aula virtual enquanto eu falava que o professor deve vestir o jaleco tal como o marido e a esposa vestem o anel de casamente. Coisa que faz sentido se houver uma mínima compreensão da chamada vida monástica e vida conventual: a vestimenta que o religioso ganha é para o religioso a prova de quem ele é "casado" com a sua religião. Sendo isso, senso profundo de religiosidade, senso profundo de identidade. Quando eu disse que o professor deve vestir o jaleco tal como o marido ou a esposa veste o anel eu quis dizer que: o professor deve ter um profundo senso de identidade que lhe dê responsabilidade para sua profissão e quem entra em sua responsabilidade, educando o aluno com amor e dedicação. O amor do professor é tão grande que ele quer que o aluno (ou educando, se preferir) consiga não só assimilar ao conhecimento, mas que também se torne um filósofo. O professor ama o saber mais do que qualquer coisa. E nesse preciso sentido ele veste o jaleco tal como o casado e a casada vestem a aliança: num profundo ato de amor, conhecimento e dedicação. Claro que você, desconhecedor da teologia - e, sim, você não sabe lhufas de teologia - não saberia do que se tratava. Mas é claro que isso não lhe impediu de agir como um babaca. Você disse a todos: "Gabriel, você é inconveniente". Minha filosofia parecer-lhe-á uma inconveniência, já que ela é, em parte, o oposto da sua e, em outra, é o que sou e me neguei a ver e a ser.


     Meu lado se tornou um enfado. Teu lado se tornou um enfado. E eu percebi: eu já era um peso para ti e você se tornou um peso para mim. Para que tanto teatro? Isso é vaidade. Isso é vaidade e vento que passa. Não, eu não lhe odeio e nem fico feliz com isso. Fico triste. Tristíssimo na verdade. Você foi o melhor amigo que já tive. Em meu coração, ainda é meu melhor amigo. Mas por vezes se deve se resistir a si mesmo. Só que você nunca me considerou o seu melhor amigo. Essa desproporcionalidade sempre caracterizou enfaticamente nossa relação. Só que eu sou também o partido que parte e se parte. E estou indo embora. Não quero me vingar de nada. Acontece que não te suporto. Como estar contigo é privar a mim de mim mesmo, nossa convivência é um enfado, mesmo que eu te ame e ainda te considere meu melhor amigo. Eu não posso ser eu mesmo. Eu não posso pensar como eu mesmo. Eu não posso falar como eu mesmo. Tudo tem limite. Quando algo que outrora era transcendental agora te priva do seu ser holístico, do seu ser integral, esse algo deve parar. E por vezes esse algo é alguém. A transcendência se integra a holisticidade do ser. A pseudotranscendência atrofia uma área do ser. Estar contigo era estar só contigo. Eu perdia a tudo mais, inclusive a mim. 


    Uma amizade deixa de ser amizade, um amor companheiro deixa de ser amor quando a autenticidade não é mais possível. Tudo vira um teatro. E logo a relação se perde, saindo da graça para a gravidade. O que antes se havia era uma pureza, em que cada um era o que era. E era pura e simplesmente. Agora quando um não pode ser, o outro também não pode. Um se torna o peso do outro, tornando um e o outro pouco sustentável. A circularidade normal de todas as relações se perdem e os relacionados se tornam um desgaste um para o outro. E no jogo das máscaras, em que cada um não pode usar a própria cara, há sempre um enfado. Vira-se um covil de máscaras em que cada um anda cego de si mesmo. E de enfado e em enfado se destrói. Já que na graça, os dois eram como se fossem uma fonte, fonte cooperante e edificante. Num livro islâmico, dizia-se que Alá multiplica o bem daquele que faz o bem; todavia dizia-se no mesmo livro que Alá fazia que aquele que fizesse o mal pagasse o preço dele de igual por igual. Alá não multiplica o mal por causa da natureza estéril do mal: o vício é pagado pelo vício, a virtude é recompensada aumentando o tamanho e nobreza do ser. Essa mesma regra se aplica a amizade e a condição tensional da personalidade daquele que quer ser quem de fato é. Aquilo que é verdadeiramente transcendente nos integra com todas as coisas. Aquilo que é falsamente transcendente nos faz pagar pelo que fazemos, afastando-nos de todas as coisas. Sendo um a negação do outro, nada se pode fazer. Viramos viciados. É preciso desatar o nó que prende para para dividir - ao teu lado, pouco sou eu; ao meu lado, pouco você será você. Assim você será livre e eu me verei livre para abraçar mais ardorosamente minha maneira de caminhar. Ver-se-á, também, livre para ser quem é. Nem eu sou seu teu amigo, nem tu és meu amigo. Nem eu sou, nem tu és.

sábado, 31 de julho de 2021

Um esboço de minha filosofia

Esse foi um pequeno texto escrito em meu celular, sem rigor e apenas para dar uma breve exposição do que realmente penso sobre as coisas.

    Decidi fazer um esboço de minha filosofia, já admito: é apenas um esboço. Não esperem grandes coisas e nem grandes respostas sistemáticas, é apenas o esboço. Se eu pudesse definir algo da estrutura central de meu pensamento, defini-lo-ia assim:


Há o fôntico:

    Essa é a estrutura primária e alta de meu pensamento. A minha "doutrina" seria a doutrina do fôntico. Nela se encontra a delimitância indelimitada, que é a negação da parcialização pelo amor a todas as coisas - ou seja: pelo amor ao absoluto. Só que isso é puramente negativo ou uma forma de crença metodológica: o movimento "natural" é o fechamento do ser para o absoluto, logo a abertura é um movimento que se recusa a esse fechamento. Visto que, embora seja natural se fechar, o ser se cumpre quando se totaliza. 


    É necessário entender: o absoluto é a busca por todas as coisas. E não só por todas as coisas: é a busca por todas as coisas de forma perfeita e plena. Logo é a busca pela essência - só que a essência é a condição minimal, quando a descobrimos, descobrimos que ela já não é mais essência. A característica da essência é ser mínima por abarcar um maior número de coisas. A medida em que as coisas conhecidas aumentam, a essência se torna mais mínima, visto que se torna mais abarcante. Logo decorre-se uma necessidade paradoxal-dialética: a essência é mínima já que é máxima, essa é a condição minimal.


O ser só é ser enquanto absoluto: 

    Sendo o ser humano aquele que não é, mas aquele que está (existência), devido ao seu caráter perfectível, mas imperfeito: o ser só é ser quando se abre. Sendo o homem imperfeito, ele não pode assumir uma forma absoluta de forma cabal. Sendo o homem perfectível, pode se tornar mais perfeito na medida em que atinge maior plenitude. O homem existe, o homem não é, mas o ser é: o homem "é" nesse movimento de abertura, só que o homem só se mantém aberto quando se fecha na abertura - paradoxal, mas o paradoxal é a condição do real. 


    Daqui se decorre que: o ser é. Mas ele não é de forma essencial, ele "é" de forma provisória: é na existência que o ser descobre a essência - logo o homem "está", mas estar é buscar o ser que é. O homem se esforça para abraçar o mundo, mundo que o torna maior. E toda vez que o homem se torna maior, torna-se menor. Visto que o homem é perfectível e todo estado de perfeição que se acrescenta lhe é insuficiente. A característica da proximidade é a equisdistância: quando mais se aproxima, mais se afasta. Esse é outro movimento paradoxal-dialético, só que como já disse: o paradoxal é a condição do real. Toda vez que descobrimos algo, toda vez que descobrimos alguém: então descobrimos que não descobrimos o suficiente, todo passo aproxima e todo passo afasta. Toda proximidade leva a distância. 


    O ser é. O ser busca estaticamente ser. Só que esse buscar é um buscar movente. Toda vez que o ser se realiza, sua potência se torna ato. E esse ato trás novas potências. O homem busca novamente o absoluto. E vai de absoluto em absoluto. A busca do ser é ser. Existência é essência. Essência é existência. A existência confirma a essência na medida em que o homem buscar ser. O ser confirma a existência na medida em que só há ser na existência. 


Delimitância indelimitada:

    É o fechamento na abertura, movimento paradoxal-dialético necessário ao pleno desenvolvimento humano. Veja que ele se fixa em consubstanciação contraditória: o homem deve se fechar na abertura. Só o fechamento na abertura é válido, visto que é o único fechamento que não se fecha ao absoluto - e o absoluto é a concretização do ser.  O homem, todavia, não abarca o absoluto: o homem só abarca parte dele e deve continuamente se abrir para ele. 


    Dá-se a busca brutal: o homem deve se abrir, mas muitas vezes não sabe que se fechou. E muitas vezes quando se abriu, naquele momento se fechou. É por isso que: a abertura não é um movimento natural, mas aparente. É preciso de um esforço purificador: se abre a algo e a alguém, mas depois é preciso se abrir a mais algo e mais alguém. Abre-se a um entendimento, fecha-se a outro. 


Do pôntico: 

    É o que se decorre da fonte. Se a fonte é o absoluto, o pôntico é a ligação para com o absoluto. Ele é a ligação que traçamos com todas as coisas. O fôntico determina tudo. O fôntico traça a energia. O pôntico é a relação com a fonte e decorre dele. 


    Toda crença central é o fôntico: seja a guerra de classes, a raça, a coletividade, a individualidade. O fôntico é a fonte que determina todas as coisas. Mas, como deve ter percebido, se o fôntico for demasiado limitado, também será limitada a relação (a pôntico). Logo uma crença limitada não é capaz de se correlacionar com o mundo de forma certa - a delimitância indelimitada.


Heterodoxia heresiarca:

    Somos singulares, logo somos relativos. Porém a busca do ser é a universalidade - que é o absoluto. Logo só se pode partir da relatividade que somos nós para o absoluto que devemos desejar.


    O objetivo da relatividade é absolutividade, visto que o contrário da ligação com todas as coisas é o sofrimento em alguma medida. A felicidade está em amar, amar é fechamento na abertura. Todo ser busca o universal, mas todo ser é relativo em sua universalidade. O homem só compreende o universal pelo relativo, mas o fim do relativo é o universal. Daí decorre a própria singularidade inabarcável de cada ser: todo ser é absoluto de alguma forma. E mesmo que estudemos alguém em toda nossa vida, não abarcaremos ele. Não se pode abarcar o singular, mas deve-se tentar abarcar o singular por toda nossa vida.


    Logo a própria doutrina vem do sujeito. É por isso que é heterodoxa: ela não busca se condicionar. E também é heresiarca: se só se pode partir do relativo ao universal, a única existência possível é a heresiarquia que nega sistematicamente tudo e com saber - não pode ser herege quem não sabe. Porém ao mesmo tempo a relação é feita pela busca do entendimento, é a abertura epistemológica que dita a relação. Todavia o ser só pode ser relativo, mesmo que compreenda o universal que se torna cada vez mais universal.

domingo, 4 de julho de 2021

O MOMENTO DE MINHA RECONVERSÃO

 



"No entanto, Ele restringiu algo. Digo isso com reverência: havia naquela personalidade perturbadora um fio que deve ser chamado de timidez. Havia algo que Ele escondia de todos os homens quando subia ao monte para orar. Havia algo que Ele cobria constantemente por um silêncio abrupto ou por um isolamento impetuoso. Havia uma coisa que era grande demais para Deus nos mostrar quando andou sobre a Terra, e, por vezes, tenho imaginado que era a Sua alegria". (Ortodoxia, Chesterton).


    Eu tenho há muito tempo negado a me confessar. Chesterton diz que: "Um dos paradoxos da história é que cada geração é convertida pelo santo que se encontra mais em contradição com ela" (Santo Tomás de Aquino, Chesterton). No tempo pós-moderno, ideologicamente moldado no extremo-mundanismo, confessar-se é o oposto de nosso tempo. Tudo é volátil, sem essência e com pouca direção. É por essa razão que o religioso é visto com tamanho desdém. O problema é que eu vi que eu era um hipócrita. O problema é que eu vi que eu era uma pessoa de péssimo caráter. E o pior de tudo: eu vi que era profundamente infeliz. Não confessar é negar-se a ser sincero, é negar-se a ser filósofo, pois não há filosofia sem sinceridade. E quanto mais eu tentei ser sincero, mais vi que desejava ardorosamente a Deus. No livro "Filosofia da Crise", Mario Ferreira dos Santos conta-nos que há um "saber que sabe que sabe". Esse saber é a profunda consciência. É, talvez, a reminiscência do mundo das ideias. Ou, melhor, a recordação do amor divino - que é a transcendência por si mesma:

"Tomamos consciência da nossa individualidade através do eu. Mas acaso o eu não tome consciência de si mesmo quando toma consciência da individualidade? Não há aqui uma consciência da consciência? Um saber que sabe que sabe? E não há em nós algo que sempre se coloca além de todo o nosso conhecimento, algo que conhecemos, sempre distante, sempre cada vez mais distante, que marca uma presença que sempre se separa de tudo quanto delimitamos, pois conhecer é sempre delimitar? E esse saber de um saber que se distancia, logo que traçamos um limite, não é um grande ilimitado, que constantemente evita prender-se dentro dos limites?"

"E dessa forma, entre os limites de todo o nosso conhecer, não há sempre em nós, algo que conhece, que os vence, porque deles não se deixa apreender? E que sempre se separa, distante, sempre o mesmo?"
"Ainda é crisis. Mas é também já um apontar de uma vitória que vivemos em nós."

"O leitor, ao ler estas páginas, pode tomar consciência de que lê estas páginas. Não se desdobrou agora? E não pode tomar consciência de que se desdobrou nesse momento em que toma consciência que lê estas páginas? E que sente em tudo isso? Que algo nele é rebelde a prender-se em limites."

"Algo que os capta, mas que não quer limitar-se, e que sempre escapa a toda limitação, algo que em nós é ilimitado, algo que em nós afirma uma vitória sobre tudo quanto estabelece uma fronteira, porque vence e ultrapassa as fronteiras."

    Eu estava em crise. A minha crise durou anos. Mas nesses últimos dias eu chorei de felicidade. A negação de ser foi superada pelo amor de ser. Eu não estava vivo. Vivia num cadáver. Eu fugia do grito profundo de minha alma. Tal como Gustavo Corção disse no livro "A Descoberta do Outro": "foi preciso que coisas graves acontecessem para que eu me desse conta de estar amarrado ao meu próprio cadáver". Foi preciso um longo período de crises recorrentes para que buscasse uma transcendência que até então negava. Foi preciso que eu me encharcasse no lodaçal para ver que eu era um perfeito idiota. E quanto mais eu estudava, mas percebia o quão longe do Belo, Bom e Verdadeiro estava.

    É engraçado, certas coisas marcam mais a mente do que outras. E, apesar de parecerem desconexas, dão uma iluminação de ordem crescente na razão - e ultrapassam-na gerando aquilo que chamamos de fé. Eu estava num "encontro a dois" com o meu melhor amigo, a ex-namorada dele e uma mulher que acabara de conhecer. E eu fazia uma série de piadas acerca de tudo, visto o perfeito imbecil niilista, liberal e pessimista que era. E, de certa forma, as pessoas curtiam minhas piadas indecorosas, asquerosas, desordenadas e baixas. Só que depois eu disse que lia um livro islâmico e isso, para minha surpresa, causou um tremendo mal estar. Isso lhes soou insuportável. Era-lhes intolerável a religião.
Não me entendam mal, não sou islâmico e no momento em que contava as piadas também não era cristão. Só que sentia solene respeito, um respeito mais amável para com o Islã, para com o cristianismo e para com o judaísmo com o respeito que devotava a qualquer outra coisa. O Islã para eles era mais insuportável que qualquer outra coisa, ao menos eu senti essa atmosfera. E eu já haveria de supor o resto: a religião haveria de ser mais odiável que qualquer outra coisa, a Igreja Católica haveria de ser mais odiável que os mortos pelos sistemas ideológicos que a substituíram. Perdi a conta de quantas vezes neguei-me a dizer o meu amor cristandade, amor que me era quase inconsciente, mas persistente.

    Achava-me numa contradição. Numa contradição brutal. Num mundo líquido, irresponsável por inconsistência lógica, nesse extremo-mundanismo da vaidade e vento que passa, eu sentia respeito venerável por aqueles que tinha na vida uma hierarquia e uma meta. Eu respeitava os muçulmanos, pois sua vida tinha "dirigibilidade". Eu admirava Dugin, por romper com a pós-modernidade ultraliberal. Eu admirava a China por ser ter a sua própria identidade política. E cada vez mais eu via que todos aqueles que estavam ao meu redor nada tinha a ver comigo em minhas crenças e respeitos. Era-me melhor um católico rezando para Virgem Maria do que um liberal hedonista cultuando o Super Mario e autointitulando-se "gamer" - como se jogar videogame fosse o suficiente para se construir uma sólida personalidade. Só que, para a maioria de meus contemporâneos academicizados o suficiente para pensar descompromissadamente, idolatrar um entretenimento deveria ser menos ofensivo do que venerar uma mulher digna, a maior mulher que já andou por esse vale de lágrimas.

    Descobri que minha vida era uma grande caminhada inconsciente. Em um momento, uma mulher que conhecia pouquíssimo tempo perguntou algo mais ou menos assim: "se você tivesse um gênio (leia-se gênio mágico) perante você, o que você pediria?". Essa pergunta infantil, que norteia para o real entendimento da consciência me despertou. Mas, momentaneamente, eu disse que queria pegá-la. E de fato a pegaria. Mas hoje, com sinceridade suficiente, eu diria algo mais que isso. O pensamento daquele momento era desordenado, mas a pergunta era tão real como uma faca no coração. A resposta que eu daria hoje seria: "que eu prefiro o cristianismo a tudo isso". Eu diria que: "um ano de cristianismo é mais louvável que toda a história pós-cristã". Eu diria que: "os dogmas são mais louváveis e livres que todo pensamento supostamente livre". Que "minha vida não faz sentido algum". E que "aderir a essa era me tornou um enfado para mim mesmo e para todos os outros que eu amei". E que Eclesiastes, ao lado de Ortodoxia, encontram-se nas leituras mais prazerosas que já tive em toda minha vida. Diria que amo mais a patrística, que amo mais a escolástica. Que minha disciplina favorita, nesses três anos que estudei filosofia, era a teodiceia. Mas se eu pudesse dar uma resposta cabal, uma resposta como que definitiva, essa resposta perfeitíssima, essa resposta seria a oração do credo:
"Creio em Deus pai todo poderoso, criador do céu e da terra, e em Jesus cristo seu único filho, nosso senhor que foi concebido, pelo poder do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu a mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia subiu aos céus e está sentado a direita de Deus pai todo poderoso donde há de vir e julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito santo, na Santa igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém."

    Eu não suportava mais acessar mais à internet. Um mundo cheio de pornografistas e palpiterios, vulgarizadores até da vulgarização e o que mais era insuportável era que eu era um desses pornografistas, palpiteiros e vulgarizadores. Meus amigos afastavam-se de mim na medida em que me aproximava da teologia e por devotar-lhe respeito. Percebi que um grande contingente de pessoas me desgostavam por gostar do cristianismo e desgostavam-me por não ser cristão. Desse duplo desgosto, que era encontrado na vísceras do discurso, me revelou um triplo desgosto: "desgostam-me por gostar do cristianismo, desgostam-me por não ser cristão e desgostam do cristianismo!". O que lhes seria mais odiável:
A- achar admirável as respostas cristãs mesmo sendo agnóstico?;
B- achar admirável as respostas cristãs mesmo não as seguindo?;
C- achar admirável o cristianismo?

    Não sou referencial moral para coisa alguma. Na verdade, eu sou o pior dos pecadores. Não sirvo para base de nada. Todos aqueles que se basearem em mim cairão em pecado. Confesso que não levei uma boa vida até o presente momento. Confesso que sou pouco provido de inteligência. Confesso que me falta o dom da escrita. Mas o que sobretudo agora confesso é que se desgostavam de mim por gostar do cristianismo, desgostem de mim agora por ser cristão. E a única afirmação que lhes darei se encontra em 1 Timóteo 1:15: "Esta afirmação é fiel e digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior.". A única afirmação real, a única afirmação possível é que sou o pior pecador que vocês conhecem. E a minha única salvação está presente nesse fato agora consciente: a consciência de minha própria ignominia, de toda minha iniquidade, de todo meu mau senso.

    A pergunta sobre qual era o fim último do homem e qual vida vale a pena ser vivida. Esse tipo de dúvida me pegou e refleti. Eu levei o "liberalismo" a sério - entenda-se liberal por "mente aberta". Deveria ler de tudo, ser mente aberta. Eu fui um agnóstico metodológico lendo livros judaicos, cristãos, islâmicos e até budistas. Eu busquei a verdade em diversas doutrinas que mantive recorrente contato. Eu era um ateu prático e um agnóstico imbuído de um amor à literatura religiosa. Eu fui liberal o suficiente para ser superficial o suficiente de não dar rumo a minha vida. E eu admirava aqueles que, a contramão do gosto pós-moderno, deixaram o "mundo líquido" de lado e responderam o que precisava ser respondido. Pois responder é ser responsável e aquele que não responde é quase sempre um depressivo preso na sua própria inconsistência. E eu era um depressivo preso na minha própria inconsistência. Eu vejo mais felicidade num monge "preso" na sua clausura monástica do que no homem preso na liberdade pornográfica. Eu vejo mais realidade no "velho testamento" do que em toda indústria pornográfica. Se um pobre homem disser que está viciado em pornografia, um gentil defensor da liberdade sexual o sondará a acreditar mais fortemente na fé da revolução sexual e da grandeza da indústria pornográfica - essa, claramente, ligada ao tráfico de pessoas - do que com a própria razoabilidade e o bom senso - ou o senso comum: pare de ver pornografia.

    Pensava com meus botões desmiolados e tipicamente desordenados: "quem eu sou?". Toda resposta era subjetiva demais. Era "individualista" demais. Era fraca demais. No fundo, no fundo mesmo: admirava-me com o descomprometimento. Só que eu era vítima e ideólogo de minha própria morte. Todo esse descomprometimento revelava uma patologia deliberativa que só me levava a uma procrastinação vivencial. Essa procrastinação tornava-me débil. Eu me tornei um fracassado na medida em que me tornei um homem conformante ao meu próprio tempo. "Se o mundo é líquido, cabe-me ser volátil". A volatilidade era um de meus principais problemas. Eu me tornei um inútil, um amante de vanidades. Minha vida esbarrava-se em coisas menores, as coisas menores pareciam-me grandes por falta de proporção e hierarquia de valores adequada. Até a vida intelectual tornou-se quase impossível devido a ausência de ordem e disciplina daí decorrentes.

    Fui um desses vulgarizadores da vontade - e usualmente quem vulgariza algo é quem mais pretende defender esse algo como doutrina -, tornei-a uma ideologia. Agora o que me importava era "cumprir". A execução deixou de ser quase que inexistente para se tornar um fetiche. E, de fato, eu cumpria uma série de coisas. Cumpria livros. Cumpria listas. Cumpria jogos. Só que isso era apenas uma forma de viver debilmente, não aparentava direção alguma. Só que havia uma direção inconsciente: era a velha crença liberal, subjetivista, mente aberta e descomprometida. No fundo, no fundo mesmo, eu só falava de uma série de coisas aleatórias e contraditórias para não ter vinculação alguma e, por conseguinte, eximir-me de uma responsabilidade vivencial que desse sentido real a minha vida. O cumprimento de uma vontade era mais uma desordenada forma de ser um idiota, mais uma forma de fugir da verdade. A vontade pela vontade é a negação da própria vontade: uma vontade desordenada é só uma forma bestialógica de um desejo travestido de vontade. É animalesco.

    Eu estive num grande exílio. Um grande exílio em que tudo me era equidistante. Todo passo afastava-me da onde eu queria chegar. Não havia leveza. Não havia amor. Só havia um desespero que fingia ser coragem. E meus únicos momentos de felicidade real encontravam-se na leitura prazerosa de Chesterton, que me fez rir de verdade. Suas eternas palavras gravaram-se em minha mente: "o homem sensato tem a tragédia em seu coração e a comédia em sua cabeça". Eu era um fanático. E toda fanatismo que tinha foi gerado por minha mentalidade antirreligiosa, anticristã e anticatólica. O "credo acadêmico" diz que a "liberdade do pensamento" gerará pessoas críticas, mas o que as escolas formam todos os dias não são socialistas, anarquistas ou liberais, ela gera gamers, quiçá "potterheads" ou algum vulgar amante de futebol. E isso não é estranho, até estranhamente me lembra outra frase de Chesterton: : “Tire o sobrenatural, e o que resta é o antinatural”. Quando eu comecei a orar e pedir a Deus o aumento de minha inteligência, quando eu comecei a amar a ordem, tudo isso propiciou um aumento qualitativo nos estudos - não só qualitativo, quantitativo também. Tornei-me mais inteligente, mais estudioso. Eu estudava agora com confessionalidade, meu estudo era voltado à salvação de minha alma e não ao velho liberalismo descomprometido. Custou-me muito entender que toda linha de estudo segue, consciente ou inconsciente, uma doutrina. Eu estudava de tudo, aleatoriamente, para seguir fielmente a ideia liberal. Como resultado: criei um saber pouco sistemático, desordenado e causador de toda uma série de crises mentais. Agora todo estudo que faço tem como fim a verdade.

    Tudo que antes eu virava contradizia-se vivencialmente, embora houvesse lógica no meu discurso e ele fosse "lindo, democrático e popular": ao virar socialista, odiei a burrice das classes mais baixas; ao virar nacionalista, odiei o Brasil; ao virar anarquista, odiei a forma como os homens gastavam a sua liberdade; ao virar progressista, odeie fortemente as minorias em sua condição alienante; ao virar liberal, matei minha liberdade; ao virar individualista, só via abstrações e não humanos; ao aderir o amor livre, parei de amar. Todo discurso era belo, mas a consciência sempre me alertava que era o contrário. No fundo, bem no fundo, eu sabia que eu era um mentiroso. Essa criticidade que rodeia os meios acadêmicos nunca acaba em autocriticidade e toda ausência de autocrítica leva a consumação de uma vida hipócrita.

    Pensando novamente na frase do Chesterton: "Tire o sobrenatural, e o que resta é o antinatural", parece-me que o mundo moderno segue essa regra a risca. Toda intenção termina num redundante fracasso. Quando os antigos defensores da liberdade sexual pensavam que, com sua doutrina nova e libertária, levariam a um florescimento erótico em que todos conseguissem liberar ao máximo a sua sexualidade, eles não sabiam que posteriormente essa mesma liberdade sexual mataria até mesmo o erotismo - lembre-se: pornografia não é erotismo. Quando os progressos defensores do livre-pensamento acreditavam que iriam gerar a mais fantástica abertura epistemológica da história, eles não sabiam que, num futuro nem tão distante, viveríamos na ditadura da doxa ou "volitiva", em que cada um enclausurar-se-ia em seu castelo opinativo e odiaria qualquer pessoa discordante. A defesa original do livre-exame, em que cada um olharia uma obra e entraria num debate coletivo para entendê-la precisamente, foi destruída: o livre-exame logo se tornou livre-interpretação e a livre-interpretação tornou-se a ditadura da doxa, a unidade perdeu-se.

    Há algo que eu demorei a entender. E essa foi a transdescendência que leva à transcendência. Só que teve um dia que eu compreendi tudo. Foi quando busquei a Deus. Foi no momento que percebi que a autonomia e dependência não são opostas, mas um paradoxo amável que faz com que cada uma seja o que é. E essa transdescendência já estava prevista, filosoficamente, em Sócrates na douta ignorância: "só sei que nada sei". E essa douta ignorância que em humildade busca o conhecimento, sempre sabendo-se ignorante e incompleta, torna-se mais conhecedora na medida em que sabe que não sabe. E isso me remete a Chesterton: "Ele não apenas se sentia mais livre quando se curvava; ele de fato se sentia mais alto quando se curvava; ele de fato se sentia mais alto quando se curvava. Dali em diante qualquer coisa que retirasse esse gesto de adoração acabaria atrofiando-o ou mutilando-o para sempre. Dali em diante ser meramente secular seria servidão e inibição. Se não pode orar, o homem se sente amordaçado; se não pode ajoelhar-se, ele se sente posto a ferros" (O Homem Eterno). Eu aderi a maior tarefa intelectual já concebida: estudar e amar a um Deus onisciente, onipresente e onipotente - perto disso, tudo parece coisa pouca, pois o grau de abstração da teologia está para além do máximo e do possível, a teologia é a ciência do impossível. Ao orar e ao chorar eu compreendia algo: eu sou maior quando me ajoelho a algo que me transborda. O paradoxo é a chave do real, o paradoxo é a condição mesma do real e Jesus mesmo disse: “Eu vim a este mundo para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tornem cegos.” (Jo, 9:39). O paradoxo é a condição do real e o cristianismo é a religião do paradoxo. Viro cristão por amor ao real e por amor a verdade.

    Após esse relato, segue-se a oração "Tarde Te amei" de Santo Agostinho, Confissões 10, 27-29:

1. Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova… Tarde Te amei! Trinta anos estive longe de Deus. Mas, durante esse tempo, algo se movia dentro do meu coração… Eu era inquieto, alguém que buscava a felicidade, buscava algo que não achava… Mas Tu Te compadeceste de mim e tudo mudou, porque Tu me deixaste conhecer-Te. Entrei no meu íntimo sob a Tua Guia e consegui, porque Tu Te fizeste meu auxílio.
2. Tu estavas dentro de mim e eu fora… “Os homens saem para fazer passeios, a fim de admirar o alto dos montes, o ruído incessante dos mares, o belo e ininterrupto curso dos rios, os majestosos movimentos dos astros. E, no entanto, passam ao largo de si mesmos. Não se arriscam na aventura de um passeio interior”. Durante os anos de minha juventude, pus meu coração em coisas exteriores que só faziam me afastar cada vez mais d’Aquele a Quem meu coração, sem saber, desejava… Eis que estavas dentro e eu fora! Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti. Estavas comigo e não eu Contigo…
3. Mas Tu me chamaste, clamaste por mim e Teu grito rompeu a minha surdez… “Fizeste-me entrar em mim mesmo… Para não olhar para dentro de mim, eu tinha me escondido. Mas Tu me arrancaste do meu esconderijo e me puseste diante de mim mesmo, a fim de que eu enxergasse o indigno que era, o quão deformado, manchado e sujo eu estava”. Em meio à luta, recorri a meu grande amigo Alípio e lhe disse: “Os ignorantes nos arrebatam o céu e nós, com toda a nossa ciência, nos debatemos em nossa carne”. Assim me encontrava, chorando desconsolado, enquanto perguntava a mim mesmo quando deixaria de dizer “Amanhã, amanhã”… Foi então que escutei uma voz que vinha da casa vizinha… Uma voz que dizia: “Pega e lê. Pega e lê!”.
4. Brilhaste, resplandeceste sobre mim e afugentaste a minha cegueira. Então corri à Bíblia, abri-a e li o primeiro capítulo sobre o qual caiu o meu olhar. Pertencia à carta de São Paulo aos Romanos e dizia assim: “Não em orgias e bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,13s). Aquelas Palavras ressoaram dentro de mim. Pareciam escritas por uma pessoa que me conhecia, que sabia da minha vida.
5. Exalaste Teu Perfume e respirei. Agora suspiro por Ti, anseio por Ti! Deus… de Quem separar-se é morrer, de Quem aproximar-se é ressuscitar, com Quem habitar é viver. Deus… de Quem fugir é cair, a Quem voltar é levantar-se, em Quem apoiar-se é estar seguro. Deus… a Quem esquecer é perecer, a Quem buscar é renascer, a Quem conhecer é possuir. Foi assim que descobri a Deus e me dei conta de que, no fundo, era a Ele, mesmo sem saber, a Quem buscava ardentemente o meu coração.
6. Provei-Te, e, agora, tenho fome e sede de Ti. Tocaste-me, e agora ardo por Tua Paz. “Deus começa a habitar em ti quando tu começas a amá-Lo”. Vi dentro de mim a Luz Imutável, Forte e Brilhante! Quem conhece a Verdade conhece esta Luz. Ó Eterna Verdade! Verdadeira Caridade! Tu és o meu Deus! Por Ti suspiro dia e noite desde que Te conheci. E mostraste-me então Quem eras. E irradiaste sobre mim a Tua Força dando-me o Teu Amor!
7. E agora, Senhor, só amo a Ti! Só sigo a Ti! Só busco a Ti! Só ardo por Ti!…
8. Tarde te amei! Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu Te amei! Eis que estavas dentro, e eu, fora – e fora Te buscava, e me lançava, disforme e nada belo, perante a beleza de tudo e de todos que criaste. Estavas comigo, e eu não estava Contigo… Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti. Chamaste, clamaste por mim e rompeste a minha surdez. Brilhaste, resplandeceste, e a Tua Luz afugentou minha cegueira. Exalaste o Teu Perfume e, respirando-o, suspirei por Ti, Te desejei. Eu Te provei, Te saboreei e, agora, tenho fome e sede de Ti. Tocaste-me e agora ardo em desejos por Tua Paz!