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sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Memória Cadavérica #6 — Se Deus não existe...

 

Memórias Cadávericas: um acervo de textos aleatórios que resolvi salvar (no blogspot) para que essas não se perdessem.

Se Deus não existe, nada é permitido


Deus, quem ousa dizer o nome dele? Quando um rico dizia o seu nome, queria sair da riqueza. Quando um pobre dizia seu nome, queria sair da pobreza. Deus É o princípio relativizante do real. Ele serve para relativizar as coisas. Toda vez, na história, que clamaram o seu nome: ele serviu para relativizar o que existia. Isto é, ele serviu para que o que existia não apagasse o que poderia existir. Deus é isso: aquele que relativiza o que existe em função do que virá  a existir. É por isso que Deus é um deus da história. É por isso que Deus É: Deus é Deus em função de apagar os imperativos sociais que presentemente existem. É por isso que, se Deus não existe, virá a existir. E se Deus não virá a existir, somos todos escravos.

domingo, 16 de junho de 2024

Acabo de ler "A Tirania dos Especialistas" de Martim Vasques da Cunha (Parte 3)

 


A palavra IYI (abreviação de "intellectual yet idiot = intelectual, porém idiota") é bem exemplificada aqui. Existe uma estupidez inteligente e todas as inteligências, por maiores que sejam, estão sujeitas a terem traços de idiotia. É da natureza humana estar sujeita a imperfectude e por mais grandioso que um intelectual possa ser, ele sempre terá falhas. Não reconhecer a tendência a cometer erros é o que implica psicologicamente a alguém ser um intelectual estúpido ou um estúpido inteligente. Não saber que intelectuais podem ser estúpidos e ter pontos de vista deformados graças a uma adesão perniciosa a uma ideia é o que faz da modernidade um palco para os mais estúpidos intelectuais.


A tirania dos especialistas – título do livro, por sinal – surge da ideia de uma elite iluminada que guiará o mundo, através de muita modelagem e engenharia social, ao progresso. Essa tendência tecnocrática – consciente ou não – é amplamente observável no meio acadêmico. Os intelectuais, a elite técnica, teria a capacidade de se tornar uma espécie de "novo deus" e, em sua unidade de técnicos/especialistas, daria luz a um mundo perfeito onde todo mundo é feliz e não há opressão. É evidente que esses especialistas ao amontoarem o poder para si, tornam-se, pouco a pouco, detentores de poderes que estão acima do horizonte de possibilidades do cidadão comum. Ou seja, justificam a si mesmos como uma casta iluminada que pode alterar a vida de qualquer cidadão sem que nenhum cidadão possa fazer qualquer coisa.


A elite iluminada dos especialistas é irresponsável, ela não liga para as consequências do que intelectualmente afirma e é psicologicamente imune à capacidade de autocrítica – visto que não se vê como defeituosa e passível de erros. Em suas certezas dogmáticas, pegam prontamente o poder para si e remodelam a humanidade de acordo com os seus gostos. O poder dos especialistas aumenta prodigiosamente ao mesmo tempo em que a sua capacidade de tiranizar os outros se torna maior. Um dia, os especialistas se tornaram metodológicamente aptos para quebrar qualquer "direito humano" que anteriormente defendeu.

domingo, 11 de setembro de 2022

Acabo de ler "Mistérios Divinos" de Neil Gaiman e P. Craig Russell

 



Faz algum tempo que ando me aproximando do mundo das revistas em quadrinhos. Esse mundo, até agora, nunca me deixou de fascinar. Entre meus autores prediletos, encontra-se Neil Gaiman, uma pessoa capaz de proporcionar fantásticos enredos que sempre movem o leitor para uma leitura curiosa e apaixonada.

Como não poderia deixar de ser, "Mistérios Divinos" é outra excelente HQ de Neil Gaiman. A história se passa antes da criação de nosso mundo, quando os anjos viviam produzindo tudo que será utilizado no mundo que vivemos. Embora hajam alguns personagens que vivam no mundo em que nós vivemos.

Se a pergunta é: "como era o mundo antes de Adão e Eva", essa revista em quadrinhos traça um cenário para essa pergunta teológica. Claro que ela goza duma visão pouco ortodoxa no âmbito da teologia, porém isso só impacta gente meio fanatizada que não consegue se entregar numa experiência cultural sólida. Convido o leitor a esquecer-se por um momento de suas crenças teológicas e gozar dessa ótima experiência literária e artística.

A HQ seguirá dois personagens, um anjo e um homem. O caminho dos dois será encontrado na narrativa. E, interessantemente, pode-se ter um roteiro que deixará o leitor cada vez mais expectativo com a consumação dessa história que sempre deixa um gosto de quero mais. Um processo investigativo é traçado e questionamo-nos a função dos anjos e o desempenho de cada um deles no pré-criação.

Em relação a comentários sobre a história total, prefiro deixar-lhes mais com a experiência em si do que um comentário que estabelece previamente todos os eixos. Digo-lhes, tão apenas, que a experiência vale muitíssimo a pena e que a história tem bastantes reviravoltas.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Procurando a Casa dentro de Casa

Eu estive procurando uma casa. Não uma casa qualquer, mas a minha casa. Andei pelas escadas de minha casa, para achar a minha casa e não achei a minha casa. Procurei afagos de meus animais em minha casa, achando que dar-me-iam o sentimento do retorno a minha casa. Procurei no rosto de meu pai a minha casa, mas nele não encontrei. Procurei deitar na cama de meu quarto assim poderia lembrar do velho aconchego de minha casa, infelizmente não senti nada parecido como estar em casa.


Equidistância brutal, intimidade sem objeto, memória sem doçura. Procurei no beijo duma doce mulher o retorno a minha casa. Só que em teus lábios minha casa não estava. Procurei, então, correr pelo quintal de minha casa até chegar a minha casa. Só que ao correr pelo quintal de minha casa, senti-me cansado sem nunca chegar a minha casa. Duvidei de mim mesmo, duvidei de minha pessoa, duvidei de meu ser. Se o ser é, por que tudo na vida leva a crer que não pode sê-lo? Viajei por aí, tentando toda hipótese. Procurei me encontrar no beijo não de uma mulher, mas de um homem. Seus lábios não eram macios, eram ásperos. Senti algo diferente, senti um bater de coração, mas não senti a minha casa. Seu beijo era para mim, meu beijo era para ele, mas meu beijo encontrava-o sem que o beijo dele me encontrasse. Equidistância que gera distância em proximidade.


Não me leve a mal, só busquei a minha casa. Pouco importando se era hétero ou homossexual. Só queria buscar a minha casa. Afaguei-me em travestis e prostitutas, para nelas tentar encontrar a minha casa. Frequentei puteiros procurando a minha casa, mas em cada puteiro não me encontrei em minha casa. Amei uma garota, amei fortemente uma garota, acho que ainda a amo. Ela hoje é mulher, eu hoje sou homem. Só que a minha casa estava nela, mas a casa dela não estava em mim. Como resultado, namora outro homem.


Eu peguei livros. Livros que poderiam formar um edifício em meu quarto. Procurei em cada livro do meu quarto a minha casa. Nem em meu quarto acho mais a minha casa. Nem em teu beijo acho a minha morada. Procurei trazer bebidas, trouxe vodka, cerveja e vinho. A bebida que trazia para minha casa não me lavava para minha casa. Procurei na bebida o esquecimento de minha casa para não sentir saudade de minha casa. Embriaguei-me na constância para me esquecer de minha casa. A minha casa fazia-me um tamanho mal, não por ser minha casa, mas pelo fato de eu não poder voltar a minha casa. Eu queria somente a minha casa, mas minha casa não encontrava. A minha dor era buscar a minha casa, a minha felicidade seria achar a minha casa, só que não a encontrando, só podia sentir dor por não achar a minha casa.


Usei de tudo. Maconha, pó e lança-perfume. Camisa de time, terno e lingerie. Procurei o rúgbi, o Mario Kart e a espada samurai. Nada de casa, nem em jogo, nem em esporte e nem na luta mortal. Onde estava a minha casa? A maconha que fumava era para não me sentir distante de minha casa. O pó que cheirava era para estar perto de minha casa. O lança-perfume era para chegar em casa. A torcida com que gritei ao lado, a torcida com que xinguei o juiz, não me levou para casa. O terno que utilizei com esmero para o subemprego não me levou para casa. A lingerie, num ato de loucura e disforma de identidade, que utilizei pensando que chegaria em casa não me levou para casa, mas para caminhos tortos de gozo barato.


Procurei ler em cada livro minha casa no exílio de meu quarto. Procurei em cada falso amor um retorno ao verdadeiro amor de minha casa. Aceitei a prostituta como a única mulher que poderia ter em minha falsa casa. Aceitei o sexo banal da madrugada. Fiz casamentos forjados para ver se chegaria em casa. Só que nada me levou para minha casa. Logo nada disso me valeu. 


Perdoe-me, Deus. Eu nunca quis fugir de casa. Na verdade, eu não sabia que minha casa era minha casa. E por não saber que minha casa era minha casa, por outras casas andei em perene exílio. Andava então de casa em casa, cada casa era um aperto e uma prostituição. Nesse tempo estive na solidão da solidão. Perdoe-me, Deus.