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segunda-feira, 26 de setembro de 2022

O Necrófago

 


 

Se eu dissesse que eu sangro sem sangrar, isso lhe assustaria? Se eu lhe dissesse que posso sentir minha carne sendo cortada, sem ser cortada, você acreditaria? Se eu lhe disse que sinto gosto e ele tem gosto de desgosto, você saberia definir o que de fato sinto? E, por fim, se eu lhe disser que todo esse vaivém a qual a humanidade se destina é apenas uma marcha caimíca em que o progresso civilizacional é, tão apenas, o domínio do demônio e da totalização diabólica? Dir-me-ão que os remédios modernos são fruto do progresso, dir-lhes-ei que o holocausto baseou-se igualmente no progresso técnico e científico. A bomba atômica é um portentoso milagre científico e técnico que ceifou várias almas. Mas, pensando bem, é até mais misericordioso ser morto por uma bomba atômica do que estar num campo de concentração. Com ferramentas de capacidade superior, os novos deuses de pés de lama se erguem e a população com adora o mais novo bezerro de ouro em forma de Iphone ou o que quer que seja a nova forma dele. Religiões, ideologias e doutrinas se alternam no poder sem que o homem possa ir para o paraíso tão pedido e tão prometido. Sempre alguma nova ideia será enunciada prometendo a nova forma de chegar (ou seria retornar?) ao paraíso.

 

Perguntar-me-ão se eu tenho um programa, se eu tenho uma direção, um senso de unidade, uma doutrina a qual poder-se-ia remir o mal contínuo da humanidade. Negativamente responderei e negativamente serei encarado. Todos devem trazer alguma coisa, qualquer coisa. Em nossa época, se faz necessário publicalizar a consciência em todos os fenômenos que se sucedem. Todo esse esforço de pingar o fragmento das almas nas mais diversas ocasiões é, para alguns, o divertimento e realização de seus seres concomitantemente. Denuncia-se ali um caso de racismo, fala-se aqui duma manifestação por algum novo direito, comenta-se o protagonismo feminino ou a privatização indevida ou devida de alguma empresa. Eu me proponho o contrário: ignoro tudo o que acontece e não mais me posiciono. É fato que alguns homens tornam-se alguém, outros tornam-se alguma coisa e outros, menos sortudos, tornar-se-ão algo e haverá aquela parcela, mais numerosa em todas as épocas, que nada serão e a nada serão destinados. Afirmo-lhes que sou pessimista demais para acreditar em qualquer coisa. Sou pessimista demais para cair na estultice de acreditar em mim mesmo - apesar disso ser um dogma pós-moderno (e, se não o for, não sei de quando data tamanha idiotice). Toda minha afirmação é uma negação. A negação, nada mais é, algo que reacionariamente nega o que é afirmado. Um negacionista é um homem que nega o que é afirmado. Sou o homem que olhava para o abismo e quanto mais olhava para o abismo, mais sabia que olhava para a própria natureza.

 

Ultimamente eu sinto estar ficando mais cego a cada dia. Não que eu tenha perdido a visão no sentido físico do termo, é que há um lamaçal metafísico de natureza obscurantista que me atrapalha. Eu simplesmente não consigo enxergar nada de qualitativo, nada de prazeroso ou nada que me dê um bom gosto palatável. Com o tempo, torno-me niiliabsorto nessa malignidade. Muitos de meus contemporâneos gostam de denegrir ideias, doutrinas ou religiões. Para mim, o esforço satírico e o gosto pelo caos dionisíaco se evadiu na medida mesma em que eu crescia. Minha geração só é forte o suficiente para negar ideias que, por lhe serem absolutamente superiores, não tem capacidade de cumprir. As ideias, as doutrinas, as religiões, as ideologias... Tudo isso foi abandonado por essa geração de fracassados. Não que eu não seja um deles, só que reconheço o fato de que sou fraco. Satirizar aquilo que não tem capacidade de corresponder em força e em estilo é o jeito com que os fracassados encontram de não negarem o próprio fracasso, mas a transcendência que se lhes apresenta. Quanto mais eu crescia, mais a beleza se evadia. Quanto mais eu crescia, mais eu ia para a direção não da antissociabilidade, mas do divórcio social. O esforço da negação, tão comum aos meus "iguais" - ao menos inseridos no mesmo "espaço-tempo" -, tornou-se até a negação da negação. Eu não só nego, nego-me igualmente a negar. A corda num pescoço seria, tão apenas, um alívio a essa pressão de desgaste que me obscurifica. Sem vontade alguma de continuar, empurrado a andar pelo espírito das poucas almas que ao meu lado ainda ficam.

 

Ninguém poderia para mim olhar, conhecer e passar ao lado sem que lhe ocorresse o seguinte pensamento: "como alguém pode ser tão deprimente?". A resposta, se é que há uma, é que minha natureza é morta. Eu sou tão apenas um cadáver. Nesse ponto em que me encontro, creio que minha alma caiu fora de meu corpo por abjeção. Creio firmemente que minha alma me abandonou há muito tempo, se eu tivesse oportunidade, também abandonar-me-ia sem pestanejar. Vago aqui e acolá, a preencher o espaço com minha presença física vazia. Sou o paradoxo do corpo físico que, adicionado ao ambiente, não ocupa espaço. Pelo contrário, sou um buraco negro que suga toda positividade, toda esperança, matando tudo que há de bom com minha pessimistividade. Minhas palavras nada dizem, as ideias que, por algum acaso enuncio, nada a mim representam. Para ser sincero, o nada nadificante de minha condição tornou-se uma existência puramente negativa que anula qualquer possibilidade de positividade. A leitura, em vez de erudição, só me traz uma forma de pseudotranscendência evacionista da realidade. Os antidepressivos só atenuam o sofrimento físico e mental que passo, minha visão e minha essência é em si mesma depressiva.

 

Tudo vem sido uma lenta odisseia fúnebre na qual eu me sinto cada vez mais morto. É um ditado popular a ideia de que nos tornamos o que comemos. Eu só como coisas mortas. Os animais que me alimentam foram mortos. Os autores que leio morreram há muito tempo, quando não morreram há séculos. A única coisa que tenho é o reinado do niiliabsolutismo. Eu não posso ligar para grandes causas. O fascismo, o socialismo, o liberalismo, tudo isso me dá tédio. Mesmo que eu não seja tolo o suficiente para acreditar que, em meu relativismo singularista, eu seja superior a essas religiões civis que tanto marcaram a humanidade. O amor que a sociedade tem pelas crianças me entedia. Os grandes acontecimentos políticos são por mim ignorados. A própria capacidade empática de ligar para um acidente de avião ou a um genocídio que, esporadicamente a humanidade faz numa religiosidade ritualística, não me causa absolutamente nada. Todas as discussões que saem dos maiores anseios humanos de nada me representam. As transformações de ideias que se alternam e sucedem não me representam coisa alguma. Tive o infortúnio histórico de nascer depois das grandes religiões e civilizações religiosas, das grandes ideologias e suas revoluções.


Nos últimos tempos, empreguei-me a andar em campos vácuos. Seja fisicamente ou mentalmente. Afastar-me de qualquer criatura viva era meu modo de viver mortamente. Até que, um dia, deparei-me com um terreno baldio. Um cheiro horrendo despertou em minha narina. Deparei-me com um cadáver. Cadáver esse que estava passando por um processo de decomposição. Claramente, não habituado a tal cheiro, tão logo pus-me a vomitar. Por algum motivo, uma vaga similitudidade enunciou-se em minha cabeça. Embora esse cadáver estivesse de fato morto, estivesse fedendo e estivesse esquartejado, sua natureza em nada diferia da minha. Quem sou eu, se não a podridão? O cheiro dele é igual o de minha natureza. O estado físico de destruição é de igual modo semelhante a minha psique. O fato de estar morto há muito tempo só me lembrava, igualmente, que eu estava tão morto quanto ele há tanto tempo que não me lembro. Tão logo aproximei-me e pus-me a prosear com tão igualitária criatura.

- Está morto, tal como eu estou morto. Teu fedor repugnante assemelha-se a minha própria repugnância. Minha natureza é de igual repugnância a sua natureza. O abandono em que se encontra em nada difere-se do meu. Para ti, a condução política e cultural em nada representa, em nada promove. Sinto-me, então, igual a ti. Você não pode acreditar no amor, já que não está vivo. Eu, estando igualmente morto, não acredito igualmente no amor. Não pode ter amigos e nem ligaria de ter um amigo, tal como eu. De certo modo, afastei-me de todos aqueles que eram meus amigos apenas para nada mais sentir e, nisso, assemelho-te a ti que não tem amigo algum. Em certo tempo, também acreditei na relevância da vida e em como todas as ideias que sucediam em minha cabeça tinham algum grau de relevância graças o valor incalculável de minha vida humana. Hoje sei que sou tão irrelevante quanto qualquer outra coisa morta e que nenhum vivo tem valor. As ideologias não me encaixam, as religiões não me causam júbilo. O abraço confortante nada mais é do que uma doce ilusão de dois corpos que se encontram equidistantemente. A singularidade humana não pode ser compreendida por outra singularidade humana, toda comunicação nada mais é do que um monólogo falho.


Logo pararia de falar com meu mais novo amigo. Volvi para casa. Onde passei a ler até que o sono tornasse a leitura impossível. Passar duas semanas longe de meu companheiro cadavérico deu-me uma sensação estranha. Os homens, as mulheres, toda a humanidade viva me era tão estranha quanto nociva. A mera ideia de que um coração batesse me causava desconforto, isso se não me causasse nojo. O próprio fato de meu coração ainda bater me causava desgosto. Olhar os outros seres vivos só me deixou um único pensamento, na qual sintetizo numa curta frase: "Eles não eram tal como eu". Mesmo estando atomisticamente presos em si mesmos, incapazes de adentrarem em substancialidade total com outro ser, prendiam-se nas ilusões vãs de que era possível se conectar com o mundo exterior. Não há mutualidade no mundo, toda comunicação é uma inutilidade. Engana-se quem crê que há compreensão, que há gradação de proximidade, que o íntima revela-se a quem se aproxima. Tudo está separado, eternamente separado. Mas como, como só eu me dava conta disso? Eles não podem perceber? Eles não podem ter consciência? Se um time de futebol ganha, nada ganhou. Se um político se elege, nada se elegeu. Se há uma alegria após o orgasmo, é apenas um prazer efêmero gerado pela própria face animalesca do que sobrou do bestialogismo humano não totalmente humano. Humanizar-se é dar-se conta de que a vida é como um grão de areia, uma poeira sem valor a movimentar-se de acordo com a influência dum vento. Ao menos a própria razão conduz a percepção da niilitropia em que vivemos e o que distingue a humanidade é a faculdade da razão. Racionalizar é humanizar-se, humanizar-se é perceber-se nulo e, então, niilificar-se. Para percebermos o quanto somos sordidamente sós, basta que entremos num ônibus e dar-nos-emos conta de que não temos íntimo contato nem em nossa locomoção por esse torpe mundo.


Eu senti, eu senti que deveria voltar ao terreno baldio. Eu não pertenço a esse mundo das entidades móveis. Todo esse movimento me é estranho. Vida é aparência e o reino das aparências não pode ser factual. Eu sou tão inexpressivo, irrelevante, podre, sem valor, quanto um morto abandonado. A morte é imóvel, logo não é aparente. Não consigo achar inteligível qualquer sociedade viva. Tive que voltar para o terreno baldio. E uma surpresa tive ao voltar: a minha pequena sociedade secreta aumentou. Mais dois corpos dispunham-se ali, como a ter um descanso dessa ausência de sentido unificada na qual a humanidade se move. Ali, eu e mais três cadáveres, sabíamos irrelevantes e vazios. Todos niiliabsortificados pela despertar da consciência do átomo. Não falarei dos sexos de meus companheiros. O que é o sexo se não uma superficialidade para quem se encontra morto? Deixemos as vanidades dos vivos para trás. Vivamos a morte e o esquecimento. Eu lhes devia um discurso inaugural. Devia-lhes um acolhimento cadavérico. Logo, pus-me a falar.

- Felicito-lhes pela morte. A morte é a única que proseia com Sócrates e Dante. Os vivos acham-se acima dos mortos, só que não possuem qualquer similitude conosco. Eles desprezam os esforços dos ancestrais e negam-lhe a possibilidade de discursar. Acreditam que o fato de estarem vivos lhe torna especiais. A vida é efêmera. A ciência moderna está a provar que a vida na terra é um mero acidente, onde não há criador algum. Sem criador bem-intencionado, sem sentido próprio condicionado, sem nada que valha a pena para se viver, somos todos nós átomos a rondar um espaço sem capacidade de expressar o vazio em que nos encontramos. Morrer é despertar para a realidade e até mesmo para eternidade. A realidade é tão morta quando pode ser. Deixemos que os vivos aproveitem a curta vitória de suas eleições, as modas de pensamentos que morrerão, os prazeres efêmeros que logo acabarão, a sensação vaga de amor eterno que logo despedaçar-se-á. O aborto é o mais feliz dos seres, já que ele passa para eternidade da morte sem conhecer as ilusões da efemeridade da vida.


Com o tempo, passei a frequentar o terreno baldio com mais assiduidade. Deitava-me lá, esforçava-me para matar dentro de mim qualquer pensamento. Queria ser tal como um morto, um verdadeiro morto. Havia dentro de mim uma pulsão de natureza nirvânica que eliminava toda e qualquer energia mental dentro de meu aparelho psíquico. De que necessidade teria eu de pensamentos? De sentimentos? O esforço negativo leva a sonegação desses vãos alvoroços causados pelo efeito ilusionista da vida. Não comunicar-se com ninguém era meu deleite. Abandonar toda e qualquer possibilidade de amizade. Matar em mim qualquer ânsia por movimento e qualquer noção vaga ainda reminiscente da possibilidade de "calor" humano. O que move os vivos? A vida é uma existência numa caverna. O calor humano nada mais é o que alimenta as projeções das sombras ilusórias que são confundidas com a verdade ou a realidade. Tendo em conta isso, o cheiro podre deixou, com o tempo, de me importar. Cheiro nada mais é do que outra vaidade das ilusões dos vivos e suas maquinações ilusionistas. Mesmo quando os cadáveres aumentaram, eu me sentia como um deles e tudo que eles tinham era, para mim, de máximo valor e não de ojeriza.


Acreditava piamente na ideia de que o esforço anulativo era melhor que o esforço criativo. A estabilidade pertence ao reino do descanso e o reino do descanso pertence a morte. Esforçar-se para atenuar qualquer possibilidade de esforço, tirar da mente as ideias que tiranizam, afastar-se de qualquer "calor humano". Tudo isso, nirvanicamente enquadrado e enfatizado, torna-se num deleite sem o qual não poderia mais conjecturar o estado não vívido em que me encontrava. Adaptar-me a morte era o compromisso principal a qual me sujeitava. Imitando os mortos aprendi de fato ao destino comum que me era destino e glória. Pena que, tal deleite, provar-se-ia incapaz de durar para todo o sempre. Esqueci-me de que era ainda vivo e, como vivo, poderia ser perturbado por essa ordem caótica que se cria pela vaidade. Fui acordado por um estranho homem.

- Por que passa tanto tempo aqui?

- Gosto de me deitar e pensar que também estou morto.

- Por um tempo, pensei em te matar também.

- Eu já estou morto.

- Não entendo, nem sei se quero entender. Para mim, é simplesmente um louco. A única pergunta que tenho é: não me denunciará?

- Pelo o quê? Por ter libertado essas pessoas das ilusões criadas por Demiurgo ou pelo vazio ou seja lá pelo que tenha criado ou não esse mundo? Viver é uma ilusão. Todo reino de matéria nada mais é do que um aprisionamento na falsidade. Nada aqui faz sentido e tudo que há é um grotesco monumento confuso e assimétrico.

 

O homem simplesmente parou de me encarar. Pegou o seu saco preto e soltou mais um corpo morto. Certamente ele era o assassino de meus companheiros. De qualquer modo, essa informação me era tão irrelevante quanto tediosa. Ele era só mais um vivo. Todavia não pude deixar de felicitar meu novo companheiro:

- Seja bem-vindo, meu partidário.

- Do que está falando? - perguntou-me o serial killer.

- Não falo contigo, falo com o morto.

Olhando-me com estranheza, o homem simplesmente foi embora. Era um vivo e, tal como um vivo, não poderia compreender um partidário da morte. Nem sei se posso falar em "partido". A ideia de que há "parte" e não "todo" pertence a essa diferenciação do reino da necessidade. O partido, seja qual for, nada mais é do que um defeito na capacidade de pensar. Na totalidade, em que só os mortos estão, não há "partido" algum. Tudo se encontra e tudo está encontrado. Não sei se a felicidade do assassino consistia em matar. De qualquer modo, matar é um prazer tão sem graça e efêmero quanto qualquer outra vaidade que constitua a vida. Todo prazer de um vivo é um prazer efêmero, impróprio a capacidade eternalística que tem a própria morte. Não o condeno, toda atividade viva me é indiferente. Qualquer movimento me é estúpido. Que diferença me faria se ele fosse padeiro, açougueiro ou um simples pescador? Tudo isso é vaidade. Mesmo o assassino compulsivo tem o gosto de matar. Trazer pessoas ao mundo eterno da morte causa-lhe prazer. É um esforço idiota, tal qual todo esforço vivo. Tão sem valor, tão sem importância quanto qualquer coisa viva.


Meu bem-estar não durou tanto tempo. Minha única felicidade, que me conectava com o mundo transcendental, foi-me privada. Acabei por ser pego por um policial e colocado numa viatura de polícia. Não tardou que eu fosse investigado. Todas as vezes negando a mera hipótese de que tenha sido eu o assassino. Respondia vagamente que também era um morto. Achavam que eu era insano, simplesmente insano. É justamente o contrário: eles é que são insanos. Fiquei dias na cadeia, esperando e sonhando com minha volta ao terreno baldio. Pensava em me matar todos os dias. Isso não me era ruim ou depressivo. Eu simplesmente amava a ideia de me ver morto. Morto e liberto. Toda essa sucessão de ideias e gosto pela proximidade com a morte durou até que o assassino foi pego. O estranho homem confessou todos os crimes. Além de que, em sua casa, foram encontrados vídeos de tortura e assassinato de todas as pessoas que matou e que estavam no mesmo terreno baldio que eu. Ele ganhava dinheiro torturando pessoas ao vivo. Uma investigadora, antes de me soltar, fez-me a sua última pergunta:

- Se você não era o assassino, o que fazia ao lado dos corpos assassinados? É isso que ainda não pude compreender com totalidade.

- Ora, minha cara, eu apenas olhava para a minha própria natureza.

domingo, 11 de setembro de 2022

A Torta


 

 

   É estranho, mas também não é nada engraçado. Se você olhasse para mim, nesse momento, talvez tivesse um daqueles pensamentos de humor sombrio. A cena que veria gozaria de qualquer falta de senso com a realidade comum. Um palhaço com uma arma enfiada na boca. Sim, sim, encontro-me vestido de palhaço. Com uma calibre 12. Sou um autêntico palhaço, na verdade. Quando isso tudo terminar, já não serei palhaço. Tenho um nariz desproporcionalmente vermelho, que tem um irritante som de buzina ao ser apertado. Minha face é tingida de branco, embora a cor da maquiagem esteja um pouco borrada pelo meu choro. Uso uma peruca grande e vermelha e um chapéu curtíssimo. Um sorriso está desenhado em minha boca, embora eu não sorria - não me lembro sequer da última vez que ri de verdade. Minha roupa é extremamente colorida, ela bate em contraste com a minha vida acinzentada e infeliz que levo. Também uso dois sapatos gigantescos, extremamente prosaicos para a alegria da moçada.


    Alguém cuja a função é fazer os outros rirem não pode se matar, certo? Talvez, em sua visão preconcebida, eu seja uma espécie de ser mirabolante de variadas ideias, com uma complexidade além da curva e que consegue satirizar a crueza do real. Alguns gênios dirão que os bobos da corte, ancestrais espirituais dos palhaços, faziam piadas até mesmo do rei. O palhaço é aquele que ri de tudo. A vida é dura, então o palhaço é aquela espécie de intelectual contrário ao intelectual meditabundo, uma espécie de "intelectual gozabundo" ou qualquer outra palavra de sentido semelhante. Minhas piadas deveriam ser, então, uma espécie de relativização da densidade que a todos esmaga. Um alívio cômico ao tão comum sofrimento humano. As pessoas olham para mim e tiram mil e uma conclusões. Tudo em mim é gritantemente desproporcional e a assimetria causa nojo e comicidade. A indumentária dum palhaço foi feita para ser rapidamente identificável, o palhaço acima de tudo é um alvo. Convenhamos que o destoante chama a atenção e é por isso que o palhaço assim se veste.


    Tudo bem, meus caros. Olhar para um palhaço chorando com uma arma enfiada na boca não é a melhor cena que se vê. Talvez você pense que isso é engraçado, lhe digo que não é. Por favor, vamos estender um pouco mais a cena. Vários corpos sangrentos no chão e uma pequena chama a circundar o espaço circular daquilo que foi um dia um circo. Vamos dar um passeio descritivo por essa região. No meio, encontramos um mago, uma espécie de ilusionista bonitão que era famoso não só pelos seus truques, o era também por ser um garanhão. O mais famoso está no meio! A sua satisfação narcísica realiza-se até mesmo na morte! Se soubessem o quanto de homens vieram para espancá-lo, o motivo era sempre o mesmo: por ele ter pego as namoradas, as noivas e as esposas. Ouvia-lhe sempre dizer: "a melhor coisa do sexo é gozar na aliança de mulher casada". Há, há, há! Como ele era engraçado, não é? Porém ele não é tão bonito agora que seus miolos estão para fora e a estética proporcional de seu rosto se encontra tão feia e desproporcional quanto o meu rosto desproporcional e feio de palhaço, não é mesmo? Agora acho que ele "pegará" tantas mulheres quanto eu. Ele sempre dizia: "Astolfo, sabe o que dia eu ganharei na loteria? No mesmo dia que você perder a virgindade". Sempre quis saber o que as mulheres viam nele, só que a experiência de transar com o seu cadáver nem foi tão boa assim. Talvez existam coisas no mundo que sejam mais propaganda do que realização em si.

 

    Se dermos uma boa olhada na cena, veremos dois trapezistas musculosos. Encontram-se na extremidade esquerda. Coloquei-os lá pois eram esquerdistas, quase que comunistas - embora que não praticantes. Irmãos gêmeos. Carinha de um, focinho de outro. Tão bonitos e tão brilhantes. Eram capazes de todas as proezas físicas mais fantásticas. Eram ambos casados, casadíssimos com duas mulheres lindas. Elas tinham medo de serem traídas, e eles sempre que recebiam as ligações de suas esposas, sempre repetiam: "estou só treinando com meu irmão". Como eram assíduos em seus treinamentos, sempre na eterna companhia do irmão. Quem não quereria tão íntima amizade familiar? Eles morreram por envenenamento antes mesmo de poderem morrer por hemorragia. Sabe, eu cortei o pênis de cada um deles e coloquei na boca do outro. Quem poderia imaginar que os gêmeos trapezistas transavam um com o outro escondidos? Ah, de todos os números esse fica em incesto lugar. Outro escândalo sexual que nosso circo omitiu com bastante esmero. Eles também sempre riam de mim, diziam que meu número não valia meia moeda de um centavo. Agora estão ocupados em seu cadavérico número de boquete horripilante.

 

    Ao meu lado, há a mulher barbuda. Peituda, graciosa, bunduda. Ela era uma mulher fantástica. Dormia com uma porrada de homens. Eu era um deles. Tão ninfomaníaca quanto rejeitada. Nunca assumimos o namoro, ou seja lá o que tenhamos tido, tudo ficou a se enredar no sigilo. Hoje em dia, é-se comum relacionar-se com travestis. Aqueles que calculam bem, optam pelo sigilo. Só que, bem, ela nunca quis assumir, nas palavras dela, "um fracassado". E quando fazíamos aquilo que não posso chamar de amor, ela fechava os olhos e imaginava que estava com outro homem. Sempre me dizia para ficar quieto, tinha nojo até de minha voz. Apagava a luz para não ver minha cara. Só me beijava raramente, e quando me beijava para calar minha boca. Para ela, qualquer discurso meu era um asco. Propriamente nauseabundo. Sempre dizia que sentia mais prazer ao transar com qualquer um de nosso público do que comigo. O sonho dela era pegar o mágico, tal como de todas as mulheres e, também, dos trapezistas. Depois de anos, eu finalmente tive o seu coração. É, eu arranquei o coração dela e comi. O que ela me negou é finalmente meu. Não é questão de canibalismo, é questão de reciprocidade, ora essa. Qual é, sorriam um pouco, amigos, senso de humor não faz mal a ninguém.


    Na entrada principal, há o apresentador. Quando eu o conheci, eu estava a me formar em gastronomia. Eu queria abrir a minha doceria. Naquele tempo, saia pela rua para ofertar pequenos doces para transeuntes. Meu pai e minha mãe tinham morrido num acidente de carro, tinha agora que sustentar a mensalidade da faculdade e todas as séries de contas. A vida é feita dessas tragédias que pipocam do acaso, faz o quê? Lembro-me bem, ofereci-lhe uma torta por um valor módico, sabem? Inicialmente ficou pensativo. Achei que não pegaria. No fim, ele comeu, apreciou o gosto de minha pequena torta. Ele tinha dúbias intenções. Na mesma hora, perguntou-me se valia a pena sair pela rua vendendo pedaços de comida. Disse-lhe que era difícil pagar as contas, só que fazia isso na intenção de um dia realizar meu sonho. Ele achava a forma com que eu verbaliza e movia meu corpo estranha. Naquele momento, eu não sabia disso. Parece que não conhecemos as pessoas, nunca chegamos a conhecê-las. O coração humano não é translúcido, está sempre submerso no lodaçal da falsidade. Disse-me que eu tinha potencial, eu acreditei nele. No fim, convenceu-me treinar para ser palhaço. Aceitei pois precisava de dinheiro. A vida comum de nada de desassocia da prostituição ou da negação. Não fazemos o que queremos, fazemos o que é circunstancialmente necessário e o reino da necessidade está sempre aquém do reino da vontade. Aprendam essa importante lição.


    Meu sonho nunca foi ser palhaço. Não sei se algum dia alguém sonhou em ser palhaço. Nunca me pareceu um sonho desejável, ao menos não para mim. Eu queria ser cozinheiro, tal como já devem ter percebido pelo correr dessa louca história. Quando entrei no circo, havia mais gente. Uma série de gente talentosíssima. Gente que tinha talento real, talentos muito maiores e melhores que os meus - supondo, é claro, que tenho algum talento. Só que o negócio foi esfriando aos poucos, sabem? Parece que o mundo se interessa menos por circos hoje em dia. De qualquer forma, a renda apertou e o povo que comigo trabalhava se dispersou. Para eles conseguirem manter o público interessado, tudo ficou com um sadismo bizarro. Humilhações passaram a se tornar frequentes e o público adorava rir disso. Sobretudo comigo, o palhaço. Eu já não tinha lhes falado que o palhaço é sempre o alvo? Sabem quantas tortas eu preparei para serem jogadas em minha cara? Todos os dias, meu talento gastronômico era humilhado e ninguém comia nada do que eu preparava. Meu número, com o tempo, tornou-se um preparar uma comida e oferecer aos meus colegas. Eles sempre faziam cara de nojo, zombavam de mim e batiam as iguarias que preparava na minha cara. Minha vida parecia um enredo infantil e circular em que eu sempre preparava alguma comida e os espectadores olhavam esperando quando e como eu seria recusado e humilhado. Eu circulava num circo numa circularidade trágica.


    Claro que com a digitalização de tudo e a busca por maior público levou isso para internet. Milhares de pessoas passaram a ver em vídeos como as tortas, bolos e doces que eu preparava eram recusados, como eu era humilhado, como meu sonho de ser cozinheiro ia parar diretamente na minha cara. Meu sonho converteu-se em pesadelo. Eu era um cozinheiro e, ao mesmo tempo, não o era. Um cozinheiro cuja a comida ninguém come e, ainda por cima, é jogada com desprezo em sua cara. Sabem o quanto isso pode machucar um coração? Fiquei conhecido por muita gente, as pessoas sempre me diziam como adoravam a forma caricatural que eu atuava e como eu sempre me dava mal. Minha humilhação ficou acessível a milhões de pessoas. A um click, todos poderiam rir de mim, rir de meu fracasso, rir de minha existência patética, rir de minha comida. Familiares, parentes, colegas e amigos passaram a rir muito de mim. Riam não só pela frente, mas também pelas costas. Tornei-me uma vergonha para todos. Tornei-me uma vergonha para mim mesmo. Tudo desmoronou quando até a minha avó, minha própria vó, gente boníssima, contou-me que tinha vergonha de mim e que meus pais não me criaram para aquilo que vim a me tornar. Disse-me que eles se remoíam no túmulo e que era sorte deles terem morrido antes de verem a vergonha que me tornei.


    Certo dia, um dia não tão longe desse, eu tentei pedir demissão. Todos riram de mim, é óbvio. Eles sempre me viram como uma piada. Não era agora que eles poderiam ver a grande pessoa que eu era? O apresentador, após rir descontroladamente, pôs-se a falar com uma voz de desprezo, de zombaria:

- Olha, meu amiguinho, todo mundo sabe que você é um fracassado - ele sempre me tratou no diminutivo, mesmo eu sendo adulto.

- Quando me contratou, disse que acreditava em meu potencial - disse fremendo.

- E de fato acredito. Acredito no potencial que tu tens de ser objeto de piada - disse ele com um sorriso sardônico no rosto.

- Você nunca acreditou em mim? - falei com minha voz irritada, chorosa e tipicamente autopiedosa.

- Quem é você longe do que faz? Sua existência é ser esmagado e humilhado por gente superior a você. Contratei você pois vi em ti um palhaço completo. Feio, desproporcional, com trejeitos tresloucados, incapacidade de até andar como uma pessoa normal. Vi em você um palhaço, tudo que fazia parecia uma piada.

- Mesmo assim, eu quero pedir demissão.

- Você é, sempre foi e sempre será uma decepção, Astolfo. Bote isso na sua cabeça. Todos reconhecem o fracasso que você é.

- Eu continuo querendo me demitir - disse chorando, apertando os dentes e controlando minha raiva.

- Ora, tudo bem, não vou ser mal com alguém que é meu empregado há tanto tempo. Mas façamos um show de despedida para transmitir na internet.

- Posso fazer um pedido pra participar desse show?

- Sim, o que quiser.

- Quero que finalmente comam minha comida.

- É um pedido bem simples, acho que você merece isso depois de tanto tempo. Aceitado.


    Daquele dia em diante, planejei minuciosamente a minha vingança. Envenená-los-ia. Daria a eles o último show. O show em que eu não seria a piada. O show que agora, meu caro telespectador, você vê. O show em que eles são a piada. O show em que eu confesso os crimes que eles mesmo não confessaram. E, agora, finalmente poderia pegar o lugar do mágico. Far-lhes-ei um ato mágico. O que é, o que é: o saber que mais se sabe e o saber que mais não se sabe? O que é, o que é: quanto mais evidente, menos evidente é? Digam-me, meus queridos telespectadores, a verdade mais brutal e brutalmente negada! Estão preparados para descobrir o que a humanidade mais sabe e não sabe? O que a humanidade mais tem por evidente e por menos evidente? Querem saber o que é mais brutal e o que é mais brutalmente negado? Ok, 1, 2 e 3. (O palhaço dá um tiro na sua própria cabeça).

sábado, 10 de setembro de 2022

Acabo de ler "Resident Evil Vol III" de S. D. Perry

 



Esse é o terceiro livro, todavia é o quarto que analiso. E estou gostando da experiência de ler todos os livros disponíveis da melhor franquia sobre armas biológicas do mundo. Preferi ler os livros do que perder meu precioso tempo com filmes e séries questionáveis que são excepcionais em fugir do enredo central dos jogos.

Nesse livro, acompanhamos o mais fantástico personagem da franquia, Leon S. Kennedy. Além da irmã de Chris, Claire Redfield. Os dois, como já devem adivinhar, sem muita sorte. Leon embarca em Raccoon City como seu primeiro dia de policial - e que primeiro dia, minha gente - e Claire busca seu irmão. Como consequência, os dois se deparam com uma série de problemáticas geradas pela empresa queridinha da galera (Umbrella).

A trama se passa num estado muito mais avançado de degradação de Raccoon. O cenário de catástrofe é cada vez mais presente e a destruição da cidade toma contornos de nível apocalíptico. Numa cidade cheia de zumbis, abandonada por aqueles que foram suficientemente espertos de ir embora cedo, Leon e Claire serão testados por todo tipo de abominação que por lá anda. O inferno na Terra torna-se ainda maior quando Birkin cria algo pior que o T-vírus - provando que nada é tão ruim que não possa piorar -, o famoso G-vírus. Birkin injetará o vírus em si mesmo e viverá uma arma biológica ambulante e mortal.

O livro também conta com a participação de Ada Wong, uma espiã que está incumbida da tarefa de roubar o G-vírus. A filha e a esposa do gênio do mal, senhorita e senhora Birkin. O leitor é convidado a entrar nessa deliciante e horrorosa viagem cheia de monstros, tragédias e condições abomináveis de todos os tipos.

Como fã de terror desde a minha tenra idade, ao ponto de ouvir creepypastas antes de dormir, sou suspeito ao falar. Gostei bastante do livro e, ao terminar essa análise, já parto para o próximo. Vale muito a pena se dedicar à horripilante e dantescamente fantástica de Resident Evil.