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quinta-feira, 4 de abril de 2024

Acabo de ler "O que é direção teatral?" de Walter Lima Torres

 


O teatro tem muitas características que são mais complexas do que podem soar inicialmente. Uma dessas características é a direção teatral. Todavia esse pequeno artigo trata de várias delas, de forma bastante interessante e com uma postura histórica apurada.


Um encenador teria que lidar com a ausência de atores e atrizes sem capacidade de leitura, por causa do analfabetismo. O treino das falas se tornava mais difícil. O diretor tinha que se submeter ao textocentrismo, dando margem a uma soberania dramatúrgica. O ator seria de um tipo-personagem só, com base muitas vezes em estereótipos.


Hoje em dia, o que mudou? O ator contemporâneo é camaleônico, mudando e reinventando-se enquanto ator com base num estudo pormenorizado em vários âmbitos. O encenador não pode mais escolher um ator com base em estereótipos de forma doutoral e precisa lidar com a coautoria do ator. O diretor não está mais submetido ao aspecto textocêntrico e tem maior maleabilidade, pensando na estrutura cênica. O dramaturgo precisa compreender que as peças não existem apenas por si mesmo, mas estão dentro duma dinâmica coletiva em que ele faz parte.


É central que hoje existe uma maior descentralização no teatro. Essa descentralização é baseada numa maior dimensão do coletivo enquanto portador de igualdade, inclusive na questão criativa. Logo há uma certa espécie de democratização do teatro. Essa mudança dificilmente veio para ser substituída. Além disso, ela é fruto do próprio aumento da educação.


O teatro, tal qual qualquer outra área, tem lá as suas modificações e o diretor também tem que lidar com essa pluralidade dialógica ao qual está submerso como membro do teatro. Ganhou maior autonomia, mas essa autonomia está enquadrada numa maior igualdade com seus parceiros de trabalho.

sábado, 30 de março de 2024

Acabo de ler "Dramaturgia Coletiva no Teatro para Crianças: comunicação em processo" de André Ferraz Sitônio de Assis

 



Muitas vezes concebemos o teatro para crianças como um produto menor, o objetivo é meramente um entretenimento que deixe as crianças temporariamente quietas e, quiçá, alienadas. Outra forma de concebermos o teatro para crianças é a do espectador-receptáculo que absorve o conteúdo didático de que lhe passamos doutoralmente.


Há algo estranho nessa relação, e aí adentram três questões: 

1- Queremos que o teatro infantil seja apenas uma distração para nos dar um descanso a nossa responsabilidade para com as crianças?

2- Vemos as crianças como seres fora da complexidade do mundo em que vivemos e que, por isso, são incapazes de compreenderem os dramas humanos?

3- Queremos gerar pessoas subordinadas às nossas cosmovisões, meros seres-receptáculos que, na medida em que crescem, tornam-se nossa imagem e semelhança no âmbito das ideias?


Indo na contramão dessa tendência, há uma outra opção que no fundo é uma opção política: o teatro para crianças como veículo transmissor dum processo dialógico entre a criança e o adulto. Onde os anseios humanos são tratados como universais e a própria criança está envolta neles. E o processo de construção cênica se dá numa relação de liberdade e construção coletiva em vez de uma programação pregada antecipadamente por um adulto visto como ser superior e condutor do processo.


Se queremos uma sociedade mais libertária e autônoma, onde padrões não são previamente estabelecidos como superiores aos outros, temos que retirar esse "aspecto subordinativo" que sempre aparece: adulto X criança, hétero X LGBT, saudável X doente, branco X negro, são X louco.


Quando criamos um "modelo" ou aceitamos esse "modelo" como critério normalizador, pressupomos uma relação subordinada em que tudo deve copiar exemplarmente esse modelo. A criança se torna melhor quando se torna mais adulta, a pessoa LGBT quanto mais se aparenta com os critérios de heteronormatividade, o negro quanto mais se branquifica, o "louco" quanto mais se aparenta com o "são". Essa relação modelar é uma relação de submissão que deve ser quebrada pela liberdade.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Acabo de ler "Teatro para crianças: dramaturgia e encenação" de Raimundo Matos de Leão

 



Qual seria o posicionamento quanto a produção teatral voltada ao público infanto-juvenil? Um ar adocicado, distante das questões da vida em si mesma, para fazer rir e promover um encantamento pelo esvaziamento da criticidade ante a angústia do mundo em si mesmo? Talvez não.


Nesse artigo há um conflito: muitas vezes se visa dar às crianças ares doces, de modo a não conectar a vida delas a construção usual - e, por vezes, deplorável - da vida no geral. Elas cresceram protegidas e frágeis para um mundo que posteriormente as esmagará. Essa condução não é só estranha, como se revela sempre ingênua.


A questão teatral é um mergulho do ser na conflitualidade. Seja esse conflito de ordem pessoal, de ordem social, de ordem política. Não há qualidade em obras que se esgueiram sorrateiramente num esvaziamento do próprio mundo, do ser e dos conflitos. O teatro é uma arte que agoniza, é uma arte que sangra pois o humano mesmo sangra.


É necessário municiar a pessoa de sua humanidade: ensiná-la sobre a vida e sobre a morte. Mesmo que por uma obra dedicada ao público infanto-juvenil. Um trabalho crítico, no âmbito teatral, é infinitamente mais proveitoso a longo prazo. Ensina, desde cedo, um desenvolvimento do raciocínio e da capacidade de compreender o mundo e a si mesmo.


Esse artigo nos demonstra exemplos fantásticos de como fazer isso. E a sua leitura é de natureza salutar para quem busca bons artigos para melhor entender a dramática processual do teatro infanto-juvenil em sua devida especificidade e proporcionalidade.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Acabo de ler "O Anjo Negro" de Nelson Rodrigues

 



O que faz dum grande autor um grande autor? Ser grande é, antes de tudo, uma posição de relevância. Só que essa condição de relevância está inserida nos conflitos que existem no seio duma sociedade. As condições que Nelson Rodrigues explorará são as condições que existem no seio dum Brasil racista. Isto é, um Brasil determinado por conflitos raciais que, hoje em dia, se suavizaram sem deixar de existir.


Temos vários personagens. O protagonista é marcado por ser um homem negro que odeia a própria pele. Custa muito vestir a própria pele. E ele tenta, acima de tudo, negar-se para realizar-se. É a pulsão pela negação da sociedade, que lhe rejeita; junto com a pulsão que lhe é própria, visto que aceitar o juízo social, começa a negar a si mesmo em sua negritude. Um esforço de automutilamento identitário: uma alienação do ser perante a si mesmo.


Mas veja que um negro tentando se tornar branco é, ainda hoje, uma impossibilidade. O padrão desejável, sendo impossível, torna a tarefa um exercício custoso. O que significa que a sua dor será uma dor dupla: um padrão que deve perseguir sempre, sem jamais adentrá-lo plenamente. E essa dor, contínua e aguda, permeia toda obra.


O desprezo social combinado ao autodesprezo leva uma vida altamente marcada pela tensionalidade irredutível. E o protagonista carrega uma chaga, seja no âmbito psicológico ou no âmbito social, da qual não poderá se livrar. E mesmo que aceite a própria pele: não poderá ser aceito na sociedade racista a qual está inserido. Tornar-se um homem letrado, de caráter social e econômico superior, não o livrou da condenação: seja a de si mesmo, seja a dos outros.


É nessa trama, uma tragédia total, que vemos como Nelson Rodrigues tece algo extremamente louvável: um conflito social que a tudo se vê psicologicamente e, ao mesmo tempo, sociologicamente. Há uma feição em Nelson, não só na dramaturgia, como na psicologia e na sociologia. Nelson não é só um pensador no âmbito psicológico, é também um sociólogo de primeira grandeza.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Acabo de ler "Álbum de Família" de Nelson Rodrigues

 



"O céu, não depois da morte; o céu, antes do nascimento - foi teu útero"

Edmundo (Personagem de Álbum de Família)


Neste livro, Nelson demonstra um profundo conhecimento sobre psicanálise. A peça trata sobre o Complexo de Édipo e Complexo de Electra. Embora hoje tais complexos não sejam mais vistos como anteriormente eram pensados pela comunidade psicanalítica, é bom entender que existe o contexto da época que pesa muito. Mesmo assim, a peça traz importantes reflexões sobre a natureza da moralidade, as relações familiares, a natureza da pulsão humana e a realidade do afeto.


A temática do primeiro trauma humano é bem abordada: o céu como útero materno é, para todos nós, uma incógnita. Quando somos fetos, nossos desejos são prontamente atendidos pelo aparelho biológico de nossas mães. Desejo e realização, por assim dizer, são o mesmo e dão-se harmonicamente. O reino da necessidade e a realização dessa necessidade estão de par a par. O feto vive, sem saber, o paraíso. É por isso que o processo de nascimento é tão traumático: ele priva o bebê da realização automatizada de suas necessidades e ele terá que passar por processos de privação.


Há nessa peça um trabalho muito cuidadoso com uma temática que, até hoje, faz roer os ouvidos dos mais bem pensantes e, também, dos mais atávicos reacionários: o incesto. Não que Nelson apoie o incesto, Nelson é um moralista: ele expõe os pecados humanos para que exista um processo de ascese. Essa ascese é provocada pela própria exposição do desejo humano em sua brutal realidade devastadora. A peça de Nelson, seu trabalho dramatúrgico, expõe os vícios para purificar. Não por acaso Nelson Rodrigues é chamado de "Anjo Pornográfico".


Como sempre, temos uma peça bastante complexa e com uma série de reflexões que não poderiam - e nem devem - ser lidas de forma descuidada. Nelson é, como nosso maior dramaturgo, um homem duma complexidade ensurdecedora. 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Teatro Completo: Peças Psicológicas" de Nelson Rodrigues

 



"E se, todavia, quereis saber, ainda, o que quer dizer 'Viúva, porém honesta', eu vos direi: sua mensagem é demoníaca. Por 'demoníaco' entendo eu esse impulso que vem de dentro, das profundezas, esse grito irredutível contra tudo e contra todos que falsificam os valores da vida. É essa negação da ordem social, política, familiar ou religiosa que já apodreceu ou que representa verdades esgotadas"

Nelson


Já terminei de ler mais e de analisar mais da metade das peças teatrais de Nelson Rodrigues. Não dum tradicional, visto que o faço de "modo abstrato" para evitar dar spoilers ao possível futuro leitor e pelo fato de que o objetivo das análises postadas no Instagram é o de serem curtas, breves e rápidas de serem lidas.


Ler Nelson Rodrigues em sua forma teatral vem mudando toda minha percepção da realidade. Sempre fui muito próximo de sua obra jornalística e a sua obra literária mais voltada ao romance, mas como não fui muito próximo ao teatro, nunca tive muito interesse em ler a sua expressão teatral. Em minha vida, tinha lido poucos textos teatrais. A leitura dessas obras é fruto dum gosto muito recente. Juntei o útil (ler um gênero literário que eu tinha pouco contato) ao agradável (ler a obra de Nelson Rodrigues).


Pretendo, todavia, só terminar a leitura da obra teatral de Nelson Rodrigues ano que vem. Atualmente tenho que terminar uma série de outros estudos e para adiantá-los preciso largar um pouco de minhas chamadas "leituras livres" - que não deixam nem por um momento de serem intelectualmente proveitosas.


Creio que se pudesse dar uma recomendação aos estudiosos, recomendaria a leitura mais acentuada do corpo literário de Nelson Rodrigues. Apesar das diferenças culturais geradas pelo tempo e a suavização dos costumes que Nelson criticava, ainda há um quê que nos escapa profundamente: a angústia da desejabilidade que temos enquanto seres humanos de natureza essencialmente transcendental. O nosso desejo se choca com o mundo e nem sempre o mundo lhe corresponde, e isto leva a um sofrimento e é deste sofrimento (desejo x contradição) que a obra de Nelson trata particularmente bem.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Vestido de Noiva" de Nelson Rodrigues

 



"Vestido de noiva em outro meio consagraria um autor. Que será aqui? Se for bem aceita, consagrará... o público"

Manuel Bandeira


Existem aquelas obras que, quando escritas, mudam o autor. A pessoa em si já não é mais a mesma, chegou num horizonte de consciência mais elevado em abarcabilidade. Já existem obras que mudam o público, demonstrando uma diferença notória entre quem leu e quem não leu. Existem obras que marcam cidades inteiras. Porém existem obras que, quando bem entendidas, estão muito além de marcar o autor, o público, a cidade e o país. Existem obras que marcam a humanidade, tornando-a mais rica e sabedora de si mesma.


Quando falamos em "Vestido de Noiva" pensamos não em "uma" obra. Pensamos naquela exata e específica obra. Uma obra que mudou tudo de modo tão irreversível que seria impossível não pensá-la do ponto de vista duma anomalia. Existem coisas, pessoas, atos, feitos que, pelo simples fato de existirem ou terem existido, alteram estruturalmente o mundo. Ou seja, são precisamente o "sal" que dá vida à Terra.


Nesta obra, vemos diferentes planos sendo realizados de forma mais ou menos desordenada. Estes diferentes planos são uma inovação, mas igualmente são a realidade da humanidade: não vemos as coisas como são, vemos elas através de lentes múltiplas. Existe o plano da realidade, o plano do simbólico, o plano da imaginação, isto na linguagem psicanalítica de Lacan. Em certo sentido, Nelson Rodrigues trouxe este grande conflito para o plano dramaturgia.


Sua grandeza está na forma com que ele dirige as diferentes realidades, os diferentes planos, as esferas alternantes que se passam. Ele soube dar uma substancialidade que deu uma vida imensa a sua obra. Há, em cada personagem, uma imensa tonalidade de cores que revela individualmente sua inegável condição humana.


Nelson Rodrigues é um dos maiores escritores da história de nosso país e, igualmente, da história da humanidade. O verdadeiro profeta do óbvio ululante e, quiçá, nosso único profeta, visto que só profetas enxergam o óbvio.