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quarta-feira, 26 de junho de 2024

Acabo de ler "Epic Win for Anonymous" de Cole Stryker (lido em inglês/Parte 3)

 


O desenvolvimento da cultura channer do 4chan é particularmente interessante. Provindo de um país historicamente determinado pela a sua herança liberal e protestante, ele logrou criar uma gigantesca Ágora em que se debate uma série de questões de forma livre. Apesar de isso ter desenvolvimentos que muitos poderiam considerar questionáveis, o fato é que se discute e se aprende muitas coisas dentro do 4chan. O 4chan é, para o mundo, um local de intercâmbio cultural colossal entre distintas pessoas do mundo inteiro.


Ninguém fala sobre, por exemplo, a aprendizagem sobre jogos, desenhos, arte, arquitetura, literatura, música, dentre outras tantas coisas que as pessoas estudam no 4chan. Usualmente, caímos numa retórica política que distorce todos os assuntos para promover única e exclusivamente a questão política dentro do 4chan. Ninguém fala do autodidatismo e a capacidade que os anônimos têm de revelar aos outros anônimos informações teóricas e desenvolvimento de práticas relevantes entre si. Essa ausência perceptual revela que temos uma cultura que mais se preocupa em delimitar o que é politicamente permitido do que pensar na relatividade das múltiplas condições culturais possíveis, não por acaso a politização leva a delimitação estereotipada do que é cultura, criando assim uma "cultura permitida" e uma "cultura proibida". Não raro, a politização leva a decadência da cultura, visto que essa passa por um freio mórbido que só permite o que convém ao grupo dominante e esse é usualmente mainstream e não permite outras formas culturais.


A tradição protestante levou a um aumento duma técnica chamada livre-exame, tal condição foi necessária para algo de maior abarcância: o livre-exame não só da Bíblia, como também de uma série de outras obras. É disso que surge o livre-pensamento e a maior possibilidade de uma investigação científica. O protestantismo também descentralizou o poder religioso e aumentou a separação entre religião e política. Descentralização e separação necessárias para o maior livre curso de ações. Além disso, as condições culturais da Inglaterra, diferentemente de países como Espanha e Portugal, eram mais modernas e adaptadas as necessidades do tempo. Enquanto a América Latina era colonizada com uma mentalidade mercantilista, os EUA já recebia protótipos da mentalidade liberal. Posteriormente, os EUA manifestar-se-iam mais adaptados a nova mentalidade do mundo. Uma mais funcional e menos determinada pelos rigores duma mentalidade que, naquele período, já apresentava sinais de decadência.


O 4chan tem discussões mais livres graças ao legado cultural do próprio EUA. Além disso, somasse o fator de que o inglês é a língua internacional e quase todo conteúdo internacional é veiculado em inglês. Essa segunda condição também é necessária para compreender a forma com que o 4chan se demonstrou adaptado para receber toneladas de pessoas de todos os lugares do mundo. Fora isso, o fórum é aberto aos estrangeiros, o que possibilita uma interação maior. Essa junção de fatores não deve ser desconsiderada.


Quanto ao 4chan, podemos gostar ou não gostar de certos aspectos. Mas não podemos desconsiderar o seu impacto e relevância em toda a cultura digital moderna, além da sua influência na propagação de uma série de ideias no mundo inteiro. Fora isso, o 4chan influencia também a política norte-americana, como revelou a eleição de Donald Trump. O fenômeno do 4chan não pode ser reduzido por mera retórica, desconsiderá-lo é desconsiderar a própria realidade. Estudá-lo é tornar inteligível a própria cultura digital tal como ela é e tal como parte de seus idealizadores pensam.

domingo, 16 de junho de 2024

Acabo de ler "Em Defesa de Stalin" de Vários Autores (Parte 30 - Final)

 


Termino aqui uma grandiosa jornada serializada de ler e comentar cada capítulo do livro "Em Defesa de Stalin". Um livro que começa a chamar a atenção pelo título – e não só pelo título, como igualmente pelo seu conteúdo. A perspectiva do livro, a sua apologia a Stalin, é brilhante. Sobretudo num país, o Brasil, em que o trotskismo é amplamente majoritário. Sempre me interessei muito mais por Stalin do que por Trotsky, embora não tenha uma firme posição para com nenhum dos lados. De qualquer modo, a obra – não só intelectual, mas também política – de Stalin sempre me interessou muito mais do que as ações de Trotsky e os seus livros. Não me recuso, entretanto, a fazer estudo do trotskismo e do Trotsky.


Ler esse livro foi de fundamental importância para que eu compreendesse mais profundamente quem foi Stalin e o que ele fez. Por uma infelicidade, no Brasil temos uma grande bibliografia trotskista e uma igualmente grande bibliografia antistalinista. No fim, o que temos são dois grandes polos antistalinistas que, mesmo não sendo propriamente amigáveis entre si, atuam conjuntamente para fortalecer uma única visão de mundo: a antistalinista. Ora, é necessário compreender que uma visão puramente apologética ou antiapologética é dogmática e está muito longe daquilo que se poderia considerar propriamente filosófico. A filosofia não é a aceitação duma unidade de crenças e nem a negação de unidades de crenças. A filosofia, o debate filosófico, é a parcialidade que aceita algum ou alguns aspectos e rejeita um ou outro aspecto ou conjunto de aspectos. A negação sistemática ou aceitação sistemática não é filosófica, é teológica. E um estudo dominado por essa mentalidade não é um estudo livre, é um estudo doutrinador.


Creio que falta ao brasileiro uma capacidade de estudar além das fronteiras que os grupos coletivo-normatizantes apresentam em suas crenças cegas e fechadas. Falta ao brasileiro um livre-exame e um desapego para com as coletividades. Visto que a vida intelectual e as lutas no seio da vida intelectual só podem ser comprovadas intelectualmente. A adesão tribal proíbe isso.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Uma defesa peculiar do livre-exame!

Penso no livre-exame da seguinte forma. Há três formas de se propor uma leitura de forma geral e essas três formas são: 

1- Leitura dogmática ou coletivo-normativa; 

2- Leitura livre-exame; 

3- Leitura livre-interpretação. 


A leitura dogmática não é por mim aplicada tão somente ao domínio das religiões, mas igualmente a qualquer método que leve a compreensão dogmática ou delimitada do pensamento. Creio que, cabe aqui, um adendo: há uma espécie de objetivismo-coletivista na leitura dogmática. Um objetivismo-coletivista está sempre assentado numa tradição de pensamento de determinado grupo, seja esse grupo religioso, ideológico ou filosófico. Assim sendo, toda leitura presumidamente dogmática segue alicerçada por uma mentalidade objetivista-coletivista. Aquele que está inserido formal (conscientemente) ou informalmente (inconscientemente) numa tradição sempre acaba por ter o resultado da leitura pré-modelado pela doutrina em que fixou e delimitou seu pensamento. Existe então uma “inteligibilidade plausível” de interpretação geral sobre todas as coisas sempre correlacionada e subordinada pelo mecanismo de interpretação dado por um grupo determinado. A leitura dogmática é viciada pois seu leitor é viciado numa escola de pensamento, doutrina e ideologia.


Podemos dizer que mesmo no campo ideológico político há uma leitura delimitada que produz resultados delimitados, tal leitura é, para mim, dogmática, pois sempre gira em torno de resultados já predefinidos pela chave de interpretação do texto. O dogmatismo pode estar ligado a algo que não é “uma verdade religiosa”, mas sim a uma “verdade coletiva” de determinado agrupamento social. Tal “verdade coletiva” filtra o pensar através de suas crenças e propõe sempre um resultado enviesado por um vício de pensar.


Leitura livre-interpretação é uma leitura descomprometida com o debate, é uma leitura inteiramente livre de qualquer debate sobre a natureza interpretativa do texto. E nquanto o leitor dogmático quer chegar a uma interpretação predefinida por uma linha de pensamento, o leitor livre-interpretacionista quer chegar a uma conclusão sem qualquer intermediação de ninguém e indo para um caráter individual-subjetivo de interpretação. Podemos ver que daí surge um subjetivismo tacanho que coloca o sujeito leitor como autoridade absoluta. Em vez de subordinar-se a um grupo predeterminado, subordina-se sempre ao próprio leitor e faz surgir uma leitura desinteressada pelo próprio debate acadêmico e impossibilitada de ir além do próprio leitor. 


Leitura livre-exame é uma leitura cuja o fim real é um debate intermediado. Ele não se prende ao subjetivismo-individualista e nem ao objetivismo-coletivista. Em vez disso, ele quer um debate franco que se atenha num número de interpretações razoavelmente possíveis. Diferentemente da leitura dogmatizada, não há um grupo de pensamento que subordina a leitura num resultado ideologicamente presumível. Diferentemente da leitura subjetivista, há uma atenção aos grupos de pensamento e as suas possíveis interpretações. É uma leitura intermediada por não se filiar a nenhuma tradição de pensamento e de interpretação. É uma leitura intermediada por não querer ser uma leitura egoísta, subjetivada por estar subordinada ao sujeito leitor como intérprete absoluto.