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terça-feira, 1 de novembro de 2022

Da Possibilidade de Inteligir




1. A inteligência é de natureza diferente da razão. Enquanto que a razão se propõe a aplicar aquilo que o horizonte de consciência já abarca, a inteligência é a faculdade que possibilita a própria expansão desse horizonte de consciência. Tornar-se mais inteligente é, então, transcender o próprio universo que se está inserido intelectualmente. A inteligência só aumenta quando a experiência - e experiência é projetar-se para fora - aumenta. Só que a experiência requer a negação de si.


2. A inteligência é, então, o objetivo primordial da vida intelectual. Todavia a inteligência encontra um obstáculo que lhe pesa em sentido tensionalmente contrário. Esse obstáculo é a natureza da vontade que busca, acima de tudo, não o fenômeno em si, mas o analisante do fenômeno em questão. O que o homem, fanatizado narcisiacamente consigo mesmo, busca não é a natureza dos objetos que observa, mas aquilo que lhe é conveniente aos seus próprios gostos. Tão logo tua cabeça pendula ao que lhe é próprio ou que lhe seja agradável, mas nunca para algo que fuja do próprio gosto que lhe encerra.


3. A diferença primordial, aquilo que define o conhecimento filosófico por si mesmo, de uma tarefa substancialmente filosófica é o encontro com a sabedoria. Só que a sabedoria é um paradoxo, ela requer algo além da razão, ela requer um movimento negativo de afirmação. Ir para além dos domínios e gostos é o dever do filosofar, porém essa esbarra no ego. A natureza do discurso filosófico, em sua máxima depuração, não é a definição doutrinária. A natureza do discurso filosófico é a aporia, um discurso que aumenta a qualidade e a quantidade do saber, só que nunca se encerra. Não determinar-se é o que determina a filosofia.


4. É necessário não confundir a filosofia com o ceticismo extremado. Para o ceticismo brutal, o conhecimento é de natureza impossível visto que não se pode adicionar nada a ele - o cético extremo questiona tudo a ponto de ser impossível de afirmar qualquer coisa. O conhecimento se aperfeiçoa, amplia-se e perfectibiliza-se sem contudo esgotar-se.


5. É da atitude filosófica não negar ou afirmar algo por tabela. Seria incongruente a um pensador negar sistematicamente, visto que seria mais um movimento impensado e irracional. Negar ou aceitar sistematicamente: essa já é mais propriamente uma posição mais teológica que converge em pontos doutrinais - e, igualmente, das religiões políticas e seus ideólogos. A atitude filosófica é a de analisar propriamente cada afirmação ou negação contida numa série de pensamentos, caso por caso, nunca adentrando num movimento reativo.


6. A teologização do debate contemporâneo é de natureza desconhecida aos próprios pseudoirreligiosos que soterram o debate intelectual e acadêmico com sua volição exacerbada. A isso se deve ao inconsciente teológico encontrado inconscientemente na esfera de seu próprio discurso: quando esse tipo de pessoa põe-se a raciocinar, não encontra em si mesma nada que se funde autocriticamente. Pelo contrário, é próprio deles analisar todos os fenômenos como um narrador onisciente que, bem ou mal, está aquém de todos os erros possíveis. Por causa disso, inconscientemente se veem como seres dotados de inteligência omniabrangente, acima dos erros de todos os seus contemporâneos e ancestrais. Esse vício mental caracteriza, em muito, a argumentação contemporânea. A pessoa entra numa certa forma de onipotência intelectual sem sabê-lo - e a vaidade come pouco a pouco a sua capacidade de inteligir. 


7. Se eu pudesse definir o que é inteligência, adentraria no posicionamento chestertoniano, defini-lo-ia como um paradoxo. Quando Chesterton diz que os homens querem escolher qual a melhor prisão, ele fala dum ponto epistemológico de altíssimo nível. A razão é viciada por ser a aplicação do que já se sabe, a inteligência é a abertura construtiva do intelecto. Nesse ponto, não se trata de escolher entre dois pontos ou mais, mas sim criar um mundo monumental via apreensão da realidade. Escolher entre um raciocínio ou outro é optar em qual lugar ficará a sua prisão.


8. Sendo assim, pensemos num quadro que, pouco a pouco, aumenta de tamanho. Essa regra que fixa a própria inteligência. Isto é, o desenvolvimento da inteligência é a própria abertura complexuante do ser que aumenta a cada dia o seu saber por múltiplas vias. Não é sobre escolher ideologia x ou y.


9. Quando vemos alguém que, graças a um ou mais pontos de divergência, histericamente coloca-se contra algum conjunto de ideias, não temos aí um uso da inteligência e muito menos um exercício filosófico. Temos, pelo contrário, um movimento reacionário. Reacionário no sentido se que reage a algo. Na verdade, o que temos é alguém que teve o ego ferido devido a uma argumentação ir contra àquilo que ele acredita. Nesse ponto, só podemos exigir tolerância ou maturidade, visto que encontramo-nos no seio duma sociedade democrática.


10. Indo em relação a religião, muita coisa se fala e pouca se é compreendida. Em primeiro lugar, sendo íntima ou não, nenhuma discussão religiosa se pauta pela relatividade absoluta das crenças. Pelo contrário, a teologia de qualquer religião sempre se pautou no avanço de sua própria ciência teológica. Por exemplo, sabe-se mais sobre teologia cristã hoje do que no século I. Não saber disso é, propriamente, não saber o básico de religião. É nivelar puramente por baixo o pensamento religioso. É como dizer que, sendo a religião puramente objeto da subjetividade, pouco importa se o cristianismo vem de um dos maiores teólogos de todos os tempos ou se é formada por um semi-analfabeto. Também é ignorar os progressos encontrados no debate acadêmico dessas áreas.


11. Exigir que todo discurso se dê tão unicamente pela via natural é como não entender também o básico de teologia. Toda crença natural de um religioso advém duma crença preternatural. Acreditar, por exemplo, que a Doutrina Social da Igreja Católica se fundamenta pura e simplesmente em conhecimentos naturais sobre a sociedade é ultrapassar os limites da baixeza intelectual. Todavia essa mesma Doutrina Social da Igreja Católica é posta em linguagem puramente natural. Só que a impossibilidade de viés religioso faria com que, até os conhecimentos expostos em forma natural, tudo que é de natural porém de origem de pensamento religioso fosse amplamente ignorado pelos próprios religiosos na hora de sua argumentação. O que seria o mesmo que dizer: "você deve ser puramente materialista nessa argumentação". Uma tirania instalada ao gosto de naturalistas, a exigência de apostasia provisória para a frequentação de lugares públicos.


12. Só que a discussão sobre a ausência de viés religioso censurará mais do que religiões tradicionais como budismo, islamismo ou xintoísmo. Ela atacará várias constatações ideológicas de fundo religioso. Como, por exemplo, o fenômeno da imanentização escatológica (comunismo, Estado mínimo, sociedade regida pela Ordem e Progresso). Além da soteriologia revolucionária, seja essa marxista, liberal, anarquista, positivista ou o que for. Assim, todo e qualquer discurso, poderia ser impossibilitado se aplicado com rigor. Além disso, toda mensagem que fala sobre o sentido último da natureza humana - a ontologia em sentido final - contém um fundo religioso. Religioso no mais exato sentido do termo: a religação com algo que se veja como primordial - coisa que ocorre em quase toda esfera discursiva.


13. Não vou exigir, é claro, que meus colegas de grupo sejam capazes de compreender pensadores tão complexos como Tilich, Barth, Ratzinger, Lonergan, Teilhard de Chardin, etc. Eu mesmo sou um agnóstico convicto e não creio em nenhuma religião propriamente dita, embora eu não seja reducionista a ponto de acreditar na ideia de que eu poderia suplantar toda essa longa e complexa discussão nesse âmbito.


14. Só que há um porém que se apresenta diante de minha argumentação: a ideia de sistematizar o agnosticismo, criando um sistema de pensamento agnóstico, é em muito baseada na ideia de abertura ao absoluto e tem fontes místicas notórias, embora seu "fundo" seja plenamente natural. A abertura radical é, para mim, crença central e de fundo e viés religioso.


15. Ora, toda a minha epistemologia é formada numa crítica a gnose e suas formulações modernas por meios ideológicos. Se assim não o fosse, não se chamaria de Agnose a forma que me considero. Vejo, nas formulações políticas, uma forma religiosa de pensamento. Buscando a superação disso, busco uma saída agnóstica ao pensamento religioso-político das ideologias (fascismo, liberalismo, socialismo, positivismo, etc). Sem esse pensamento, toda a ideia de criar um sistema de pensamento agnóstico se perde e a minha própria substancialidade como intelectual também.


16. Tudo que projetei até o presente momento tem como busca a abertura radical do ser a universalidade que nunca poderá ser realizada, mas que lhe surge como tarefa primordial. Quando escrevi sobre a neossistemática como uma tentativa de superar os limites do mundo pré-inteligível era nisso que pensava: na superação do pensamento condicional. Quando critiquei o aspecto coletivo-normativo e propus uma nova interpretação de livre-exame, fiz-o com a mesma intenção. Quando estive a criar um método de meditação chamado Ouroboros para encontrar uma forma coerente de autocrítica, o objetivo era o mesmo. A ideia de desconstrução niilidionisíaca das ideias segue o mesmo pressuposto: a relativização para plenitude sintética do ser, visto que o ser só é ser enquanto absoluto. A posterior crítica ao pensamento tradicionalista pelo erro da inversão ritualística e a crítica ao esquerdismo pelo imperativo histórico categórico igualmente. Até mesmo a ideia de delimitância indelimitada como desenvolvimento do ser segue a mesma linha. O próprio método de leitura que envolve uma engenharia mental reversa envolve isso. Tirando o "viés religioso" a própria possibilidade de tudo que eu criei é, por assim dizer, inexistente e contraditória.


17. Se a minha busca pela superação das incapacidades de inteligir se baseia estruturalmente num estudo aprofundado da religião e, igualmente, na consequente abertura ao absoluto (loucura verde ou condução do inconsciente como metodologia epistemológica): não há nada que eu possa fazer quanto a isso. A fé na aleatoriedade da desordem e, igualmente, na leitura das mais diversas linhas de pensamento para superação da diversidade marginal que aprisiona o saber é consequência lógica do sistema que sistematizo. Ou devo jogar no lixo todos os anos de estudo e pesquisa para ter uma argumentação de viés irreligioso - embora contraditoriamente inconscientemente religiosa no discurso de meus colegas - ou devo ir embora.


18. Mesmo que minhas crenças sejam de caráter conscientemente naturais (o que não é nenhuma surpresa, visto que sou agnóstico), o fundamento último é a religação com a abertura radical do ser - a busca pela universalidade pelo impulso negativista de negar-se para mais abarcar simbolicamente a totalidade do real. Logo meu viés, mesmo que naturalista, é religioso, visto que se liga ontologicamente com uma afirmação última que valida minha existência e expressa aquilo que mais acredito. Tornar-me inautêntico falsificando minha existencialidade não é opção. (Você não sabe verdadeiramente quem é até saber pelo que você morreria para defender).


19. Parece que, devido aos últimos posicionamentos, terei que continuar sozinho em minha jornada. Admito que, em minha índole tempestuosamente pessimista, nunca esperei o contrário - vida intelectual e perda de amizades sempre se consubstanciam. Como não cabe entrar nessas questões, dou espaço para aqueles que não conseguem entrar nelas ou as odeiam. Tenho certeza que o grupo conseguirá ir em frente com suas ideias, visto que são "avançadíssimas". Possibilito todo espaço restritamente epistêmico que vocês ansiosamente querem.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Agnosticismo Metodológico - ou: da Mortificação Literária como Predisposição da Inteligência




    
Muitas vezes eu me pegava me perguntando sobre a chave da interpretação teológica. Acabei notando que o pensamento teológico envolve aquilo que chamo de "virtude negativa", ou seja, uma virtude que vem a partir da mortificação que leva a abertura do ser ao outro (ou Outro). Essa mortificação que fecha o espírito para si mesmo e o predispõe a outro espírito é aquela que torna o ser apto a recepção do divino - só que não serve só para a recepção do divino, serve para receber qualquer outra pessoa ou qualquer outro pensamento ou coisa. Lembrava-me ocasionalmente de frases - que vou reproduzir incorretamente - como: "você deve convencer a si mesmo daquilo que Deus quer de você" e "a inteligência só é exercida quando se cala". Foi pensando nessas frases que melhorei meu método de estudo, não só no estudo da teologia, mas no estudo geral, já que todo estudo envolve uma liberalidade, uma tolerância que se entrega e torna-se aceitação.

    A leitura pode ser muito útil e pode servir como um exercício não só de tolerância, mas um exercício duma alteridade dialógica que faz o ser se abrir e, abrindo-se, cresce. A pessoa que lê deve tentar, durante a leitura, não apenas tolerar a ideia do outro, é preciso que a pessoa leitora vá além daquilo que é e tentar, por meio da leitura, tornar-se o outro. Se faz necessário um esvaizamento do espírito para que outro espírito adentre e relativize, não anulando, mas expandindo o horizonte de consciência. O problema de muitas leituras é a incapacidade de aceitação, já que a aceitação é amarga. No entanto, a aceitação é absolutamente necessária para o entendimento do outro. Isso dói principalmente no entendimento de obras que nos são opostas ou que tocam em pontos sensíveis, só que mesmo nesses momentos o entendimento precisa da aceitação provisória para fins de inteligibilidade.

    É preciso que a gente leia, leia com atenção e mais do que isso: com recepção. É preciso que a gente se mortifique para nos abrirmos a leitura do próximo. Leitura que só será possível quando a gente se mortificar, quando sairmos de nós mesmos momentaneamente para que o outro ocupe nosso lugar e conduza-nos ao entendimento dele. Claro que não conseguiremos nos abrir em absoluto, mas é preciso que saiamos de nossa vontade para nos encontrarmos com o próximo. Já que não cabe a vontade inteligir, cabe a vontade decidir. Quando a vontade pega o lugar da inteligência, vemos o preconceito tomar forma. Já que a vontade serve para julgar, só que não se pode julgar verdadeiramente o que se desconhece. A inteligência é aquilo que recebe e a inteligência só é exercida quando se torna apta a receber. É preciso, então, que entremos numa apostasia temporária de nossas crenças.

    Se para o entendimento se faz necessário um processo de abertura, é preciso que também se tenha um processo de negação de nossas próprias crenças. Nesse ponto, o agnosticismo pode ser a chave para a inteligência já que o agnosticismo declara que não sabe. O agnosticismo é um bom termo e uma boa metodologia no tocante a vida intelectual. É preciso se esquecer momentaneamente do que se sabe para que haja a apreensão do objeto ou do "subjetivo" estudado. O termo que se utiliza para a palavra que chamaríamos de "autoprivação", no âmbito religioso, é chamado de mortificação. A palavra mortificação, em meu entender, pode ser usada para o entendimento do "agnosticismo metodológico". A mortificação do próprio pensamento (da vontade) é necessária para o entendimento. Logo é preciso uma mortificação durante a leitura, mortificação que predisporá a pessoa ao estudo real e mais concreto, já que o estudo requer essa abertura. A "apostasia provisória" é a abertura para a alteridade sem a qual o conhecimento se torna impossível. Quando a vontade domina, tem-se não a epistemologia e nem a empatia, mas o oposto disso: a doxa (opinião) ou o preconceito.

    Virou-se lugar-comum falar da "democracia", falar de "empatia", falar de "tolerância". Só que todas essas coisas não são coisas que são "essenciais", já que elas não surgem de algo natural e já dentro do sujeito. Nós não somos "democráticos", nós "estamos democráticos". De igual modo, nós não somos "empáticos", nós "estamos empáticos". Na tolerância, o mesmo se serve: não se "é" tolerante, se está "sendo" tolerante. E fundo isso na virtude negativa: uma virtude negativa é uma virtude que é exercida provisoriamente, uma virtude que envolve uma negativa do ser para consigo mesmo. Aceitar o outro ou outras ideias envolve virtude negativa. Aquele que se diz empático, tolerante e democrático já afirma como algo dentro de si mesmo, como algo natural, e se tem como algo natural, aquilo que fala já se perdeu. Se você acha que está aberto, você simplesmente não se abre. É por isso que vemos uma contradição: muitas pessoas que se julgam democráticas, tolerantes e empáticas não são nada disso. Só que a própria auto-intitulação gerou um "estado hipnótico" que a faz não perceber mais nada. 

    Muitas vezes vemos pessoas dizendo coisas preconceituosas e muitas vezes essas pessoas detêm algum conhecimento ou estudam ativamente algo. Só que o estudo delas é direcionado abertamente a um horizonte de assuntos e crenças bem delimitado. Quando a pessoa vê outra epistemologia, seja de qualquer grupo a qual ela não se vincula, ela sente um certo medo identitário que a coloca numa insegurança que ela fará tudo para evitar. É por isso que a leitura pode ser uma chave de encontro com o próximo, a gente pode ler algo de diferente e abrirmo-nos ao entendimento não do que a gente já crê e sim daquilo que a gente simplesmente não crê. Todo estudo normativo cria um discurso da naturalidade e um discurso da inaturalidade. O discurso da inaturalidade é um discurso racionalizante de uma pessoa que apagou a luz por não poder se lidar com o próprio medo. Aquilo que gera incerteza ameaça a onipotência do pensamento e tão logo que causa uma ameaça, essa mesma coisa é demonizada e exorcizada do campo teórico. Em outras palavras, cria-se uma ideia de natural (normal) e cria-se uma ideia de inatural (anormal) para se rejeitar algo da realidade. Só que quando isso ocorre, acontece aquilo que poderíamos chamar de inversão dogmática: esse fenômeno, "a inversão dogmática", ocorre quando a vontade (faculdade de julgamento) passa a ocupar o lugar da inteligência (faculdade de abertura).

    Se a gente pudesse ilustrar um momento de "inversão dogmática", poderíamos ilustrar com a islamofobia da sociedade brasileira contemporânea. Muitas vezes vemos cristãos se lidando com o islamismo de forma desrespeitosa e, quiçá, penosamente duvidosa. Eu percebi que o islamismo traz um discurso sobre o divino que o cristianismo faz parte, mas não catalogou. Um dos fenômenos intelectuais que geram erros e mais erros é a ausência de autocrítica e a ilusão do pensamento para consigo mesmo. O estudante vê tudo com um olhar externo, onde a sua própria figura não faz parte da arquitetura de seu pensamento - isso cria uma ilusão narcísica-dogmática chamada: onipotência intelectual. Vendo tudo externamente, vê-se longe de qualquer erro e torna-se um típico "fariseu intelectual". Já que um dos fenômenos que levam ao defeito da razão é, por excelência, a onipotência do pensamento que vê todos os fenômenos que ocorrem como uma figura onisciente - essa é a ilusão central do pensamento que traz uma espécie de narcismo intelectual que se recusa a se ver como errada. O narcisista cristão não pode suportar o muçulmano dizendo que Jesus não é Deus, assim ele só pode fazer uma coisa: reprimir, seja o Islã, seja qualquer outra crença que ponha em dúvida a sua própria identidade intelectual e/ou religiosa.

    No fundo, o islamismo faz crescer uma dúvida teológica. E toda teologia nasce, em primeiro lugar, duma dúvida que é respondida por algo/alguém que o homem considera como superior. Só que o islamismo faz voltar o cristão vulgar para a terra da incerteza e isso destrói o que o cristão ocultou de si mesmo: a dúvida quanto a sua religião. O islamismo faz a consciência perceber que o discurso teológico, até então predominante, não era de fato onipotente - não era imune de erros. A inteligência cristã, apercebe-se não de sua onipotência intelectual, mas sim de sua impotência intelectual: o cristão percebe que não abarcava a tudo, que seu pensamento não era tão perfeito e tão pleno. E é por isso que dizem: "isso é satanismo", só que tudo isso é gerado por uma "fé fraca" e uma "inteligência adormecida". Mas, é claro, isso não serve só ao cristão para com o Islã. A onipotência do pensamento é um mito que circunda todo pensamento e toda construção de pensamento. E toda vez que uma construção de pensamento se lida com algo estranho - que lida com uma identidade profunda - há esse choque.


    Pensando um pouco mais longe, indo do terreno religioso para o terreno de gênero: esse caso serve também para o homem que vê, no efeminado, a dúvida quanto a sua própria identidade e valores. Toda desconstrução - seja no islamismo desconstruindo a teologia cristã ou no não-binárie desconstruindo o gênero - traz uma dúvida quanto a construção. A construção de gênero ressente a não-binariedade que a desconstrói. O cristianismo ressente o agnosticismo que não o aceita. O construído ressente-se com o desconstruído, já que todo construção envolve personalidade e algum grau de certeza. E quanto maior a certeza, maior o medo para com aquilo ou aquele (a) que desconstrói. Já que aquele que assume uma identidade também assume uma forma de vida (modus vivendi) e isso gera uma dúvida quanto a forma de vida que ele leva. Se toda ação que fazemos é marcada no tempo para não poder ser contornada, aquele que se privou de muitas coisas por causa de sua identidade acaba por perceber que, quiçá, tenha jogada a sua vida fora. Toda desconstrução, todo "outro", leva o questionamento do ser para consigo mesmo. A consciência-de-si necessariamente termina na dúvida-de-si e isso pode levar a um sofrimento.

    Para lidar com esse sofrimento de dúvida quanto a nossa ação temporal que é irremediavelmente registrada na história sem possibilidade de mudança - não há como mudar o passado, ao menos não agora -, cabe um ceticismo para com nossas próprias crenças e também a aderência de pensamentos que relativizam nossa própria seriedade enquanto seres existenciais. É preciso que a dialogicidade adentre não para uma relativização que leve a anulação de duas coisas, mas uma relativização expansionista que leva a elevação das duas coisas num paradoxo harmônico - eis aí, meus amores, a chave do entendimento da dialética chestertoniana e a chave para o entendimento da sanidade em Chesterton. É por isso que, abrindo-me ao oposto, durante a leitura: se leio um autor islâmico sunita, tento convencer a mim mesmo a me tornar um islâmico sunita; se leio um ateu irreligioso, ou, até mesmo, antirreligioso, tento eu mesmo me tornar um ateu irreligioso ou antirreligioso. Esse processo de mortificação me abre ao entendimento do próximo e de sua obra, já que a inteligência só é exercida quando se cala. Voltando a uma das frases iniciais: "é preciso que você convença a si mesmo que o oposto está certo". Só aceitando o próximo, mesmo que com desgosto da vontade, podemos ter uma maior compreensão dele. Assim fica mais fácil: aderir um agnosticismo metodológico que faça uma mortificação para com nós mesmos e nossas crenças nos abre à verdadeira leitura.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Acabo de ler "Agnosticismo" de Laurence B. Brown




    Acabo de ler "Agnosticismo" de Laurence B. Brown.


    O agnosticismo era para ser uma metodologia que tenta verificar a verdade ou inverdade presente na religião. Se o agnosticismo configura ou leva a uma covardia intelectual que se recusa a encontrar uma solução para o drama religioso, isso é uma questão que precisa ser avaliada com mais calma.


    A questão da verdade, na esfera da religião, é um terreno turvo e turbulento. Sendo transcendental, deve estar acima e imaculado. A transcendência é ascendência do espírito, mas como podemos saber se nossa crença é, de fato, real? Se Deus é puro e não erra, como pode nos passar algo que não é crível? Se o paraíso depende de uma crença, como poderíamos crer em algo pouco razoável? Se a crença não é razoável, a própria fundamentação escatológica está inteiramente errada ou é injusta - não se pode condenar alguém por errar num debate sem fontes cabíveis e estruturação intelectual certa. Essas questões sempre vão e voltam na questão teológica, questões difíceis de responder e que carregam uma eterna tensão. O pensamento religioso não pode se dar o luxo de errar sem se tornar menos religioso. 


    O autor fala de diferentes tipos de vivência de fé entre cristãos:

    "Adeptos doutrinários podem ser divididos em subcategorias funcionais com base nisso. Por exemplo, os cristãos teístas (ortodoxos) que concebem que concebem que a realidade de Deus pode ser provada, os cristãos gnósticos que concebem o conhecimento da verdade de Deus como reservado à elite espiritual, e os cristãos agnósticos, que mantém a fé ao mesmo tempo em que admitem a incapacidade de provar a realidade de Deus. A diferença distinguível entre esses vários subgrupos não reside na presença na fé, mas nas tentativas de justificá-la"

    A forma como ele coloca três alternativas que são quase sempre resumidas em duas: teístas e gnósticos. Apresentar a opção de um cristianismo agnóstico enriquece o debate na medida em que tira a sua imprecisão.


    Esse livro demonstra que o drama religioso tem múltiplas vias, todas difíceis e com alta tensão para o vivenciador da fé. Algumas mais sentimentais, outras mais racionais e outras menos seguras de si. Teologia não é pra criança.