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terça-feira, 5 de agosto de 2025

Acabo de ler "Teoria Geral do Estado e Ciência Política" de Cláudio e Alvaro (Parte 2)

 


Nome:

Teoria Geral do Estado e Ciência Política


Autores:

Cláudio de Cicco;

Alvaro de Azevedo Gonzaga.


Esse capítulo é bastante breve. Os autores optaram por uma abordagem sistemática, porém breve em detalhamentos. Não sei se eles darão explicações maiores sobre os conteúdos abordados posteriormente ou se os capítulos posteriores explicam o que foi anteriormente mencionado. Há uma dificuldade para pessoas como eu compreenderem todos os termos que são pouco esmiuçados, todavia creio que eu possa superar essa dificuldade com o tempo.


Nesse capítulo é tratado a questão da sociedade. A sociedade pode ser encarada de diversos modos. Podemos interpretá-la como um grupo de vários homens agrupados pra obter algo. Também pode ser todo um complexo de relações do homem com seus semelhantes. Também pode ser uma pluralidade de grupos da mais diversa espécie e coesão. A sociedade pode ser um contrato hipotético realizado entre homens. E há quem diga que a vontade humana em si mesma justifica a existência de uma sociedade.


Existem múltiplas formas de encarar a organização social e a sua manifestação em forma de Estado (sociedade política). O organicismo preza pela coletividade, em que cada parte representa um órgão dentro da sociedade, cada qual representa e atua dentro de um papel — essa característica definidora é tida como potencialmente autoritária por ser muito delimitante. Existe o mecanicista, que encara a sociedade não como natural, mas como algo útil desde que resguarde a soberania individual, o que evita a tirania, mas pode decair num individualismo. Já a teoria eclética mescla o organicismo (de tendências mais coletivistas) com o mecanicismo (de tendências mais individualistas).

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Acabo de ler "How Marxism Works" de Chris Harman (lido em inglês/Parte 5)

 


Nome:

How Marxism Works


Autor:

Chris Harman


Usualmente confundimos a nossa realidade espaço-temporal como uma realidade fixa. A razão disso é pelo fato de que estamos imersos nela, o que a torna imperceptível. O estudo da história e de outras culturas, por sua vez, ajuda na relativização das nossas noções enraizadas e, até mesmo, uma possibilidade de imaginar um outro mundo de possibilidades.


A divisão de tarefas dentro de uma sociedade é um produto recente de nossa história. É evidente que quanto mais tarefas desempenhadas por uma sociedade, maior será o nível de especialização e fragmentação das atividades entre distintos grupos e pessoas. Todo esse desenvolvimento prodigioso leva a melhoras quantitativas e qualitativas. Só que há um porém: essa riqueza que é gerada é concentrada nas mãos de um grupo minoritário da população.


A pergunta que temos que levantar é: como é possível que uma minoria de indivíduos detenham para si grande parcela de uma riqueza produzida por uma sociedade? A resposta é: a natureza das leis, na maioria dos casos, não serve ao interesse geral de uma sociedade, mas ao interesse da classe dominante.


A riqueza é criada pelo trabalho físico de vários trabalhadores. Só que não é a classe trabalhadora que recebe os benefícios da riqueza que ela produz. A riqueza é controlada pela classe dominante.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Acabo de ler "Anatomy of the State" de Murray N. Rothbard (lido em inglês/Parte 5)

 


Nome:

Anatomy of the State


Autor:

Murray N. Rothbard


O Estado quase sempre acaba de duas maneiras: (I) ao ser conquistado por outro Estado pela guerra; (II) ao ser derrubado por um grupo de revolucionários. Quando o povo se move nessas duas direções, seja para o combate do Estado inimigo, seja para a revolução, movem-se pela crença de que, no fundo, estão se dirigindo para a realização da própria vontade ou para defenderem a si mesmos.


O ilusionismo coletivista sempre é, historicamente, um dos principais meios de mobilização. A palavra "nós" é algo muito difícil de se conceituar com precisão. Sim, fazemos parte de uma formação específica e estamos situados no espaço-tempo. Nossa língua talvez seja igual e quiçá tenhamos pontos semelhantes. Todavia pegar uma série de características comuns e, a partir disso, criar uma unidade perfeita de coesão é um salto argumentativo tremendo. Existem pontos, em cada indivíduo, de conexão ou de separação. No máximo, podemos falar de interesses semelhantes ou próximos em dados pontos em alguns momentos. Não há nem coletividade e nem individualidade plena.


O momento em que isso, o ilusionismo coletivista, mais ocorrer é durante uma guerra ou durante uma revolução. O Estado está particularmente interessado na guerra, já que é a partir dela que ele pode utilizar um dos maiores mecanismo de autopreservação que possui: a crença dos indivíduos de que a sociedade existente e o próprio Estado são uma mesma identidade e, portanto, possuem os mesmos fins.


Seríamos nós o Estado? Há um entretanto particularmente interessante. Se o Estado somos nós, por qual razão o Estado está mais preocupado em punir crimes contra a existência de si próprio do que crimes cometidos de um cidadão para outro? Ora, todo crime dentro do Estado, sendo a sociedade o próprio Estado, seria um crime contra o Estado e teria igual valor, não?

Acabo de ler "Anatomy of the State" de Murray N. Rothbard (lido em inglês/Parte 1)


Nome:

Anatomy of the State


Autor:

Murray N. Rothbard


O questionamento de Rothbard começa com uma simples, mas complexa, questão: o que é o Estado? A natureza do Estado é apresentada por diversos prismas: ele é descrito como a apoteose da sociedade; é descrito como amável, todavia ineficiente para cumprir os fins sociais; descrito como necessário para cumprir os fins sociais. A identificação da sociedade com o Estado cresceu junto a noção de democracia, na qual se chegou a conclusão de que nós somos o governo.


Quando falamos a palavra "nós", camuflamos certo aspecto da linguagem e encobrimos a natureza do Estado. Adentramos num reino de diluição em que nós mesmos nos tornamos "parte" do Estado. Assim adentramos, sem perceber, que aquilo que o Estado faz ou pode fazer tem nossa concessão. O que significa que as ações do Estado são nossas ou possuem, em automático, a nossa aprovação.


Para Rothbard, adentraríamos em águas amargas. Quando, por exemplo, o Estado nazista matava seus próprios cidadãos judeus, os judeus estavam concedendo a própria morte? Então não seria um projeto genocida imposto arbitrariamente por uma sociedade tirânica, mas um processo em que os judeus tiravam a própria vida em massa. É a partir disso que podemos ver que essa identificação automática do Estado e sociedade pode ser não só potencialmente nociva, como escandalosamente perigosa.


Não podemos ser "o governo", nem "o Estado". Se 70% da população decide matar 30% da população, isso não é de forma alguma um processo voluntário em que aqueles 30% de pessoas estão cometendo suicídio em massa. Genocídio ainda é genocídio, não importa se justificado pela via democrática ou pela maioria da população concentrada numa figura autocrática.


Se o Estado não é uma organização em que nós somos integralmente participantes, o que é o Estado? Basicamente o Estado é, de forma breve, uma organização que detém o monopólio de força e violência em determinado território. O Estado é a única organização social dentro de uma sociedade que não obtém as suas receitas através de uma troca voluntária de produtos ou serviços, mas através do uso da coerção. É o Estado que prende todos aqueles que estão contra ele, seja por uma série de motivos que são considerados pela própria preservação do Estado.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Acabo de ler "The Agony of the American Left" de Christopher Lasch (lido em inglês/Parte 5)

 


O fim das ideologias, as arrogâncias utópicas, era algo bastante comentado. Aparentemente os devaneios totalitários perderam o seu poder persuasivo ante às massas. Tal ideia só poderia ser irrisória: a humanidade não aprende de forma permanente e nem tem seu legado transmitido de forma automatizada.


As instituições de ensino superior, agora massificadas, tinham a missão de darem pessoas tecnicamente capazes a uma sociedade tecnicalizada. Embora houvesse toda uma propaganda dizendo que a faculdade – o ensino superior, no geral – lhes daria uma educação humanista. Todavia esse humanismo deveria ser integrado a um interesse corporativo sem o qual a própria massificação do ensino superior seria impossível.


As universidades americanas criaram os estudantes enquanto classe. Essa classe era psicologicamente adulta, mas sociologicamente adolescente. Essa classe detém uma visão extremamente crítica do mundo, sendo incapaz de se integrar a ele devido a sua ultra criticidade. Essa ficou conhecida como a "nova esquerda" e tinha uma visão romântica acerca da violência e do conflito.


Essa "nova esquerda" via com maus olhos as autoridades, como também via com maus olhos a burocracia e a hierarquia. Eles acreditavam que a sociedade estadounidense lhes retirava a autenticidade. Para viver uma vida mais autêntica, eles fizeram frente as instituições que julgavam padronizadoras. Com tal mentalidade, a nova esquerda fez vários protestos e esses protestos tomaram várias formas e proporções.


Um dos fatos que mais ligam a nova esquerda é a sua atuação antiguerra. Inclusive, seu movimento antiguerra foi protagônico no rumo político dos Estados Unidos da América durante a guerra do Vietnã. De qualquer forma, após tanto e tanto tempo, tantas e tantas revoltas, o movimento da nova esquerda não foi capaz de resolver problemas estruturais da sociedade estadounidense.


Pensando em todas essas aspirações humanistas não realizadas, podemos pensar na estrutura econômica dos Estados Unidos. Ainda hoje se pode afirmar que os Estados Unidos é caracterizado por grandes corporações de alta tecnologia, por um lado, e pelo mercado tradicional, por outro lado. Os intelectuais – cientistas, acadêmicos, técnicos – são empregados no setor de alga tecnologia. Só que existem aqueles que ficam de fora.


Numa sociedade onde a alta tecnologia é o foco e todos os setores da sociedade depositam sua esperança na formação de intelectuais, o principal foco político não é outro se não a própria universidade. Muitos vão a ela esperando que ela crie condições melhores, mas recebem um mundo perdido em troca do seu ato de boa fé. São incapazes de cumprirem aquilo que a própria sociedade lhes exige ao mesmo tempo que a universidade não lhes dá o futuro garantido que ela mesma prometeu enquanto instituição.


A instituição universitária, por sua vez, está corrompida pela a sua ligação com quem a financia. As corporações e o governo querem que ela tenha uma utilidade que é contrária aos anseios democráticos e humanitários dos seus próprios alunos. Isso a faz tornar o palco de um conflito que sempre aumenta.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Acabo de ler "Militância enquanto Convite ao Diálogo" de Dani Vas e Danilo (Parte 7)

 


Nome:

Militância enquanto Convite ao Diálogo: o Caso da Militância Monodissidente


Autores:

Dani Vas;

Danilo Silva Guimarães.


Dizer que não há nenhuma relação entre o campo de pesquisa e o pesquisador seria uma afirmação estranha e errônea. Toda ciência apresenta um ponto de vista e um enquadre normativo, logo é evidente que não há uma neutralidade. Muitos questionam a pesquisa militante tendo como base o seguinte argumento: "a pesquisa militante não é pesquisa por não ser isenta de imparcialidade". Esse argumento só poderia ser falso: nenhuma pesquisa apresenta isenção completa de parcialidade. Toda pesquisa é motivada por conta de uma experiência sentida como inquietante. Logo há sempre um movimento afetivo na natureza do pesquisador.


O que move a pesquisa, se não o inquietante? Para muitos brasileiros, dizer isso pode até mesmo soar contraditório. Muitas vezes a realidade da vida de estudos, sobretudo nas instituições de ensino, ocorre de uma forma impessoal. Somos obrigados a digerir uma série de conteúdos que, em grande parte das vezes, não está correlacionado ao nosso âmbito de interesses. Essa ausência de conectividade usualmente gera um desinteresse geral pela vida intelectual. O que explica, em parte, a ausência de mais intelectuais no Brasil e o fato do Brasil não ser intelectualmente mais ativo – refletindo em nossas pontuações gerais.


O mundo sempre nos surge através da alteridade. Há sempre uma experiência de ruptura ou de descontinuidade em nosso horizonte. Essas rupturas que vão surgindo criam em nós uma experiência afetiva de inquietação. Há, então, uma lacuna entre a expectativa e a experiência (expectativa-experiência). O movimento do pesquisador pode ser encarado como um meio de reduzir esse desconforto e essa angústia. O pesquisador  tenta reorganizar o significado da experiência, para que possa reduzir a tensão por meio de confirmações e encaixes.


A pesquisa não é e nunca será neutra. A pesquisa é uma participação observante. Quem pesquisa, insere-se no meio da sua pesquisa. Não só se insere, atua e modifica o meio de onde de inseriu. A ideia de pesquisa neutra, a chamada neutralidade, não passa de uma forma de imposição narrativa. Vindo de um "ponto imparcial", há a justificação soberana de algo. Logo, vem para o "terreno da inquestionabilidade". Se alguém quer ser inquestionável, sua ação em si mesma já é questionável e parcial. 


Só que restará ainda uma dúvida: se é impossível uma imparcialidade, o que ditará a pesquisa? E dessa dúvida surge outra: a pesquisa não corre o risco de se tornar uma narrativa de dominação? A resposta é: a militância dialógica tem como ferramenta teórica-metodológica a multiplicação dialógica. É a interação de um self com o outro que possibilita vislumbrar as lacunas existentes. É compreendendo a dinâmica do eu e do outro. 

domingo, 22 de setembro de 2024

Acabo de ler "Militância enquanto Convite ao Diálogo" de Dani Vas e Danilo (Parte 6)

 


Nome:

Militância enquanto Convite ao Diálogo: o Caso da Militância Monodissidente


Autores:

Dani Vas;

Danilo Silva Guimarães.


Se o grupo hegemônico detém a maioria das estruturas que regem a sociedade, é mais fácil a ela se utilizar dessas estruturas. A luta da contra-hegemonia contra a hegemonia estabelecida não é uma luta entre opostos equivalentes, mas entre grupos que possuem um desnível entre os seus poderes – sendo o grupo hegemônico bem mais poderoso. Não raro, ao ver o seu poder ameaçado, o grupo hegemônico se utiliza dos aparatos da hegemonia para cercear a liberdade discursiva do grupo contra-hegemônico por meio da repressão.

Como dito na análise passada, a busca da militância não é uma busca simples. Ela é uma busca por transformação social e mudança das estruturas sociais. Essa pavimentação – transformações sociais – não pode ser conseguida a curto prazo, mas dependem de um trabalho longo e complexo. Ademais, existe a possibilidade de vitórias de curto-prazo, onde existe uma reversibilidade das conquistas anteriormente feitas.

A questão da militância vai além do que se quer mudar na sociedade e no outro. Ela também se direciona a nós. O que há em nós que reproduz a própria opressão ao qual estamos sujeitos? Não raro, deparamo-nos com racismo internalizado, homofobia internalizada, transfobia internalizada, bifobia internalizada, gordofobia internalizada. Há sempre um fantasma, um fantasma dos velhos hábitos de uma sociedade doente. Uma doença inconsciente que existe em cada um de nós, mesmo no mais dileto dos militantes. Todo o processo de formação endocultural não pode ser "resolvido" de uma hora para outra. A dialética da militância, então, também assume uma condição de processo metanóico dentro do próprio militante. O militante passa para uma desconstrução e vai aprendendo uma nova identidade, um novo modus vivendi e modus pensandi.

A militância também deve encarar uma questão e o militante um autoquestionamento. Ao ver a sociedade como passível de mudanças, podemos cair no erro da proteção egóica. Ou seja, na tentação de mudarmos a tudo sem mudar a nós mesmos, tornando-nos tiranos. Fora isso, a tensionalidade da militância envolve a própria militância em suas diferentes linhas teóricas e estratégicas. Como podemos ver, a militância é um fenômeno complexo e multifacetado, além de multitensional.

sábado, 21 de setembro de 2024

Acabo de ler "Militância enquanto Convite ao Diálogo" de Dani Vas e Danilo (Parte 5)

 


Nome:

Militância enquanto Convite ao Diálogo: o Caso da Militância Monodissidente


Autores:

Dani Vas;

Danilo Silva Guimarães.


Existem muitas formas de pensarmos a sociedade. Se a sociedade é a construção de vários desejos, de teses que foram aceitas e configuradas hegemonicamente pelas forças sociais, as forças sociais antagônicas possuem outros desejos e outras teses – só não possuem a hegemonia. Se pensarmos a sociedade existente como a tese e a militância como a antítese, teremos algo interessante. A antítese – a militância organizada – deve se sobrepor a tese e se fazer, por si mesma, a hegemonia. Feito esse que depende dos meios de produção cultural e a reformulação da sociedade a partir da reconstrução eidética desses meios.

A tese pode ser encarada como "aquilo que já existe" e a antítese, em seu processo reformador, como "aquilo que não existe". Em outras palavras, o "mundo criado" e "mundo que se deseja criar". O primeiro passo a ser dado é o de perceber que as estruturas sociais existentes não existem naturalmente, mas são fenômenos criados e mantidos pela hegemonia em todos os seus aspectos de reprodutividade. Essa reprodutividade é atacada a partir da destituição dos meios que mantém essa mesma reprodutividade, seja subvertendo a sua finalidade de conservação dessa hegemonia, seja na reformulação ou recriação com outros fins.

A militância deseja recriar a sociedade. Um ato isolado, vindo de uma ação não conectada, não é de caráter suficiente para tal. A militância visa, antes de qualquer objetivo particular, a reformulação da estrutura social e essa estrutura social só pode ser reformulada a partir de uma ação social – logo é inerentemente coletiva. Partido da realidade social, parte-se necesariamente da relação do "eu" e "nós" contra "isto" ou "eles". Essa relação implica em uma identidade, um grupo, um ser-estar no mundo e um processo relacional com esse mesmo mundo. A relação do militante é profundamente sociológica e psicológica.

A militância toma a realidade existente como ruim e passível de mudanças. Na relação eu/nós–outro/outros há um tensionamento dialeticamente constante: a quantatividade das forças existentes, a qualidade em que a identidade se manifesta no espaço – sobretudo o público (maior hegemonia) – e o seu exercício nos espaços de poder. A militância existe para quebrar o nexo contínuo da estrutura que existe. Ela quer por um fim na forma com que as relações estão – isto por julgá-las injustas.

Militância implica em julgamento. O julgamento sempre implica em juízo de valor. Em última instância, a questão da militância é: o que é desejável e o que é indesejável? Essa questão da desejabilidade carrega uma intencionalidade coletiva: o que é desejável para "nós" e o que é desejável para "eles". Nesse conflito de interesses os sujeitos estão sujeitos a gravitacionalidade que rege a força dos distintos agrupamentos sociais em sua capacidade de fazer com que o seu interesse se manifeste ou prevaleça.

Na sociedade, a hegemonia é dos dominadores e a contra-hegemonia ou resignação é dos dominados ou oprimidos. O grupo hegemônico ou os grupos hegemônicos tem um poder estrutural – isto é, sistemático – para fazer valer o seu interesse. O grupo não-hegemônico é naturalmente marginalizado, podendo se potencializar e criar um movimento marginal em que se seja questionado o centro (a configuração do poder onde se alicerça a hegemonia).

O resultado de uma intervenção do grupo não hegemônico é diverso, mas podemos traçar três hipóteses: (I). não surge efeito; (II). um timing (tempo) para a concretização do plano do grupo contra-hegemônico enquanto o grupo hegemônico tenta atenuar os esforços do grupo contra hegemônico; (III). resultados inesperados para o grupo interventor visto a dinamicidade líquida dos sistemas sociais.

As estruturas sociais não são amorfas ou passivas. Toda militância é uma militância que focaliza questões estruturais. Se há uma estrutura, há quem se beneficiar direta ou indiretamente dela. Existem pessoas que se beneficiam diretamente de um estado de coisas, por mais deplorável que ele seja ou possa parecer. Isto é, a conservação desse estado de coisas é, para elas, a manutenção dos seus desejos e anseios.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Acabo de ler "Militância enquanto Convite ao Diálogo" de Dani Vas e Danilo (Parte 4)

 


Nome:

Militância enquanto Convite ao Diálogo: o Caso da Militância Monodissidente


Autores:

Dani Vas;

Danilo Silva Guimarães.


Muito tem se falado sobre militância na sociedade contemporânea. Alguns são contra, outros são a favor. Seja como for, não é possível ser generalizadamente contra a atividade militante e nem generalizadamente a favor da atividade militante. Tampouco se pode ser favorável ou contrário a todas as pautas defendidas por uma militância. Todavia o cerne da questão é: o que é a militância? A militância é, na verdade, um fenômeno que surge da realidade sociocultural na qual ela se insere.


A militância pode ser encarada como uma tentativa de abertura. Uma tentativa de abertura sempre incorre em uma problemática: a experiência sempre possui uma alteridade e a alteridade sempre implica em angústia e inquietação. Essa angústia, essa inquietação, sempre leva a um questionamento acerca da vida em si mesma. Além disso, a um questionamento sobre nossas preconcepções. É um tema complexo e, por gerar tantos efeitos sentimentais, bastante escorregadio.


Existe uma problemática na militância enquanto atividade. Essa problemática está no nível psicológico e pode ter efeitos sociais. O militante, querendo mudar a realidade existente, pode acabar se fechando a realidade que julga como injusta. Desse modo, a sua própria personalidade se torna estática – tal como aqueles que o militante usualmente critica. O militante corre no risco de cair num "reacionarismo atitudinal". É evidente que o termo reacionário está na aplicação mais pura do termo, isto é, aquele que reage. Logo a própria militância se perde, visto que deixa de ser um esforço ativo (afirmação de um mundo mais adequado) e se torna um esforço negativo (negação de um mundo injusto).  Essa negação fecha o horizonte vivencial do militante, encarcerado-o numa bolha. O militante, então, torna-se desprovido de criatividade e passa a frequentar os mesmos círculos, passa a falar com as mesmas pessoas, passa a ter ideias muito semelhantes – e cada vez mais fixas – aos seus semelhantes e, por fim, a habitualidade tribal e ritualística torna o grupo militante em um agrupamento fechado, estéril e, também, inútil. Essa é a militância monológica.


É interessante observar que a militância não é uma atividade esvaziada de sentido e que mesmo que não se encontre uma justificação geral das suas teses, ela ainda é um importante comportamento em nossa sociedade. A militância é um diagnóstico da estrutura e funcionamento de uma sociedade. Também é impossível que uma militância seja inteiramente fechada, visto que a militância sugere um comportamento social característico e todo comportamento social revela uma teia relacional. Pouco importa o tamanho de uma teia social, ainda há uma sociabilidade e essa sociabilidade se dá comunicacionalmente. Mesmo que dado grupo se demonstre como socialmente hostil, ele ainda é um grupo em coconstrução de sentido e ainda apresenta significados compartilhados. O ethos da militância é exatamente esse: criação de sentido, significado e experiência comum.


A militância deve ser dialógica, aberta, lacunar, capaz de significação e ressignificação. Ou seja, a militância deve ser uma atividade viva. E, para tal, deve ter uma "pulsão experiencial", uma capacidade de encontrar na alteridade uma possibilidade interagente. A militância aponta para uma possibilidade de mudança social, mas essa possibilidade é sempre marcada com o encontro com o desencontro. Foi a militância que levou a importantes conquistas de direitos no passado e é ela que determina a conquista de direitos no presente. Ela é sempre um convite, um convite ao diálogo com a sociedade e também um convite ao autoquestionamento do militante e do grupo militante. Logo ela não é uma espécie de "autocentramento", mas uma forma de praxis que afetam a própria militância em sua forma de agir com o mundo e pensar no próprio mundo.

domingo, 25 de agosto de 2024

Acabo de ler "Afeminação, hipermasculinidade e hierarquia" de Mozer e Helder (Parte 3)

 


NOME:

Afeminação, hipermasculinidade e hierarquia

AUTORES:

Mozer de Miranda Ramos;

Elder Cerqueira-Santos.


O homem homossexual e bissexual para consumo é discreto para ser tolerável. Ele se aproxima repetidamente da heteronormatividade e se afasta da feminilidade. Se afasta de comportamentos que podem ser vistos como femininos e se aproxima da diluição completa de qualquer coisa que torne visível a sua homossexualidade ou bissexualidade. Em outras palavras, a homossexualidade e a bissexualidade masculina só são toleráveis quando são imperceptíveis. A cultura homonormativa, no âmbito masculino, é a negação contínua de aparecer ou se manifestar no espaço público. Ela também é uma afirmação do domínio da masculinidade e um ataque velado a feminilidade e a mulher. O que é bastante interessante, visto que é no espaço público em que o poder hegemônico se faz mais visceralmente presente e onde os grupos marginais mais são negados e estigmatizados por não estarem na hegemonia.

A conversão à hétero-norma é uma tentativa de adaptabilidade subordinada. Ela é uma postura que aceita uma realidade de domesticação. Uma postura que se demonstra dócil a um mundo dominado por heterossexuais e pela inebriante idolatria da masculinidade. Ela leva a uma autocrítica alienante e um ódio do ser por si mesmo – homofobia internalizada, bifobia internalizada, misoginia internalizada. Ela é uma amputação ontológica na medida em que homens bissexuais e homossexuais negam muitas características próprias, se autolimitando expressivamente, para se adequarem a um sistema corrupto que os marginaliza recorrentemente. Em outras palavras, ela é o compromisso com a derrota. Lembrando o velho ditado: "quando você aceita os termos do seu inimigo, você já perdeu faz tempo".

Como sempre, a densidade de camadas é tão sutil quanto o mais complexo esoterismo. Quando homens bissexuais ou homossexuais masculinos se ocultam numa cultura que sempre os invalidará, quem sofre é outro tipo de homem. Ao adentrarem no jogo da hétero-matrix, deixaram homossexuais e bissexuais efeminados caírem perante o martírio social e reforçaram os estereótipos de gênero. Nesse sentido, houve um rito sacrificial e um bode expiatório (o homem homossexual ou bissexual efeminado). Essa complexidade demonstra a própria perversidade da sociedade e os custos da idolatria da masculinidade.

A legitimização e deslegitimização nos jogos sociais apresenta uma tragédia: ela é feita com base num jogo interminável, sociológica e psicologicamente esgotante, em que a masculinidade deve ser provada o tempo todo e em todo momento. Quando um homem lhe acusa de não ser hétero ou macho o suficiente, você deve provar a sua masculinidade e heterossexualidade. O problema é que essa masculinidade o justifica existencialmente, anulando-o caso você não consiga cumprir os critérios das hétero-normas. Esse jogo social cria a cultura homonormativa em que a expressão cultural de homossexuais e bissexuais são uma paródia ou simulacro da cultura heterossexual. 

domingo, 7 de julho de 2024

Acabo de ler "Sacred Chaos" de Françoise O'Kane (lido em inglês/Parte 2)

 


A pergunta sobre todas as séries de fatores que levam a funcionalidade ou disfuncionalidade de um organismo são essenciais para compreender como fazê-lo funcionar de modo razoável. A questão que o autor dirige em seu estudo é: como o aspecto da sombra dentro do "self" pode nos ajudar a entender como curar uma pessoa ou atenuar o seu sofrimento? Outra questão: como algumas pessoas são mais "determinadas" em aspectos negativos do que outras? Existe uma correlação entre criação familiar e genética, mas é necessário uma análise mais múltipla para ser menos reducionista e mais completa.


Teoricamente falando, não há suficiência teórica. Por mais que tenhamos uma capacidade maior de análise devido ao ampliamento dos estudos, ainda se é impossível determinar todos os fatores que contribuem na formação de uma insalubridade psíquica de modo perfeito e, assim, gerar uma "sanidade universal". Aliás, a própria existência de uma sanidade universal é questionável, visto que podemos nos enganar diante das nossas próprias inconsistências teóricas inconscientes. A ideia de universalidade já é perigosa, a ideia de a possuir completamente é espinhosa e apresenta períodos de alta crise humanitária (a eugenia nazista é um concreto exemplo disso). A hipótese de total controle sobre as informações que nos faltam levam, de tempos em tempos, a autoenganos trágicos e a paraísos teóricos que se tornam infernos práticos.


Em outras palavras, o que é curar o psiquismo de alguém? Descobrir a falta original? Reestruturar a personalidade com um modelo ideal? Acrescentar o que faltou no desenvolvimento do(a) paciente? Colocar as pessoas nas normas que a sociedade considera majoritariamente como adequadas? Não há um modelo de um herói que tenha superado todos os aspectos sombrios da vida. Se olharmos para todas as pessoas que conhecemos, elas não são um exemplo universal de virtude. Se o começo da argumentação parte de uma abstração que não é verificável dentro da própria estrutura da realidade, como poderíamos pô-lo em prática se sequer temos um modelo palpável? Se estamos no reino da contingencialidade e da impefectude, como poderíamos exigir um padrão altamente idealista se a própria realidade se furta a nossa pretensiosidade? Não há modelo de virtude universal na realidade cotidiana, exigi-lo é sobrecarregar nós mesmos e as pessoas da nossa volta com uma abstração.


Atualmente vivemos numa sociedade baseada no crescimento, no desenvolvimento técnico e tecnológico – além do avanço científico para impulsionar esses dois. Nos tempos modernos, somos avaliados de acordo com a possibilidade de enquadramento na escala produtiva da sociedade e também no aumento dessa mesma produtividade. O parâmetro de normalidade se dá pela funcionalidade atrelada a essa mesma produtividade – "valor" e "agregação de valor" são duas noções que regem a contemporaneidade. É evidente que, se olharmos para outras sociedades e outros períodos históricos, temos outros quadros de normalidade – não há e nem nunca existiu um parâmetro universal de normalidade. Outro ponto central nessa análise: o que é "curar" alguém no sentido psíquico? A psiquê está sujeita a uma dialética que vai se alterando de tempos em tempos. Não se pode assegurar uma "estabilidade contínua", isto é, uma "estabilidade" que se dê até o fim da vida ou do momento da "cura" até o final da vida. Ou seja, a ideia de "cura definitiva" é um pouco deslocada da natureza humana. Ademais, a ideia de "cura" carrega valores humanos de forma latente, onde há uma "normalização" focada em normas humanas contextuais – circunscritas em nosso próprio contexto cultural e histórico. Sendo assim, a noção de melhora é relativa e não poderia ser justificada de todos os modos. Se não, teríamos que dizer absurdos como: "você está curado por estar adequado(a) à conjuntura dos valores sociais vigentes".


Quanto a cura se deve ter em conta de que o "Dark Self" é altamente irracional e emocional. Ele não pode ser excluído e é inerente a nossa própria humanidade. Além disso, o "Self" em si mesmo não contém juízos de valor sobre o que reside em sua interioridade. No Self, não há uma distinção entre "bem" e "mal" como há entre o "consciente" e "inconsciente". Pode-se teorizar-se que a sombra é dividida entre a "sombra pessoal" e a "sombra coletiva", logo ela está no "inconsciente pessoal" e no "inconsciente coletivo". Temos lados ruins particularmente nossos e outros que são comuns a humanidade em si mesma – embora esse lado ruim seja considerado ruim pela moralidade social vigente. Para a "cura" há a necessidade de que o ser reconheça a completude de si mesmo, levando a um processo de integração. A possibilidade de repressão não é funcional, visto que se a sombra continuar sendo reprimida, existe a possibilidade de que a sua "energia" se acumule até que se torne uma espécie de grito da alma. Visto que o lado negativo acumulado pode ser "engatilhado" pelas situações existenciais do mundo e a sombra se manifestar sem a que a gente consiga reprimi-la – e quanto mais energia negativa for acumulada, pior será a explosão que será desencadeada. A questão é: como integrar a sombra a nossa personalidade se não podemos manifestá-la? A sombra é a sombra, em primeiro lugar e antes de tudo, pelo fato de ser socialmente inadequada.


A sociedade contemporânea apresenta um problema radical para com a sombra e o aspecto sombrio do Self. A própria noção de que as redes sociais ampliam demasiadamente a nossa imagem social – tornando-a mais conhecida – e isso faz com que nos tornemos mais sensibilizados ante ao julgamento social, além de uma postura mais energética a adaptabilidade normativa, nos dá um delineamento dessa questão que se torna cada vez mais problemática. A exposição excessiva leva a uma postura mais rígida e mais autorepressiva, aumentando o "condicionamento social" e aumentando o acúmulo energético sombrio. Ao deixar públicos os nossos pensamentos, sentimentos e momentos vitais, tornamo-nos figuras públicas que são julgadas conforme os padrões que regem a sociedade. Como não podemos nos manifestar de modo incongruente aos anseios sociais sem sofrer represálias, acabamos por criar um reforço da normatização e postagens que refletem uma postura social adequada. Se a vida social fosse menos pública, isto é, se fosse mais privada, não teríamos todo esse impacto sobrecarregando nosso psiquismo.


Uma das possíveis soluções é a do equilíbrio enérgico. Em cada ação negativa, colocar uma regra que delimite o peso dessa ação, tornando-a não tão negativa quanto usualmente poderia ser. Uma energia positiva deve ser inserida na energia negativa quando essa é utilizada, assim os efeitos tóxicos – para si mesmo e para o outro – são controlados. Deixar a energia negativa acumulando é fortalecer o polo sombrio do Self e esse fator cumulativo pode levar a uma explosão que obscurece a própria capacidade de funcionamento usual. O fenômeno da regressão pode ser mais ou menos impactante a depender de todo contexto precedente e da boa capacidade de autorregulação psíquica. É preciso utilizar a energia negativa de forma controlada, isso é melhor do que esperar que ela "exploda". Todavia isso requer uma aceitação de que o "mal" está dentro de nós o tempo todo e que precisamos de um bom convívio – além de um convívio cético – com esse mesmo mal.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 5)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

Drácula surge contextualmente numa Inglaterra em modernização. Nele temos a figura do estrangeiro, do estranho, do invasor. Ele representa o mundo que "vem aí", o mundo da modernidade burguesa, em que os velhos valores são pouco a pouco destruídos e a ciência e a racionalidade adentram em seu lugar. Todavia temos uma questão: como ficam os velhos valores, encarnados sobretudo pela doutrina cristã, que anteriormente vigoravam? O desapego a essa cosmovisão que representava a estabilidade, consistência e garantia da própria ordem até então instituída levam a uma perda da unidade interna da nação e, ao mesmo tempo, uma desintegração do "eu plural" e da harmonia daquela antiga unidade que até era indissolúvel.

A figura do vampiro aparece de forma parasitária, como uma figura corrompida e corruptora, que vive na noite, em estranhas festas luxuosas, sempre fugindo da vida habitual e dos valores comuns ao povo. Seus estranhos negócios não aparecem como as virtudes militares da nobreza ou o trabalho duro do artesão e do camponês. Suas festas e o fato dele dormir durante o dia são demonstrações de que ele não vive na labuta. O fato dele viver seduzindo mulheres casadas demonstra uma contradição a moralidade sexual monogâmico vigente. O Drácula é, em vários pontos, o oposto dos valores sociais, a negação sistemática que surge para se insurgir contra o sistema.

É evidente que com a modernização do mundo, não só no âmbito tecnológico e científico, mas também no social, com a sua laicização e a maior aceitação da classe burguesa/comercial, temos uma relativização dessa imagem do vampiro. E o vampiro moderno é apresentado mais como um marginalizado e até mesmo como uma vítima das circunstâncias do que um inimigo que faz contraponto a cosmovisão duma comunidade bem estabelecida. Entender essa troca acerca da imagem do vampiro é crucial para compreender o desenvolvimento do imaginário social e, igualmente, as relativas mudanças de valores que não são fixos e eternos, mas sujeitos a processos de construção e desconstrução.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Acabo de ler "Quando o teatro e a educação ocupam o mesmo lugar no espaço" de Flávio Desgranges

 


A arte é educadora enquanto arte, isto é, possibilita uma imersão não só na experiência da vivência da arte, mas abre-se para uma postura de revisão da vida em si mesma. Essa capacidade de gerar uma inquietação prova que a arte tem valor educacional irredutível.


Quando lidamos com uma narrativa temos que usar uma chave para a sua compreensão, usamos essa chave de forma mais ou menos consciente. Essa chave é a de resgatar o material de nossa própria mente, a nossa memória, para entender como a narrativa vai se construindo. A imersão na arte é também um mergulho do ser em si mesmo, sempre e em todo momento.


O teatro moderno registra uma nova ação: ele quer radicalizar esse fenômeno de crítica e autocrítica. Para tal, ele deixa claro que o público está no teatro. Não ocultando a montagem. Isso retira um pouco do processo de imersão na peça que se apresenta, mas acentua a autopercepção. Nesse ponto, o expectador tem mais espaço para a sua intimidade psicológica e até mesmo um diálogo existencial com o que vê.


Existe outro fator no teatro moderno e contemporâneo: ele não quer ser o centro do universo. Ele quer que o universo exista e seja vislumbrado. Quer que a platéia não veja só o teatro, mas as engrenagens do próprio mundo. O que é uma possibilidade enorme de criticar e questionar a sociedade e a cultura dominante.


Sobre o teatro podemos dizer: ou o teatro é questionador ou é questionável. O objetivo do teatro é o de gerar indagação, é o de gerar um questionamento para com o sistema. É levar a uma revisão metódica dos valores que carregamos ou somos obrigados a carregar. Tudo em prol duma mudança qualitativa de nossa própria vida e da sociedade. 

sábado, 23 de março de 2024

Acabo de ler "Multiculturalismo" da Dra Marcia Polacchini

 



O papel de um educador é sempre o de favorecer uma ampliação da capacidade crítica. Essa capacidade, por sua vez, revela-se na possibilidade mesma de expandir os horizontes da própria cultura. Isto é, a de expandir os limites do mundo em que se localiza. Essa expansão é decorrente duma imersão dialógica no multiverso de diferentes culturas que variadamente conflitam, juntam-se ou vivem tolerantemente.


O processo de desenvolvimento da América Latina está atrelado a um conflito: mesmo que multicultural por sua forma, apresenta-se dum modo desnivelador e opressivo. Existiam os grupos socialmente dominantes, aos quais obedecíamos, e os grupos marginalizados de toda espécie. Essa postura favoreceu um engrandecimento de locais dominados pelos grupos mais poderosos e pouco ou nenhum espaço para grupos sociais de menor poder. Contradição essa que resulta em conflitos sociais gigantescos até hoje.


O multiculturalismo visa estabelecer:

- O contato entre diferentes grupos;

- Um processo de radicalização democrática;

- Frear as pulsões de dominação de grupos sociais majoritários;

- Propulsionar uma sociedade mais harmônica;

- Tornar mais presente a participação de grupos minoritários ou menos poderosos no rumo sociopolítico;

- Etc.


O multiculturalismo também é uma negação do pseudo-universalismo. E o pseudo-universalismo nada mais é do que uma falsa concepção, gerada por um erro perceptual, de um grupo sobre si mesmo. Esse grupo usualmente se coloca acima dos demais e quer subordiná-los a sua cosmovisão. Nesse campo é necessário um combate. Uma forma de esfriamento de mentalidades antidemocráticas expansionistas.


O multiculturalismo é, por sua importância social, um dos maiores debates da contemporaneidade e um gigantesco problema a ser resolvido.

domingo, 5 de novembro de 2023

Acabo de ler "Toda Nudez Será Castigada" de Nelson Rodrigues

 



"O ser humano é louco! E ninguém vê isso, porque só os profetas enxergam o óbvio!"

Patrício (personagem de Nelson Rodrigues)


Enquanto que uma pessoa normal é vista como aquele que é a réplica da média social da sociedade em que se inscreve, a pessoa neurótica é uma em que o próprio desejo, e não a adequação social, é o impulso ordenador e dirigente da vida em si mesma. Logo o neurótico dá voltas em torno de si mesmo, de forma mais ou menos obsessiva.


A obra de Nelson Rodrigues é uma galeria de neuróticos. Neuróticos compulsivos. Pessoas portadoras dos desejos mais viscerais e mais sombrios. Capazes dos atos mais ensandecidos, das ações mais sanguinárias, dos amores mais mortais. A atrelação ao próprio desejo cumpre uma função trágica: essa guia a uma série de desentendimentos que, pouco a pouco, carregam as personagens da trama numa série de complexidades e complexos que posteriormente lhes esmagarão. Em Nelson Rodrigues, o desejo é triste pois (seu desfecho) é trágico.


Pode-se questionar a cultura em que Nelson Rodrigues estava imerso: a repressão social nas ações de indivíduos levava a quadros de extremização de conflitos. O corpo social atuava tiranamente - mais do que nos tempos modernos -, e a singularidade do ser era enfraquecida diante da própria impotência perante uma sociedade marcada por impulsos normatizadores. O desejo daqueles que são anormais são vistos como passíveis de ódio e logo passam pelo tribunal inquisitorial da sociedade.


O ser deseja e, na medida em que deseja, se vê diante da impossibilidade de desejar sem ser punido. Se o desejo vem de sua essência e ser a si mesmo é o mesmo que ser punido, a vida em si mesma é intolerável e deste conflito surge uma grande pulsão destrutiva. E é disto que a obra de Nelson Rodrigues retrata dramaticamente bem: a pessoa em sua mais triste singularidade a ser punida pelos desejos que não desejou ter. O pior tipo de punição é a punição sem escolha, essa mata o ser pouco a pouco.


A obra de Nelson Rodrigues nos faz repensar a nós mesmos e a nossa sociedade em conjunto. E também se somos o que somos ou a negação do que somos.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Análise de "O Enigma da Religião" de Rubem Alves - Parte 1

 



A ideia de que possamos ter uma vida intelectual neutra é uma ideia que não possui cabimento. O ser humano sempre encara a realidade sentimentalmente, visto que viver implica em sobrevivência e sobreviver carrega emoção. Não há como permanecer neutro para com a vida, logo não há como ser intelectualmente neutro.


A religiosidade é busca pela transformação simbólica do mundo. A religiosidade é o alicerce que tenta sintetizar desejo e ambiente. Tanto que a manifestação máxima da religião é o paraíso: neste momento, desejo e realidade são o mesmo. Toda busca por transformar o mundo caótico numa "ordo amoris" é uma busca religiosa. O homem está, neste sentido, condenado à religião - mesmo que não saiba disso de maneira consciente.


No entanto, o mundo atualmente está situado numa situação cruel. Quando vamos crescendo, influências do mundo externo adentram em nosso psiquismo e formam nossa visão. Essa visão é um "acordo silencioso": enxergamos a realidade por meio desses olhos e não questionamos os nossos olhos. A vida intelectual autêntica é um questionamento constante de nossos próprios olhos. Não se trata tão somente de questionar o que se vê, visto que isto é só um julgamento ou simplesmente arrogância, trata-se de questionar os próprios olhos e, com isto, abrir a percepção para que a capacidade de ver aumente.


Um ser que queira se libertar precisa constantemente se abrir através da autocrítica, este movimento aumentará a sua capacidade de perceber e, por fim, será melhor na arte de julgar. Porém a abertura deve preceder à crítica. O aumento do horizonte de consciência é mais importante que o julgamento, visto que o aumento da inteligência possibilita uma maior capacidade de julgamento.


O homem, ao ser um ser contingencial, não tem o direito de ser sério. Já que o homem é limitado e só pode fugir de suas limitações ao rir de si mesmo, questionando e relativizando suas crenças passadas em uma síntese com a cultura presente de forma a se locupletar e tornar-se mais sábio. A sabedoria é um paradoxo: questionar fortemente a si mesmo e acreditar que possa superar infinitamente a si mesmo.

Acabo de ler "O Beijo no Asfalto" de Nelson Rodrigues

 



"Eu não beijaria na boca um homem que não estivesse morrendo"

Arandir


Toda obra de Nelson Rodrigues traz uma complexidade astronômica, mas essa é de longe uma das mais complexas. Iniciando-se com um estranho caso: um homem é atropelado, fica entre a vida e a morte, outro homem aparece e, antes que o primeiro homem morra, beija-o na boca. Uma obra que fala sobre um beijo homoafetivo em pleno 1961 não poderia deixar de ser polêmica.


Antes de tudo, o drama não se trata de homossexualidade e sim de bissexualidade. O personagem central é chamado de "gilete" (homem que corta pros dois lados) em um momento da trama. Mas isto não tira o fato de que a relação da sociedade com pessoas identitariamente distintas do padrão é bem esmiuçada na obra, servindo também para localizar e entender padrões culturais da época no trato de homens bissexuais e homossexuais - embora a trama se centre na bissexualidade masculina.


Falar em bissexualidade masculina é mais incômodo do que falar em bissexualidade feminina, visto que a última é mais bem aceita socialmente. E é nisso que Nelson Rodrigues se destaca neste empreendimento: esmiuçar a tragédia do martírio social do homem bissexual. Abordando toda uma exposição desnecessária, inquisição tribal e tentativas radicais de marginalização e exclusão.


O padrão social é definido pela sua repetição. Normalidade é, em sentido sociocultural, repetir a estrutura cultural na qual se está inserido. Pessoas que fogem do padrão são consideradas como anormais. O organismo social, que é uma soma de indivíduos que não conseguem fazer autocrítica dos padrões que foram condicionados a seguir, marginaliza todos aqueles que fogem as regras estruturalmente impostas.


Temos aqui uma luta: a de um homem bissexual sendo perseguido socialmente, tendo o seu direito a individualidade negado e a de uma sociedade "bifóbica" que age em forma de seita inquisitorial tentando persegui-lo por fugir dum padrão. O leitor provavelmente se deleitará ainda mais com a leitura se tiver algum grau de conhecimento nos âmbitos da psicologia e da sociologia.

domingo, 22 de outubro de 2023

Acabo de ler "Boca de Ouro" de Nelson Rodrigues

 



Nos segredos da impotência, se encontram os segredos da alma. Só o homem frente a realidade avassaladora que é a morte que ele se encontra com si mesmo em sua mais pura e plena face: a vontade de ontologizar-se e dar cabo a última pergunta que lhe conduz a vida que quer viver. Isto é, se não nos perguntarmos sobre a morte, não nos perguntaremos sobre a vida e adentraremos num círculo de vaidades que diluem a autenticidade de nossa existência num jogo de multiplicidades que se alternam.


Nelson é o mestre de ensinar a vida como ela é. Em vez de personagens plenipotenciários que alteram o mundo com o seu poder onipotente, onipresente e onisciente, temos o ser humano em sua condição mais primária e natural: a impotência. E é nessa impotência que se encontra a raiz das ações de nossos personagens, que lutam para ter alguma significação num mundo que, não estruturado para lhes satisfazer, atua antagônica e estruturalmente contra eles.


Quem, em sua humanidade, não se depara com os afetos transviados que se conduzem não a realização do desejo, mas a negação triunfal de suas expectativas mais tenras? Aqui temos personagens que são movidos pelas vísceras, sentindo-se traídos pelas dinâmicas psicossociais que sempre geram conflitos. O desejo de ser desejado é um dos aspectos mais determinantes da obra.


Boca de Ouro, personagem mitologizado ao limite, traz consigo uma mensagem: a pessoa que se marca para ser afetivamente marcada, seja no sentido bom ou mau. E é nisso que suas desventuras levam: a tragicidade do ser humano em seu ofício de ser querido. Já foi dito que o âmbito da cultura é o espetáculo do homem para o homem, visto que o homem quer mais do que um objeto, ele tem por objetivo ser amado.


Se tudo isso só leva a uma série de ações que visam demonstrar potência, temos uma série de fios que enforcam o personagem central da mitologização no momento em que ele se julgava mais poderoso. Tal lição, demonstrando a penosa realidade da vida, é uma verdadeira odisseia para quem se aventura na vida como ela é: um vaivém da potência e da impotência.

terça-feira, 14 de março de 2023

Acabo de ler "Classroom of the Elite - Vol 2 - Syougo Kynugasa" (lido em espanhol)

 



Poderíamos analisar a habilidade de alguém tendo em vista tão somente a sua competência em cumprir critérios meramente acadêmicos? Evidentemente não. A capacidade de alguém não é facilmente mensurável, haja em vista a infinita multiplicidade de tarefas que alguém poderia desempenhar numa sociedade complexa e cheia de funções que podem ser desempenhadas.


Dito isto, quais seriam os critérios aplicáveis? Um dos princípios de uma sociedade moderna é a divisão de trabalho que ela comporta. A complexidade da economia se encontra na divisibilidade que ela apresenta, a quantidade de funções disponíveis que ela comporta, a variabilidade que traduz toda uma estrutura que, quanto mais variável é, não pode ser inteligível ao microcosmo da consciência individual e que nenhum burocrata poderia ter ao todo.


Qualquer planejamento, imposto de cima pra baixo, traduz uma arrogância que se crê acima de toda essa multiplicidade. Uma arrogância que pode ser fatal, visto que nunca sabemos até onde vai nosso conhecimento e não podemos abarcar a tudo. É por isso que certos estudantes são colocados como "rank D", mesmo cumprindo critérios de desempenho acadêmico.


Um exemplo disso é: Horikita. Sendo uma das pessoas mais inteligentes da obra, ela é incapaz de se adequar na estrutura social e por isso acabou na classe D. Sudou, por outro lado, é um dos alunos mais competentes na questão atlética, é razoável socialmente e péssimo na questão acadêmica. Os dois foram parar na mesma classe, no mesmíssimo rank, porém por razões distintas.


Tendo esses dados em conta: cada estudante da classe D tem falhas, enquanto os estudantes da classe C, B e A, possuem falhas de caráter menos específico. A classe A deve apresentar, nesta dedução, uma capacidade multidisciplinar em todos os fatores possíveis (sociais, intelectuais, atléticos, comportamental, estratégica, etc). Logo a cruzada da classe D para se tornar a classe A deve se basear na busca pela capacidade de ser bom sistematicamente. Essa jornada é a parte mais interessante da obra.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Prelúdios do Cadáver #15 - Falando Obviedades (e Seriedades)

Publicado em  06/04/2019


Existem certas ideias que vêm me atormentando nos últimos tempos. Não dá para refletir a vida intelectual sem refletir a própria vida. Escrevo essa breve nota no sentido de produzir uma pequena reflexão em mim mesmo.


Piaget dizia que o meio fere o organismo, esse organismo adapta-se depois da lesão que é sofrida. Com isso ele queria dizer que o organismo (nós) adapta-se ao meio (sociedade) no sentido de ser-lhe útil. O que a sociedade quer influencia em nós um dado padrão de comportamento. Isso pode ser bom ou ruim. Se, em nosso meio social, exigem-nos o amadurecimento e o cultivo da cultura – no sentido pedagógico e intelectual de cultura –, damo-nos por florescer belamente. Agora, se é o oposto, se o nosso meio social conspira para que caiamos numa vida desregrada, numa vida sem metas e nem fins nobres, acabamos por ir decaindo junto ao nosso meio.


Essa constatação fez-me pensar nas considerações que meus pais me davam quando eu era menor, e eu sempre feria aquilo que meus pais recomendavam-me. Eles me diziam para que eu não me misturasse com determinado tipo de gente, para que não praticasse dadas ações e para que eu não vivesse de tal forma. O tempo foi passando e a má cultura brasileira foi me influenciando para um mau caminho. Cometi, então, inumeráveis erros que, hoje, na minha idade, arrependo-me severamente. Algo que, se um dia eu tiver um filho, tentaria evitar a qualquer custo.


Trata-se de tudo, rapazes. Os locais que ficamos na faculdade, os livros que lemos, os locais que frequentamos na internet. Tudo isso conspira para o mal ou para o bem. Sêneca dizia que a vida não era curta, mas que utilizamo-la mal. E por utilizarmos a vida mal, a vida passa sem que a gente perceba. O tempo está passando e estamos confinados em nossa própria ignorância, o tempo passa e estamos presos aos nossos vícios – ou pecados, se preferir.


Então aí vai um conselho de quem se tocou: tomem cuidado com o que leem, com as suas ideias, com as pessoas que acompanham, com tudo que lhes influencia. E, não tenham dúvida, a maior parte da cultura brasileira padrão conspira contra você.