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quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Eu não quero estar vivo depois da madrugada...

 


 

    Eu não quero estar vivo depois da madrugada. Nela sou vítima de um acaso desacordado em que a vida é uma exaustão de desgaste. De tanta sobrecarga, sou obrigado a curtir o pouco do pouco em efervescência profanada. Se o que sobra é sempre menos, desgastar o que sobrou de nada é exigência da apequenada felicidade, única possível nessa cidade escravizada. Os prazeres efêmeros condizem muito com a necessidade temporal de horas condicionadas, a pseudotranscendência fez-se morada em minha alma atordoada. Nessa vida, é-se prostituta com ou sem necessidade sexualizada.


    Eu não quero estar vivo depois da madrugada. Eu não quero saber se as lebres pretas correm em corridas acirradas, elas se atropelam imersas na penumbra sem qualquer necessidade, o fazem para que haja um quê de desordem em sua vida normatizada. Elas creem que o preço da infidelidade ontológica pode ser compensado vivendo através de pequenos surtos. Surtos esses que furtam a quotidianidade de suas vidas falsificadas. Coelhos de terno amam entregar sua oferta as aranhas, assim sempre manda a proletariedade da descendência de Caim. Malditas aranhas, devoram seus filhos com parcimônia sensata, tradição das tradições dessa existência precária.  

 

    Eu não quero estar vivo depois da madrugada. Não quero andar de trem e metrô nessa cidade precária. Não quero olhar para cada morto que me olha sem saber que o tempo de partir há muito tempo se foi. Estou cansado de, em todo transporte público, esconder-me atrás de livros para não sentir a densidade atomizante da individualidade ultrajada. Estou cansado de fingir que a magia literária me livra da prisão da realidade. De círculo em círculo, repetindo ritualisticamente os erros antepassados, vivo rodando em minha senzala.

 

    Eu não quero viver depois da madrugada. Não quero me lembrar de quem realmente amo, fidedignamente me odeia. Não quero nem conjecturar pensar de novo naqueles que já se foram, pois sua partida me faz querer cada vez mais partir. Não obstante, sempre espero ver de novo aquilo que não dá mais para se ver, sempre espero ter de novo aquilo que já não posso ter, sempre sinto vontade de abraçar as pessoas que não posso mais conviver, na esperança de que o martelo do tempo tenha despregado o que pregou. O martelo do tempo nunca volta, cada prego é um imperativo categórico que a alma imortal cala.

 

    Eu não quero viver depois da madrugada. Eu sei que ela se jogou com a intenção de não sentir mais nada. Não quero lembrar de que toda vez que penso nela, vejo-a desfigurada e paralisada numa parca cama hospitalar.  Não quero sentir o gosto de nenhuma mulher, a mulher que mais eu amei me foi negada. Eu não quero pensar em cada osso dela que foi quebrado. Eu não quero saber se seu sorriso agora está deformado. Ao mesmo tempo que sinto a falta dela, tenho medo de ver como ela está em sua forma destroçada.


    Eu não quero viver depois da madrugada. Sei que sou mal-falado em cada espaço-tempo que preenchi com minha estranheza vivificada. Sei que meu gosto é o desgosto com que preenche o paladar de cada figura marcada. Eu sempre parto, eu nunca paro de partir e sempre que parto sei que é o melhor que posso dar a cada pessoa com quem estive em algum momento. Aliviar o desprazer de minha companhia é o melhor caminho que tomo, já que sou um desastroso canalha. Eu posso até sofrer com isso, conquanto sei que a frase: "eles ficarão melhor sem mim", sempre me acalma. E de fato o negrume de minha sombra priva o Sol das pessoas que encontraram-se com minha tragédia imanentizada.


    Eu não quero viver depois da madrugada. Sinto tanto de tanto sentir. Minha consciência toma como fardo o meu existir. Não quero pesar, nem para mim e nem para outrem. É por isso que eu não posso viver depois da madrugada. Estou cansado de noites dormidas em claro. Farto de acordar e pensar: "tudo bem, foi só mais um pesadelo". Estou cansado de cansar, cansado de estar cansado. O pesadelo do sonho precede o pesadelo de minha existência terrificada, dia após dia sinto a insanidade macular o que sobra do fragmento do que um dia já fui. E o mais triste disso, é que nunca fui nada. Sou cada vez mais a sombra dum passado de vanglória, então eu não quero viver depois da madrugada.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Desnecessário

 Pin on Pepe

 

Suas palavras são desnecessárias, dar-nos-ão apenas o contínuo ruído sonoro do término de nosso relacionamento. Eu sei que tudo foi bem até onde poderia ser. Tudo que preciso é de uma lembrança feliz, de quando éramos homem e mulher. Lembrar-me de ti nas auroras de outrora e não do fim trágico da obra que construímos juntos. O que quero, o que preciso: está dentro de minha mente, seu sorriso feliz por ter-me ao meu lado. Eu só preciso lembrar dele e guardarei uma imagem boa de ti na perenidade de minha consciência. Tudo o mais é desnecessário, todo restante é acidental e triste, um acessório horrível àquilo que chegou a representar o nosso amor. Eu não posso consertar o que está quebrado, nem posso ouvir o concerto da melodia de uma paixão perdida.

 

Eu quero lembrar de ti num perene sorrir. Não nos choros que finquei em teu rosto. Eu sinto muito, isso é egoísta e covarde de minha parte. Escrevo-lhe como uma forma de pedido de desculpa. Eu ainda quero lembrar da maciez de seus lábios femininos, do carinho materno que nutria por mim, da tolice ingênua de meu agir de menino, de seus problemas de mulher, de seus trejeitos de menina. Meus erros rasgaram teu sorriso, meu pecado fincou-se em tua alma, meu amor extraviou-se pelo caminho e decepcionou-lhe fortemente. O que penso é só o que preciso: a tua imagem antes do ódio que lhe dei com a marca de meus erros, seu rosto risonho e tenro antes do esgar de ódio que pincelei em tua face. Não tenho tempo para gastar em meus antigos erros de um amor perdido. Não posso voltar onde não há volta. Não posso romper a barreira criada por um laço rompido. Foi melhor pra você assim, foi melhor pra mim assim.

 

Arrependo-me tão somente do paraíso perdido, sabendo que não haverá mais volta. Caminho com a fé de um dia amar de novo. Suas palavras rancorosas chegam até a mim, só que o ódio que tens por mim não chega a mim e se transforma em ódio a ti. Isso não aconteceria nem em um breve lapso temporal, isso não aconteceria nem em um milhão de anos. Se eu tivesse que odiar alguém pelo que rolou conosco, odiaria a mim mesmo - eu sei, fui eu que dei mancada, fui eu que errei, só que estava tentando te proteger.  A minha imagem obscura logo obscureceria a tua imagem de luz. Você diz lutar para não me odiar, eu luto para não lembrar que fui amado. Eu luto para não lembrar de cada erro que cometi. Eu luto pra não lembrar que te fiz chorar. Eu luto para não lembrar que não há mais volta e que há sempre uma possibilidade para encontrar um novo amor e sentir o que um dia senti por ti.


Espero que o tempo remova a tua raiva por mim. Eu não voltarei a ti, tu não tornarás a mim. Se puderes lembrar com um carinho pelo bom tempo, sentir-me-ia mais feliz. Só que tudo bem achar que fui um merda. Tudo bem achar que minha ação foi infeliz. Tudo bem se achar que sentir seu ódio por mim lhe torna melhor e mais forte. Aceito até seu ódio por mim se isso lhe faz bem. Se te fizer melhor, pense em todos os erros que cometi repetidamente. Só que não espere o mesmo de mim. Espero que o tempo cure seu ódio, espero que encontre alguém que a ame, espero que seja feliz. No fundo, amar é desejar o bem. Desejo-lhe sempre o bem e espero que um dia deseje o mesmo para mim.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Carta a Dionísio - A conjuração duma dualidade trágica




Quando penso em você, penso igualmente em mim. Você me era como um arquétipo e como uma contradição a qual deveria rivalizar. Era-me arquétipo na medida em que era alguém de posicionamento social, econômico e funcional melhor do que o meu. Só que não era só isso, era belo e inteligente. Você era um grande ímã que sequestrava todos ao redor com teu hipnotismo, sobretudo as mais belas garotas que víamos na faculdade. Conseguia navegar na divergência e no enquadro. Via-me como um acessório ou alguma coisa a orbitar o espaço de sua espetacular presença que a todos encantava.


Todo garoto tem direito a ter seu super herói a preencher o seu imaginário. Quanto mais tímido for o garoto, mais esse se ancorará na figura heróica de seu ídolo. A timidez e a admiração tornam-se simbioticamente a causa da mudança, um condicionar-se à figura do ser amado e idealisticamente pensado. Em certo sentido, a imagem mental que tinha de ti gerava uma confusão identitária na constituição de meu pensamento. Quando a imagem que tinha de ti era fortalecida, mais alienantemente fugia da minha própria autoimagem e, também, daquilo que era a minha identidade.

Eu era como um Narciso às avessas, sempre que me deparava com a pequeneza e feiúra de minha própria imagem, preferia gritar ao me ver em cada reflexo. O horror para comigo mesmo me levava à loucura de vôos imagéticos em que eu sempre me imaginava o contrário do que eu era. Segui-lo era tornar-me um bichinho que seguia o protagonista e servia-lhe de adorno, ressaltando sempre o protagonismo do personagem central da história. Eu era uma pessoa destituída de uma boa história mitológica.

Virei uma espécie parasitária de vampiro. Sugava de ti as hipóteses e possibilidades, numa dependência abjeta. Minha maturidade caminhava a lentos passos. Só que o peso do heroísmo pode ser trágico, toda crítica sua me jogava em profunda náusea. E, nos tempos finais de nossa proximidade, inferiorizou-me ao todo, jogou-me pra baixo. Mesmo assim, chorei depois de vê-lo partir. Hoje tento achar a mim mesmo, procurando pontuar o que sou e o que não sou. Quero me dissociar de tua imagem, quero ter meu próprio projeto e minha própria história. Não quero parasitá-lo ou imitá-lo, quero vocacionar-me.

Eu não estou lhe culpando, falo-lhe de mim mesmo e do impacto que você causou. Afasto-lhe para que eu seja, busco autenticidade. O princípio de nirvana requer um grau de expurgo para que o organismo volte a sua funcionalidade. Se não afastar-lhe, tua voz atrapalhará a voz de minha consciência e minha intimidade. É uma questão fundamental viver minha própria história.

Por muito tempo, os rumos de minha vida se afastaram de meus objetivos. Tudo me impactava sombriamente: os fóruns virtuais, as drogas, as bebidas, os locais. Eu preciso de tempo, eu quero um grande espaço - um espaço pelo resto de minha vida. O tempo e o labor fincarão o que busco, a minha nova vida requer novos hábitos, pessoas, leituras, jogos e amores. Não sei se isso lhe entristece, sinto mais alívio do que qualquer outra coisa. Afasto-me também duma série de outras pessoas, conhecidas nossas. Aprendi a verdadeira liberdade, ela me diz que nada que me prenda ou leve a perca de minha vontade como verdadeiramente livre.

Lembro-me da estação de metrô em que estava no dia em que tentei me matar. Queria ter enviado uma mensagem última a ti e outros dois ex-amigos. Parei de falar com eles por eu ter me tornado insuportável e insustentável. Não quero manchá-los com a minha vida turbulenta, ainda mais quando eles trouxeram ao mundo uma nova vida. Além disso, soube de algo que prefiro nunca contar. O sofrimento que teriam ao saber seria grande demais. Encaro isso como uma traição, porém é uma traição que suportarei com a dignidade de alguém que se afasta para o bem. Trai-os com a necessidade de protegê-los, além de livrá-los de minha influência nefasta. O meu coração carregará essa dor tal como carrega tantas outras dores.

O que mais me dói é a ideia fixa de que um personagem não possa ter duas origens. Se assim não o for, estarei eternamente condenado aos meus erros passados. Eu estou longe dele, abandonei a tudo: fórum, antigas leituras, drogas, bebidas, ciclo social. O único lugar donde extraío minha força é do santo terço, quase sempre chorando e pedindo perdão a Deus por toda dor que causei a todos ao meu redor. Sei que todos os meus ex-amigos encontram-se melhor sem mim. Dar a eles espaço é privá-los de meu mal e, igualmente, dar a mim um espaço para comigo mesmo. Mudanças produtivas vêm vindo, só que só se manterão se eu me manter na senda reta.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Acabo de ler "O Dobro de Cinco" de Lourenço Mutarelli

 



"Enigmo... Ele nos fazia crer a mentira como sendo verdade... Ele me fez ver coisas que não existem... A verdade é um labirinto de ilusões... De tanto brincar com a realidade, ele se perdeu. Sabe por que as pessoas riem de mim? As pessoas riem, não por esta minha maquiagem, nem de minha estranha vestimenta... Elas riem, porque sabem... Que por trás destas vestes existe um miserável que precisa humilhar-se a tal grau, para poder ganhar a vida... Para pôr o pão na mesa"

Essa HQ, brasileira por sinal, parece representar pessoas com passados incríveis e presente decadente. É como se tudo tivesse perdido e cada um ressentidamente se deplora ao comparar seu eu atual com o seu eu passado. Já os desenhos - a arte de nosso quadrinista - parecem bem mórbidos e sempre se traduzem em uma espécie de decadentismo.

O que eu posso dizer dessa HQ? O fato é que eu achei bem interessante a história, a ponto de pensar que seria melhor se ela fosse mais extensa. Quanto mais o livro passa, mais ao seu auge ele chega. Quando estamos a esperar sempre mais, a HQ simplesmente se acaba. É como estar numa estranha e divertida viagem que, por infelicidade do destino, acaba antes do previsto estragando parte da experiência maravilhosa que se esperava. No final, eu só pude pensar: parece um trabalho inconcluso.

De qualquer forma, sempre fico com a máxima chestertoniana de que devemos analisar as obras e os homens com um: "poderia não ter sido". Ter oportunidade de ter tido essa louca experiência de ler essa HQ é melhor do que não a ter lido. Nisso, agradeço a obra que me proporcionou grande entretenimento.