domingo, 30 de junho de 2024
Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 10)
Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 9)
terça-feira, 17 de outubro de 2023
Acabo de ler "Os Sete Gatinhos" de Nelson Rodrigues
Nelson Rodrigues é um autor difícil de digerir. É como se tivéssemos uma doença mortal e, de repente, a cura fosse anunciada com um custo: um remédio tão desgostoso que nos fizesse chorar tamanha amargura. Um remédio tão amargo quanto a nossa própria enfermidade. Mas um remédio que cura nossa doença mortal. E essa doença mortal é nossa vida de mentiras.
Com uma brutal hostilidade, Nelson Rodrgues é o profeta do óbvio ululante. É o reacionário que reage contra tudo que não presta. É o libertário libertino. É aquele que, no auge de sua padecida humanidade, resolveu revelar aquilo que há de mais misterioso, oculto e mentiroso em nós: nossa alma em sua essência.
Adão e Eva, na tragédia cristã, ao comerem o fruto proibido colocaram roupas. A roupa não é uma roupa física, mas a própria moralidade. A moralidade nada mais é que uma ilusão, uma mentira, um acobertamento de nossas vaidades. Ela é o fenômeno da racionalização: a justificação triunfal de nosso autoengano. Colocar-se nu perante Deus é dizer o que pensamos, tal como de fato pensamos, não a partir duma justificação social, dum enquadramento performático, mas da realidade nua e crua de nossa miserável e pusilânime subjetividade.
Quando a humanidade se defrontará perante Deus em si mesmo, face a face, revelando não a sua filosofia, porém a teologicidade de sua esperança? Este é o sentido profundamente cristão e moralista da obra de Nelson Rodrgues: a revelação da alma humana, a vida como ela é. Nelson não era tarado, a humanidade o é; Nelson não era louco, a humanidade o é; Nelson era um ex-covarde, a humanidade não.
Enquanto não ouvirmos a crueza da sinceridade confessional rodrigueana, seremos como uma gigantesca Israel: matando profetas para matarmos a própria possibilidade de nossos erros serem revelados. Pois há, em cada abismo humano - e todo homem carrega um abismo do tamanho de Deus -, um inconsciente que se esconde e um pecado que não quer se revelar. Neste sentido, tão podre quanto nossa própria essência incorruptível, Nelson era profundamente cristão.
sexta-feira, 13 de outubro de 2023
Acabo de ler "Perdoa-me por me traíres" de Nelson Rodrigues
"Amar é ser fiel a quem nos trai!"
Gilberto (personagem de Nelson Rodrigues"
Nelson Rodrigues é um dos maiores escritores brasileiros, ele sentiu no âmago a alma do povo brasileiro e soube como trazê-la com todo o vigor dum artista genial. Sua obra é trágica, sua obra é visceral, não é para pessoas fracas. Ele detona o senso comum, ele desafia os deuses e sai invicto.
Uma obra teatral recheada por tragédias, por mentiras, por partes não abordadas pelas pessoas mais usuais. Sempre trazendo vários planos de consciência - de inconsciência e inconsistência também - e dando substância a cada fala, como numa pulsão lírica e altamente poética que daria inveja aos maiores poetas.
Nesta obra, uma das mais fantásticas que já li, muitos assuntos que até hoje são tabus são apresentados de forma trágica. Às vezes indo para o terreno do comédia sem, no entanto, sair da linha geral da miséria.
Recomendo que o leitor esteja acostumado à literatura rodrigueana antes de entrar em contato com ela. É uma obra que abordará o ser humano naquilo que, em sua sombra, mais esconde e mais quer ocultar. Desvela aquilo que temos de pior numa sordidez reversa que visa, antes de qualquer coisa, expor a verdade da natureza humana em seu descomunal abismo.
quinta-feira, 21 de julho de 2022
Procurando a Casa dentro de Casa
Eu estive procurando uma casa. Não uma casa qualquer, mas a minha casa. Andei pelas escadas de minha casa, para achar a minha casa e não achei a minha casa. Procurei afagos de meus animais em minha casa, achando que dar-me-iam o sentimento do retorno a minha casa. Procurei no rosto de meu pai a minha casa, mas nele não encontrei. Procurei deitar na cama de meu quarto assim poderia lembrar do velho aconchego de minha casa, infelizmente não senti nada parecido como estar em casa.
Equidistância brutal, intimidade sem objeto, memória sem doçura. Procurei no beijo duma doce mulher o retorno a minha casa. Só que em teus lábios minha casa não estava. Procurei, então, correr pelo quintal de minha casa até chegar a minha casa. Só que ao correr pelo quintal de minha casa, senti-me cansado sem nunca chegar a minha casa. Duvidei de mim mesmo, duvidei de minha pessoa, duvidei de meu ser. Se o ser é, por que tudo na vida leva a crer que não pode sê-lo? Viajei por aí, tentando toda hipótese. Procurei me encontrar no beijo não de uma mulher, mas de um homem. Seus lábios não eram macios, eram ásperos. Senti algo diferente, senti um bater de coração, mas não senti a minha casa. Seu beijo era para mim, meu beijo era para ele, mas meu beijo encontrava-o sem que o beijo dele me encontrasse. Equidistância que gera distância em proximidade.
Não me leve a mal, só busquei a minha casa. Pouco importando se era hétero ou homossexual. Só queria buscar a minha casa. Afaguei-me em travestis e prostitutas, para nelas tentar encontrar a minha casa. Frequentei puteiros procurando a minha casa, mas em cada puteiro não me encontrei em minha casa. Amei uma garota, amei fortemente uma garota, acho que ainda a amo. Ela hoje é mulher, eu hoje sou homem. Só que a minha casa estava nela, mas a casa dela não estava em mim. Como resultado, namora outro homem.
Eu peguei livros. Livros que poderiam formar um edifício em meu quarto. Procurei em cada livro do meu quarto a minha casa. Nem em meu quarto acho mais a minha casa. Nem em teu beijo acho a minha morada. Procurei trazer bebidas, trouxe vodka, cerveja e vinho. A bebida que trazia para minha casa não me lavava para minha casa. Procurei na bebida o esquecimento de minha casa para não sentir saudade de minha casa. Embriaguei-me na constância para me esquecer de minha casa. A minha casa fazia-me um tamanho mal, não por ser minha casa, mas pelo fato de eu não poder voltar a minha casa. Eu queria somente a minha casa, mas minha casa não encontrava. A minha dor era buscar a minha casa, a minha felicidade seria achar a minha casa, só que não a encontrando, só podia sentir dor por não achar a minha casa.
Usei de tudo. Maconha, pó e lança-perfume. Camisa de time, terno e lingerie. Procurei o rúgbi, o Mario Kart e a espada samurai. Nada de casa, nem em jogo, nem em esporte e nem na luta mortal. Onde estava a minha casa? A maconha que fumava era para não me sentir distante de minha casa. O pó que cheirava era para estar perto de minha casa. O lança-perfume era para chegar em casa. A torcida com que gritei ao lado, a torcida com que xinguei o juiz, não me levou para casa. O terno que utilizei com esmero para o subemprego não me levou para casa. A lingerie, num ato de loucura e disforma de identidade, que utilizei pensando que chegaria em casa não me levou para casa, mas para caminhos tortos de gozo barato.
Procurei ler em cada livro minha casa no exílio de meu quarto. Procurei em cada falso amor um retorno ao verdadeiro amor de minha casa. Aceitei a prostituta como a única mulher que poderia ter em minha falsa casa. Aceitei o sexo banal da madrugada. Fiz casamentos forjados para ver se chegaria em casa. Só que nada me levou para minha casa. Logo nada disso me valeu.
Perdoe-me, Deus. Eu nunca quis fugir de casa. Na verdade, eu não sabia que minha casa era minha casa. E por não saber que minha casa era minha casa, por outras casas andei em perene exílio. Andava então de casa em casa, cada casa era um aperto e uma prostituição. Nesse tempo estive na solidão da solidão. Perdoe-me, Deus.