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segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Viúva, porém honesta" de Nelson Rodrigues

 



"E vou provar o seguinte, querem ver? Que falsa é a família, falsa a psicanálise, falso o jornalismo, falso o patriotismo, falsos os pudores, tudo falso!"
Diabo da Fonseca (personagem da obra)

Gosto dessa obra pelo cinismo geral que a conduz. Isto é, essa peça de teatro é recheada dum cinismo que transcende uma sátira banal, é um cinismo que visa uma crítica metódica e organizada da sociedade e das organizações vigentes.

Vemos que tudo que ali existe é propriamente uma farsa: o motivo da viúva não querer trair seu marido, o jornalismo, a crítica de teatro, o psicanalista, o médico. Todos são farsantes que estão presos a vínculos meramente performáticos com suas carreiras, nunca um objetivo sincero para com o que se propõem a fazer. A obra visa, em seu fundo, demonstrar através do teatro que há um teatro na vida e este é um teatro que é, no fundo, um teatro horrendo por ser obrigatório. Graças aos condicionamentos sociais, somos obrigados a performar traindo o que nos há de mais essencial e verdadeiro. O preço do sucesso na sociedade é a perda de autenticidade, por consequência a perda do ser e, no fim, a perda de si mesmo em prol duma performance.

A obra não deixa de ser extremamente engraçada e fará o leitor dar boas risadas enquanto se delicia com os eventos tragicômicos que se sucedem. As frases que aparecem trazem uma imensa dose de efeito cômico pois possuem uma desvalorização de tudo aquilo que a sociedade tradicionalmente vê como bom, mas que intimamente não segue. A diferença é que, ali, é dito a verdade da dualidade da vida: existem regras de performance e a realidade da vida, visto que a imagem pública é para ser condicionada e a imagem privada é para ser secreta.

Qual é o sentido de tudo isto? O marido é homossexual, a viúva é fiel ao marido morto pois o melhor tipo de marido é o morto pois não enche o saco, o psicanalista é farsante, a ex-prostituta é farsante, o otorrinolaringologista é farsante, o jornal só existe para "espinafrar" e chamar atenção do público através de choques sentimentais.

Por vezes é necessário rir de si mesmo para se libertar da cegueira dos próprios olhos.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Outra Mentira

 



Pergunta-me se estou bem, tudo que posso dizer é que estou estável e tranquilo. Esconder mais uma vez, esconder todas as minhas lágrimas mais uma vez, segurando minha tremedeira e vontade de emanar todo horror que carrego e sinto. Vou forçar um sorriso tímido, quando, na verdade, eu sinto uma corda metafísica a esmagar meu pescoço. Quando fores embora, pôr-me-ei a chorar as dores que me agonizam. Gritarei mais uma vez com o travesseiro em minha cara para que ninguém me ouça. Por enquanto, cabe-me não descarregar as energias que implodem em minha psiquê.

Encontre-me depois de outra mentira. Deixe-ma prendê-la na minha ilusão. Permita-me mais uma vez disfarçar um otimismo. Perca-se em minhas piruetas verbais. Faça coro a mais uma de minhas sórdidas racionalizações, vosmecê merece um quinhão de descanso. Dê-se mais uma vez a possibilidade de acreditar que eu mudei. Force-se a crer que dessa vez tudo há de melhor. Acredite que eu possa mudar, mais do que isso: acredite que eu mudei. Você precisa saber que poderá descansar agora, mesmo que só um pouco.

Pergunta-me o que vejo adiante, inquira-me acerca de meus planos pro futuro. Dir-lhe-ei mil e um planos. Todos pormenorizadamente pensados e arquitetados apenas para falsear a minha real consciência e atenuar suas preocupações. Quando eu olhar para o chão, não verei nada se não um abismo. Mesmo assim, contar-lhe-ei sobre a reluzente ponte que aparece a mim e como ela denota todo meu brilhantesco porvir.

É uma mágica do absurdo. É a capacidade de sentir densamento o desespero pânico enquanto a face demonstra um sorriso e a boca sonorifica palavras de alento. Eu sou bem capaz de te enganar, só que você está ficando boa em saber que sou um mentiroso nato. Eu sou bem capaz de mentir mais uma vez, mesmo ficando cada vez mais difícil. Eu sempre minto, mais fácil pra mim, mais fácil pra ti. Não quero que pense nunca estou bem, ser um fardo é um papel ruim. Dar-lhe-ei um tanto de fingido heroísmo. Pintar-me-ei como cavalheiro matador de dragões. Guerreiro e mártir capaz de enfrentar e vencer todas as problemáticas da vida.

Você sorrirá mais uma vez. Orgulhar-se-á de minha nova guinada pródiga. Abraçar-me-á com teu corpo quente. Eu ficarei internamente destruído, tentarei ao máximo não transparecer que estou mal e que as mentiras que lhe conto, no fundo de minha alma, também me destroem. É que estou cansado e estou mais cansado ainda de lhe deixar cansada.

Me desculpa, simplesmente me desculpa. Eu não queria que fosse assim. Eu queria de fato estar bem. Só que estou há tanto tempo num estado de lamaçal tristeza e você está há tanto tempo ao meu lado esperando eu ficar bem. Não seria justo contigo fazê-la esperar tanto para a cura que nunca chega, mas que sempre tarda. E eu posso sempre tentar ficar bem enquanto ainda estou mal, já que sentir que você ficou mal por eu estar mal me faz ficar ainda mais mal. 

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Sim, Saturno ainda devora seus filhos!


    

    Saturno devorou seu filho. Uma cena brutal, uma cena até mesmo "demoníaca". Poder-se-ia dizer que uma coisa tão má não aconteceria no tempo presente, em que a humanidade evoluiu ao seu ponto culminante. Só que isso seria um ledo engano: Saturno ainda devora seus filhos. Existem atos que são tal como Saturno: eles nos engolem com o tempo. Aquilo que nos dedicamos erradamente, acaba por nos engolir. Há até mesmo vezes em que aquilo que nos dedicamos nos mastiga furiosamente, destruindo-nos por dentro e por fora. E, se você tem um vício, você sabe do que falo. O vício vicia. O vício vicia a ponto de matar o seu usuário para qualquer outra coisa. E se ele mata o usuário para qualquer outra coisa, impede-lhe de ser pleno. E sem plenitude não há vida real. O usuário virou um cadáver ambulante, um homem que manca na ilusão de que anda.

    Por muito tempo o termo simbólico e satânico dominou meu pensamento como uma flor de obsessão. Numa aula, meu professor contou o real significado de simbólico e de satânico. Simbólico é aquilo que une. Satânico é o que separa. Certo dia, porém, eu tive uma ideia: certas ideias são como saltos de fé satânicos. E esses seriam a aceitação da parcialidade como o todo e a negação de tudo que fuja dessa parcialidade. Conversando com um amigo mais laico, ele achou o termo "salto de fé satânico" muito teológico e pouco filosófico. A partir de agora chamarei o "salto de fé satânico" de "salto de fé satúrnico" paralelamente para evitar uma leitura puramente teológica. Assim evito restringir e ofender dado público a qual quero prosear. E também dou uma girada macroecumênica a nível discursivo.    

    Bem, esse texto fala de pornografia. E você deve pensar: "pornografia? Os textos anteriores também eram sobre isso". E, de fato, você tem razão. Só que eu preciso falar de pornografia. Eu fui e creio que ainda sou um viciado em pornografia, só que não acesso e nem consumo mais. Quem era eu? De certa forma, eu era. De outra forma, eu não era. Vaguei muito tempo como um viciado, buscando no vício a plenitude que me faltava. E aquilo que me era uma parte, tornou-se todas as partes. Eu não amei de fato. Eu não estudei de fato. Eu estava lá, mas lá não estava: minha mente vagueava nas ilusões pornográficas. E da ilusão tirei meu triste salário: eu era a privação de mim mesmo. E na medida que eu era a privação de mim mesmo, eu era também eu e minha falta. A pornografia era meu grande Saturno. O Saturno que me devorava.

    No geral, o Saturno é para nós um pai. Um pai que temos natural devoção. Um pai que queremos por afeição. Só que Saturno não é um bom pai. E todos os seus abraços visam não abraçar, mas nos devorar. O nosso Saturno é nosso vício. Esse vício pode se encontrar em qualquer âmbito: no pensamento, na prática, na crença, no subconsciente. De qualquer forma, Saturno é o vício que nos devora. E nós estamos apaixonados por ele: somos um gigantesco cardume indo felizmente em direção da morte. E se você não está literalmente morto e acha tudo isso uma besteira por ainda não estar morto, permita-me dizer-lhe que: o homem vive enquanto morto. É possível estar vivo e apenas sobreviver. É possível estar num cadáver com a aparência de um ser vivo. Talvez você esteja interiormente morto e não o saiba.

    O que somos nós? Somos em parte o que queremos ser e em outra o que não queremos ser. O ideal é a transcendência. A imanência é o real. A união do real (imanente) com o ideal (transcendente) dá luz ao transparente. Essa transparência é o objetivo da vida: é a união da idealidade com a realidade. Ela se dá de forma mais ou menos harmônica. Posso ser mais pleno ou menos pleno. A luta pela transparência por atos e pensamentos é aquilo que deveríamos buscar. Não quero teologar muito, mas preciso para ser mais didático: como cristão, por exemplo, a transparência seria a vivência diária da fé. E quantas vezes eu deixei de ser sincero? Quantas vezes deixei de ser um confessor? Confessar é ser sincero, ser sincero é ter transparência. E o que é ter transparência? É ser autêntico. Ser autêntico é ser verdadeiro. Muitas vezes sou menos verdadeira do que eu gostaria de ser. Se a vida é um esforço comunicacional, aquele que mente se nega a viver.

    No período em que escrevo esse texto, o papa emérito Bento XVI se posicionou contra a pureza doutrinal. Fica claro que nem para o "conservador", se é possível viver tendo como base uma transcendência esmagadora que se mostra inflexível para com o real. E essa ideia de pureza doutrinal foi atribuída erroneamente a ele depois dele falar sobre o mundanismo. Sem querer me alongar muito nessa questão, mas utilizando esse trecho para clarificar uma coisa: a vida é um esforço comunicacional, em que nem sempre somos a plenitude do que poderíamos ser. Só que esse esforço comunicacional é precisamente um esforço: a gente tenta ser transparente. Muitas vezes não conseguimos. Só que a vida reside precisamente nesse esforço de comunicar com autenticidade quem somos e no que acreditamos. É disso que vem a verdadeira doutrina: do esforço vivencial de ser. Buscamos ser o tempo todo, só que por vezes buscamos ser de forma errada. Tentar comunicar é tentar ser. Só que às vezes o ser é esmagado na sua tentativa de ser. O ser é, mas tudo na vida leva a crer que não pode sê-lo. E tentando ser, tentando transparecer, é que vivemos. É assim que eu encaro a vida.   

    Admito que fui aluno de filosofia e ainda o sou: filosofar não me é só um dever acadêmico, mas um dever vivencial. A filosofia é a análise do pensamento pelo próprio pensamento. A isso costumo chamar de metapensamento, que é para mim a mesma coisa que filosofia. Dessa forma estabeleço democraticamente a filosofia: ela não é restrita a um círculo fechado de acadêmicos iluminados, ela é comum a todos os homens. Todo homem filosofa. Pode-se filosofar com maior ou menor qualidade. Só que a filosofia não depende inteiramente de uma organização do discurso, ela depende da organização da vida. Se a filosofia for meramente discursiva, ela é apenas algo atrofiado. A filosofia é expressão da vida. Se ela se perde unicamente no discurso, torna-se um mero clichê argumentativo. Quando passamos a pensar só na análise do discurso, tornamo-nos abstratistas que pouco se importam com a vida. E pouco se importar com a vida é se tornar um alienado. Eu quero me alienar, mas me alienar sem me tornar continuamente alienado. Quero me abrir, mas preciso me fechar para abraçar em meu coração aquilo para que me abri. E, se eu não abraçar, se eu não acolher, serei um fariseu com um fetiche do parecer ou com um diploma esteticamente belo em meu quarto. Eu não quero analisar um discurso oco, eu não quero ter uma vida falsa, eu não quero proferir um falso discurso.

    Sim, eu usei pornografia. Usei como qualquer pessoa normal em nossa sociedade hipergâmica e hiperssexualizada. Na quinta-série, pediram-me para usar. Essa era a inovação fatal a qual tudo deveria se curvar. Eu vi e me encantei com corpos. Corpos que me eram fascinantes. Tinha apenas onze anos e, na época, aquilo me foi uma porta até outro mundo até então desconhecido. Eu conhecia jogos, eu conhecia brinquedos, eu conhecia doces e salgados. Minha mente era de um menino, um menino pobre, mas não amargo. Só que tudo isso era o prenunciar de uma tragédia: aprendi sobre sexo, todavia não aprendi a amar. Eu não abri meu coração para ninguém, eu fui tão solitário quanto eu era pornográfico. Se fiquei com alguém, mal amei. Mal amando, fui também mal amado. O termo "reciprocidade" me era equidistante: a cada passo dado, aquilo que almejava se afastava simetricamente. Equidistância é um caminhar desejante, mas um caminhar que nunca alcança o objeto ou o sujeito de sua busca. Toda equidistância termina em dor.

    Tenho vinte e quatro anos agora. Não sou mais criança. Não sou mais pré-adolescente. Não sou nem mais adolescente. Escrevo como um adulto. Um adulto que quer ser responsável. Só que eu não acumulei em parte de minha juventude a sabedoria. Pois o amor é uma sabedoria: é o encontro de pessoas que de repente se abrem umas as outras, que de repente vivem umas com as outras e de repente elas não são mais só elas mesmas, elas também são parte de alguém. E eu sou parte de poucas pessoas, eu não me expresso em muitas pessoas. E essa ausência de expressão significativa me torna pequeno, muitissimamente pequeno: nem algo e nem alguém são grandes por serem grandes, são grandes por terem sido amados. Com relação ao amor: sou um moleque. Não amadureci como eu deveria, não amadureci por conta de meu vício.

    E quantas coisas eu poderia ter amado? E quantas pessoas poderia ter conhecido? Minha obsessão tinha um nome claro: pornografia. Acumulavam-se as tags, mas não se tinha a fidedigna expressão genuína do eros. Eu acumulava vazios em meu peito. Meu coração tinha tantas trevas ao seu redor que entrou em desespero. Às vezes o velho poema ressoava em meu peito aquele bom poema Carlos Drummond de Andrade: "Meu Deus, por que me abandonaste?/ Se sabias que eu não era Deus/ Se sabias que eu era fraco". Só que minha consciência sabe hoje que isso é uma mentira: não foi Deus que me abandonou, eu que o abandonei. Eu me entreguei à ilusão pornográfica: ela me era como tudo, mas não sabia que ela me era só uma parte. Aquilo que deveria ser parte do todo, agora era o todo. Se Deus está em todas as coisas criadas, aquele que se dedica exclusivamente a alguma coisa criada o nega. E é nesse preciso sentido parcializador que eu neguei a Deus: aquilo que eu julgava tudo, era aquilo que me parcializava, aquilo que me parcializava me negava a plenitude.

    Como grande parte das pessoas, eu sou e eu fui um grande entusiasta da cultura japonesa. Sou um fã confesso do autor Haruki Murakami. Sou também um leitor de mangás. E igualmente vejo animes. Mas confesso que li mais mangás pornográficos do que mangás de qualquer outra coisa. E isso demonstra o velho erro: aquilo que me parcializava, me impedia também de ser pleno. Fui um leitor assíduo de muitas obras e de muitos assuntos, mas fui um mau leitor: a pornografia comia minha consciência. Se fiz sexo nesse percurso, foi com pouco sabor. Eu não apreciava e não era apreciado. Tudo era estéril. O sexo estéril não é um sexo que falha em reproduzir, é um sexo que falha em se conectar. O sexo pode até não reproduzir fisicamente outro ser humano, mas o sexo não pode falhar em se conectar com outro ser humano. E aprendi da forma mais dura que a não conexão no ato sexual é uma das coisas mais dolorosas da vida. E se eu morresse agora, se eu me visse numa sala vazia, se eu tivesse que dar uma frase que resumisse a minha vida, essa frase seria: eu não amei e nem fui amado.

    A pornografia é grátis, mas sem gratidão. Ela não lhe dá uma experiência feliz que se integra a ti, uma experiência que no final você diz: eu sou grato verdadeiramente pelo que tive. Aquilo que você momentaneamente tem, é aquilo que momentaneamente foge de você. O final da pornografia é o vazio. A pornografia pode até mesmo ter sexo, mas é o oposto do sexo. Sexo tem consubstanciação: o ser que era, junta-se a outro ser que era e agora os dois são um só. Na pornografia, eu fui solitariamente eu. E muitas vezes chorei amargamente em minha solidão. Caminhei exilado. Minha condição de exilado era tão densa que até o mar de gente se abria, se abria para que eu passasse solitariamente. Era um milagre infernal. 

    Hoje eu sei que a pornografia era como um pai para mim, um pai que me abraçava, um pai que me abraçava para me devorar e destruir. Quando eu precisei de amigos, a pornografia esteve lá para impossibilitar qualquer hipótese de amizade. Quando eu precisei de estudo, a pornografia esteve lá para deter qualquer pretensão de vida intelectual. Quando precisei estar ao lado da garota que amei, a pornografia me afastou dela. De tudo Saturno me separou. De tudo Saturno me privou. Saturno era um pai possessivo. Sim, Saturno ainda devora seus filhos. Eu sei, eu fui deles.

domingo, 4 de julho de 2021

O MOMENTO DE MINHA RECONVERSÃO

 



"No entanto, Ele restringiu algo. Digo isso com reverência: havia naquela personalidade perturbadora um fio que deve ser chamado de timidez. Havia algo que Ele escondia de todos os homens quando subia ao monte para orar. Havia algo que Ele cobria constantemente por um silêncio abrupto ou por um isolamento impetuoso. Havia uma coisa que era grande demais para Deus nos mostrar quando andou sobre a Terra, e, por vezes, tenho imaginado que era a Sua alegria". (Ortodoxia, Chesterton).


    Eu tenho há muito tempo negado a me confessar. Chesterton diz que: "Um dos paradoxos da história é que cada geração é convertida pelo santo que se encontra mais em contradição com ela" (Santo Tomás de Aquino, Chesterton). No tempo pós-moderno, ideologicamente moldado no extremo-mundanismo, confessar-se é o oposto de nosso tempo. Tudo é volátil, sem essência e com pouca direção. É por essa razão que o religioso é visto com tamanho desdém. O problema é que eu vi que eu era um hipócrita. O problema é que eu vi que eu era uma pessoa de péssimo caráter. E o pior de tudo: eu vi que era profundamente infeliz. Não confessar é negar-se a ser sincero, é negar-se a ser filósofo, pois não há filosofia sem sinceridade. E quanto mais eu tentei ser sincero, mais vi que desejava ardorosamente a Deus. No livro "Filosofia da Crise", Mario Ferreira dos Santos conta-nos que há um "saber que sabe que sabe". Esse saber é a profunda consciência. É, talvez, a reminiscência do mundo das ideias. Ou, melhor, a recordação do amor divino - que é a transcendência por si mesma:

"Tomamos consciência da nossa individualidade através do eu. Mas acaso o eu não tome consciência de si mesmo quando toma consciência da individualidade? Não há aqui uma consciência da consciência? Um saber que sabe que sabe? E não há em nós algo que sempre se coloca além de todo o nosso conhecimento, algo que conhecemos, sempre distante, sempre cada vez mais distante, que marca uma presença que sempre se separa de tudo quanto delimitamos, pois conhecer é sempre delimitar? E esse saber de um saber que se distancia, logo que traçamos um limite, não é um grande ilimitado, que constantemente evita prender-se dentro dos limites?"

"E dessa forma, entre os limites de todo o nosso conhecer, não há sempre em nós, algo que conhece, que os vence, porque deles não se deixa apreender? E que sempre se separa, distante, sempre o mesmo?"
"Ainda é crisis. Mas é também já um apontar de uma vitória que vivemos em nós."

"O leitor, ao ler estas páginas, pode tomar consciência de que lê estas páginas. Não se desdobrou agora? E não pode tomar consciência de que se desdobrou nesse momento em que toma consciência que lê estas páginas? E que sente em tudo isso? Que algo nele é rebelde a prender-se em limites."

"Algo que os capta, mas que não quer limitar-se, e que sempre escapa a toda limitação, algo que em nós é ilimitado, algo que em nós afirma uma vitória sobre tudo quanto estabelece uma fronteira, porque vence e ultrapassa as fronteiras."

    Eu estava em crise. A minha crise durou anos. Mas nesses últimos dias eu chorei de felicidade. A negação de ser foi superada pelo amor de ser. Eu não estava vivo. Vivia num cadáver. Eu fugia do grito profundo de minha alma. Tal como Gustavo Corção disse no livro "A Descoberta do Outro": "foi preciso que coisas graves acontecessem para que eu me desse conta de estar amarrado ao meu próprio cadáver". Foi preciso um longo período de crises recorrentes para que buscasse uma transcendência que até então negava. Foi preciso que eu me encharcasse no lodaçal para ver que eu era um perfeito idiota. E quanto mais eu estudava, mas percebia o quão longe do Belo, Bom e Verdadeiro estava.

    É engraçado, certas coisas marcam mais a mente do que outras. E, apesar de parecerem desconexas, dão uma iluminação de ordem crescente na razão - e ultrapassam-na gerando aquilo que chamamos de fé. Eu estava num "encontro a dois" com o meu melhor amigo, a ex-namorada dele e uma mulher que acabara de conhecer. E eu fazia uma série de piadas acerca de tudo, visto o perfeito imbecil niilista, liberal e pessimista que era. E, de certa forma, as pessoas curtiam minhas piadas indecorosas, asquerosas, desordenadas e baixas. Só que depois eu disse que lia um livro islâmico e isso, para minha surpresa, causou um tremendo mal estar. Isso lhes soou insuportável. Era-lhes intolerável a religião.
Não me entendam mal, não sou islâmico e no momento em que contava as piadas também não era cristão. Só que sentia solene respeito, um respeito mais amável para com o Islã, para com o cristianismo e para com o judaísmo com o respeito que devotava a qualquer outra coisa. O Islã para eles era mais insuportável que qualquer outra coisa, ao menos eu senti essa atmosfera. E eu já haveria de supor o resto: a religião haveria de ser mais odiável que qualquer outra coisa, a Igreja Católica haveria de ser mais odiável que os mortos pelos sistemas ideológicos que a substituíram. Perdi a conta de quantas vezes neguei-me a dizer o meu amor cristandade, amor que me era quase inconsciente, mas persistente.

    Achava-me numa contradição. Numa contradição brutal. Num mundo líquido, irresponsável por inconsistência lógica, nesse extremo-mundanismo da vaidade e vento que passa, eu sentia respeito venerável por aqueles que tinha na vida uma hierarquia e uma meta. Eu respeitava os muçulmanos, pois sua vida tinha "dirigibilidade". Eu admirava Dugin, por romper com a pós-modernidade ultraliberal. Eu admirava a China por ser ter a sua própria identidade política. E cada vez mais eu via que todos aqueles que estavam ao meu redor nada tinha a ver comigo em minhas crenças e respeitos. Era-me melhor um católico rezando para Virgem Maria do que um liberal hedonista cultuando o Super Mario e autointitulando-se "gamer" - como se jogar videogame fosse o suficiente para se construir uma sólida personalidade. Só que, para a maioria de meus contemporâneos academicizados o suficiente para pensar descompromissadamente, idolatrar um entretenimento deveria ser menos ofensivo do que venerar uma mulher digna, a maior mulher que já andou por esse vale de lágrimas.

    Descobri que minha vida era uma grande caminhada inconsciente. Em um momento, uma mulher que conhecia pouquíssimo tempo perguntou algo mais ou menos assim: "se você tivesse um gênio (leia-se gênio mágico) perante você, o que você pediria?". Essa pergunta infantil, que norteia para o real entendimento da consciência me despertou. Mas, momentaneamente, eu disse que queria pegá-la. E de fato a pegaria. Mas hoje, com sinceridade suficiente, eu diria algo mais que isso. O pensamento daquele momento era desordenado, mas a pergunta era tão real como uma faca no coração. A resposta que eu daria hoje seria: "que eu prefiro o cristianismo a tudo isso". Eu diria que: "um ano de cristianismo é mais louvável que toda a história pós-cristã". Eu diria que: "os dogmas são mais louváveis e livres que todo pensamento supostamente livre". Que "minha vida não faz sentido algum". E que "aderir a essa era me tornou um enfado para mim mesmo e para todos os outros que eu amei". E que Eclesiastes, ao lado de Ortodoxia, encontram-se nas leituras mais prazerosas que já tive em toda minha vida. Diria que amo mais a patrística, que amo mais a escolástica. Que minha disciplina favorita, nesses três anos que estudei filosofia, era a teodiceia. Mas se eu pudesse dar uma resposta cabal, uma resposta como que definitiva, essa resposta perfeitíssima, essa resposta seria a oração do credo:
"Creio em Deus pai todo poderoso, criador do céu e da terra, e em Jesus cristo seu único filho, nosso senhor que foi concebido, pelo poder do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu a mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia subiu aos céus e está sentado a direita de Deus pai todo poderoso donde há de vir e julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito santo, na Santa igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém."

    Eu não suportava mais acessar mais à internet. Um mundo cheio de pornografistas e palpiterios, vulgarizadores até da vulgarização e o que mais era insuportável era que eu era um desses pornografistas, palpiteiros e vulgarizadores. Meus amigos afastavam-se de mim na medida em que me aproximava da teologia e por devotar-lhe respeito. Percebi que um grande contingente de pessoas me desgostavam por gostar do cristianismo e desgostavam-me por não ser cristão. Desse duplo desgosto, que era encontrado na vísceras do discurso, me revelou um triplo desgosto: "desgostam-me por gostar do cristianismo, desgostam-me por não ser cristão e desgostam do cristianismo!". O que lhes seria mais odiável:
A- achar admirável as respostas cristãs mesmo sendo agnóstico?;
B- achar admirável as respostas cristãs mesmo não as seguindo?;
C- achar admirável o cristianismo?

    Não sou referencial moral para coisa alguma. Na verdade, eu sou o pior dos pecadores. Não sirvo para base de nada. Todos aqueles que se basearem em mim cairão em pecado. Confesso que não levei uma boa vida até o presente momento. Confesso que sou pouco provido de inteligência. Confesso que me falta o dom da escrita. Mas o que sobretudo agora confesso é que se desgostavam de mim por gostar do cristianismo, desgostem de mim agora por ser cristão. E a única afirmação que lhes darei se encontra em 1 Timóteo 1:15: "Esta afirmação é fiel e digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior.". A única afirmação real, a única afirmação possível é que sou o pior pecador que vocês conhecem. E a minha única salvação está presente nesse fato agora consciente: a consciência de minha própria ignominia, de toda minha iniquidade, de todo meu mau senso.

    A pergunta sobre qual era o fim último do homem e qual vida vale a pena ser vivida. Esse tipo de dúvida me pegou e refleti. Eu levei o "liberalismo" a sério - entenda-se liberal por "mente aberta". Deveria ler de tudo, ser mente aberta. Eu fui um agnóstico metodológico lendo livros judaicos, cristãos, islâmicos e até budistas. Eu busquei a verdade em diversas doutrinas que mantive recorrente contato. Eu era um ateu prático e um agnóstico imbuído de um amor à literatura religiosa. Eu fui liberal o suficiente para ser superficial o suficiente de não dar rumo a minha vida. E eu admirava aqueles que, a contramão do gosto pós-moderno, deixaram o "mundo líquido" de lado e responderam o que precisava ser respondido. Pois responder é ser responsável e aquele que não responde é quase sempre um depressivo preso na sua própria inconsistência. E eu era um depressivo preso na minha própria inconsistência. Eu vejo mais felicidade num monge "preso" na sua clausura monástica do que no homem preso na liberdade pornográfica. Eu vejo mais realidade no "velho testamento" do que em toda indústria pornográfica. Se um pobre homem disser que está viciado em pornografia, um gentil defensor da liberdade sexual o sondará a acreditar mais fortemente na fé da revolução sexual e da grandeza da indústria pornográfica - essa, claramente, ligada ao tráfico de pessoas - do que com a própria razoabilidade e o bom senso - ou o senso comum: pare de ver pornografia.

    Pensava com meus botões desmiolados e tipicamente desordenados: "quem eu sou?". Toda resposta era subjetiva demais. Era "individualista" demais. Era fraca demais. No fundo, no fundo mesmo: admirava-me com o descomprometimento. Só que eu era vítima e ideólogo de minha própria morte. Todo esse descomprometimento revelava uma patologia deliberativa que só me levava a uma procrastinação vivencial. Essa procrastinação tornava-me débil. Eu me tornei um fracassado na medida em que me tornei um homem conformante ao meu próprio tempo. "Se o mundo é líquido, cabe-me ser volátil". A volatilidade era um de meus principais problemas. Eu me tornei um inútil, um amante de vanidades. Minha vida esbarrava-se em coisas menores, as coisas menores pareciam-me grandes por falta de proporção e hierarquia de valores adequada. Até a vida intelectual tornou-se quase impossível devido a ausência de ordem e disciplina daí decorrentes.

    Fui um desses vulgarizadores da vontade - e usualmente quem vulgariza algo é quem mais pretende defender esse algo como doutrina -, tornei-a uma ideologia. Agora o que me importava era "cumprir". A execução deixou de ser quase que inexistente para se tornar um fetiche. E, de fato, eu cumpria uma série de coisas. Cumpria livros. Cumpria listas. Cumpria jogos. Só que isso era apenas uma forma de viver debilmente, não aparentava direção alguma. Só que havia uma direção inconsciente: era a velha crença liberal, subjetivista, mente aberta e descomprometida. No fundo, no fundo mesmo, eu só falava de uma série de coisas aleatórias e contraditórias para não ter vinculação alguma e, por conseguinte, eximir-me de uma responsabilidade vivencial que desse sentido real a minha vida. O cumprimento de uma vontade era mais uma desordenada forma de ser um idiota, mais uma forma de fugir da verdade. A vontade pela vontade é a negação da própria vontade: uma vontade desordenada é só uma forma bestialógica de um desejo travestido de vontade. É animalesco.

    Eu estive num grande exílio. Um grande exílio em que tudo me era equidistante. Todo passo afastava-me da onde eu queria chegar. Não havia leveza. Não havia amor. Só havia um desespero que fingia ser coragem. E meus únicos momentos de felicidade real encontravam-se na leitura prazerosa de Chesterton, que me fez rir de verdade. Suas eternas palavras gravaram-se em minha mente: "o homem sensato tem a tragédia em seu coração e a comédia em sua cabeça". Eu era um fanático. E toda fanatismo que tinha foi gerado por minha mentalidade antirreligiosa, anticristã e anticatólica. O "credo acadêmico" diz que a "liberdade do pensamento" gerará pessoas críticas, mas o que as escolas formam todos os dias não são socialistas, anarquistas ou liberais, ela gera gamers, quiçá "potterheads" ou algum vulgar amante de futebol. E isso não é estranho, até estranhamente me lembra outra frase de Chesterton: : “Tire o sobrenatural, e o que resta é o antinatural”. Quando eu comecei a orar e pedir a Deus o aumento de minha inteligência, quando eu comecei a amar a ordem, tudo isso propiciou um aumento qualitativo nos estudos - não só qualitativo, quantitativo também. Tornei-me mais inteligente, mais estudioso. Eu estudava agora com confessionalidade, meu estudo era voltado à salvação de minha alma e não ao velho liberalismo descomprometido. Custou-me muito entender que toda linha de estudo segue, consciente ou inconsciente, uma doutrina. Eu estudava de tudo, aleatoriamente, para seguir fielmente a ideia liberal. Como resultado: criei um saber pouco sistemático, desordenado e causador de toda uma série de crises mentais. Agora todo estudo que faço tem como fim a verdade.

    Tudo que antes eu virava contradizia-se vivencialmente, embora houvesse lógica no meu discurso e ele fosse "lindo, democrático e popular": ao virar socialista, odiei a burrice das classes mais baixas; ao virar nacionalista, odiei o Brasil; ao virar anarquista, odiei a forma como os homens gastavam a sua liberdade; ao virar progressista, odeie fortemente as minorias em sua condição alienante; ao virar liberal, matei minha liberdade; ao virar individualista, só via abstrações e não humanos; ao aderir o amor livre, parei de amar. Todo discurso era belo, mas a consciência sempre me alertava que era o contrário. No fundo, bem no fundo, eu sabia que eu era um mentiroso. Essa criticidade que rodeia os meios acadêmicos nunca acaba em autocriticidade e toda ausência de autocrítica leva a consumação de uma vida hipócrita.

    Pensando novamente na frase do Chesterton: "Tire o sobrenatural, e o que resta é o antinatural", parece-me que o mundo moderno segue essa regra a risca. Toda intenção termina num redundante fracasso. Quando os antigos defensores da liberdade sexual pensavam que, com sua doutrina nova e libertária, levariam a um florescimento erótico em que todos conseguissem liberar ao máximo a sua sexualidade, eles não sabiam que posteriormente essa mesma liberdade sexual mataria até mesmo o erotismo - lembre-se: pornografia não é erotismo. Quando os progressos defensores do livre-pensamento acreditavam que iriam gerar a mais fantástica abertura epistemológica da história, eles não sabiam que, num futuro nem tão distante, viveríamos na ditadura da doxa ou "volitiva", em que cada um enclausurar-se-ia em seu castelo opinativo e odiaria qualquer pessoa discordante. A defesa original do livre-exame, em que cada um olharia uma obra e entraria num debate coletivo para entendê-la precisamente, foi destruída: o livre-exame logo se tornou livre-interpretação e a livre-interpretação tornou-se a ditadura da doxa, a unidade perdeu-se.

    Há algo que eu demorei a entender. E essa foi a transdescendência que leva à transcendência. Só que teve um dia que eu compreendi tudo. Foi quando busquei a Deus. Foi no momento que percebi que a autonomia e dependência não são opostas, mas um paradoxo amável que faz com que cada uma seja o que é. E essa transdescendência já estava prevista, filosoficamente, em Sócrates na douta ignorância: "só sei que nada sei". E essa douta ignorância que em humildade busca o conhecimento, sempre sabendo-se ignorante e incompleta, torna-se mais conhecedora na medida em que sabe que não sabe. E isso me remete a Chesterton: "Ele não apenas se sentia mais livre quando se curvava; ele de fato se sentia mais alto quando se curvava; ele de fato se sentia mais alto quando se curvava. Dali em diante qualquer coisa que retirasse esse gesto de adoração acabaria atrofiando-o ou mutilando-o para sempre. Dali em diante ser meramente secular seria servidão e inibição. Se não pode orar, o homem se sente amordaçado; se não pode ajoelhar-se, ele se sente posto a ferros" (O Homem Eterno). Eu aderi a maior tarefa intelectual já concebida: estudar e amar a um Deus onisciente, onipresente e onipotente - perto disso, tudo parece coisa pouca, pois o grau de abstração da teologia está para além do máximo e do possível, a teologia é a ciência do impossível. Ao orar e ao chorar eu compreendia algo: eu sou maior quando me ajoelho a algo que me transborda. O paradoxo é a chave do real, o paradoxo é a condição mesma do real e Jesus mesmo disse: “Eu vim a este mundo para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tornem cegos.” (Jo, 9:39). O paradoxo é a condição do real e o cristianismo é a religião do paradoxo. Viro cristão por amor ao real e por amor a verdade.

    Após esse relato, segue-se a oração "Tarde Te amei" de Santo Agostinho, Confissões 10, 27-29:

1. Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova… Tarde Te amei! Trinta anos estive longe de Deus. Mas, durante esse tempo, algo se movia dentro do meu coração… Eu era inquieto, alguém que buscava a felicidade, buscava algo que não achava… Mas Tu Te compadeceste de mim e tudo mudou, porque Tu me deixaste conhecer-Te. Entrei no meu íntimo sob a Tua Guia e consegui, porque Tu Te fizeste meu auxílio.
2. Tu estavas dentro de mim e eu fora… “Os homens saem para fazer passeios, a fim de admirar o alto dos montes, o ruído incessante dos mares, o belo e ininterrupto curso dos rios, os majestosos movimentos dos astros. E, no entanto, passam ao largo de si mesmos. Não se arriscam na aventura de um passeio interior”. Durante os anos de minha juventude, pus meu coração em coisas exteriores que só faziam me afastar cada vez mais d’Aquele a Quem meu coração, sem saber, desejava… Eis que estavas dentro e eu fora! Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti. Estavas comigo e não eu Contigo…
3. Mas Tu me chamaste, clamaste por mim e Teu grito rompeu a minha surdez… “Fizeste-me entrar em mim mesmo… Para não olhar para dentro de mim, eu tinha me escondido. Mas Tu me arrancaste do meu esconderijo e me puseste diante de mim mesmo, a fim de que eu enxergasse o indigno que era, o quão deformado, manchado e sujo eu estava”. Em meio à luta, recorri a meu grande amigo Alípio e lhe disse: “Os ignorantes nos arrebatam o céu e nós, com toda a nossa ciência, nos debatemos em nossa carne”. Assim me encontrava, chorando desconsolado, enquanto perguntava a mim mesmo quando deixaria de dizer “Amanhã, amanhã”… Foi então que escutei uma voz que vinha da casa vizinha… Uma voz que dizia: “Pega e lê. Pega e lê!”.
4. Brilhaste, resplandeceste sobre mim e afugentaste a minha cegueira. Então corri à Bíblia, abri-a e li o primeiro capítulo sobre o qual caiu o meu olhar. Pertencia à carta de São Paulo aos Romanos e dizia assim: “Não em orgias e bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,13s). Aquelas Palavras ressoaram dentro de mim. Pareciam escritas por uma pessoa que me conhecia, que sabia da minha vida.
5. Exalaste Teu Perfume e respirei. Agora suspiro por Ti, anseio por Ti! Deus… de Quem separar-se é morrer, de Quem aproximar-se é ressuscitar, com Quem habitar é viver. Deus… de Quem fugir é cair, a Quem voltar é levantar-se, em Quem apoiar-se é estar seguro. Deus… a Quem esquecer é perecer, a Quem buscar é renascer, a Quem conhecer é possuir. Foi assim que descobri a Deus e me dei conta de que, no fundo, era a Ele, mesmo sem saber, a Quem buscava ardentemente o meu coração.
6. Provei-Te, e, agora, tenho fome e sede de Ti. Tocaste-me, e agora ardo por Tua Paz. “Deus começa a habitar em ti quando tu começas a amá-Lo”. Vi dentro de mim a Luz Imutável, Forte e Brilhante! Quem conhece a Verdade conhece esta Luz. Ó Eterna Verdade! Verdadeira Caridade! Tu és o meu Deus! Por Ti suspiro dia e noite desde que Te conheci. E mostraste-me então Quem eras. E irradiaste sobre mim a Tua Força dando-me o Teu Amor!
7. E agora, Senhor, só amo a Ti! Só sigo a Ti! Só busco a Ti! Só ardo por Ti!…
8. Tarde te amei! Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu Te amei! Eis que estavas dentro, e eu, fora – e fora Te buscava, e me lançava, disforme e nada belo, perante a beleza de tudo e de todos que criaste. Estavas comigo, e eu não estava Contigo… Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti. Chamaste, clamaste por mim e rompeste a minha surdez. Brilhaste, resplandeceste, e a Tua Luz afugentou minha cegueira. Exalaste o Teu Perfume e, respirando-o, suspirei por Ti, Te desejei. Eu Te provei, Te saboreei e, agora, tenho fome e sede de Ti. Tocaste-me e agora ardo em desejos por Tua Paz!

A Prisão

     


    Apercebo-me, enfim, de minha prisão: ela começou cômoda, abriu-se e tornou-se mais cômoda. Em meu caminho de errático eremita: vi que todo fim era um começo. No fim, encontramos um começo e a escravidão torna-se mais branda até que a suavidade perca-se numa constante norma de sufocamento. Infelizmente, só posso ver paredes quanto estou próximo de me afogar. E quando me afogo, vem-me a necessidade de mudar. Quando mudo, a minha nova prisão me faz relaxar. A pergunta que não tem fim, mas tem metáfora é: qual é a melhor prisão? Essa pergunta descortina-se sempre numa série de mudanças as quais me abro, conquanto que eu ainda esteja peremptoriamente escravizado. De ideologia em ideologia, de música em música, de religião em religião: mudo-me de cárcere em cárcere, pois a próxima cela sempre tem um alvorecer do Sol quadrático ainda mais belo que a cela em que eu era anteriormente escravizado. Nessa eterna desgraça move-se a minha inconstante personalidade outonal. Vem-me sempre o paradoxo: estou preso numa inconstante constância e numa constante inconstância, daí provirá a minha essência: ela é como o Outono, quente no começo e fria no final. Tornar-me doce no começo, agridoce no meio, azedo no final. Sucedem-se colegas que se tornam íntimos, íntimos que se tornam inimigos, inimigos que se tornam passageiros, passageiros que vão-se embora numa foto em preto e branco de uma memória atordoada. Nestes velhos momentos, marcados em minha mente neurótica e delirante, tinha-se primeiro o sentimento e depois só o ressentimento. Tudo vem de uma pureza divina, de um ato de amor em estado de espírito, tornando-se posteriormente impuro, satânico e odiável. Aquilo que é potencialmente belo é potencialmente feio. Só Deus pode converter-se no puro mal, mas não o faz por ser a negação de si mesmo e até a sua onipotência observa a lógica - Deus só faz aquilo que é logicamente possível. E é nas andanças amarguradas que podemos extrair o fel da anti-abelha: um ato de amizade é potencialmente um ato de inimizade até que se torne inimizade. Tudo nasce de uma pureza de espírito para apodrecer na cicatriz da carne de um velho defunto. Todavia estou aberto: meu gosto agora é de plástico, ele não reflete a mim mesmo, visto que é só uma parte de mim. E quanto mais meu ser se recorda de si mesmo, mais ele vai do plástico para a carne e da carne para o espírito. Ainda sou idiota o suficiente para pagar uma passagem para uma nova escravidão: "porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço" (Romanos, 7, 19). Pois como esse ser adâmico estou preso no cadáver de minha carne enquanto relutantemente meu espírito luta para libertar-se do prejuízo da putrefação de seu corpo desajuizado que sempre se mergulha na antiga e nova iniquidade. E, nas palavras de um ex-amigo, que reproduzo mal por ausência de boa memória: "hoje eu vi alguém que só me trás más recordações". Assim eu de fato sou: doce, agridoce e azedo. Sou uma flor bonita até descobrir que sou uma anti-flor atômica parecida com a de Hiroshima. Só espere o Outono reiniciar, pois o começo do fim termina no começo, logo volto a ser doce, para voltar a essência inconstante de minha constância.