Mostrando postagens com marcador real. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador real. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Acabo de ler "A Tirania dos Especialistas" de Martim Vasques da Cunha (Parte 5)

 


O que define a filosofia é o esforço trágico. A filosofia é a redenção do homem perante a tragédia e não qualquer outra coisa. Isto é, o desenvolvimento filosófico é propriamente a negação de uma vida envolta nos ritmos das paixões que surgem das formas móveis.


Na tragédia temos a questão da catarse. A catarse é, propriamente, a purificação ante os fenômenos trágicos da vida. É só na tragédia que reconhecemos a vida humana em sua contingencialidade, isto é, em seu aspecto delimitado. O esforço filosófico não é uma negação desse aspecto delimitado em sentido simples, mas uma negação dessa delimitação pela aceitação dele. O esforço filosófico surge da aceitação para a superação. Se perguntassem a um filósofo a razão dele filosofar a resposta seria: "sou filósofo pois morro".


Em vez de pensarmos em criar um mundo perfeito, temos que aceitar a imperfeição e incapacidade diante desse mesmo mundo. Um mundo que sempre escapa ao nosso controlo. O filósofo é quem está ajoelhado diante da angústia desse mesmo mundo. E ele reconhece esse mundo em sua tragédia, em sua agonia. É a partir disso que ele estuda e começa a compreender como viver nesse mesmo mundo tomado pelo aspecto contingencial.


O filósofo não busca soluções mágicas, mas viver sobriamente num mundo que – apesar de nosso esforço – nunca se atém perfeitamente ao que esperamos ou queremos que ele fundamentalmente seja. É por isso que a filosofia é importante, ela nos ensina a lidar com essas mudanças constantes que o mundo material apresenta.

sábado, 30 de abril de 2022

A Cobra

Palavras não morrem, não dá pra esquecer. Os batimentos de meu peito não cessam. E imerso em meu próprio sangue, eu nem consigo mais dormir, tenho imenso medo de me afogar. Salvar-me-á da solidão ou me verá caído na noite sem fim até que tenha percebido que tinha tido a chance de me salvar?


Pegue-me, se puder. Leve-me, se querer. Ame-me, somente se quiser. Meu espírito desvaira-se nos altos céus e colide-se com a crueza do real. Ando sempre em corda bamba num céu etéreo de imprudência bestialogicamente selvagem, é sempre difícil me acompanhar - a única certeza é que no meu anuviado e transtornado mundo: cair é quase sempre morrer, quiçá para renascer outra vez ou para enlouquecer duma única vez, a única garantia é a ausência de código de direito do consumidor.

Minha carne sempre se dobra, sempre tendo gosto agridoce com seu sangue meio amargo e meio adocicado. E estou sempre a sangrar, conquanto que até agora sem minha força vital obscurecer. Namore-me sem nunca saber se você tirará fel ou se tirará mel. É pedir demais, embora o demais é o que sempre peço. Sou um constante inconstante ameno outonal a sonhar quando o metrô de São Paulo levar-me-á ao paraíso da Jerusalém Celestial.

Eu sou de discutir o sexo dos anjos num rigor ultra escolástico, como se a inutilidade me confortasse e livra-se da ideação autocida. Minha visão longeva é tal como um ode ao disforme em que o previsível nunca se encaixa, tal como eu nunca estou a me enquadrar em absolutamente nada. Sou melancólico de formação meditabunda, trazendo uma nauseabunda penumbra entre o campo do dito e do não dito. Eu maquino fantasias tal como a esfinge maquina enigmas. Minha prudência é a soberba do orgulho do fracasso e de fracasso em fracasso crio minha distópica catedral que cresce como capim em direção a loucura dionisíaca e não a visão beatífica do Deus de Abraão, Isaac e Jacó.

Até quando eu serei essa cobra alquímica que come o próprio rabo sem ter coragem de esgotar a própria capacidade física? O transcendente escatológico é contra a minha naturalidade e o peso de minha vida é um fardo para minha alma ofídea. De pele em pele, prostituo-me por uma morada provisória num submundo subnutrido, esperando aquele juízo final que na mortalha me ponha como se coloca um corpo negro, tal como o meu, em mais uma banal estatística.

Não quero ser trágico. Só que vivo a vida toda como um traficante de boas tragédias. Embora que o que eu mais quero é que tudo acabe como a Divina Comédia - aquela estranha poesia que anda do inferno ao céu. É sonhar demais, e sempre sonho em demasia, peremptório erro meu. Perdoa-me, amor, cala-me com teu beijo e esqueça dessa minha loucura tardia.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Metodologia da Esperança: a profecia primordial da humanidade!



Que das minhas feridas
Saia poder pra curar
Que cada hora perdida
Me lembre que não é pra eu parar
(Rodolfo Abrantes - Até que a casa esteja cheia)

    Existe uma profecia que nunca deixou de ser afirmada, pouco se importando o período histórico. Existe uma profecia primordial que só pode ser intimamente afirmada e não pode ser nunca intimamente negada, pois até o suicida quer uma expansão, pois até o suicida visa se conectar: mesmo que com uma última mensagem. Essa é a profecia da vida. É a vida, a vida imortal, é a profecia primordial da humanidade. A verdadeira profecia não é só verdadeira, como se cumpre. O profeta não é só aquele que diz a verdade, mas aquele com que a verdade concorda e faz cumprir o que ele afirma. No peito de cada homem há um coração que diz: "o ser é". O ser é, o ser não está, o ser é. E a afirmação de que o ser é, é a profecia de que a vida resistirá a morte. É a profecia da esperança. Essa profecia da esperança é sustentada em cada peito humano. Essa profecia é a verdadeira tradição, a tradição das tradições, pois: "Os céus e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão" (Mateus 24:35). É como a música de Rodolfo Abrantes citada no começo dessa postagem: mesmo que eu seja ferido, mesmo que eu perca tempo, eu devo saber que não devo parar. O ser é, mas tudo leva a crer que não pode sê-lo. Só que o ser precisa lutar para ser. Essa é a condição tensional da vida.

    O que nos deprime não é a vida, mas a ausência de vida. Tal como o que nos mata não é a vida, mas aquilo que nos priva dela. O assassino não assassina alguém dando a esse alguém mais vida, mas privando esse alguém de vida. Acreditar que o assassino transmite ao assassinado a vida é o mesmo que pensar que ficamos deprimidos pela vida e não pela ausência dela. O deprimido não está deprimido por causa da vida, mas por causa da ausência de vida: é a incapacidade conectiva e expansiva que lhe deixa deprimido. É a irrealização do ser que deprime o deprimido e não o contrário. Um deprimido é um não realizado, é um ser privado de ser, é um ser que padece do não-ser. É por isso que a frase de Cristo é: "O ladrão não vem senão a roubar, a matar, e a destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância" (João 10:10). A cultura da morte separa o ideal do real. Ela prende o ser no peso do real ou na alienação da pura idealidade.

     Para fins meramente ilustrativos, é preciso dizer certas coisas que podem ser contundentes. Algumas vezes acabamos por nos perder em alguns pensamentos pela falta de parâmetros. Muitas pessoas ficam pensando sobre a idealidade e a realidade, só que elas creem que há uma diferença muito grande entre realidade e idealidade. Sim, eu também compreendo essas duas "condições" como diferentes, todavia creio que há uma terceira forma: a expressão comunicativa do ser. Entre o real e o ideal há um intercâmbio que traz a comunicação entre essas duas condições. Nossa vida é, propriamente, a expressão desse intercâmbio.

    Essa postagem fala da esperança. Esperança que não se finca inteiramente no ideal e nem se esmaga inteiramente pelo real. A esperança é um contínuo caminhar que conecta sempre o real e o ideal. Ela é, propriamente, isso: a tentativa de junção do ideal e do real. Aquele que não caminha, não crê. Aquele que crê, caminha. É preciso crer e caminhar. Creio que poderia dizer que entre o ideal e o real há uma caminhada que une os dois. Há uma tentativa. A esperança é a busca de conectar a realidade com a idealidade. Sem isso, ela é vã. Você não pode tão somente desejar, você precisa buscar o desejo. Buscar o desejo é transformar o desejo em vontade. Conforme o desejo é transformado em vontade, ele se torna mais racional e ao mesmo tempo mais concreto. Visto que se caminha e se pensa como chegar. Cria-se aquilo que chamamos de intencionalidade. 

    O que move o ser é a beleza "tão antiga e tão nova", pois o ser absoluto, o sumo ser, que é Deus: é sempre tão antigo e tão novo. E assim o é pelo fato de que aquilo que temos de Deus é o cumprimento daquilo que será a afirmação mais radicalmente plena do ser: a alma imortal. Caminhamos para o Reino de Deus que cumprirá o fim da escassez e o reino absoluto da plenitude. A suma felicidade é afirmação de que o ser é. "Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti", afirma Santo Agostinho em seu livro "Confissões". O que muitas vezes no segura na Terra é essa parcialidade, essa parcialização, esse constante caminhar por privações. Caminha-se de privação em privação em vez de buscar a plenitude que é mais perfeita, por ser mais plena, que todas essas privações. Deus é a plenitude perfeita de todas as coisas, isso o torna mais perfeito do que todas as partes plenificadas, visto que ele é a união perfeita e plena de todas as partes plenas e perfeitas. 

5. Exalaste Teu Perfume e respirei. Agora suspiro por Ti, anseio por Ti! Deus… de Quem separar-se é morrer, de Quem aproximar-se é ressuscitar, com Quem habitar é viver. Deus… de Quem fugir é cair, a Quem voltar é levantar-se, em Quem apoiar-se é estar seguro. Deus… a Quem esquecer é perecer, a Quem buscar é renascer, a Quem conhecer é possuir. Foi assim que descobri a Deus e me dei conta de que, no fundo, era a Ele, mesmo sem saber, a Quem buscava ardentemente o meu coração. (Santo Agostinho, Confissões)


    Essa série de afirmações brutais e fulminantes caracterizam uma consciência sensata quando encontra o objeto formal de toda consciência sensata: a suma complexidade divina. Visto que tudo que sei de Deus é pouco. Todo conhecimento divino, todo conhecimento teológico é muito pouco: Deus, suma complexidade, nunca será abarcado pelo intelecto humano e por isso é nosso objeto de adoração! Só aquilo que nos ultrapassa transcendentalmente de forma inequívoca é aquilo que pode corresponder a nossa contínua insatisfação. A nossa insatisfação tem o tamanha de Deus, a nossa insatisfação é infinita e só um Deus infinito pode corresponder a essa insatisfação infinita.


13.Respondeu-lhe Jesus: “Todo aquele que beber des­ta água tornará a ter sede, 14.mas o que beber da água que eu lhe der jamais terá sede. Mas a água que eu lhe der virá a ser nele fonte de água, que jorrará até a vida eterna”.
São João, 4:13-14 - Bíblia Católica Online

    Se eu falar para você que o fim supremo da vida é a morte, você sentirá uma negativa constante que afirma o contrário: que o fim da vida é a vida. Se vive para se aproveitar a vida. E quanto melhor se vive, melhor é o viver. Já que o fim da vida é a vida. Se eu te falar que a derrota é melhor que a vitória, você também sentirá uma negativa constante, você sentirá algo tão claro quanto o chão que pisa: a derrota é a negação da vida e a vida tem como fim uma vitória constante e afirmativa. Há um saber que sabe que sabe. Um saber que quer superar. Um saber que quer crescer. Um saber que quer viver. E tal saber afirma triunfantemente a imortalidade e o paraíso: o homem não vive pela escassez e nem gosta da escassez, o que o homem quer é perfeição e plenitude. 

    A afirmação do ser perante o não-ser é o dever teológico primeiro. É quando o ser se torna mais pleno, quando o ser se torna mais capaz, que ele se torna mais feliz. A diferença entre o simbólico e o diabólico está no grau de participação. O ser só é ser quando o é em absoluto, logo o ser só é ser quando participante de Deus, que é onipresente. Quando buscamos a sabedoria, queremos ser capazes de responder todas as questões, sobretudo as questões que reverberam na intimidade das nossas entranhas: queremos e buscamos a onisciência de Deus. O objetivo da ciência é a participação na onisciência de Deus. Quando exigimos reformas, quando queremos mais justiça, quando queremos melhoras, queremos a plenitude da onipotência divina. O fim do poder não é a destruição dos sonhos: o fim do poder é a realização de todos os sonhos. Aquele que corrompe o poder é aquele que priva o ser de seu sonho, levando o ser ao não-ser. 

29.Jesus respondeu-lhe: “O primeiro de todos os mandamentos é este: Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor; 30.amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças. 31.Eis aqui o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Outro mandamento maior do que estes não existe”.
São Marcos, 12:29-31 - Bíblia Católica Online


    Por que amar a Deus em primeiro lugar? Para que tal mandamento? É pelo seguinte: Deus tudo é. Sendo Deus tudo, conectarmo-nos com ele é estarmos junto de tudo. Sem ele, estamos presos em alguma particularidade que nos prende e nos desconecta da existência. O objetivo de amar a Deus é amar a tudo. E é nesse sentido que vem o "amar o próximo como a ti mesmo": amar a Deus é se abrir, aquele que não ama o próximo, não pode amar a Deus. Se Deus está em tudo, Deus está presente no próximo, negar a amar o próximo é negar a amar a Deus. É por isso que se deve amar primeiramente a Deus. Aquele que ama qualquer outra coisa, ama-a parcializando-se. Parcializando-se, perde a conexão para com a própria vida.


    Essa é a metologia da esperança: crer e caminhar. Caminhar exige realidade. Crer exige fé. É preciso não só crer, mas expressar o que crê na realidade. É preciso não só amar o ideal, mas colocá-lo no real. É preciso ser absurdamente realista para expressar o ideal de alguma forma no real. Ignorar a realidade é incapacitar a expressão do ideal. Aquele que se prende no ideal, torna-se alienado. Aquele que se prende no real, torna-se escravo. Na realidade, o peso nos esmaga. Na idealidade, flutuamos infinitamente, fugindo eternamente da Terra. É preciso estar com os pés no chão e a cabeça no céu. Isso é aquilo que chamo de metodologia da esperança: é preciso crer e caminhar, mesmo que às vezes a caminhada contradiga a fé e que a fé contradiga a caminhada. A doutrina é a expressão da conexão do real com o ideal. Aquele que melhor conectar as duas instâncias melhor se expressará como ser humano. Tudo isso pode ser resumido na frase de Santo Inácio de Loyola: "ore como se tudo dependesse de Deus e trabalhe como se tudo dependesse de você", essa é a metodologia da esperança.