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quinta-feira, 21 de julho de 2022

Procurando a Casa dentro de Casa

Eu estive procurando uma casa. Não uma casa qualquer, mas a minha casa. Andei pelas escadas de minha casa, para achar a minha casa e não achei a minha casa. Procurei afagos de meus animais em minha casa, achando que dar-me-iam o sentimento do retorno a minha casa. Procurei no rosto de meu pai a minha casa, mas nele não encontrei. Procurei deitar na cama de meu quarto assim poderia lembrar do velho aconchego de minha casa, infelizmente não senti nada parecido como estar em casa.


Equidistância brutal, intimidade sem objeto, memória sem doçura. Procurei no beijo duma doce mulher o retorno a minha casa. Só que em teus lábios minha casa não estava. Procurei, então, correr pelo quintal de minha casa até chegar a minha casa. Só que ao correr pelo quintal de minha casa, senti-me cansado sem nunca chegar a minha casa. Duvidei de mim mesmo, duvidei de minha pessoa, duvidei de meu ser. Se o ser é, por que tudo na vida leva a crer que não pode sê-lo? Viajei por aí, tentando toda hipótese. Procurei me encontrar no beijo não de uma mulher, mas de um homem. Seus lábios não eram macios, eram ásperos. Senti algo diferente, senti um bater de coração, mas não senti a minha casa. Seu beijo era para mim, meu beijo era para ele, mas meu beijo encontrava-o sem que o beijo dele me encontrasse. Equidistância que gera distância em proximidade.


Não me leve a mal, só busquei a minha casa. Pouco importando se era hétero ou homossexual. Só queria buscar a minha casa. Afaguei-me em travestis e prostitutas, para nelas tentar encontrar a minha casa. Frequentei puteiros procurando a minha casa, mas em cada puteiro não me encontrei em minha casa. Amei uma garota, amei fortemente uma garota, acho que ainda a amo. Ela hoje é mulher, eu hoje sou homem. Só que a minha casa estava nela, mas a casa dela não estava em mim. Como resultado, namora outro homem.


Eu peguei livros. Livros que poderiam formar um edifício em meu quarto. Procurei em cada livro do meu quarto a minha casa. Nem em meu quarto acho mais a minha casa. Nem em teu beijo acho a minha morada. Procurei trazer bebidas, trouxe vodka, cerveja e vinho. A bebida que trazia para minha casa não me lavava para minha casa. Procurei na bebida o esquecimento de minha casa para não sentir saudade de minha casa. Embriaguei-me na constância para me esquecer de minha casa. A minha casa fazia-me um tamanho mal, não por ser minha casa, mas pelo fato de eu não poder voltar a minha casa. Eu queria somente a minha casa, mas minha casa não encontrava. A minha dor era buscar a minha casa, a minha felicidade seria achar a minha casa, só que não a encontrando, só podia sentir dor por não achar a minha casa.


Usei de tudo. Maconha, pó e lança-perfume. Camisa de time, terno e lingerie. Procurei o rúgbi, o Mario Kart e a espada samurai. Nada de casa, nem em jogo, nem em esporte e nem na luta mortal. Onde estava a minha casa? A maconha que fumava era para não me sentir distante de minha casa. O pó que cheirava era para estar perto de minha casa. O lança-perfume era para chegar em casa. A torcida com que gritei ao lado, a torcida com que xinguei o juiz, não me levou para casa. O terno que utilizei com esmero para o subemprego não me levou para casa. A lingerie, num ato de loucura e disforma de identidade, que utilizei pensando que chegaria em casa não me levou para casa, mas para caminhos tortos de gozo barato.


Procurei ler em cada livro minha casa no exílio de meu quarto. Procurei em cada falso amor um retorno ao verdadeiro amor de minha casa. Aceitei a prostituta como a única mulher que poderia ter em minha falsa casa. Aceitei o sexo banal da madrugada. Fiz casamentos forjados para ver se chegaria em casa. Só que nada me levou para minha casa. Logo nada disso me valeu. 


Perdoe-me, Deus. Eu nunca quis fugir de casa. Na verdade, eu não sabia que minha casa era minha casa. E por não saber que minha casa era minha casa, por outras casas andei em perene exílio. Andava então de casa em casa, cada casa era um aperto e uma prostituição. Nesse tempo estive na solidão da solidão. Perdoe-me, Deus.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Éramos dois, e daí?

 Você me contava do seu desejo de virar socióloga. Era de esquerda juvenil, adolescente lutando contra o tédio. Tão desafiadoramente bonita quanto inteligente e simpática. Revelei a ti o meu amor quando já era tarde, tinha vergonha metódica de mim e não queria lhe envergonhar com minha obscura imagem social. Por um momento, éramos dois, mas depois de alguns meses, já não éramos nada.


Eu te diverti com meu humor adolescente de anarquista niilista e rebelde sem causa. Pagando-lhe bebidas na esperança que transfigurasse a sua lesbicalidade e bissexualidade. Me aproximando com distâncias calculadas e passos patéticos que geraram tragédias insensatas. Eu sumi por sete anos, em crises sem fim, falei-lhe que era teu amigo, mas e daí? Eu sumi. Sumi e voltei transfigurando proximidade em distância abjeta e sem explicação sensata.

Você jogava videogame em minha casa. Na doce infância era tão bom, só que eu era idiota e inadequado demais para a pré-adolescência. Como consequência de meu desenquadro, criei em você a vergonha que lhe permitiu o afastamento adequado. Éramos dois, e daí? Daí que sumi sem nunca mais falar contigo. Daí que lhe achei um cara que preferiu a sociedade a amizade dourada.

Nos pegamos três ou duas vezes. Dormi contigo, em teu quarto. Sua mãe trouxe pizza, sem pensar em sexo homossexual de dois caras bissexuais que não davam pinta de nada. Éramos dois, éramos dois amigos e coloridos adolescentes numa época de liberalidade sexual. Quem você é agora? Você se assumiu ou ainda isola o fato sexual de sua família com ocultamentos constantes de sua inconstância inata?

De pastor você foi a ateu convicto. Íamos ao puteiro em apostasia à faculdade. Conversávamos muito. Você voltou a ser pastor, traiu o puteiro, o anarquismo, o ateísmo e a mim. Éramos dois, e daí? Daí que nunca mais falamos e eu até hoje não me lembro de seu sobrenome.

Eu era tão católico quanto um católico deve ser. Num retiro vocacional buscando irmão ser. Te vi algumas vezes em conversas doutrinais que foram fáceis de esquecer. Lia "Ordem Nova", o reacionarismo era moda, a monarquia voltava em mentes e não em regimes. Sempre quis te comer, sobretudo quando bebíamos na igreja. Eu fiquei sabendo, você beijou garotas e eu beijei rapazes. Éramos perfeitamente heterossexuais e completamente bissexuais.

Em Santa Catarina foi um horror, afastado da família e da cidade que morei com louvor. Identidade em choque em novo mundo cultural. Você foi padre, agora era homossexual e casado. Eu? Eu era o cara que ia em retiros vocacionais e militava no movimento negro. E mesmo você sendo casado com outro homem, desejei que fosse meu próprio homem. Treinamos juntos, sugeri poliamor e um dia no pós-treino você me chupou. Eu fui pra São Paulo, você lá permaneceu. Ficou onde fui, para permanecer de onde era. Eu voltei pra São Paulo, para permanecer de onde vim. Éramos dois, e daí? E daí que ainda penso em você.

Eu lia Olavo de Carvalho, você lia Nietzsche. Eu era Apolo e você era Dionísio. Só que eu tinha um Dionísio oculto e você tinha um Apolo oculto. Pegamos duas mulheres, mas quando a pegamos, uma das duas não estava presente e nem conhecíamos a outra que estava por vir. Pegamos a mesma flor e depois a outra flor, em perfeita conformância com a igualdade do sabor. Você me apresentou a social, eu te apresentei a transexual. Você me apresentou a Dionísio e eu te apresentei ao tradicionalismo. Éramos loucos sem tirar e nem pôr, talvez seja por isso que você foi um dos únicos que ficou.