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quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Carta a Dionísio - A conjuração duma dualidade trágica




Quando penso em você, penso igualmente em mim. Você me era como um arquétipo e como uma contradição a qual deveria rivalizar. Era-me arquétipo na medida em que era alguém de posicionamento social, econômico e funcional melhor do que o meu. Só que não era só isso, era belo e inteligente. Você era um grande ímã que sequestrava todos ao redor com teu hipnotismo, sobretudo as mais belas garotas que víamos na faculdade. Conseguia navegar na divergência e no enquadro. Via-me como um acessório ou alguma coisa a orbitar o espaço de sua espetacular presença que a todos encantava.


Todo garoto tem direito a ter seu super herói a preencher o seu imaginário. Quanto mais tímido for o garoto, mais esse se ancorará na figura heróica de seu ídolo. A timidez e a admiração tornam-se simbioticamente a causa da mudança, um condicionar-se à figura do ser amado e idealisticamente pensado. Em certo sentido, a imagem mental que tinha de ti gerava uma confusão identitária na constituição de meu pensamento. Quando a imagem que tinha de ti era fortalecida, mais alienantemente fugia da minha própria autoimagem e, também, daquilo que era a minha identidade.

Eu era como um Narciso às avessas, sempre que me deparava com a pequeneza e feiúra de minha própria imagem, preferia gritar ao me ver em cada reflexo. O horror para comigo mesmo me levava à loucura de vôos imagéticos em que eu sempre me imaginava o contrário do que eu era. Segui-lo era tornar-me um bichinho que seguia o protagonista e servia-lhe de adorno, ressaltando sempre o protagonismo do personagem central da história. Eu era uma pessoa destituída de uma boa história mitológica.

Virei uma espécie parasitária de vampiro. Sugava de ti as hipóteses e possibilidades, numa dependência abjeta. Minha maturidade caminhava a lentos passos. Só que o peso do heroísmo pode ser trágico, toda crítica sua me jogava em profunda náusea. E, nos tempos finais de nossa proximidade, inferiorizou-me ao todo, jogou-me pra baixo. Mesmo assim, chorei depois de vê-lo partir. Hoje tento achar a mim mesmo, procurando pontuar o que sou e o que não sou. Quero me dissociar de tua imagem, quero ter meu próprio projeto e minha própria história. Não quero parasitá-lo ou imitá-lo, quero vocacionar-me.

Eu não estou lhe culpando, falo-lhe de mim mesmo e do impacto que você causou. Afasto-lhe para que eu seja, busco autenticidade. O princípio de nirvana requer um grau de expurgo para que o organismo volte a sua funcionalidade. Se não afastar-lhe, tua voz atrapalhará a voz de minha consciência e minha intimidade. É uma questão fundamental viver minha própria história.

Por muito tempo, os rumos de minha vida se afastaram de meus objetivos. Tudo me impactava sombriamente: os fóruns virtuais, as drogas, as bebidas, os locais. Eu preciso de tempo, eu quero um grande espaço - um espaço pelo resto de minha vida. O tempo e o labor fincarão o que busco, a minha nova vida requer novos hábitos, pessoas, leituras, jogos e amores. Não sei se isso lhe entristece, sinto mais alívio do que qualquer outra coisa. Afasto-me também duma série de outras pessoas, conhecidas nossas. Aprendi a verdadeira liberdade, ela me diz que nada que me prenda ou leve a perca de minha vontade como verdadeiramente livre.

Lembro-me da estação de metrô em que estava no dia em que tentei me matar. Queria ter enviado uma mensagem última a ti e outros dois ex-amigos. Parei de falar com eles por eu ter me tornado insuportável e insustentável. Não quero manchá-los com a minha vida turbulenta, ainda mais quando eles trouxeram ao mundo uma nova vida. Além disso, soube de algo que prefiro nunca contar. O sofrimento que teriam ao saber seria grande demais. Encaro isso como uma traição, porém é uma traição que suportarei com a dignidade de alguém que se afasta para o bem. Trai-os com a necessidade de protegê-los, além de livrá-los de minha influência nefasta. O meu coração carregará essa dor tal como carrega tantas outras dores.

O que mais me dói é a ideia fixa de que um personagem não possa ter duas origens. Se assim não o for, estarei eternamente condenado aos meus erros passados. Eu estou longe dele, abandonei a tudo: fórum, antigas leituras, drogas, bebidas, ciclo social. O único lugar donde extraío minha força é do santo terço, quase sempre chorando e pedindo perdão a Deus por toda dor que causei a todos ao meu redor. Sei que todos os meus ex-amigos encontram-se melhor sem mim. Dar a eles espaço é privá-los de meu mal e, igualmente, dar a mim um espaço para comigo mesmo. Mudanças produtivas vêm vindo, só que só se manterão se eu me manter na senda reta.

sábado, 16 de julho de 2022

Falas Provisórias

Eu tive que encontrar alguém, com dúvidas e penúrias, fui lá e encontrei.

Depois que acordei, me banhei, me arrumei. Naquele dia andei de metrô e andei de trem.

Não ter medo tentei,  e expectativa criei,
Mas no trem lotado me irritei.

Enfim cheguei, comi, bebi e brindei

Um presente ganhei, e um livro lerei,
E durante a bela canção eu jurei, e
Despertar eu irei.

Desapaguerei, compartilharei e ensinarei, mas também também aprenderei.

Do mato a cidade eu andei e vários sabores provei, e saio certo que bons ventos encontrarei.

Dionísio ou Apolo eu não sei.


Falas provisórias.

 É certo e incerto o que é o certo.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Zumbis

 


Quando criança, eu já sabia. Eles um dia estariam lá. Não só pelas ruas, estariam nos metrôs e nos trens que se conectam com toda uma rede de locais que são pórticos de esperança. Não tardaria para que eles vissem, para que eles me cobrassem a tarifa da existência. Ignorei-os pelo fato de que achava que nada podia macular a minha integridade. A infância é sempre ditada pela tolice duma esperança ingênua e logo soube meu lugar no mundo: ou a vida zumbi que dilacera a carne do próximo na esperança que ele se adeque na solidão de seu corpo ou o suicídio idealista que a alma elava, já que no corpo não mais a contém.

Eu sempre soube que eles estariam também estariam nas linhas de trem. Caminhavam em seu sofrimento eterno. Condenados a comer a carne humana, condenados a destruir seus iguais e igualá-los em sua maldição. Crianças, adolescentes, adultos e velhos - nem mais crianças e adolescentes podiam se livrar do jugo da existência cadavérica. Todos deveriam caminhar zumbificados por todos os lugares, sempre e em todo lugar. Logo, nada diferentes do usual, nada diferentes dos seres humanos normais. E nada mais normal que a escravidão. Humanos, demasiadamente humanos, imersos em lodaçais de normas sem fim. Buscando um emprego prum sustento precário. Buscando o básico, o imanente, o nauseante nauseabundado.

Inicialmente desejei sobreviver, eu acreditei que era natural que o Sol se fizesse presente num novo alvorecer. Triste ilusão. A verdade é que o ideal sempre esmaga o real. Às vezes a gente aprende, por outras não. Por vezes só queremos acreditar que o mundo é burlável e que a alma é imortal - crença antiga e reacionária, portanto revolucionária para os parâmetros de hoje.


A noite aqui é sempre fim. Ela é sem fim, mas a Lua é sempre sem gosto. A Lua aqui nunca é mística e não há boêmia no amanhacer. Agora a rotina era mais que a rotina, a rotina era sem transcendência. Agora a rotina era utilitária sem a divindade da inutilidade que encanta a vida e o que objetivo da vida encerra. Era uma noite apolínea sem a dialética dionisíaca. Agora só era só isso, matar ou morrer. Infelizmente, viver não era viver. Infelizmente, viver só era sobreviver. Humanos tornam-se cruéis sem a domesticação da tirania, tão logo que se perde a elevada civilização, perde-se de igual modo a sobriedade da ideação corretamente ordenada. Não são agora só os zumbis problemáticos, são os estupradores, ladrões e aqueles que se fanatizaram pelo gosto pelo sangue, pelo gosto pela morte. Num mundo assim, do que adianta ainda viver? Viver aqui é inatural, já que tirando o sobrenatural do natural, sobra-se tão somente o inatural.

Eu escolhi. Escolhi tristemente, mas escolhi. Escolhi que fugiria dos zumbis na espera do próximo trem. Nesse trem, arquétipo da salvação da alma, entregar-me-ei de corpo para que salve a minha alma. Eu tinha que fugir dos zumbis. Eu tinha que fugir até de mim mesmo. Tinha que sair da cela não tão monástica de meu corpo. A cada dia, eles andavam lentamente ao meu lado. A cada dia, imploravam para que com eles eu caminhasse. Eles andavam sempre vagarosamente, o que era mais detestável era o cheiro. Cheiro cadavérico e distante de todo sonho. Cheiro de zumbi, conquanto cheiro de mim. Cheiro que só sobrevive e não vive. Alguns sem olhos, outros com tripas de fora. De tanto ao lado deles caminhar, cheiro deles já era cheiro meu.

 Quem eu sou? Eu sou o Hipo Cristo justificado, já que fui também crucificado. Um falso cristo, um cristo sem santidade. Cristo esse que tinha sonhos tão proféticos quanto o verdadeiro Cristo. Cristo esse tão crucificado quanto o próprio Cristo. A brutal diferença era que eu não tinha deidade e nem minha morte remia o mal do mundo, mas por ele era condenado. Adequei-me a cada dor. Aprendi com cada qual em seu ódio sem ódio. Com cada qual o ódio mortal, com cada qual o pior tipo de ódio, com cada qual o ódio realizado que matou o realizador. Eu não quero ser um zumbi, eu quero ser o ser amado e o ser que ama. Não quero ser encerrado num corpo que já não tem alma ou espírito, não quero ser um zumbi ou, mais precisamente, não quero ser um cidadão líquido duma pós-modernidade. Não quero, como eles, ser encerrado em um corpo desalmado, como num dia triste sem fim.



sábado, 29 de janeiro de 2022

Éramos dois, e daí?

 Você me contava do seu desejo de virar socióloga. Era de esquerda juvenil, adolescente lutando contra o tédio. Tão desafiadoramente bonita quanto inteligente e simpática. Revelei a ti o meu amor quando já era tarde, tinha vergonha metódica de mim e não queria lhe envergonhar com minha obscura imagem social. Por um momento, éramos dois, mas depois de alguns meses, já não éramos nada.


Eu te diverti com meu humor adolescente de anarquista niilista e rebelde sem causa. Pagando-lhe bebidas na esperança que transfigurasse a sua lesbicalidade e bissexualidade. Me aproximando com distâncias calculadas e passos patéticos que geraram tragédias insensatas. Eu sumi por sete anos, em crises sem fim, falei-lhe que era teu amigo, mas e daí? Eu sumi. Sumi e voltei transfigurando proximidade em distância abjeta e sem explicação sensata.

Você jogava videogame em minha casa. Na doce infância era tão bom, só que eu era idiota e inadequado demais para a pré-adolescência. Como consequência de meu desenquadro, criei em você a vergonha que lhe permitiu o afastamento adequado. Éramos dois, e daí? Daí que sumi sem nunca mais falar contigo. Daí que lhe achei um cara que preferiu a sociedade a amizade dourada.

Nos pegamos três ou duas vezes. Dormi contigo, em teu quarto. Sua mãe trouxe pizza, sem pensar em sexo homossexual de dois caras bissexuais que não davam pinta de nada. Éramos dois, éramos dois amigos e coloridos adolescentes numa época de liberalidade sexual. Quem você é agora? Você se assumiu ou ainda isola o fato sexual de sua família com ocultamentos constantes de sua inconstância inata?

De pastor você foi a ateu convicto. Íamos ao puteiro em apostasia à faculdade. Conversávamos muito. Você voltou a ser pastor, traiu o puteiro, o anarquismo, o ateísmo e a mim. Éramos dois, e daí? Daí que nunca mais falamos e eu até hoje não me lembro de seu sobrenome.

Eu era tão católico quanto um católico deve ser. Num retiro vocacional buscando irmão ser. Te vi algumas vezes em conversas doutrinais que foram fáceis de esquecer. Lia "Ordem Nova", o reacionarismo era moda, a monarquia voltava em mentes e não em regimes. Sempre quis te comer, sobretudo quando bebíamos na igreja. Eu fiquei sabendo, você beijou garotas e eu beijei rapazes. Éramos perfeitamente heterossexuais e completamente bissexuais.

Em Santa Catarina foi um horror, afastado da família e da cidade que morei com louvor. Identidade em choque em novo mundo cultural. Você foi padre, agora era homossexual e casado. Eu? Eu era o cara que ia em retiros vocacionais e militava no movimento negro. E mesmo você sendo casado com outro homem, desejei que fosse meu próprio homem. Treinamos juntos, sugeri poliamor e um dia no pós-treino você me chupou. Eu fui pra São Paulo, você lá permaneceu. Ficou onde fui, para permanecer de onde era. Eu voltei pra São Paulo, para permanecer de onde vim. Éramos dois, e daí? E daí que ainda penso em você.

Eu lia Olavo de Carvalho, você lia Nietzsche. Eu era Apolo e você era Dionísio. Só que eu tinha um Dionísio oculto e você tinha um Apolo oculto. Pegamos duas mulheres, mas quando a pegamos, uma das duas não estava presente e nem conhecíamos a outra que estava por vir. Pegamos a mesma flor e depois a outra flor, em perfeita conformância com a igualdade do sabor. Você me apresentou a social, eu te apresentei a transexual. Você me apresentou a Dionísio e eu te apresentei ao tradicionalismo. Éramos loucos sem tirar e nem pôr, talvez seja por isso que você foi um dos únicos que ficou.