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sábado, 23 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #6: Tomás de Aquino e o Direito Natural

 



— Recaptulação:


Na nota pública anterior, escrevi sobre o fato de que Agostinho de Hipona situava a lex aeterna (lei eterna), provinda diretamente de Deus, como superior a lei positiva (que vem do Estado). A lei positiva deveria se subordinar a lex aeterna (lei eterna).


Hoje vamos entrar e entender um pouco do que pensava Tomás de Aquino no campo da filosofia do Direito.


— Uma contextualização a respeito de Tomás de Aquino:


- Foi um frade e um padre italiano, da ordem dominicana, conhecido por ser um influente filósofo e teólogo;

- Não se sabe ao certo se ele nasceu em 1225 ou 1227, mas a data da sua morte é 1274. Ele é o maior proponente de um movimento conhecido como Escolástica;

- Seu trabalho mais conhecido é a Suma Teológica, onde podemos encontrar escritos sobre a Teoria do Direito Natural, além de outros a respeito da teologia e da filosofia;

- A Teoria do Direito Natural em Tomás de Aquino vai diferir da Teoria do Direito Natural de Agostinho, visto que Tomás de Aquino foi influenciado pela redescoberta dos escritos de Aristóteles;

- Para Tomás de Aquino, lei positiva tem uma natural posição na vida política e social, mais do que Agostinho de Hipona acreditava, visto que a lei positiva poderia ser substituída pela adesão à lex aeterna.


— Direito Natural em Tomás de Aquino:


O Direito Natural apresenta quatro hierarquias no pensamento de Tomás de Aquino:

1. Lei Eterna: é a lei que ordena todas as coisas, está restrita ao conhecimento do próprio Deus;

2. Lei Divina: é a parte da lei eterna que foi revelada para a humanidade;

3. Lei Natural: é a capacidade inata da natureza humana de discernir o bem e o mal;

4. Lei Positiva: é a lei criada pelos legisladores humanos.


É válido mencionar que Aristóteles também tinha uma separação hierárquica das leis, para ele havia uma justiça natural, de caráter universal, e uma justiça convencional, que eram as leis específicas da cidade-Estado. O caráter universal, para Aristóteles, era o de uma lei imutável, que poderia ser descoberta pela razão humana. O propósito de uma lei, no pensamento de Aristóteles, era de promover a virtude e o bem comum da comunidade. Como Tomás de Aquino foi influenciado pelo pensamento de Aristóteles, adicionando-se o fator teológico cristão, Tomás via na lei humana uma possibilidade de guiar as pessoas para a felicidade suprema e a felicidade suprema era a união com Deus.


Para Tomás de Aquino, havia uma espécie de relação não convencional entre a lei e a moralidade. E era impossível entendê-la sem uma referência de moralidade. Além disso, todas as leis humanas deveriam ser julgadas em correlação com a lei natural.


É preciso compreender que a Teoria da Lei Natural não é só uma teoria de jusfilosofia, não é só uma teoria a respeito da lei, tampouco algo que é limitado aos estudantes de Direito. O Direito Natural é uma teoria ética. Por vezes adentrando a uma natureza mais teológica. O Direito Natural não se pergunta pura e simplesmente "o que é a lei?", mas vai mais adiante: "o que ontologicamente é a lei?", "o que é a existência da lei em si mesma?". O Direito Natural busca adentrar na questão última do significado da lei.


— A Lei Positiva:


Existem duas fundações que são necessárias para se chegar a razão última e para se fazer o correto curso de uma ação antes de se criar uma lei positiva:

1. A Lex Divina (Lei Divina);

2. A Lex Naturalis (Lei Natural).


A primeira representa a Lei Divina que foi revelada pelas Sagradas Escrituras (Bíblia) e a segunda é a Lei Natural que é acessível pela razão natural através da observação racional da natureza humana. A lex humana (lei humana, entendida como lei positiva), é boa se segue a fundação da lex divina (lei divina) e a lex naturalis (lei natural).


A lei positiva (lex humana) precisa facilitar e servir uma teleologia de um bom propósito. Se o propósito for teleologicamente bom, compatível com o bem comum e a harmonia social, as pessoas não vão sentir vontade de burlar a lex humana (lei positiva/humana) por medo da punição, mas sim por causa da racionalidade e da moralidade. Uma lei bem fundamentada, não é vista por alguém moralmente correto e racional como algo que pode ser burlado, visto que ele vê nessa lei algo natural, lógico e moral, e quebrar essa lei é ser inatural, ilógico e imoral. 


— Lei Injusta:


Tal como Agostinho e inspirado nele, Tomás de Aquino traça uma questão a respeito sobre o que faz uma lei ser lei. Visto que, tornemos a lembrar, uma lei precisa de um questionamento a respeito da sua natureza.


Para Tomás de Aquino, uma lei injusta é tão somente uma lei que tem a aparência de ser uma lei. Algo pode ser percebido como uma lei sem que esse algo seja de fato uma lei por si mesmo. Uma lei injusta não é uma lei por si mesma, visto que todas as leis precisam aderir a lei natural. Em outras palavras, Tomás de Aquino traça uma questão ontológica a respeito da lei, argumentando que algo, para ser lei, precisa ser em referência à lei natural. Se a lei positiva fere a lei natural, não é uma lei.


Se faz necessário recordar que o pensamento de Tomás de Aquino faz referência ao pensamento de Aristóteles. Aristóteles pensava no telos (finalidade) de todas as coisas. Ele se questionava sobre o propósito final, sobre o resultado de algo particular. Logo era preciso ter em mente a finalidade a que se destina dada lei. E as leis precisam estar em conformância com a natureza humana, que é um ser social e político. Contrariar essa natureza, levando a desarmonia social, é uma forma de burlar essa natureza a que se destina toda lei.


Existem formas de saber se algo fere a lei natural:

1. Contrária ao bem comum: quando essa lei é feita com o objetivo de um bem particular, furtando-se a necessidade de ser boa para todos os membros da sociedade;

2. Excede o campo de conhecimento do legislador: quando o legislador não apresenta o conhecimento necessário para produzir essa lei;

3. Fardo injusto: quando há uma desigualdade ou uma desproporcionalidade para certos membros da sociedade.


Para Tomás de Aquino, uma lei falsa não é uma lei, mas uma perversão da lei. É por isso que a lei feita por humanos precisa da referência e da conformidade com a lei natural. Também a lei não pode ser contrária lex divina (lei divina).

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #5: Agostinho e o Direito Natural

 



— Curiosidades Históricas:


1. Quando Agostinho estava escrevendo ainda não havia ocorrido a redescoberta dos trabalhos aristotélicos e tampouco dos livros de Aristóteles;

2. A tradição do Direito Natural teve uma radical transformação com a influência da nova religião que se instaurava na época, o cristianismo;

3. O cristianismo, em específico, era aquele da Doutrina Católica;

4. Naquele período, o cristianismo de um movimento religioso perseguido para a posição de religião formal do Império Romano, o que fez com que ele se espalhasse por toda Europa e partes do norte da África;

5. Os pensadores mais importantes para compreender filosoficamente e teologicamente o Direto Natural na esfera cristã são Santo Agostinho de Hipona e São Tomás de Aquino;

6. Agostinho de Hipona é a figura mais importante da Patrística e Tomás de Aquino é a figura mais importante da Escolástica.


— Relevância de Santo Agostinho de Hipona:


Agostinho de Hipona foi um dos Pais da Igreja, vivendo entre 354 a 430 d.C. e ajudou no desenvolvimento inicial do cristianismo. Nesse período a Cristandade era influenciadas por diferentes teorias e contribuições sobre como interpretar os textos bíblicos. Tão logo, práticas consideradas heréticas se estabeleceram. Nessa época, houve uma tentativa de dar uma codificação formal da Doutrina Cristã e uma codificação formal de como a teologia deveria ser interpretada.


Agostinho de Hipona nasceu no norte da África, que era parte do Império Romano. Seus escritos sobre a teologia e a doutrina cristã exerceram um grande impacto nos trabalhos dos teólogos que vieram depois dele. Foi ele que desenvolveu a Doutrina do Pecado Original, a Doutrina da Graça e deu elucidações a respeito da Santíssima Trindade. Impactando o Primeiro Concílio de Constantinopla em 381.


— Santo Agostinho de Hipona e o Direito Natural:


A primeira distinção a ser feita é o papel que Aristóteles exerceu em seu trabalho. Como dito anteriormente, numa nota pública anterior, Aristóteles é a chave fundacional do Direito Natural. E, como bem sabemos, os trabalhos de Aristóteles não tinham sido recuperados no tempo de Agostinho. Se muito, a influência de Aristóteles no pensamento de Agostinho é limitada, provavelmente inexistente. Quem terá mais influência aristotélica é Tomás de Aquino. Agostinho de Hipona, por sua vez, terá influência de Platão.


Agostinho trabalha com a ideia do bem e do mal para compreender a natureza humana e a condição da humanidade, acreditando que a submissão para Deus é a mais favorável. A conexão que podemos traçar é a ideia de Platão a respeito da submissão à autoridade máxima do Rei Filósofo.


O que podemos ver é que Agostinho procura uma autoridade mais extrema, mais poderosa e mais sábia que o Rei Filósofo como ponto para submissão. E essa autoridade é o próprio Deus. Deus é uma autoridade tão máxima que ele é o único que comporta a lex aeterna (lei eterna). Todas as outras leis, isto é, as leis positivas criadas pelo homem (leis do Estado), não são necessárias caso se siga a lex aeterna (lei eterna). A lei positiva (lei do Estado) é chamada de lex temporalis (lei temporária) e tem importância menor, visto que pode ser substituída se os humanos simplesmente se submeterem a lex aeterna (lei eterna) que é derivada do próprio Deus.


— "Do Livre Arbítrio" (livro de Agostinho):


Uma das maiores frases de Santo Agostinho de Hipona é "lex iniusta non est lex" (uma lei injusta não é lei). Essa frase tem correlação direta com o conceito de direitos naturais, com a moralidade natural e com o conceito natural de lei baseada em princípios morais.


A escola doutrinária do Direito Natural crê na possibilidade de se chegar a um padrão objetivo de moralidade e nesse padrão objetivo de moralidade está o Direito Natural. Se uma lei criada pelo Parlamento (o Poder Legislativo) não adere aos direitos naturais, essa lei é automaticamente inválida.


Para Agostinho, as leis positivas (as criadas pelo homem para serem usadas pelo Estado) só são aceitáveis se encontram fundamentação na lex aeterna (leis eternas). Isso abriu margem para o Direito Positivo basear-se teologicamente na lex aeterna (lei eterna). Estamos falando da teologização do Direito.

Philosophia Iuris #4: Aristóteles e o Direito Natural

 


— A Teoria Anciã do Direito Natural:


Quando falamos do aspecto ancião da Teoria do Direito Natural, fazemos um retorno a Sócrates, Platão e Aristóteles. Em outras palavras, adentramos nas origens fundacionais do Direito Natural. Na nota pública anterior, escrevi sobre Platão e sobre a importância que a lei e a obrigação legal — diante da lei — no pensamento dele.


É válido lembrar que, em se tratando do Direito Natural, Platão conecta-se a Agostinho e Aristóteles conecta-se a Tomás de Aquino. Aristóteles é de suma importância, não só pela influência que exerceu sobre Tomás de Aquino, mas também pelo fato de que ele é o fundador e inventor da Teoria do Direito Natural.


— Recaptulação:


A Teoria do Direito em Platão fala sobre o funcionamento próprio da cidade-Estado (lembre-se da obra "A República"). Aqui, funcionamento próprio, é a noção de como a cidade-Estado grega deveria funcionar de modo efetivo.


Para Platão, o Estado deveria ser organizado na base do Rei Filósofo, um indivíduo que foi treinado desde o nascimento para compreender o estadismo e os princípios da virtude, da ética e da sabedoria. Era uma espécie de ditadura benevolente, mas a ideia de Direito Positivo era tinha uma pequena participação ou importância, visto que a parte mais importante era o poder do Filósofo Rei.


— Aristóteles:


Existe uma conexão muito forte entre a Teoria do Direito e a Natureza Humana no pensamento aristotélico.


Aristóteles tem uma forma bastante teleológica de ver o mundo:

1. Teleológico: se refere ao objetivo final, "telos" quer dizer final;

2. Aristóteles analisava objetos e procurava o final particular desse objeto;

3. Teleológico: é a importância de um ser se referenciar ao resultado final que se destina, é a busca da finalidade de cada ser e objeto;

4. Ética normativa: como a teoria aristotélica visa o objetivo final de cada ser, ela é consequencialista, visto que se funda no objetivo final para determinar a finalidade de cada ação — se estão ou não em conformância com o objetivo final — e é estar em conformância com o objetivo final (uma espécie de normativismo) que determina a qualidade ou moralidade de cada ação.


Aristóteles traça o Direito Natural com base no telos (objetivo final) da natureza humana. Aristóteles acreditava que todas as coisas tinham a sua própria teleologia. Por exemplo, o telos de uma semente é o de crescer para virar uma planta. O telos de um animal filhote é o de crescer e se tornar um animal adulto. O final resultante é de extrema importância para informar e entender o ser de cada objeto estudado. Para humanos, para natureza humana, o telos envolve o entendimento da razão. Humanos possuem uma finalidade específica, visto que carregam a capacidade de serem criaturas políticas, já que possuem dentro de si habilidades sociais e políticas, o que os torna próprios de construírem estruturas políticas, a polis.


— Teleologia e Natureza do Bem:


O cumprimento da finalidade — fim final, telos — indica a norma, a norma é o cumprimento da finalidade e seguir a norma é encontrar o fim natural de cada ser. O bem de cada ser é cumprir a sua finalidade (telos). O fim da humanidade é a criação da Polis, visto que carregam dentro de si habilidades sociais e políticas que levam necessariamente ao surgimento e desenvolvimento da própria Polis.


Tudo que leve ao desenvolvimento e cumprimento do ser em sua própria natureza pode ser identificado como bom.


Existe também uma subteleologia, isto é, o desenvolvimento de algo particular para promover o seu telos (finalidade). Como o de construir estradas para que pessoas caminhem e carros passem por cima. No caso, a finalidade da estrada é atrelada a finalidade do bem comum do ser humano.


— Influência no Direito:


1. O Direito serve para contribuir com a natureza humana;

2. Uma boa lei é aquela que contribui com o telos (finalidade) da humanidade;

3. O significado de uma boa lei está em sua capacidade de contribuir com o desenvolvimento da estrutura social e dos humanos como animais políticos, visto que esses são naturalmente inclinados a viver dentro de uma Polis.


— Obrigação de Obedecer:


Ao contrário de Platão, o pensamento de Aristóteles é mais voltado em responder a necessidade da existência da lei e o sentido qualitativo da lei do que apresentar razões de obedecê-la.


As perguntas que Aristóteles leva em sua linha de raciocínio são:

- O que faz a lei?

- O que faz uma lei ser boa?

- Qual a justificação para a existência da lei?


Ele responde tudo isso com base na teleologia. A existência da lei está vinculada a necessidade humana de viver na Polis, devido a sua natureza social e política. Para se viver na Polis, faz-se necessária a existência da lei, visto que ela é garantidora da harmonia social. A existência da lei é uma necessidade visto que o ser humano necessita viver em sociedade e necessita que essa sociedade seja harmônica. Uma boa lei é uma boa lei quando busca cumprir essa finalidade humana: a de construir e desenvolver a Polis, que é uma construção naturalmente humana.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Ephemeris Iurisprudentiae #18: TGD 7

 



Na nota pública anterior do Ephemeris Iurisprudentiae, comecei com a ideia da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale, em que abordei o fato de que, segundo essa escola doutrinária, o Direito apresenta três dimensões: Fato, Valor e Norma. Na nota pública anterior, trabalhei a dimensão do Fato. Agora vou tratar a questão do Valor.


O valor é uma realidade humana. Para entendermos o significado da dimensão do valor, precisamos primeiro compreender o que é uma realidade humana e por qual razão ela se distancia da realidade natural.


— Realidade Natural X Realidade Humana:


Vou apresentar micro-definições e depois tentar dar uma ligação dos termos apresentados.


— Realidade Natural:

- Mundo físico na natureza;

- Não intervenção humana.


Podemos entender a realidade natural como a realidade que não passou ou não passa pela intervenção humana. Em outros termos, quando falamos de "Realidade Natural", estamos falando do universo que não foi objeto de alteração pelas mãos da humanidade.


— Realidade Humana:

- Realidade Cultural;

- Criações humanas;

- Formas de comportamento.


A realidade humana, por outro lado, contrapõe-se a realidade natural. Visto que é da natureza da humanidade ter algo chamado cultura e cultura pode ser definido como tudo aquilo que é modificado pela humanidade ou tudo que o ser humano transforma.


A cultura tem relação com o valor, visto que o ser humano só transforma algo com um instituto de torná-lo útil ou apreciável. Da mesma forma, o valor e o Direito são próximos, visto que o Direito se baseia em valores. O Direito, tal como outras ciências culturais/humanas, analisa os fatos humanos e a inter-relação entre os indivíduos, trazendo um juízo de valor de acordo com a finalidade do estudo. A realidade cultural, carregado de valor, é valorada de acordo com o seu relacionamento com os fins determinados pelo ser humano.


— Como o Direito estuda o valor?


Podemos analisar o valor, de uma maneira geral, pela via axiológica e teleológica. A axiologia é o estudo dos valores ou teoria dos valores. Já a teleologia é a finalidade das coisas ou a teoria dos fins. O Direito também pode utilizar-se de leis sociológicas, históricas e econômicas para analisar juízos de valores, fatos e leis éticas. Como também pode estudar a moral, a política e a religião.


O Direito também estuda as Leis Éticas, isto é, a vinculação das normas com o comportamento humano. Visto que o Direito é uma ciência normativa e uma ciência normativa busca vincular normas ao comportamento humano para regulá-lo. Uma norma ética, objeto de criação do Direito, busca associar um juízo de valor ao comportamento humano, para prever sanções (punições) pelo seu não cumprimento. As normas éticas surgem de um estudo das leis éticas, visto que elas visam procurar a melhor forma de colocar um caráter imperativo — um dever a ser cumprido — que regule o comportamento humano. O Direito, como ciência normativa, precisa estabelecer um conjunto de normas imperativas em razão do fato de que valores são relevantes e necessários para a harmonia social.


É válido lembrar que mesmo o Direito tendo como objetivo estabelecer normas, nem toda ciência cultural tem esse objetivo. Podemos olhar uma ciência social que não precisa estabelecer normas para traçar um paralelo. Uma ciência social que analisa se os juízos de valor estão em conformidade com os fatos, sem existir a necessidade de disciplinar a conduta humana por normas ou regras, é a sociologia. Não pelo sociólogo crer que a sociedade não precisa de normas, mas sim por ele ter como objetivo primário descrever o comportamento social e não prever regras. Já o Direito trabalha de outra forma, visto que entra no "dever ser", isto é, na obrigatoriedade normativa de certas condutas.


É importante aqui definir o que é uma norma jurídica: é um veículo para a realização de determinado valor, valor este que deve ser uma tentativa de realizar a justiça, visto que a justiça é o valor que unitariamente comportamento todos valores jurídicos.


— Justiça X Direito:


Esses dois termos são questão de debate para várias escolas doutrinárias. Vou citar três exemplos de possíveis resoluções:

A- Justiça e Direito são identificáveis;

B- A Justiça é mais ampla que o Direito;

C- O Direito é mais amplo que a Justiça.


O significado da Justiça possui uma dimensão histórica que altera o seu significado. Além disso, as diferenças de pensamento também levam a diferentes noções de Justiça.


1- Na Antiguidade Grega, temos os livros Ilíada e Odisséia de Homero. Onde há uma interpretação religiosa e mitológica de Justiça. Aqui Thémis é Lei e Diké é a satisfação da Justiça;

2- Já Platão, de cunho racional e filosófico, apresenta a separação entre o Mundo das Ideias e o Mundo Real. Para Platão, as formas perfeitas e imutáveis (arquétipos) ficam no Mundo das Ideias. Já o Mundo Real, por sua vez, apresenta as coisas materiais que são cópias imperfeitas e transitórias das ideias perfeitas e imutáveis. Platão compreende a virtude humana como reflexo da Justiça e a Justiça é identificada como um arquétipo que reúne todas as outras virtudes. Estabelece também a ligação entre o indivíduo e o Estado, por acreditar que é na sociedade que o ser humano alcança a sua plenitude.

3- Aristóteles também acredita que a Justiça é a virtude completa, tal como Platão, adiciona a questão da alteridade, visto que Justiça sempre parte de um horizonte inter-subjetivo, pelo fato de que somos justos ou injustos em relação a outra pessoa.


A Justiça pode ser resumida como o valor fundante do Direito ao longo de uma experiência histórica. De qualquer forma, não há Justiça sem Direito e nem Direito sem Justiça.

Philosophia Iuris #3: Origem do Direito Natural

 


O Direito Natural, a escola doutrinária jusnaturalista, tem uma origem bastante antiga: Platão e Aristóteles. Em um momento da história, o jusnaturalismo passa por um processo de teologização por causa do advento do cristianismo e surge um jusnaturalismo teológico. O jusnaturalismo teológico, por sua vez, também é dividido: o do Santo Agostinho, com uma interpretação platônico; e o de São Tomás de Aquino, com uma interpretação aristotélica. O jusnaturalismo moderno, o do nosso tempo, tem como teóricos John Finnis e Lon L. Muller.


— Características do Jusnaturalismo: 

- Como escrito na anotação pública anterior, o jusnaturalismo trabalha com uma relação entre a moral e o Direito;

- A sua origem remonta a Antiguidade, particularmente o período Greco-romano;

- Podemos localizar mais especificamente a sua construção histórica na Grécia clássica — ou, de maneira mais precisa, na Atenas clássica;

- Alguns dos principais eventos que impactaram a criação do jusnaturalismo são: a morte de Sócrates, a fundação da academia, Platão e Aristóteles;

- O jusnaturalismo começa com Platão e se desenvolve ainda mais com Aristóteles.


É importante ressaltar que, embora possamos colocar Platão como uma figura importante, a chave fundadora da Tradição do Direito Natural é Aristóteles.


— A Teoria do Direito de Platão


Antes de falar a respeito da teoria platônica do Direito, aviso os leitores que a escrita de Platão não é estruturada na mesma forma que os modernos acadêmicos escrevem. Os seus livros se constroem em forma de diálogos. Além disso, Platão escreve mais das interações do seu mestre (Sócrates) com outras pessoas do que as suas próprias ações e falas. O formato é uma estrura mais ou menos assim: "questão-resposta e resposta-questão".


As ideias a respeito do Direito e a respeito das leis em Platão tem a característica de se assemelharem a uma obrigação moral. Sua obra mais importante para jusfilósofos é "A República", lá vemos o conceito da lei de forma platônica. É importante mencionar que a morte do seu mestre, Sócrates, foi profundamente marcante para a sua forma de ver o mundo, a lei e o sistema.


— A República:


- Detalha o funcionamento do Estado;

- Apresenta os melhores métodos para o organizar o Estado;

- Chega a conclusão de que o melhor jeito de organizar o Estado é a implementação de uma espécie de "ditadura benevolente";

- Um dos pensamentos mais estudados e mencionados é a ideia de que as pessoas deveriam ser ensinadas desde o nascimento na arte do estadismo e na filosofia para se tornarem "reis filósofos";

- O Rei Filósofo não é restringido em poder por meios legais ou outras formalidades.


Se traçarmos um paralelo histórico, podemos ver que, no mundo de hoje, o Estado não só implementa normas de conduta para regular o comportamento humano de certos indivíduos, mas todos estão regulados pela lei. Em outras palavras, até os líderes da nação são regulados pela lei.


No entanto, preciso avisar-vos que Platão via a lei e o Direito de uma maneira muito distinta da nossa. Ele tinha uma espécia de interpretação anti-legalista da jurisprudência. Para Platão, as posições da lei não necessariamente constituíam um método coercitivo, mas iam mais para um mecanismo pedagógico, uma espécie de educação para os indivíduos. Uma educação que abarcava setores como funcionalidades políticas, filosofia e ética. Platão acreditava que as leis deveriam ser utilizadas para ensinar as massas sobre a natureza e o valor da sabedoria, o que poderia engrandecer as massas e torná-las bondosas.


O posicionamento de Platão, essa postura anti-legalista, tem muito a ver com a condenação injusta e imoral do seu mestre. Sócrates, convém lembrar, foi acusado de corromper a juventude. Tendo como únicas escolhas possíveis: o exílio ou tomar a cicuta (um veneno mortal), Sócrates optou pela segunda opção. Nessa experiência, Platão testemunhou em primeira mão o que ocorre quando a lei é injusta e imoral.


— "Apologia de Sócrates" e "Críton":


Nesses dois diálogos podemos ver temas como justiça, lei e moralidade. Ao mesmo tempo, podemos ver a Sócrates justificando a obediência as regras e a obrigação moral de seguir a lei positiva.


1. Sócrates faz uma a analogia de uma criança e um familiar, argumentando que as pessoas são como uma criança, elas deveriam ter gratidão pela lei e uma gratidão por manter o sistema do Estado;

2. Estar em um Estado em que existem leis que você discorda é implicitamente aceitar obedecer essas estruturas;

3. Tendo-se esses dois como base, a pessoa pode tentar persuadir uma reforma das leis, mover-se para outro lugar ou obedecer as leis.


Isso explica interessantemente a razão de Sócrates ter aceitado a morte.

sábado, 16 de agosto de 2025

Acabo de ler "Teoria Geral do Estado e Ciência Política" de Cláudio e Alvaro (Parte 23)

 


Nome:

Teoria Geral do Estado e Ciência Política


Autores:

Cláudio de Cicco;

Alvaro de Azevedo Gonzaga.


Vou me centrar em anunciar os pontos essenciais.


Estado na Antiguidade Oriental:

1. Caráter sacro e divino do poder;

2. Identificação total entre poder político e religioso, entre patriotismo e religião;

3. Concentração dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário nas mãos do rei;

4. Absolutismo ou despotismo absoluto.


Instituições políticas gregas:

1. Surgimento de governos republicanos;

2. Separação da moral e da religião do Direito;

3. Governante não é mais considerado divino, nem indicado pelos deuses, é eleito pelo povo, os cidadãos comuns.


Grécia: cidades-Estados.


— Esparta:

- Diarquia: dois reis com funções militares e religiosas;

A) Eforato: cinco membros de eleitos anualmente, dirigiam o Estado;

B) Gerúsia: vinte oito homens maiores de sessenta anos, controlavam as atividades dos monarcas e atuavam no campo legislativo;

C) Apela: composta todos os cidadãos espartanos maiores de trinta anos, com funções eletivas e legislativas.


— Atenas:

- Aristocracia dos nove arcontes;

- Reforma de Clistenes traz à democracia;

- Democracia excluía estrangeiros, mulheres e grande massa dos escravos;

- Péricles e presidencialismo: o Senado atuou vetando Leis emanadas pela Apela — assembleia popular — pois as via como inconvenientes para "o bem da Polis" (era uma ditadura disfarçada).


— Teoria Política de Platão:

- O Estado deve ser, em ponto maior, o que o homem é, em ponto menor;

- Como o homem é governado pela razão, deveria o Estado ser governado por sábios filósofos;

- Tal como o corpo com suas paixões e instintos segue o que é determinado pela inteligência, assim os trabalhadores devem obedecer os sábios governantes que possuem os conhecimentos verdadeiros;

- Guerreiros e guardiões: responsáveis por defender a Pólis contra a subversão dos trabalhadores (para eles cumprirem os mandamentos dos sábios) e repelir ameaças externas;

- Todos deveriam agir conforme os papéis sociais fixos para que haja justiça;

- A mulher pode exercer qualquer função na cidade (igualdade de gênero).


— Teoria Política de Aristóteles:

- "O bem próprio visado pela comunidade soberana é o bem soberano";

- Três formas de governo em forma funcional ou corrupta: monarquia/tirania, aristocracia/oligarquia e democracia/demagogia;

- Melhor forma de governo como a monarquia;

- Homem como animal social.


— Pensamento Político Romano: 


— Cícero:

- Ecletismo: une monarquia, aristocracia e democracia;

- Unidade da Monarquia;

- Excelência da Aristocracia;

- Consenso da Democracia.


— Santo Agostinho:

- Cidade de Deus como obra de Filosofia da História;

- Dois tipos de homem: os que amam a si mesmos a ponto de desprezar a Deus e aqueles que amam a Deus a ponto de desprezarem a si mesmos;

- As duas cidades (A de Deus e a dos Homens) estão unidas como joio e trigo;

- O Estado deve se subordinar aos valores cristãos.

Acabo de ler "Teoria Geral do Estado e Ciência Política" de Cláudio e Alvaro (Parte 22)

 


Nome:
Teoria Geral do Estado e Ciência Política


Autores:
Cláudio de Cicco;
Alvaro de Azevedo Gonzaga.


Nessa capítulo, temos os atores tiveram o foco principal em definir a política e a ciência política. Os autores comentam que o termo ciência política surge com Maquiavel, mas está presente desde a antiguidade clássica com Sócrates, Platão e Aristóteles.


— Distinção entre Filosofia Política e Ciência Política:
- Ciência Política: sua análise parte do real, de maneira ordenada, visa propor técnicas ao governo;
- Filosofia Política: visa determinar o Estado perfeita, algo idealizado.

A ciência política é mais rigorosa, buscando resultados científicos. A filosofia política é mais especulativa e descompromissada. Enquanto a primeira se afasta do abstratismo, a segunda adentra nele e se move.


Há também uma série de termos correlacionados à ciência política e a definição de ideologia. Além da correlação de utopia com ideologia e produção social da ideologia.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Ephemeris Iurisprudentiae #9: divergências sobre o conceito de justiça

 


Nessa aula, o professor fala sobre o conceito de justiça de acordo com três pensadores: Platão, Aristóteles e John Rawls.


Definição de Justiça em Platão:

- Justiça como virtude suprema;

- É aquela virtude que se sobressai sobre todas as outras;

- O homem justo é aquele que reuné todas as outras qualidades ou virtudes;

- O homem que não reúne todas as outras qualidades ou virtudes não é um homem justo;

- Mundo das Ideias X Mundo Real: o Mundo Teal é um mundo imperfeito pois reproduz imperfeiramente o Mundo das Ideias (dotado de perfeição);

- É em Platão que vemos a ideia de limitar o indivíduo de acordo com o que está na lei, isto é, limitá-lo não só com aquilo que está em sua consciência a respeito da virtude.


Definição de Justiça em Aristóteles:

- Justiça como igualdade;

- Virtude como a Justiça mais excelente de todas;

- Virtú pode ser traduzida como virtude ou excelência;

- Vícios podem ser tanto pela falta como pelo excesso;

- A virtude surge como um meio termo entre a falta e o excesso;

- O homem justo é aquele que sabe o equilíbrio.


A justiça em Aristóteles pode ser colocada na esfera distributiva e corretiva.

— Justiça Distributiva:

- Igualdade geométrica;

- Entre o ponto A e o ponto B há um meio termo;

- Existe a honraria e o merecimento: quem contribui mais, ganha mais;

- Qual é a finalidade da coisa? Ser aquilo que melhor lhe cabe;

- Tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual;

- Artigo V: princípio da isonomia.


— Justiça Corretiva:

- Igualdade aritmética;

- Corrigir determinado ato considerando aquilo que foi realmente alterado;

- Infração de tamanho Y sendo correspondida com sanção de tamanho Y;

- Mensurar o dano causado e respondê-lo com uma sanção equivalente ao dano causado.


Teoria da Justiça de John Rawls:

— Posição Original:

- Um estado hipotético no qual todos sabem as condições que gostariam de viver.

— Véu da ignorância:

- Instrumento necessário para que o indivíduo não faça considerações de forma arbitrária.

— Pergunta central:

- Qual o seu conceito de justiça dentro da sociedade?

— Considerações:

1) Princípio de Liberdade: devem ser assegurados a todos as liberdades básicas;

2) Princípio de Igualdade: aceitam-se as desigualdades desde que:

A) Todos devem ter igualdade de oportunidades;

B) Procurar o máximo de benefício para os membros menos favorecidos ou desafortunados.


Os membros menos afortunados da sociedade devem receber condições e oportunidades para concorrer com quem possui as melhores condições.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Acabo de concluir o curso de "Ética Geral e Profissional"

 



O curso é passado na forma de progressão histórica para o entendimento da ética através do percurso espaço-temporal. Começando na Grécia Antiga até chegar na contemporaneidade.


Somos, então, conduzidos por Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Kant, dentre outros. O que dá e denota, evidentemente, uma fundamentação filosófica ampla e, ao mesmo tempo, bem delineada ao curso.


Além da distinção entre a atemporalidade e universalidade da ética, vemos o aspecto contingencial, temporal e particular da moral que está circunscrita ao âmbito do espaço-tempo e, portanto, ligado a uma contextualidade deliminante que, sem sua compreensão, a própria definição de moral se perde.


Nota-se, no final do curso, a particularidade do regimento atutidinal que se liga aos variados grupos que, em complexidade e diversidade heterogênea, apresentam uma feição moral distinta e dirigida aos seus respectivos e diferentes fins.


Somos apresentados, igualmente, ao conceito de deontologia (ciência do dever) e como a ética é por demasiado importante na regulamentação das ações humanas.


Curso interessantíssimo, duma complexidade determinante e, ao mesmo tempo, de uma capacidade sintética que liga o estudante a uma teia relacional de aspecto sintético para a inteligibilidade geral da mensagem unitária do curso e o sentido pessoal que temos na particularidade mesma de nossas vidas.

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Intimação a Si #2 - E quando adaptar-se torna-se negar-se, o que sobrou do resto que havia em mim?




1. Imerso em tensionalidade, busco um pouco de fuga no sossego. A música sacra se encontra ao lado de minha libidinosidade deturpada. Amá-lo é ofender a quem amo, não amá-lo é negar a profundidade do que sinto. 

2. O que sobra de minha leitura? Talvez a realidade a qual me choco. Amo-o como amo a catedral. Só que pode o inferno posicionar-se tal como se fosse o céu? Por um lado, a construção de uma vivência super-egóica, por outro a romântica-sexual que, tal como um Deus-Vivo, a tudo evade. Nada pode deter o amor que sinto, só a ansiedade neurótica do condicionado que condiciona sempre ao enquadro.

3.  Se ele é bom ator, ator o suficiente para separar o teatro da vida, como eu que pouco sei de teatro posso alcançá-lo nessa originalidade que ao palco se sobressai pelo coração pulsante que a vida deseja e a sociedade escapa? Quero-o. Desejo-o tanto quanto sinto que a minha carne é de carne. Só que o que temo é esse corpo imaterial a qual chamamos de sociedade. 

4. Sinto que meu coração que hoje se homorromantiza fosse tão de fogo quanto o coração queimante de Agostinho de Hipona era de fogo. E quando ele está a queimar meu coração até meu corpo se queima e sente a minha alma. Tão empírico quanto Aristóteles meu corpo pulsiona, tão idealístico quanto Platão minha alma transcende e aos céus se direciona. A metafísica celeste e a homossexualidade dançam numa dialética que ao meu coração agrada!

5. E quando adaptar-se torna-se negar-se, o que sobrou do resto que havia em mim? Com o bater do martelo, vem-me só o desejo de para sempre amá-lo.

domingo, 24 de outubro de 2021

A Ilusão Conservadora - ou: da Inversão Ritualística como Obra de Confusão Mental

 

"Se é verdade que o socialismo ataca a família na teoria, é muito mais verdade que o capitalismo ataca na prática"

Chesterton


    Existe um fenômeno a qual eu denomino de "inversão ritualística". Aquilo que chamamos de ritual é a manifestação no espaço-tempo de uma ideia. O ritual não é a ideia em si, o ritual é tão apenas a manifestação da ideia num determinado espaço-tempo. Só que há gente que confunda ritual com ideia. O fenômeno da inversão ritualística ocorre quando um ritual adquire a forma de ideia na cabeça daquele que é confundido. Um bom exemplo: o calvinismo não é o cristianismo em si e sim uma forma de se manifestar o cristianismo, tal como o cristianismo não é a religião por si mesma e sim uma forma de se viver a religiosidade. Indo um pouco mais longe, a União Soviética não é o socialismo e sim uma forma que se manifestou o socialismo. Só que a pessoa que confunde o ritual com a ideia não é capaz de saber que a ideia não se manifesta puramente na realidade e, quando se manifesta, manifesta-se de uma forma imperfeita. 


    Qualquer coisa, pessoa ou ideia pode se tornar vítima da inversão ritualística. E a confusão mental que enfrentamos é tão grande que se pensa que o ritual está acima da ideia que ele tenta reproduzir. Vê-se nisso quando se fala a palavra "teologia" que quer dizer: "discurso sobre o divino". Só que a palavra "teologia" é tão má empregada e tão má entendida que, para muitos, ela quer dizer: "discurso sobre o cristianismo". Na verdade, até mesmo a mitologia grega é teologia. Para ser sincero, até mesmo aqueles que chamamos de "umbandistas" praticam a sua teologia - mesmo que, muitas vezes, sem o aval dessas pessoas ilustres a qual chamamos de cristãos. Até mesmo a "bruxaria", vista como algo horrível para pessoas tão ilustres quanto cristãs, é uma forma de teologia. Só que a inversão ritualística leva a crer que teologia é cristianismo tal como leva a crer que socialismo é marxismo ou que socialismo é stalinismo.


    O legal da história é que ela prova quase sempre o contrário do que se espera. Pegue todas as maiores figuras da Idade Média e verificar-se-á um punhado de desajustados hereges que só depois de muito tempo foram tidos como bons, já que a maior parte do tempo em que viveram ou até depois do tempo de sua morte, foram tidos como maus. Se o que define alguém como parte de seu tempo é estar contra o seu tempo, tal regra se aplica até mesmo aquela idade espaço-temporal tida como conservadora chamada Idade Média. E falo isso sem a menor vergonha. Qualquer grande figura, da Idade Média, foi uma figura desajustada: seja Dante, Tomás de Aquino, Boaventura, Francisco de Assis, Domingos. Podemos pegar até mesmo o ilustre Agostinho de Hipona, o nosso santo que disse: "Deus, dai-me continência e castidade, mas não agora". Agostinho de Hipona foi tido como um gigantesco devasso hipócrita a qual todo mundo atribuía luxúria sem fim - e, quiçá, sem retorno. Só que hoje, todas essas figuras de desordem, são tidas como figuras de ordem por defensores da ordem. O que é engraçado, já que nenhuma dessas figuras representou ordem alguma. Sabem o que isso demonstra? Demonstra que nada compreendemos sobre história.


    O maior problema de tudo: tudo foi invertido para que desajustados ululantes parecessem ajustados ululantes para aqueles que não o conheciam de fato. Assim a ordem engoliu a desordem como Saturno engolia seus filhos. Assim a ordem gerou ordem matando a desordem. Assim a desordem desonrada e deslegitimada foi feita ordem por um revisionismo reacionário. O sistema é tão alienantemente denso e hipócrita que não se negará a mentir a cada capítulo da história, colocando figuras desajustadas como ajustadas até que todos se ajustem ao sistema como que por efeito cascata.


    Dante foi um poeta popular, que escreveu sua maior obra não em latim, mas numa língua vulgar para que não só a elite o lesse, mas sim para que todos pudessem ler. Dante defendeu a separação entre o Estado e a Igreja, já que a autoridade chamada de temporal precede à Igreja e não é causa necessária da Igreja - Dante era, meus senhores, um teólogo diferente: ele era o teólogo do laicismo. Tomás de Aquino foi um cara duma ordem considerada herege (Dominicanos) por muitos e ainda defendeu Aristóteles, sua tarefa era, estranhamente, conciliar razão e fé - coisa absurdamente progressista que almejava diminuir a penúria de uma vida puramente condicionada aos ditames do canôn bíblico. A fé de Tomás de Aquino era tão grande que em sua Bíblia não cabia só Paulo de Tarso e Isaías, mas também Aristóteles. Já que para ele, haviam-se modos de se descobrir a obra de Deus: e a sagrada escritura não era a única, visto que Deus, meus amores, é extrabíblico. Francisco de Assis era um daqueles vagabundos que andavam feito mendigos pregando o Evangelho. Já que os monges viviam encastelados em seus mosteiros longe do povo pecaminoso, Francisco, em sua estranha humildade, preferia viver entre os mendigos do que viver feito um elitista em um mosteiro. Domingos literalmente defendeu uma ordem em que todo mundo pudesse pregar, coisa que era compromisso só de bispos e até mesmo aos padres isso era dificultado. O compromisso de Domingos era com a democratização do discurso cristão, numa clara revolta hierárquica. Boaventura foi um místico duma ordem de vagabundos (franciscanos) que teve que sofrer as pressões que queriam a dissolução de sua ordem por causa de arautos do conservadorismo católico. Boaventura era um descendente espiritual de Francisco de Assis e toda a sua teologia mística é baseada nesse modus vivendi herético o qual se chama franciscanismo. Agostinho de Hipona teve uma das maiores obras no campo da teologia, da psicologia e da moral. Nessa obra, ele não analisa uma série de erros cometidos por outra pessoa e sim uma série de erros cometidos por ele mesmo.


    Todas essas figuras são utilizadas de modo errôneo. Tomás de Aquino, defensor da liberdade de estudo, da liberdade de investigação é utilizado por pessoas que são contra essa mesma liberdade. Dante Alighieri é utilizado por elitistas, só que Dante era o contrário de um elitista. Domingos, defensor da pregação como meio efetivo de conversão, é hoje utilizado por aqueles que querem, pura e simplesmente, a imposição da fé por vias não dialogais. Agostinho de Hipona, homem sincero para aquilo que ele próprio acreditava como sendo parte de seus erros, é utilizado por pessoas que se veem imunes de qualquer erro e no direito pleno de culpar o mundo inteiro. Francisco de Assis, homem que decidiu viver em meio ao povo pobre e converter as pessoas através de atos e não de palavras, é hoje utilizado por pessoas que odeiam a população em geral e que amam mais suas riquezas do que qualquer outra coisa. O resultado da obra mística de Boaventura não está naquilo que ele mais disse, mas no silêncio: ele entendia que Deus só se manifestava para aqueles que se calavam, pois aquele que se cala, se abre. Só que os seguidores de Boaventura nunca calam a própria boca, já que só suportam a própria voz e não a voz do outro, seja o outro o próximo, seja o outro a Deus. Se todas essas pessoas ilustres pudessem conjecturar como seus nomes seriam usados por nós, perdem-se-iam de vergonha.


    Sobre todas essas pessoas ilustres, só posso dizer uma coisa sobre nós pensando neles: nós não somos dignos deles, nós os arrastamos para as nossas conclusões errôneas e manchamos os seus legados em nossos fetiches mentais. O que temos deles, não são eles, mas aquilo que foi dito sobre eles e mais precisamente naquilo que se tornou "conventual" sobre eles. Nessa série de mentiras assimiladas, reduzimos suas pessoas ao pó e suas ambições mais puras viram alvo de nossa zombaria preconceituosa. O que vemos é uma série de pensamentos ritualizados que não conseguem trazer as coisas ou as pessoas em si, mas só a deformidade daquilo que se tem das coisas e das pessoas. Na sociedade perfeita de Thomas More, descrita no livro "Utopia", o catolicismo não é a religião oficial, mas quase toda santa vez que se fala dele, lembramo-nos mais de sua religiosidade católica do que qualquer outra coisa. Assim é com quase todas as coisas, tem-se mais o ritual do que aquilo que há em si.


    A inversão ritualística nos faz pensar em Tomás de Aquino como um exemplo de padronicidade, só que Tomás de Aquino era um destruidor de rituais, sobretudo o ritual platonista que virou o cristianismo. Tomás de Aquino foi perseguido por defender as heresias de Aristóteles e hoje queremos usar Tomás de Aquino para expurgar a academia das heresias modernas sendo que Tomás de Aquino era modernamente um herege. Colocamos tanta santidade em Francisco de Assis que o afastamos do "povo pecador" com que ele viveu. Queremos adornar com tantas palavras a mística de Boaventura que esquecemos que a mística se encontra mais na abertura total da percepção do que no julgamento desenfreado. Falamos de alta cultura e colocamos Dante Alighieri como o portador máximo da alta cultura, só que Dante defendia a cultura popular e por causa dela, virou mártir. Utilizamos Agostinho para condenar a sociedade, mas o que mais Agostinho condenou era a si mesmo. Falamos de Domingos para calar a sociedade, mas o método dominicano era dialógico. Tem-se sempre o ritual, mas nunca se tem a ideia.


    Heterossexuais viveram o amor, então criaram preceitos sobre como ordenar o amor. Sem perceber, transformaram o amor em heterossexualidade. O preceito heterossexual de amor é o preconceito contra qualquer outro tipo de amor. Já, em gênero, conventuou-se que cada peça cabia a determinado gênero e, desde então, tudo virou uma normativa em que o gênero em si mesmo se perdeu. Em jogos, diz-se que o melhor videogame é o que possui mais gráficos, mas o videogame que venceu a sétima geração não foi o PlayStation 3 com a sua arquitetura arrogantemente sofisticada e sim o Nintendo Wii que era o console mais fraco. Na música, disseram que a única música que importava era a clássica e que todo restante era uma falsidade ou uma espécie de música antimúsica. Todo preceito vira preconceito, já que a realidade não é normativa, mas descritiva. Aquele que dá preceitos a todas as coisas, cria preconceito sobre todas as coisas. A norma pode ser tudo, mas se tem uma coisa que define toda norma não é a sua naturalidade, mas sim a sua inaturalidade. O problema da normatividade é nunca ser normal, o problema da normatividade é ser antinatural.


    Se buscarmos nacionalmente, no Brasil, fala-se de Nelson Rodrigues. E o "maior reacionário" não era um santinho e sim um cara que mostrava sistematicamente os erros dos paladinos da moral. Só que o que mais se vê são paladinos da moral defendendo Nelson como se o Nelson fosse um deles. Na verdade, Nelson Rodrigues era contra eles. Nelson Rodrigues dizia: "atrás de todo paladino da moral, vive um canalha". Até quando vamos errar tanto? Até quando nosso juízo será o ritual e não o ideal? Até quando teremos aquilo que nos disseram, mas não aquilo que era aquilo ou a pessoa que era a pessoa? Acho que se eu pudesse definir tudo isso que escrevi numa única frase, sintetizando toda essa série de convenientes contradições que pega cada desordenado e transforma num ordenado, essa única frase seria: 

- A ilusão conservadora é crer que houve conservadorismo.