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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Acabo de ler "Álbum de Família" de Nelson Rodrigues

 



"O céu, não depois da morte; o céu, antes do nascimento - foi teu útero"

Edmundo (Personagem de Álbum de Família)


Neste livro, Nelson demonstra um profundo conhecimento sobre psicanálise. A peça trata sobre o Complexo de Édipo e Complexo de Electra. Embora hoje tais complexos não sejam mais vistos como anteriormente eram pensados pela comunidade psicanalítica, é bom entender que existe o contexto da época que pesa muito. Mesmo assim, a peça traz importantes reflexões sobre a natureza da moralidade, as relações familiares, a natureza da pulsão humana e a realidade do afeto.


A temática do primeiro trauma humano é bem abordada: o céu como útero materno é, para todos nós, uma incógnita. Quando somos fetos, nossos desejos são prontamente atendidos pelo aparelho biológico de nossas mães. Desejo e realização, por assim dizer, são o mesmo e dão-se harmonicamente. O reino da necessidade e a realização dessa necessidade estão de par a par. O feto vive, sem saber, o paraíso. É por isso que o processo de nascimento é tão traumático: ele priva o bebê da realização automatizada de suas necessidades e ele terá que passar por processos de privação.


Há nessa peça um trabalho muito cuidadoso com uma temática que, até hoje, faz roer os ouvidos dos mais bem pensantes e, também, dos mais atávicos reacionários: o incesto. Não que Nelson apoie o incesto, Nelson é um moralista: ele expõe os pecados humanos para que exista um processo de ascese. Essa ascese é provocada pela própria exposição do desejo humano em sua brutal realidade devastadora. A peça de Nelson, seu trabalho dramatúrgico, expõe os vícios para purificar. Não por acaso Nelson Rodrigues é chamado de "Anjo Pornográfico".


Como sempre, temos uma peça bastante complexa e com uma série de reflexões que não poderiam - e nem devem - ser lidas de forma descuidada. Nelson é, como nosso maior dramaturgo, um homem duma complexidade ensurdecedora. 

sábado, 30 de abril de 2022

A Cobra

Palavras não morrem, não dá pra esquecer. Os batimentos de meu peito não cessam. E imerso em meu próprio sangue, eu nem consigo mais dormir, tenho imenso medo de me afogar. Salvar-me-á da solidão ou me verá caído na noite sem fim até que tenha percebido que tinha tido a chance de me salvar?


Pegue-me, se puder. Leve-me, se querer. Ame-me, somente se quiser. Meu espírito desvaira-se nos altos céus e colide-se com a crueza do real. Ando sempre em corda bamba num céu etéreo de imprudência bestialogicamente selvagem, é sempre difícil me acompanhar - a única certeza é que no meu anuviado e transtornado mundo: cair é quase sempre morrer, quiçá para renascer outra vez ou para enlouquecer duma única vez, a única garantia é a ausência de código de direito do consumidor.

Minha carne sempre se dobra, sempre tendo gosto agridoce com seu sangue meio amargo e meio adocicado. E estou sempre a sangrar, conquanto que até agora sem minha força vital obscurecer. Namore-me sem nunca saber se você tirará fel ou se tirará mel. É pedir demais, embora o demais é o que sempre peço. Sou um constante inconstante ameno outonal a sonhar quando o metrô de São Paulo levar-me-á ao paraíso da Jerusalém Celestial.

Eu sou de discutir o sexo dos anjos num rigor ultra escolástico, como se a inutilidade me confortasse e livra-se da ideação autocida. Minha visão longeva é tal como um ode ao disforme em que o previsível nunca se encaixa, tal como eu nunca estou a me enquadrar em absolutamente nada. Sou melancólico de formação meditabunda, trazendo uma nauseabunda penumbra entre o campo do dito e do não dito. Eu maquino fantasias tal como a esfinge maquina enigmas. Minha prudência é a soberba do orgulho do fracasso e de fracasso em fracasso crio minha distópica catedral que cresce como capim em direção a loucura dionisíaca e não a visão beatífica do Deus de Abraão, Isaac e Jacó.

Até quando eu serei essa cobra alquímica que come o próprio rabo sem ter coragem de esgotar a própria capacidade física? O transcendente escatológico é contra a minha naturalidade e o peso de minha vida é um fardo para minha alma ofídea. De pele em pele, prostituo-me por uma morada provisória num submundo subnutrido, esperando aquele juízo final que na mortalha me ponha como se coloca um corpo negro, tal como o meu, em mais uma banal estatística.

Não quero ser trágico. Só que vivo a vida toda como um traficante de boas tragédias. Embora que o que eu mais quero é que tudo acabe como a Divina Comédia - aquela estranha poesia que anda do inferno ao céu. É sonhar demais, e sempre sonho em demasia, peremptório erro meu. Perdoa-me, amor, cala-me com teu beijo e esqueça dessa minha loucura tardia.