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terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Esse pobre burocrata...




Enquanto olho pra minha roupa social e meus olhos semicerrados - que, por rotina, estão sempre cansados e quase dormentes -, penso nos dias de outrora em que a primaveril aurora ainda em meu peito estava. Quando cada batucar de meu coração era doce e tinha o som tenro e terno duma vida adocicada, eu era uma criança feliz. Agora não mais, agora tudo leva prazo, tudo se cumpre com através de metas de produtividade. Talvez houvesse, em tempos passados, uma simplicidade que coadunasse com a felicidade. Hoje em dia tudo é tão formal que me enoja.


Em alguma forma de delírio, não consigo tirar a imagem de um homem redundantemente burocrático. A imagem de estar preso num paletó e formando par com o governo mundano é o que de há de mais nítido e desprazeroso em minha cabeça. A ausência de transcendência que dê uma coloração, textos que se formam em formas deformadas sem vida, quase nada com um ar de inspirado. É como se não mais houvesse ligação espiritual e afetiva alguma em meus projetos. Embora eles estejam brotando com mais frequência do que nunca. Saindo por aí, como uma série de monstros desalmados, trazendo a feiúra que lhes marca e a desgraça que se encontra em minha alma.


Teve um dia que eu acreditei, antes de virar um pobre burocrata, que eu poderia algum dia ser grande. Vão otimismo adolescente, otimismo criado entre livros e jogos, único contato afetivo real que eu tinha, já que não cheguei a ter um único verdadeiro amigo nessa fase. Pelo contrário, minha vida era ditada por uma solidão quase cruel, uma solidão impenetrável graças o mais retumbante fracasso social. Em meu período de estudante de jornalismo, tive alguns amigos rasos, mais para colegas do que amigos. Na faculdade de filosofia, enquanto suportava uma tensão antiafrodisíaca e esmagadoramente depressiva, tive amigos mais palpáveis do que tive em todo restante de minha vida. O que me sobrou depois de tudo isso? A solidão logo voltou a me acompanhar, como que num casamento intermitente em que há uma separação só para descobrir que, por triste acaso, a pessoa que mais nos cabe é aquela que mais desprezamos - e espero que a solidão não me despreze de volta, já que só tenho a ela. Também tenho um bom bocado de arrependimento. Todos se foram, alguns até mesmo passando por graves transtornos, outros chegando ao suicídio, outros indo para tão longe quanto deploravelmente longe. Até nos momentos de brilho, o brilho foi sempre lunar. O Sol nunca abrilhantou minha vida em nada. Toda glória que tive, ao menos até estes momentos reflexivos e meditabundos, foi a de um fracasso. 


Após uma longa vida, que não é tão longa assim, frequentando os mais diversos meios. Indo da extrema-direita para a extrema-esquerda e depois da extrema-esquerda para a extrema-direita. Passando pelos confins do anarquismo, da social-democracia, do socialismo democrático, do nacionalismo conservador, da quarta teoria política, por uma espécie de getulismo sem Getúlio, creio-me hoje inteiramente órfão de ideologias. E, não, não me venha com essa baboseira de "ideologia é visão de mundo". Existem várias formas de se analisar o que são ideologias. Os conservadores veem como uma espécie de religião política, de caráter imanentista e que busca trazer o paraíso pra Terra (imanentização escatológica). E os comunistas veriam mais como uma espécie de discurso gerado pelas classes dominantes para alienação das classes subalternas - o que não deixa de ter a parcela da verdade que lhe cabe. Particularmente acredito nas duas hipóteses e não dou a mínima para nenhuma delas. Sou fraco demais para crenças que mexem com uma mudança radical de modus vivendi. 


Quando criança, via que no mundo havia uma união simbólica que tornava tudo fácil. Lembrando que simbólico é, na verdade, tudo aquilo que une. Hoje não saberia apontar o quanto esse simbolismo era realidade concreta ou mero simplismo mental duma criança inexperiente e incapaz de adentrar nas sutilezas da vida enquanto tal. A vida até a quarta-série é um carnaval gratuito e open bar (que, para efeito poético, também será gratuito). Ao menos foi assim até aquele estágio no inferno chamado de quinta série. É lá que todos os problemas humanos prefaciam. (Sim, preciso fingir que meu discurso pequeno burguês, típico de uma pessoa que pertenceu a uma espécie de classe média baixa, e pseudouniversalista tenha proporção de universalidade ao menos para gerar uma boa impressão no leitor  - a não ser que esse seja um cavaleiro branco da justiça social e que ficou com olhos esbugalhados ao pensar na absurdidade que é considerar tamanhas vanidades infantis-infames como conflitos existenciais de proporcionalidade cósmica). Aqui tudo se encaixa, mesmo que debilmente, como efeito cascata (mesmo que dentro duma lógica falha e ginasiana - mentalidade essa que eu, homem-criança, nunca consegui fugir ou superar de fato -):

1. O halls é a porta de entrada para o cigarro ou para maconha (quiçá os dois);

2. As discussões sobre heróis da Marvel e da DC te tornarão apto para as discussões de esquerda e direita (discussões bem idiotas e pouco sintéticas, tão idiotas quanto discussões sobre heróis, como quase tudo nesse país de bárbaros);

3. O Nescau, com sua imagem radical e jovem, preparou-lhe para integrar o quadro da Juventude do Partido Comunista do Brasil (ou do Partido Comunista Brasileiro, caso você queira pagar de underground do underground e viver dentro duma panelinha que está dentro de outra panelinha);

4. A pornografia fez morada em sua casa como uma penetra persistente graças aos conselhos de seus "amiguinhos" - que, no geral, você sequer lembra o nome - pré-adolescentes (conselhos de merda, porém ainda conselhos);

5. Todo o restante da sua vida social rodará no discurso básico de ser "radical", "cool", "maneiro", " popular", pouco importando o quão pedante, acadêmico ou intelectual seja o seu discurso - e disso surge a postura revolucionária vista no ambiente acadêmico (e a onda reacionária, imersa também na radicalidade discursiva, é subproduto igual - porém de substância diferente - e deuteragonista).

 

Fui um adolescente deslocado que fracassou em ser descolado. Um drama tão genérico que, bem ou mal, poderia servir de plano de fundo para um típico besteirol americano - como quase tudo nessa vida de pessoa medíocre. Por algum momento tentei colocar adornos para fingir que eu não era tão mesquinho e vazio quanto parecia, uma forma de blindagem que ao menos mentalmente significava que eu estava fora do resto do gado, que eu era exclusivo, singular, importante e desmerecidamente irreconhecido, quase que inteiramente ininteligível. Nessa jornada de "autodescoberta" - melhor termo seria "autoilusão" -, busquei na internet as raízes conteudísticas em que a minha personalidade se basearia. O que não é o mesmo que ter uma personalidade, já que isso é só uma máscara para disfarçar a vacuidade existencial em que me encontrava e ainda me encontro. Naquele tempo, estava na moda um reacionarismo aristocrático de ralé (ou de "baixo clero"). Pensamentos como: "eu tenho cultura pois ouço rock" ou "eu leio livros enquanto você vê BBB" permearam a minha adolescência, fizeram morada em minha cabeça que, não admitindo a própria impopularidade, criou a imagem da suposta pertença a uma elite como forma de compensação - uma racionalização que, no mais íntimo, era profundo ressentimento carcomido pelas trevas do alternativismo. Graças a isso, li livros centrais da literatura nacional, ainda bem moço, e sem a intenção de estudar para o ENEM - que, para ser franco, nunca dei a mínima foda. Li também todo tipo de assunto que, em minha cabeça de jovem introvertido revoltado e pseudoelitista - depois me tornei pseudoantielitista -, parecia maneiro: Marx, pensadores iluministas, autores liberais (que na época chamava de burguesia revolucionária - eu era um protoleninista inconsciente -), livros jornalísticos, literatura internacional, autores anarquistas, livros de história, livros de geopolítica, livros sobre ler livros, sociologia, ateísmo militante, filosofia, livros sobre videogame, etc. Por algum motivo, acreditei que eu era radical por ler esse tipo de coisa - uma das questões base da vida é "ser maneiro para ser aceito" (e, novamente, meu caro amiguinho: pouco importa o que você elabore em sua cabecinha oca pra provar o contrário). Essa minha tentativa frustrada de radicalismo, ainda que inserida num contexto pequeno-burguês de intelectualismo academicista, era tão exitosa quanto jovens maneiros andando de skate e tomando Nescau: só um imbecil ter-me-ia com uma figura contestatória e permeada por uma conflitualidade real com o mundo. Uma jornada de um jovem cuja a única função era racionalização do real desejo de ser aceito. Hoje sei que eu era apenas chato e entrava em tópicos que ninguém na Terra tinha saco pra ouvir além de um dos piores tipos de humano da face da Terra: um palestrinha - que é o povoado geral das academias, sobretudo as públicas ou das melhores academias privadas. Tão logo percebi que, na realidade, estava tão apenas imerso naquela eterna roda idiota de pessoas que masturbam umas outras, num estranho narcisismo coletivo, enquanto repetem nomes consagrados tautologicamente como se fossem conseguir incorporar a inteligência e originalidade dos que são citados copiosamente. Um processo que talvez remeta uma certa espécie de sessão espírita. Mesmo que, na verdade, as pessoas saíam tão genéricas, improdutivas, sem originalidade artística tanto quanto entraram.


De qualquer forma, hoje percebo que não preciso estar preso na ferocidade ou forçar a minha singularidade como se ela fosse mais esplêndida do que de fato é. Além de que, mesmo que tardiamente, percebi que meu radicalismo era típico de (pequeno-)burguês. Sempre circunscrito a um espaço passível de falsa radicalidade. Sempre direcionado no espaço discursivo acadêmico. Não quis mais fingir até a exaustão mais completa que estava fazendo algo que mudava realmente o mundo. Despi-me, com as punhaladas do tempo, de meu revolucionarismo ou reacionarismo. A academia virou um lugar onde todas as teorias nunca se confrontam com a realidade da vida. Parte do discurso revolucionário e reacionário é, em muito, ditado pela pseudouniversalidade da diversidade marginal: um grupo reduzido de pessoas pensa ter encontrado um padrão universal - que logo se torna para elas um padrão coletivo-normativo - e ficam presas nas mazelas de suas bolhas.


No fim, enquanto me encontrava nas angústias faraônicas do radicalismo burguês, acabei por me tornar um imbecil hedofarisaico: "sou automaticamente bom, inteligente e livre por manifestar alguma crença que me justifique em alguma estrutura social nessa estranha Torre de Babel". Termo esse que cunhei na única arte que conheço bem: aporrinhação de saco - embora eu não tenha elevado isso na condição de maestria. Parece até mesmo um processo gnóstico que segue o seguinte esquema básico:

1. Adquire a crença X;

2. Ao adquiri-la, você magicamente saiu do ilusionismo da caverna platônica (termo esse tão mencionado e tão pouco compreendido, já que quando você sai da caverna você entra imediatamente em outra e a saída da caverna é um processo acumulativo em que você assume a própria prepotência e busca sempre sair do seu novo círculo escravizatório ["só sei que nada sei"]);

3. Todos que não compactuam com nosso coletivismo-normativismo são literais animais que não encontraram a verdade, puros alienados presos num sistema de opressão, incapazes de ver a obviedade mais ululante;

4. Agora entre em nossa roda, pegue no pau ou na boceta do amiguinho ou da amiguinha, masturbe-o(a) eternamente enquanto repete: "eu sou livre", "eu sou bom", "eu conheço a verdade", "todos os outros estão presos num sistema de engodo".


O que é trágico e, ao mesmo tempo, engraçado. A ideia de que dadas ideias suplantam outras de forma obrigatoriamente necessária cria um mito que costumo chamar de "imperativo histórico categórico". Dessa, por sua vez, instala-se na psiquê do indivíduo uma presunção em que ele se sente automaticamente superior, sobretudo com quem ele discorda. Que pode muito bem ser compreendida nesse esquema:

1. O ateísmo/marxismo/liberalismo/tradicionalimo é uma fase superior da humanidade;

2. Eu sou ateu/marxista/liberal/tradicionalista;

3. Logo sou superior a Tomás de Aquino/Adam Smith/Karl Marx/Sartre.


Graças a esse simplérrimo truque de bunda-moles, qualquer um pode ser superior a qualquer pessoa do passado, do presente e até mesmo do futuro bastando aderir um determinado tipo de pensamento. É uma (auto)consagração automática, uma promoção altíssima  um acirrado curto-prazismo. Um processo muito similar a de seitas gnósticas, não muito similar: é o mesmo processo traduzido em forma política - já que os imbecis de ontem acreditavam numa religião espiritual supersticiosa e hoje acreditam numa religião política supersticiosa. É desse tipo de gente que falo quando escrevo o termo "hedofariseu" - mesmo que esse seja apenas uma desconstrução niilidionisíaca do discurso (vulgarmente é utilizar o academicismo para caçoar de academicistas) em que dadas palavras são usadas apenas para tirar o sarro. E, caso o leitor ou a leitura se pergunte se sou cristão e/ou tomista (ou ateu militante, ou liberal ou marxista), digo-lhes logo que sou tão cético quanto o homem líquido de nosso século é cético - só que estou mais para um cético global e não um cético parcial, cético o suficiente para questionar a mim mesmo. A diferença precisa está na dose de ironia e ausência de doses cavalares de arrogância combinada com um esquematismo de autoengodo - como um tão bom, embora eu já não beba, gin com tônica.


Da presunção gnóstica moderna, mesmo que essa se proclame na maioria das vezes atéia, vemos um teologismo inconsciente. Quando um intelectual moderno se dispõe a analisar a algo, narra todos os acontecimentos como um narrador onisciente. É como se ele fosse onipresente na história, gozasse de todos os dados do mundo e pudesse alterar o curso da humanidade de forma onipotente devido a sua (auto)glória. Em meio a esse teologismo às avessas, em um processo inconsciente e antropoteísta, prefiro ficar a me autocriticar do que a me pôr no pódio das pessoas bem pensantes e julgar a humanidade toda com a minha miséria. Sei-me miserável. Não tenho contribuição alguma a acrescentar, todos os meus escritos cairão inevitavelmente na "lixeira da história" e, se alguém perder tempo lendo-os, rirá de minha cara - e eu lhe agradeço. Talvez eu vá soar, para os mais distintos leitores, um subversivo, um reacionário, um revolucionário, um homem perdido ou qualquer coisa que seja. O fato de eu puder ser identificado com os quadros mais distintos só demonstra que, no fundo - quiçá talvez em substância -, eu não pertenço a quadro algum. E, não, não sou melhor e nem pior por causa disso. Nem acho que se houver alguma originalidade nisso, a originalidade seja boa por ser originalidade. Não sou superior a ninguém, pior que isso: sou inferior por vocação (quase suicida).


Minha vida sexual nesse período - torno a falar da adolescência -, e no restante de minha vida, se deveu mais a minha imoralidade do que a minha capacidade de ser atraente ou interessante. Nunca fui atraente e nunca fui interessante, também nunca fui inteligente e nunca joguei bem - mesmo que eu seja um acadêmico e um gamer (e sou um acadêmico medíocre e um gamer medíocre). Aprendi desde cedo que ser acessível era a melhor forma de conseguir sexo. Estratégia essa usada a rodo por fracassados impopulares e pseudoantissociais - pessoas que viraram antissociais não por escolha, mas por chatice (e que usualmente adquirem pensamentos chaves de visões políticas extremadas como forma compensatória para a própria impopularidade: "vocês não gostam de mim por eu ser superior intelectualmente, há há há há"). A obscenidade luxuriosa é um caminho alternativo para quem não consegue ser popular, mas ainda preserva o gosto de querer comer/dar para alguém. É graças a isso que literais batatas sociais e feiosos, nas quais evidentemente estou incluído, conseguem foder - e, sim, eu sei que sou feio e falho. Embora que, atualmente, eu não chamo mais meus hábitos (ou seriam vícios) de "experiências de alteridade", "desconstrução da ditadura monogâmica" ou "orientação romântico-sexual pós-cristã, libertária e antiburguesa". Usualmente eu penso numa lógica mais amoral quanto a minha posicionalidade sexual: "transei porquê quis transar". É simples, é em boa parte consciente de sua própria primatividade, é um tanto animalesco e bestialógico, porém não falhei na minha autotribuna.


Meus contemporâneos adoram dizer: "o padrão de beleza é uma enganação". Eu concordo, uma onerosa enganação que, por tempo demasiado, condenou qualquer beleza que estivesse de fora do padrão eurocêntrico. Só que há um grande problema aí: considerando os novos padrões, eu continuo sendo um homem execrável. Só posso esperar virar um modelo no mundo em que haja como padrão um antimodelo - o que me é sedutor sexualmente, pois tornar-me-ia um predador em potencial como bom corrupto e mau-caráter que sou; conquanto que ser-me-ia atípico demais viver numa sociedade com tamanha inversão de valores. Sou um parasita, vivo de sugar os sulcos da sociedade, da cultura - ou o que restou dela -, então creio que deve haver um ordenamento mínimo e um padrão aristocrático básico; porém não alicerçado nos parâmetros tradicionalistas. A minha prepotência sempre me levou a perceber instintivamente quando uma pessoa era demais para meu caminhãozinho. Tão logo percebi que só sou bom em lugares ocupados por fracassados. A ideia de que eu só pego gente feia e maluca tem um quê de veracidade: não sou bom o suficiente para um cardápio melhor. Não luto batalhas que estou condenado a perder, só boto fogo no parquinho e não me atrevo a acender sequer um fósforo no STF. O contentamento com uma vida mediana, de pequenos sucessos, é melhor do que partir para grandes ataques, isto é sobrevivência básica. Não sou um gavião, sou um urubu e minha essência é comer lixo.


As pessoas costumam ler meu blog ou minhas postagens no perfil do Facebook e pensar: "vejam só que homem estudioso". Faço três faculdades, participo de um podcast sobre saúde mental, tenho um canal de narrações de textos intelectuais, escrevo análises de livros e jogos, trabalho com pesquisa. Uma rotina intelectual elevada, bastante diversificada e com capacidade de aumentar continuamente o parâmetro técnico. Só que parou por aí. Se me comparar com qualquer pessoa que tenha inteligência de fato, como Aristóteles, é impossível presumir que eu não seja mais do que medíocre.


O nome de meu blog, por nenhum acaso, é "Cadáver Minimal". Há uma simbologia, bem medíocre - como quase tudo em mim -, nisso: declaro-me morto e mínimo. O significado do blog é exatamente esse: um homem que se sente morto fazendo o mínimo para ter um nexo conexual com ambiente dos vivos. Se você lê esse blog há muito tempo, o que é bastante improvável, verá que nos momentos em que "eu sou mais eu" se verificará um perpétuo pessimismo, ceticismo e autodesgosto. Não estou dando o melhor de mim, nunca dou. Sempre aumentei meu nível intelectual e, em todos os estados (também medíocres) que ele teve, nunca ousei usar toda a sua potência. Exigiria demais e eu gosto de coisas exigem pouco. É por isso que, como escritor preguiçoso e vazio, prefiro escrever pequenas análises e nunca uma exposição sistemática, metódica e cabal. A única coisa que me alegra medianamente é o fato que fiz o mínimo. Não posso alegar - e nenhuma outra pessoa também - que não fiz o mínimo. Embora eu mesmo possa dizer que com meu miúdo talento há grande desperdício no pouco que se tem.


Outro fato redentor nisso é que não poupo palavras para dizer o quão insatisfatório e fraco eu sou:

- Não sou cristão e nem marxista por ser fraco e covarde.

Não tenho a capacidade de morrer por Cristo. Não tenho a capacidade de morrer por uma revolução. Eu não abandonei as crenças por não achá-las boas o suficiente e nem por não serem razoáveis ou credíveis. Abandonei-as por ser um fracassado. É uma situação desgostosa, é uma situação até temível pelo grau de sua decadência; porém é uma sensação melhor do que a mentira. Eu prefiro dizer que não tenho força para crer nos grandes ideias da humanidade do que fingir que tenho só para pagar de boa pessoa ou simplesmente para enganar as outras pessoas. Seria muito cruel de minha parte, e eu não tenho energia o suficiente nem para ser cruel.


Também é o fator energético que é crucial para o desempenho desse papel que se assume. Poderia eu me importar realmente com outras pessoas e correr o risco de sofrer por causa disso? A resposta é, novamente e sem surpresa, um sonoro e bem audível não. Como minha energia mental é a de um fracassado, perdê-la-ia bem rápido numa situação de real perigo. Logo aderi a economia da poupança mental - que é um reducionismo charlatânico para indiferença e mau-caratismo - e investemento mental em objetos de prazer mais imediato, individuais e de menor risco. Pra mim é infinitamente mais prazeroso ler sobre os infinitos problemas sociais - da humanidade em geral - do que lutar ativamente para resolvê-los. O que é uma postura melhor assumir a indiferença do que fingir-se de bom moço, de consciente ou simplesmente mascarar o mau-caratismo com a chamada consciência crítica. Não creio em salvação pela fé e tampouco obrarei para ser salvo. Minha condenação é ao inferno ou à lata de lixo da história. Acredito que o direito à indiferença é crucial, já que sou um fracassado, mas não um mentiroso.


Quando foi que tudo deu errado? Quando eu me tornei esse Cadáver Minimal? Tenho mais de mil livros arquivados e disponíveis em minhas reminiscências - planos de leitura que, traçados, levam a entender que sei alguma da vida; porém que trazem uma receita segura para a mais plena incapacidade artística e fraqueza experimental e criativa. Nenhum desses livros explica a mediocridade que carrego. Talvez eles só existissem para me dar mais minuciosamente a agônica sensação de que, pelo menos, eu tenho uma cultura privilegiada. Mesmo que tal cultura, capaz de pormenorizar uma série se esquemas civilizacionais e abarcar altos vôos abstrativos, não enriqueçam tanto a minha vida. Creio que tudo que me sobra é de forma estética e estilisticamente pedante colorir minha infelicidade com referências sem fim que dão a aparência duma unidade e sistematicidade. O pedantismo confere uma condecoração a toda essa fragilidade que chamo de eu. Há um esteticismo, que dá beleza ao decadente, nisso tudo. Um outro homem, despido de tal (van)glória, não poderia ser encontrado por acaso por algum rato de academia que preferirá que seu "objeto de análise" tenha lido Nietzsche e Dostoiévski - o que é francamente desumano, desumanizador, extremamente elitista, abstrato-utilitarista, mas muito e essencialmente acadêmico (arrisco a dizer que o academicismo é pequeno-burguês ou muito burguês). Um homem que tenha sido alcoólatra é uma coisa, um homem que tenha sido alcoólatra e escreve "êle" como se ignorasse as mais novas regras da ortografia é outra coisa - mesmo que, no fim, a pesquisa se dê nos meandros da alcoolicidade. O costume acadêmico é ignorar as grandes massas que, por um acaso bem hipócrita,  maioria dos acadêmicos diz defender e representar - e talvez um dia representasse, se saísse de sua bolha, é claro. Tenho uma série de vivências que poderiam ser psicodelicamente classificadas como atípicas e, de estranho modo, interessantes. Interessantes para pessoas que amam coisas tediosas, nauseabundas e deformadas. Hoje em dia, a tragédia e a ausência de ordem servem como um bom enredo para os meus conterrâneos. E minha vida é cheia de tragédia e ausência de ordem. Só que, ao final, tudo isso se mistura no caldo comum da infelicidade - para o homem que Karl Marx ou para aquele que nem sabe o que vem a ser o "proletariado".


Não consigo compreender como que uma mera adição leva a uma investigação interessada de algo que, no fundo, nada tem além do costumaz banal. É fruto, evidentemente, dum diletantismo abstrato-utilitarista: alguém só é analisável e objeto de academicistas, e intelectuais no geral, quando essa pessoa tem cultura acadêmica ou intelectual. Um acadêmico que pega a sua metralhadora verbal para condenar o utilitarismo é sempre vítima de sua própria percepção isolacionista. Posição atutidinal essa que só descrevo e não condeno, já que igualmente sou assim. O enredo é mais ou menos o mesmo:

- Conheço a história dum homem que se matou jogando-se do décimo nono andar dum prédio - digo esperando uma reação receptiva do meu ouvinte.

- Ah, legal... - diz ele embaraçado, cansado de tantos suicídios que preenchem em seu cérebro uma nauseabunda estatística.

- Ele era leitor assíduo de Blas Roca - revelo minha carta na manga. 

- O secretário geral do Partido Comunista de Cuba? 

- Exato!

- Conte-me mais agora mesmo.


Há um livro que diz que a maioria dos latino-americanos só são radicais dentro da academia - prova de sua radicalidade burguesa. Também é normal isso: ser radical dentro dum parquinho é uma coisa, no mundo real é outra. O que demonstra que eu sou um decadente até no meio da atividade acadêmica, já que estou na vasta maioria daqueles que preferiu se calar. O que, para ser franco, não é meu caso também, eu não me calei: eu sou indiferente. Não vou escrever textos fingindo que realmente me importo com o estado do capitalismo, da humanidade ou do planeta. Torno-me cada dia mais misantropo para não me importar, porém também acho que o capitalismo falhou. Não importa, no final eu também sou como o capitalismo: eu sou um fracassado.


Se não me engano, há um livro de Chesterton que fala dum funcionário público ascendente. Um burocrata típico, genialmente típico, cuja o excelente intelecto flamejante ascende vôo de repartição a repartição - um alpinista social consagrado. Um homem cuja capacidade transcende os seus conterrâneos e, por um engano, sua sabedoria destacada nunca alcança o coração de um único homem que seja. É uma ironia tipicamente encontrada no paradoxo da vida: existem uma série de intelectuais, a absoluta maioria deles, incapazes de se traduzirem em algo de apaixonado. Com o caminho atual de minha vida, torno-me a cada dia mais parecido com eles - e se inconscientemente me importo com isso, conscientemente sou falho e sem vontade demais para mudar isso. Há gente que nasceu para mediocridade, podem-se encher de títulos sem nunca terem levado uma única pessoa a refletir profundamente sobre si. Isso nos desanima até percebermos que estamos no lado da maioria absoluta de esquecidos e futuros esquecidos, quando aceitamos o fato de que nenhuma marca nossa permanecerá, assumimos a mediocridade com um orgulho meio avergonhado, porém ainda satisfatório. Quando olho para uma série de artigos acadêmicos que leio, todos eles me remetem genericamente ao tédio. Poder-se-ia criar um novo slogan que trocasse a frase "todos os caminhos levam à Roma" para "todos os caminhos (acadêmicos) caem no tédio". Nenhum nome me encanta e mais me parecem com a prática da fossilização como esporte, mesmo que os esportistas do tédio não saibam que são bons em produzir tédio e lixo descartável. Se eu escrever qualquer coisa que possa cair dum burocrata tipicamente acadêmico, sairá como genuinamente chato e acadêmico (e espero que não cite um artigo existente por mero acaso):

- O machismo como invenção neoliberal;

- A infelicidade como criação fascista;

- Homossexualidade e Arte no Grajaú;

- A gestão psdbista e suas consequências;

- Progressismo e Esperança no governo Dilma;

- Neogolpismo e democracia;

- O valor do amor em tempos reacionários;

- Pela normalização do poliamor;

- Por uma esquerda autenticamente revolucionária;

- Revolução e Reação nas Boates LGBTQIA+ Paulistanas;

- Por uma política radicalmente ambientalista;

- Neomarxismo e Revolução;

- Feminismo e Cyberpunk.


Foda-se, cansei - canso-me rápido, eu sei. Os acadêmicos se diferem do povo, mas quase não se diferem entre si. Sua diferença está para com a maioria do povo, não para a maioria dos outros acadêmicos. O que não é bom, só que também não é ruim: o destino do homem - ou, se preferir numa linguagem menos machista, "a humanidade" - é a mediocridade perante seus pares. Eu já aceitei a mediocridade que me cabe. 


Não sei a razão que leva a tantos acadêmicos optarem por títulos que já indicam o grande sonífero em forma prosa que certamente virá quando o leitor - que na maioria das vezes sequer existe por causa da gigantesca produção burocrática que é a produção acadêmico - terá que dar conta. Quase ninguém lê conteúdo acadêmico, eu leio para ter alguma base na minha produção acadêmica. E minha base também é medíocre e genérica. Sou o exemplo do antiexemplo que se tornou padrão. Se bem que, sendo sincero, sei que a média de pessoas que se interessará pelo que escrevo é equitativamente a mesma média de neandertais cantores de pagode vivos nesse exato momento: nenhuma, absolutamente ninguém, zero à esquerda de zero à esquerda. Só que não me iludo com isso: este meu blog existe apenas para eu dizer a mim mesmo que existe (precariamente, minimamente, porcamente).


Muitas vezes olho ao espelho, para me deparar com uma horripilante imagem de uma triste figura e pergunto: "quem eu estou tentando enganar?" Usualmente chego a fase posterior: "se é a mim mesmo, falho miseravelmente". Meu caderno se enche de notas, minhas leituras se acumulam e em minha mente mofam. Algum dia sonhei a hipotecar que a rotina cria deuses ou escravos. Também cheguei a achar credível que, sendo produtivo, poderia ser alguém vivo. Os compromissos acadêmicos e a sucessão de análises só existem para disfarçar o abismo em que me encontro. Além do fato de que cada análise, sucedendo a outra, não trazem uma vida pujante: representam sempre, nada mais nada menos, que uma maquinalidade formalesca. De certo não venho me sentido feliz com o rumo que a minha vida tomou: não consigo ver um grande salto qualitativo entre a fase anterior e a fase atual, mesmo que o nível técnico tenha aumentando: a escrita atual parece carecer de alma. Queria cuspir na imagem desse pobre burocrata toda vez que o olho no espelho. Eu odeio esse pobre burocrata. Esse pobre burocrata... que me tornei.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Acabo de ler "O Declínio de um homem" de Osamu Dazai



 

Existem poucos livros que, quando lidos, podem gerar uma conexão profunda e introspecção elevada. Esse livro, recheado de pessimismo e niilismo, conta a história de um homem perturbado pela sua incompreensão da humanidade e, consequentemente, sua incapacidade de adaptação.


Mesmo jovem, nosso querido protagonista (Yozo), não fazia ideia de como ter as ações de seus correlacionados como previsível e inteligível. Logo criou uma rotina de farsas para simular um contato humano. Todas essas farsas geravam para ele um aspecto altamente tensional como que num contato perdido num vale de penumbra. Nada lhe era pleno e confiável.


O protagonista demonstra-se tímido e não consegue se comunicar com excelência. Não sendo uma pessoa normal, não faz a mínima ideia do que fazer com esse mundo que onipresentemente o circunda opressivamente. A vida dele será uma tragédia sem fim devido a sua incompreensão altamente nulificadora de toda ação.


Essa vida movida pela incapacidade de comunicar-se ou entender a comunicação com o outro o levará a tentativas de suicídio, alcoolismo, dependência por drogas. O livro é uma sucessão de um conflito psíquico e social que se entrelaçam de forma agonizante o tempo todo.


Certamente um livro duro e cruel. Recomendo a leitura para quem tiver capacidade de lidar com a frustração existencial que o livro necessariamente dará.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

O Necrófago

 


 

Se eu dissesse que eu sangro sem sangrar, isso lhe assustaria? Se eu lhe dissesse que posso sentir minha carne sendo cortada, sem ser cortada, você acreditaria? Se eu lhe disse que sinto gosto e ele tem gosto de desgosto, você saberia definir o que de fato sinto? E, por fim, se eu lhe disser que todo esse vaivém a qual a humanidade se destina é apenas uma marcha caimíca em que o progresso civilizacional é, tão apenas, o domínio do demônio e da totalização diabólica? Dir-me-ão que os remédios modernos são fruto do progresso, dir-lhes-ei que o holocausto baseou-se igualmente no progresso técnico e científico. A bomba atômica é um portentoso milagre científico e técnico que ceifou várias almas. Mas, pensando bem, é até mais misericordioso ser morto por uma bomba atômica do que estar num campo de concentração. Com ferramentas de capacidade superior, os novos deuses de pés de lama se erguem e a população com adora o mais novo bezerro de ouro em forma de Iphone ou o que quer que seja a nova forma dele. Religiões, ideologias e doutrinas se alternam no poder sem que o homem possa ir para o paraíso tão pedido e tão prometido. Sempre alguma nova ideia será enunciada prometendo a nova forma de chegar (ou seria retornar?) ao paraíso.

 

Perguntar-me-ão se eu tenho um programa, se eu tenho uma direção, um senso de unidade, uma doutrina a qual poder-se-ia remir o mal contínuo da humanidade. Negativamente responderei e negativamente serei encarado. Todos devem trazer alguma coisa, qualquer coisa. Em nossa época, se faz necessário publicalizar a consciência em todos os fenômenos que se sucedem. Todo esse esforço de pingar o fragmento das almas nas mais diversas ocasiões é, para alguns, o divertimento e realização de seus seres concomitantemente. Denuncia-se ali um caso de racismo, fala-se aqui duma manifestação por algum novo direito, comenta-se o protagonismo feminino ou a privatização indevida ou devida de alguma empresa. Eu me proponho o contrário: ignoro tudo o que acontece e não mais me posiciono. É fato que alguns homens tornam-se alguém, outros tornam-se alguma coisa e outros, menos sortudos, tornar-se-ão algo e haverá aquela parcela, mais numerosa em todas as épocas, que nada serão e a nada serão destinados. Afirmo-lhes que sou pessimista demais para acreditar em qualquer coisa. Sou pessimista demais para cair na estultice de acreditar em mim mesmo - apesar disso ser um dogma pós-moderno (e, se não o for, não sei de quando data tamanha idiotice). Toda minha afirmação é uma negação. A negação, nada mais é, algo que reacionariamente nega o que é afirmado. Um negacionista é um homem que nega o que é afirmado. Sou o homem que olhava para o abismo e quanto mais olhava para o abismo, mais sabia que olhava para a própria natureza.

 

Ultimamente eu sinto estar ficando mais cego a cada dia. Não que eu tenha perdido a visão no sentido físico do termo, é que há um lamaçal metafísico de natureza obscurantista que me atrapalha. Eu simplesmente não consigo enxergar nada de qualitativo, nada de prazeroso ou nada que me dê um bom gosto palatável. Com o tempo, torno-me niiliabsorto nessa malignidade. Muitos de meus contemporâneos gostam de denegrir ideias, doutrinas ou religiões. Para mim, o esforço satírico e o gosto pelo caos dionisíaco se evadiu na medida mesma em que eu crescia. Minha geração só é forte o suficiente para negar ideias que, por lhe serem absolutamente superiores, não tem capacidade de cumprir. As ideias, as doutrinas, as religiões, as ideologias... Tudo isso foi abandonado por essa geração de fracassados. Não que eu não seja um deles, só que reconheço o fato de que sou fraco. Satirizar aquilo que não tem capacidade de corresponder em força e em estilo é o jeito com que os fracassados encontram de não negarem o próprio fracasso, mas a transcendência que se lhes apresenta. Quanto mais eu crescia, mais a beleza se evadia. Quanto mais eu crescia, mais eu ia para a direção não da antissociabilidade, mas do divórcio social. O esforço da negação, tão comum aos meus "iguais" - ao menos inseridos no mesmo "espaço-tempo" -, tornou-se até a negação da negação. Eu não só nego, nego-me igualmente a negar. A corda num pescoço seria, tão apenas, um alívio a essa pressão de desgaste que me obscurifica. Sem vontade alguma de continuar, empurrado a andar pelo espírito das poucas almas que ao meu lado ainda ficam.

 

Ninguém poderia para mim olhar, conhecer e passar ao lado sem que lhe ocorresse o seguinte pensamento: "como alguém pode ser tão deprimente?". A resposta, se é que há uma, é que minha natureza é morta. Eu sou tão apenas um cadáver. Nesse ponto em que me encontro, creio que minha alma caiu fora de meu corpo por abjeção. Creio firmemente que minha alma me abandonou há muito tempo, se eu tivesse oportunidade, também abandonar-me-ia sem pestanejar. Vago aqui e acolá, a preencher o espaço com minha presença física vazia. Sou o paradoxo do corpo físico que, adicionado ao ambiente, não ocupa espaço. Pelo contrário, sou um buraco negro que suga toda positividade, toda esperança, matando tudo que há de bom com minha pessimistividade. Minhas palavras nada dizem, as ideias que, por algum acaso enuncio, nada a mim representam. Para ser sincero, o nada nadificante de minha condição tornou-se uma existência puramente negativa que anula qualquer possibilidade de positividade. A leitura, em vez de erudição, só me traz uma forma de pseudotranscendência evacionista da realidade. Os antidepressivos só atenuam o sofrimento físico e mental que passo, minha visão e minha essência é em si mesma depressiva.

 

Tudo vem sido uma lenta odisseia fúnebre na qual eu me sinto cada vez mais morto. É um ditado popular a ideia de que nos tornamos o que comemos. Eu só como coisas mortas. Os animais que me alimentam foram mortos. Os autores que leio morreram há muito tempo, quando não morreram há séculos. A única coisa que tenho é o reinado do niiliabsolutismo. Eu não posso ligar para grandes causas. O fascismo, o socialismo, o liberalismo, tudo isso me dá tédio. Mesmo que eu não seja tolo o suficiente para acreditar que, em meu relativismo singularista, eu seja superior a essas religiões civis que tanto marcaram a humanidade. O amor que a sociedade tem pelas crianças me entedia. Os grandes acontecimentos políticos são por mim ignorados. A própria capacidade empática de ligar para um acidente de avião ou a um genocídio que, esporadicamente a humanidade faz numa religiosidade ritualística, não me causa absolutamente nada. Todas as discussões que saem dos maiores anseios humanos de nada me representam. As transformações de ideias que se alternam e sucedem não me representam coisa alguma. Tive o infortúnio histórico de nascer depois das grandes religiões e civilizações religiosas, das grandes ideologias e suas revoluções.


Nos últimos tempos, empreguei-me a andar em campos vácuos. Seja fisicamente ou mentalmente. Afastar-me de qualquer criatura viva era meu modo de viver mortamente. Até que, um dia, deparei-me com um terreno baldio. Um cheiro horrendo despertou em minha narina. Deparei-me com um cadáver. Cadáver esse que estava passando por um processo de decomposição. Claramente, não habituado a tal cheiro, tão logo pus-me a vomitar. Por algum motivo, uma vaga similitudidade enunciou-se em minha cabeça. Embora esse cadáver estivesse de fato morto, estivesse fedendo e estivesse esquartejado, sua natureza em nada diferia da minha. Quem sou eu, se não a podridão? O cheiro dele é igual o de minha natureza. O estado físico de destruição é de igual modo semelhante a minha psique. O fato de estar morto há muito tempo só me lembrava, igualmente, que eu estava tão morto quanto ele há tanto tempo que não me lembro. Tão logo aproximei-me e pus-me a prosear com tão igualitária criatura.

- Está morto, tal como eu estou morto. Teu fedor repugnante assemelha-se a minha própria repugnância. Minha natureza é de igual repugnância a sua natureza. O abandono em que se encontra em nada difere-se do meu. Para ti, a condução política e cultural em nada representa, em nada promove. Sinto-me, então, igual a ti. Você não pode acreditar no amor, já que não está vivo. Eu, estando igualmente morto, não acredito igualmente no amor. Não pode ter amigos e nem ligaria de ter um amigo, tal como eu. De certo modo, afastei-me de todos aqueles que eram meus amigos apenas para nada mais sentir e, nisso, assemelho-te a ti que não tem amigo algum. Em certo tempo, também acreditei na relevância da vida e em como todas as ideias que sucediam em minha cabeça tinham algum grau de relevância graças o valor incalculável de minha vida humana. Hoje sei que sou tão irrelevante quanto qualquer outra coisa morta e que nenhum vivo tem valor. As ideologias não me encaixam, as religiões não me causam júbilo. O abraço confortante nada mais é do que uma doce ilusão de dois corpos que se encontram equidistantemente. A singularidade humana não pode ser compreendida por outra singularidade humana, toda comunicação nada mais é do que um monólogo falho.


Logo pararia de falar com meu mais novo amigo. Volvi para casa. Onde passei a ler até que o sono tornasse a leitura impossível. Passar duas semanas longe de meu companheiro cadavérico deu-me uma sensação estranha. Os homens, as mulheres, toda a humanidade viva me era tão estranha quanto nociva. A mera ideia de que um coração batesse me causava desconforto, isso se não me causasse nojo. O próprio fato de meu coração ainda bater me causava desgosto. Olhar os outros seres vivos só me deixou um único pensamento, na qual sintetizo numa curta frase: "Eles não eram tal como eu". Mesmo estando atomisticamente presos em si mesmos, incapazes de adentrarem em substancialidade total com outro ser, prendiam-se nas ilusões vãs de que era possível se conectar com o mundo exterior. Não há mutualidade no mundo, toda comunicação é uma inutilidade. Engana-se quem crê que há compreensão, que há gradação de proximidade, que o íntima revela-se a quem se aproxima. Tudo está separado, eternamente separado. Mas como, como só eu me dava conta disso? Eles não podem perceber? Eles não podem ter consciência? Se um time de futebol ganha, nada ganhou. Se um político se elege, nada se elegeu. Se há uma alegria após o orgasmo, é apenas um prazer efêmero gerado pela própria face animalesca do que sobrou do bestialogismo humano não totalmente humano. Humanizar-se é dar-se conta de que a vida é como um grão de areia, uma poeira sem valor a movimentar-se de acordo com a influência dum vento. Ao menos a própria razão conduz a percepção da niilitropia em que vivemos e o que distingue a humanidade é a faculdade da razão. Racionalizar é humanizar-se, humanizar-se é perceber-se nulo e, então, niilificar-se. Para percebermos o quanto somos sordidamente sós, basta que entremos num ônibus e dar-nos-emos conta de que não temos íntimo contato nem em nossa locomoção por esse torpe mundo.


Eu senti, eu senti que deveria voltar ao terreno baldio. Eu não pertenço a esse mundo das entidades móveis. Todo esse movimento me é estranho. Vida é aparência e o reino das aparências não pode ser factual. Eu sou tão inexpressivo, irrelevante, podre, sem valor, quanto um morto abandonado. A morte é imóvel, logo não é aparente. Não consigo achar inteligível qualquer sociedade viva. Tive que voltar para o terreno baldio. E uma surpresa tive ao voltar: a minha pequena sociedade secreta aumentou. Mais dois corpos dispunham-se ali, como a ter um descanso dessa ausência de sentido unificada na qual a humanidade se move. Ali, eu e mais três cadáveres, sabíamos irrelevantes e vazios. Todos niiliabsortificados pela despertar da consciência do átomo. Não falarei dos sexos de meus companheiros. O que é o sexo se não uma superficialidade para quem se encontra morto? Deixemos as vanidades dos vivos para trás. Vivamos a morte e o esquecimento. Eu lhes devia um discurso inaugural. Devia-lhes um acolhimento cadavérico. Logo, pus-me a falar.

- Felicito-lhes pela morte. A morte é a única que proseia com Sócrates e Dante. Os vivos acham-se acima dos mortos, só que não possuem qualquer similitude conosco. Eles desprezam os esforços dos ancestrais e negam-lhe a possibilidade de discursar. Acreditam que o fato de estarem vivos lhe torna especiais. A vida é efêmera. A ciência moderna está a provar que a vida na terra é um mero acidente, onde não há criador algum. Sem criador bem-intencionado, sem sentido próprio condicionado, sem nada que valha a pena para se viver, somos todos nós átomos a rondar um espaço sem capacidade de expressar o vazio em que nos encontramos. Morrer é despertar para a realidade e até mesmo para eternidade. A realidade é tão morta quando pode ser. Deixemos que os vivos aproveitem a curta vitória de suas eleições, as modas de pensamentos que morrerão, os prazeres efêmeros que logo acabarão, a sensação vaga de amor eterno que logo despedaçar-se-á. O aborto é o mais feliz dos seres, já que ele passa para eternidade da morte sem conhecer as ilusões da efemeridade da vida.


Com o tempo, passei a frequentar o terreno baldio com mais assiduidade. Deitava-me lá, esforçava-me para matar dentro de mim qualquer pensamento. Queria ser tal como um morto, um verdadeiro morto. Havia dentro de mim uma pulsão de natureza nirvânica que eliminava toda e qualquer energia mental dentro de meu aparelho psíquico. De que necessidade teria eu de pensamentos? De sentimentos? O esforço negativo leva a sonegação desses vãos alvoroços causados pelo efeito ilusionista da vida. Não comunicar-se com ninguém era meu deleite. Abandonar toda e qualquer possibilidade de amizade. Matar em mim qualquer ânsia por movimento e qualquer noção vaga ainda reminiscente da possibilidade de "calor" humano. O que move os vivos? A vida é uma existência numa caverna. O calor humano nada mais é o que alimenta as projeções das sombras ilusórias que são confundidas com a verdade ou a realidade. Tendo em conta isso, o cheiro podre deixou, com o tempo, de me importar. Cheiro nada mais é do que outra vaidade das ilusões dos vivos e suas maquinações ilusionistas. Mesmo quando os cadáveres aumentaram, eu me sentia como um deles e tudo que eles tinham era, para mim, de máximo valor e não de ojeriza.


Acreditava piamente na ideia de que o esforço anulativo era melhor que o esforço criativo. A estabilidade pertence ao reino do descanso e o reino do descanso pertence a morte. Esforçar-se para atenuar qualquer possibilidade de esforço, tirar da mente as ideias que tiranizam, afastar-se de qualquer "calor humano". Tudo isso, nirvanicamente enquadrado e enfatizado, torna-se num deleite sem o qual não poderia mais conjecturar o estado não vívido em que me encontrava. Adaptar-me a morte era o compromisso principal a qual me sujeitava. Imitando os mortos aprendi de fato ao destino comum que me era destino e glória. Pena que, tal deleite, provar-se-ia incapaz de durar para todo o sempre. Esqueci-me de que era ainda vivo e, como vivo, poderia ser perturbado por essa ordem caótica que se cria pela vaidade. Fui acordado por um estranho homem.

- Por que passa tanto tempo aqui?

- Gosto de me deitar e pensar que também estou morto.

- Por um tempo, pensei em te matar também.

- Eu já estou morto.

- Não entendo, nem sei se quero entender. Para mim, é simplesmente um louco. A única pergunta que tenho é: não me denunciará?

- Pelo o quê? Por ter libertado essas pessoas das ilusões criadas por Demiurgo ou pelo vazio ou seja lá pelo que tenha criado ou não esse mundo? Viver é uma ilusão. Todo reino de matéria nada mais é do que um aprisionamento na falsidade. Nada aqui faz sentido e tudo que há é um grotesco monumento confuso e assimétrico.

 

O homem simplesmente parou de me encarar. Pegou o seu saco preto e soltou mais um corpo morto. Certamente ele era o assassino de meus companheiros. De qualquer modo, essa informação me era tão irrelevante quanto tediosa. Ele era só mais um vivo. Todavia não pude deixar de felicitar meu novo companheiro:

- Seja bem-vindo, meu partidário.

- Do que está falando? - perguntou-me o serial killer.

- Não falo contigo, falo com o morto.

Olhando-me com estranheza, o homem simplesmente foi embora. Era um vivo e, tal como um vivo, não poderia compreender um partidário da morte. Nem sei se posso falar em "partido". A ideia de que há "parte" e não "todo" pertence a essa diferenciação do reino da necessidade. O partido, seja qual for, nada mais é do que um defeito na capacidade de pensar. Na totalidade, em que só os mortos estão, não há "partido" algum. Tudo se encontra e tudo está encontrado. Não sei se a felicidade do assassino consistia em matar. De qualquer modo, matar é um prazer tão sem graça e efêmero quanto qualquer outra vaidade que constitua a vida. Todo prazer de um vivo é um prazer efêmero, impróprio a capacidade eternalística que tem a própria morte. Não o condeno, toda atividade viva me é indiferente. Qualquer movimento me é estúpido. Que diferença me faria se ele fosse padeiro, açougueiro ou um simples pescador? Tudo isso é vaidade. Mesmo o assassino compulsivo tem o gosto de matar. Trazer pessoas ao mundo eterno da morte causa-lhe prazer. É um esforço idiota, tal qual todo esforço vivo. Tão sem valor, tão sem importância quanto qualquer coisa viva.


Meu bem-estar não durou tanto tempo. Minha única felicidade, que me conectava com o mundo transcendental, foi-me privada. Acabei por ser pego por um policial e colocado numa viatura de polícia. Não tardou que eu fosse investigado. Todas as vezes negando a mera hipótese de que tenha sido eu o assassino. Respondia vagamente que também era um morto. Achavam que eu era insano, simplesmente insano. É justamente o contrário: eles é que são insanos. Fiquei dias na cadeia, esperando e sonhando com minha volta ao terreno baldio. Pensava em me matar todos os dias. Isso não me era ruim ou depressivo. Eu simplesmente amava a ideia de me ver morto. Morto e liberto. Toda essa sucessão de ideias e gosto pela proximidade com a morte durou até que o assassino foi pego. O estranho homem confessou todos os crimes. Além de que, em sua casa, foram encontrados vídeos de tortura e assassinato de todas as pessoas que matou e que estavam no mesmo terreno baldio que eu. Ele ganhava dinheiro torturando pessoas ao vivo. Uma investigadora, antes de me soltar, fez-me a sua última pergunta:

- Se você não era o assassino, o que fazia ao lado dos corpos assassinados? É isso que ainda não pude compreender com totalidade.

- Ora, minha cara, eu apenas olhava para a minha própria natureza.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Outra Mentira

 



Pergunta-me se estou bem, tudo que posso dizer é que estou estável e tranquilo. Esconder mais uma vez, esconder todas as minhas lágrimas mais uma vez, segurando minha tremedeira e vontade de emanar todo horror que carrego e sinto. Vou forçar um sorriso tímido, quando, na verdade, eu sinto uma corda metafísica a esmagar meu pescoço. Quando fores embora, pôr-me-ei a chorar as dores que me agonizam. Gritarei mais uma vez com o travesseiro em minha cara para que ninguém me ouça. Por enquanto, cabe-me não descarregar as energias que implodem em minha psiquê.

Encontre-me depois de outra mentira. Deixe-ma prendê-la na minha ilusão. Permita-me mais uma vez disfarçar um otimismo. Perca-se em minhas piruetas verbais. Faça coro a mais uma de minhas sórdidas racionalizações, vosmecê merece um quinhão de descanso. Dê-se mais uma vez a possibilidade de acreditar que eu mudei. Force-se a crer que dessa vez tudo há de melhor. Acredite que eu possa mudar, mais do que isso: acredite que eu mudei. Você precisa saber que poderá descansar agora, mesmo que só um pouco.

Pergunta-me o que vejo adiante, inquira-me acerca de meus planos pro futuro. Dir-lhe-ei mil e um planos. Todos pormenorizadamente pensados e arquitetados apenas para falsear a minha real consciência e atenuar suas preocupações. Quando eu olhar para o chão, não verei nada se não um abismo. Mesmo assim, contar-lhe-ei sobre a reluzente ponte que aparece a mim e como ela denota todo meu brilhantesco porvir.

É uma mágica do absurdo. É a capacidade de sentir densamento o desespero pânico enquanto a face demonstra um sorriso e a boca sonorifica palavras de alento. Eu sou bem capaz de te enganar, só que você está ficando boa em saber que sou um mentiroso nato. Eu sou bem capaz de mentir mais uma vez, mesmo ficando cada vez mais difícil. Eu sempre minto, mais fácil pra mim, mais fácil pra ti. Não quero que pense nunca estou bem, ser um fardo é um papel ruim. Dar-lhe-ei um tanto de fingido heroísmo. Pintar-me-ei como cavalheiro matador de dragões. Guerreiro e mártir capaz de enfrentar e vencer todas as problemáticas da vida.

Você sorrirá mais uma vez. Orgulhar-se-á de minha nova guinada pródiga. Abraçar-me-á com teu corpo quente. Eu ficarei internamente destruído, tentarei ao máximo não transparecer que estou mal e que as mentiras que lhe conto, no fundo de minha alma, também me destroem. É que estou cansado e estou mais cansado ainda de lhe deixar cansada.

Me desculpa, simplesmente me desculpa. Eu não queria que fosse assim. Eu queria de fato estar bem. Só que estou há tanto tempo num estado de lamaçal tristeza e você está há tanto tempo ao meu lado esperando eu ficar bem. Não seria justo contigo fazê-la esperar tanto para a cura que nunca chega, mas que sempre tarda. E eu posso sempre tentar ficar bem enquanto ainda estou mal, já que sentir que você ficou mal por eu estar mal me faz ficar ainda mais mal. 

domingo, 11 de setembro de 2022

A Torta


 

 

   É estranho, mas também não é nada engraçado. Se você olhasse para mim, nesse momento, talvez tivesse um daqueles pensamentos de humor sombrio. A cena que veria gozaria de qualquer falta de senso com a realidade comum. Um palhaço com uma arma enfiada na boca. Sim, sim, encontro-me vestido de palhaço. Com uma calibre 12. Sou um autêntico palhaço, na verdade. Quando isso tudo terminar, já não serei palhaço. Tenho um nariz desproporcionalmente vermelho, que tem um irritante som de buzina ao ser apertado. Minha face é tingida de branco, embora a cor da maquiagem esteja um pouco borrada pelo meu choro. Uso uma peruca grande e vermelha e um chapéu curtíssimo. Um sorriso está desenhado em minha boca, embora eu não sorria - não me lembro sequer da última vez que ri de verdade. Minha roupa é extremamente colorida, ela bate em contraste com a minha vida acinzentada e infeliz que levo. Também uso dois sapatos gigantescos, extremamente prosaicos para a alegria da moçada.


    Alguém cuja a função é fazer os outros rirem não pode se matar, certo? Talvez, em sua visão preconcebida, eu seja uma espécie de ser mirabolante de variadas ideias, com uma complexidade além da curva e que consegue satirizar a crueza do real. Alguns gênios dirão que os bobos da corte, ancestrais espirituais dos palhaços, faziam piadas até mesmo do rei. O palhaço é aquele que ri de tudo. A vida é dura, então o palhaço é aquela espécie de intelectual contrário ao intelectual meditabundo, uma espécie de "intelectual gozabundo" ou qualquer outra palavra de sentido semelhante. Minhas piadas deveriam ser, então, uma espécie de relativização da densidade que a todos esmaga. Um alívio cômico ao tão comum sofrimento humano. As pessoas olham para mim e tiram mil e uma conclusões. Tudo em mim é gritantemente desproporcional e a assimetria causa nojo e comicidade. A indumentária dum palhaço foi feita para ser rapidamente identificável, o palhaço acima de tudo é um alvo. Convenhamos que o destoante chama a atenção e é por isso que o palhaço assim se veste.


    Tudo bem, meus caros. Olhar para um palhaço chorando com uma arma enfiada na boca não é a melhor cena que se vê. Talvez você pense que isso é engraçado, lhe digo que não é. Por favor, vamos estender um pouco mais a cena. Vários corpos sangrentos no chão e uma pequena chama a circundar o espaço circular daquilo que foi um dia um circo. Vamos dar um passeio descritivo por essa região. No meio, encontramos um mago, uma espécie de ilusionista bonitão que era famoso não só pelos seus truques, o era também por ser um garanhão. O mais famoso está no meio! A sua satisfação narcísica realiza-se até mesmo na morte! Se soubessem o quanto de homens vieram para espancá-lo, o motivo era sempre o mesmo: por ele ter pego as namoradas, as noivas e as esposas. Ouvia-lhe sempre dizer: "a melhor coisa do sexo é gozar na aliança de mulher casada". Há, há, há! Como ele era engraçado, não é? Porém ele não é tão bonito agora que seus miolos estão para fora e a estética proporcional de seu rosto se encontra tão feia e desproporcional quanto o meu rosto desproporcional e feio de palhaço, não é mesmo? Agora acho que ele "pegará" tantas mulheres quanto eu. Ele sempre dizia: "Astolfo, sabe o que dia eu ganharei na loteria? No mesmo dia que você perder a virgindade". Sempre quis saber o que as mulheres viam nele, só que a experiência de transar com o seu cadáver nem foi tão boa assim. Talvez existam coisas no mundo que sejam mais propaganda do que realização em si.

 

    Se dermos uma boa olhada na cena, veremos dois trapezistas musculosos. Encontram-se na extremidade esquerda. Coloquei-os lá pois eram esquerdistas, quase que comunistas - embora que não praticantes. Irmãos gêmeos. Carinha de um, focinho de outro. Tão bonitos e tão brilhantes. Eram capazes de todas as proezas físicas mais fantásticas. Eram ambos casados, casadíssimos com duas mulheres lindas. Elas tinham medo de serem traídas, e eles sempre que recebiam as ligações de suas esposas, sempre repetiam: "estou só treinando com meu irmão". Como eram assíduos em seus treinamentos, sempre na eterna companhia do irmão. Quem não quereria tão íntima amizade familiar? Eles morreram por envenenamento antes mesmo de poderem morrer por hemorragia. Sabe, eu cortei o pênis de cada um deles e coloquei na boca do outro. Quem poderia imaginar que os gêmeos trapezistas transavam um com o outro escondidos? Ah, de todos os números esse fica em incesto lugar. Outro escândalo sexual que nosso circo omitiu com bastante esmero. Eles também sempre riam de mim, diziam que meu número não valia meia moeda de um centavo. Agora estão ocupados em seu cadavérico número de boquete horripilante.

 

    Ao meu lado, há a mulher barbuda. Peituda, graciosa, bunduda. Ela era uma mulher fantástica. Dormia com uma porrada de homens. Eu era um deles. Tão ninfomaníaca quanto rejeitada. Nunca assumimos o namoro, ou seja lá o que tenhamos tido, tudo ficou a se enredar no sigilo. Hoje em dia, é-se comum relacionar-se com travestis. Aqueles que calculam bem, optam pelo sigilo. Só que, bem, ela nunca quis assumir, nas palavras dela, "um fracassado". E quando fazíamos aquilo que não posso chamar de amor, ela fechava os olhos e imaginava que estava com outro homem. Sempre me dizia para ficar quieto, tinha nojo até de minha voz. Apagava a luz para não ver minha cara. Só me beijava raramente, e quando me beijava para calar minha boca. Para ela, qualquer discurso meu era um asco. Propriamente nauseabundo. Sempre dizia que sentia mais prazer ao transar com qualquer um de nosso público do que comigo. O sonho dela era pegar o mágico, tal como de todas as mulheres e, também, dos trapezistas. Depois de anos, eu finalmente tive o seu coração. É, eu arranquei o coração dela e comi. O que ela me negou é finalmente meu. Não é questão de canibalismo, é questão de reciprocidade, ora essa. Qual é, sorriam um pouco, amigos, senso de humor não faz mal a ninguém.


    Na entrada principal, há o apresentador. Quando eu o conheci, eu estava a me formar em gastronomia. Eu queria abrir a minha doceria. Naquele tempo, saia pela rua para ofertar pequenos doces para transeuntes. Meu pai e minha mãe tinham morrido num acidente de carro, tinha agora que sustentar a mensalidade da faculdade e todas as séries de contas. A vida é feita dessas tragédias que pipocam do acaso, faz o quê? Lembro-me bem, ofereci-lhe uma torta por um valor módico, sabem? Inicialmente ficou pensativo. Achei que não pegaria. No fim, ele comeu, apreciou o gosto de minha pequena torta. Ele tinha dúbias intenções. Na mesma hora, perguntou-me se valia a pena sair pela rua vendendo pedaços de comida. Disse-lhe que era difícil pagar as contas, só que fazia isso na intenção de um dia realizar meu sonho. Ele achava a forma com que eu verbaliza e movia meu corpo estranha. Naquele momento, eu não sabia disso. Parece que não conhecemos as pessoas, nunca chegamos a conhecê-las. O coração humano não é translúcido, está sempre submerso no lodaçal da falsidade. Disse-me que eu tinha potencial, eu acreditei nele. No fim, convenceu-me treinar para ser palhaço. Aceitei pois precisava de dinheiro. A vida comum de nada de desassocia da prostituição ou da negação. Não fazemos o que queremos, fazemos o que é circunstancialmente necessário e o reino da necessidade está sempre aquém do reino da vontade. Aprendam essa importante lição.


    Meu sonho nunca foi ser palhaço. Não sei se algum dia alguém sonhou em ser palhaço. Nunca me pareceu um sonho desejável, ao menos não para mim. Eu queria ser cozinheiro, tal como já devem ter percebido pelo correr dessa louca história. Quando entrei no circo, havia mais gente. Uma série de gente talentosíssima. Gente que tinha talento real, talentos muito maiores e melhores que os meus - supondo, é claro, que tenho algum talento. Só que o negócio foi esfriando aos poucos, sabem? Parece que o mundo se interessa menos por circos hoje em dia. De qualquer forma, a renda apertou e o povo que comigo trabalhava se dispersou. Para eles conseguirem manter o público interessado, tudo ficou com um sadismo bizarro. Humilhações passaram a se tornar frequentes e o público adorava rir disso. Sobretudo comigo, o palhaço. Eu já não tinha lhes falado que o palhaço é sempre o alvo? Sabem quantas tortas eu preparei para serem jogadas em minha cara? Todos os dias, meu talento gastronômico era humilhado e ninguém comia nada do que eu preparava. Meu número, com o tempo, tornou-se um preparar uma comida e oferecer aos meus colegas. Eles sempre faziam cara de nojo, zombavam de mim e batiam as iguarias que preparava na minha cara. Minha vida parecia um enredo infantil e circular em que eu sempre preparava alguma comida e os espectadores olhavam esperando quando e como eu seria recusado e humilhado. Eu circulava num circo numa circularidade trágica.


    Claro que com a digitalização de tudo e a busca por maior público levou isso para internet. Milhares de pessoas passaram a ver em vídeos como as tortas, bolos e doces que eu preparava eram recusados, como eu era humilhado, como meu sonho de ser cozinheiro ia parar diretamente na minha cara. Meu sonho converteu-se em pesadelo. Eu era um cozinheiro e, ao mesmo tempo, não o era. Um cozinheiro cuja a comida ninguém come e, ainda por cima, é jogada com desprezo em sua cara. Sabem o quanto isso pode machucar um coração? Fiquei conhecido por muita gente, as pessoas sempre me diziam como adoravam a forma caricatural que eu atuava e como eu sempre me dava mal. Minha humilhação ficou acessível a milhões de pessoas. A um click, todos poderiam rir de mim, rir de meu fracasso, rir de minha existência patética, rir de minha comida. Familiares, parentes, colegas e amigos passaram a rir muito de mim. Riam não só pela frente, mas também pelas costas. Tornei-me uma vergonha para todos. Tornei-me uma vergonha para mim mesmo. Tudo desmoronou quando até a minha avó, minha própria vó, gente boníssima, contou-me que tinha vergonha de mim e que meus pais não me criaram para aquilo que vim a me tornar. Disse-me que eles se remoíam no túmulo e que era sorte deles terem morrido antes de verem a vergonha que me tornei.


    Certo dia, um dia não tão longe desse, eu tentei pedir demissão. Todos riram de mim, é óbvio. Eles sempre me viram como uma piada. Não era agora que eles poderiam ver a grande pessoa que eu era? O apresentador, após rir descontroladamente, pôs-se a falar com uma voz de desprezo, de zombaria:

- Olha, meu amiguinho, todo mundo sabe que você é um fracassado - ele sempre me tratou no diminutivo, mesmo eu sendo adulto.

- Quando me contratou, disse que acreditava em meu potencial - disse fremendo.

- E de fato acredito. Acredito no potencial que tu tens de ser objeto de piada - disse ele com um sorriso sardônico no rosto.

- Você nunca acreditou em mim? - falei com minha voz irritada, chorosa e tipicamente autopiedosa.

- Quem é você longe do que faz? Sua existência é ser esmagado e humilhado por gente superior a você. Contratei você pois vi em ti um palhaço completo. Feio, desproporcional, com trejeitos tresloucados, incapacidade de até andar como uma pessoa normal. Vi em você um palhaço, tudo que fazia parecia uma piada.

- Mesmo assim, eu quero pedir demissão.

- Você é, sempre foi e sempre será uma decepção, Astolfo. Bote isso na sua cabeça. Todos reconhecem o fracasso que você é.

- Eu continuo querendo me demitir - disse chorando, apertando os dentes e controlando minha raiva.

- Ora, tudo bem, não vou ser mal com alguém que é meu empregado há tanto tempo. Mas façamos um show de despedida para transmitir na internet.

- Posso fazer um pedido pra participar desse show?

- Sim, o que quiser.

- Quero que finalmente comam minha comida.

- É um pedido bem simples, acho que você merece isso depois de tanto tempo. Aceitado.


    Daquele dia em diante, planejei minuciosamente a minha vingança. Envenená-los-ia. Daria a eles o último show. O show em que eu não seria a piada. O show que agora, meu caro telespectador, você vê. O show em que eles são a piada. O show em que eu confesso os crimes que eles mesmo não confessaram. E, agora, finalmente poderia pegar o lugar do mágico. Far-lhes-ei um ato mágico. O que é, o que é: o saber que mais se sabe e o saber que mais não se sabe? O que é, o que é: quanto mais evidente, menos evidente é? Digam-me, meus queridos telespectadores, a verdade mais brutal e brutalmente negada! Estão preparados para descobrir o que a humanidade mais sabe e não sabe? O que a humanidade mais tem por evidente e por menos evidente? Querem saber o que é mais brutal e o que é mais brutalmente negado? Ok, 1, 2 e 3. (O palhaço dá um tiro na sua própria cabeça).

terça-feira, 6 de setembro de 2022

A Panaceia do Espaço


 

 

     Quando uma tia minha morreu, fiquei a chorar sem ao menos conhecê-la direito. O dia era acinzentado e trazia a sensação dum mau agouro. Era a primeira vez, a morte fez-se morada em meu imaginário sem permissão ou pedido algum de concessão, ela simplesmente arrombou a porta e adentrou como nada se fosse. A mim só coube suportar a noção de que as pessoas não eram imortais, que eu um dia sumiria para sempre e que houve um mundo que não foi marcado pela minha presença e haverá um mundo em que minha presença já não será marcada. A ideia de que toda minha existencialidade era um grão de areia insignificante que se juntava a outros infinitos grãos de areia não me foram reconfortante. Só percebi a banalidade do valor superestimado que damos a todas as coisas.

 

    Se eu pudesse conceber uma imagem fidedigna ao tempo, teria que criar uma mitologia pra explicá-lo. Decidi fazer essa tarefa por não ter nada melhor para fazer e por ter a consciência de que já estive em dias melhores. Como sou um pessimista nato, não esperem de mim nada que fuja duma concepção injuriosamente sofrível. Quiçá tirem algo de bom, útil ou aproveitável desse pequeno conto. Eu mesmo, quando o criei em minha cabeça esquiva e atordoada, pude tirar dele uma importante lição.

 

    Quando um bebê nasce, ele se depara com um homem velho e barbudo a olhar-lhe. Ele não tem noção de quem esse homem é ou o que faz lá. Esse estranho homem tem vários pregos guardados numa caixa e carrega consigo um estranho martelo. O homem pega o martelo e coloca um dos pregos na boca. Vê o bebê e olha compadecido, conquanto que também frio. Ele pega o pequeno bracinho do bebê, segura-o fortemente para que não fuja e martela o prego no braço da pobre criatura. A criança chora compulsivamente, sem entender nada e sentindo a dor sem poder defini-la. Do mesmo modo, o velho também chora, tal como se ferisse a si mesmo nesse processo. Do momento em que nasce, até o momento que ela morrerá, esse estranho homem marcá-la-á com pregos a cada tempo.


    Cada prego representa uma ação dada no espaço-tempo. Esses pregos nunca saem ou cicatrizam. Eles doem eternamente, atordoando cada homem por sua ação. No começo, damo-nos por insatisfeitos e continuamos a agir com a dor acumulada. Só que desde logo sabemos que cada prego será fincado a cada ação e conosco ficará a afligir nossa consciência a cada passo. O bebê tão logo tornar-se-á menino, olhará ao velho aflitivamente e estenderá a sua mãozinha para que ele coloque outro prego. Esse processo se repetirá até que chegue à adolescência. Rebelar-se-á tentando fugir de todo esse processo repetidamente doloroso, tentando correr para todos os lados do infeliz idoso. Todo esse vaivém negacionista não poderá salvar o jovem, tornar-se-á adulto e com mais pregos ardentes em seu corpo.


    Um dia, mais adulto e consciente de si, o jovem que se torna homem perguntará ao idoso, pela primeira vez, a razão de tanto sofrimento. Mais uma vez, o homem pensará que o estranho torturador não dirá nada. Só que, dessa vez, ele lhe responde.

- Por que me faz isso? Que te fiz?

- Não sou eu que lhe faz isso, é você quem faz - diz o idoso com lágrimas nos olhos, numa voz débil e com as mãos frementes.

- Quem é você?

- Eu sou você. Você é a consciência da consciência. Eu sou a consciência da consciência da consciência.

- É impossível que eu me cause tanto sofrimento, está mentindo - dirá o homem hesitante perante si mesmo.

- Não, todo prego que lhe coloco é duma ação tua. Cada ação tua é marcada no tempo peremptoriamente, sendo irretornável. Todo passo é marcado pela eternidade, nessa eternidade do espaço-tempo em que se é impossível mudar. Tudo que faz é marcado, nada é retirado. Se viveres cem anos, terás tua história a repetir-se nesse espaço de cem anos pela eternidade.

- Eu não entendo.

- Pois um dia entenderá.

- Por que é a primeira vez que fala comigo?

- Não é a primeira, na primeira era muito novo para se lembrar. Só que um dia, lembrar-se-á.


    O homem tentará variadamente entrar em contato com o velho. O velho recursar-se-á a tornar a prosa. Com o tempo, o homem verificará que o velho se tornará tão apenas uma caveira. Caveira essa que omite a maior parte de seu corpo com um manto preto. Uma caveira de mesma função: colocar pregos em seu corpo, numa tortura sem fim. Um dia, essa caveira olhará para ele, não haverá mais nenhum prego para ser pregado. Ela simplesmente se despirá e dirá:

- Conte o número de pregos.

    

    Contando os pregos, o homem verá uma determinada quantia. Ainda não compreendendo, pedirá ajuda para a caveira que outrora era homem:

- Não consigo compreender.

- Conte, então, todos os pregos que tem em seu corpo. 

 

    O homem contará e verá que é o número exato de pregos que tem na caveira. Então se dará conta de que era ele mesmo o tempo todo pregando pregos em si mesmo. Olhará para a caveira e ela estará segurando um espelho, o homem olhar-se-á e verá que é o mesmo velho que viu quando era apenas um bebê.

 

- A vida se inicia com um bebê sem mácula. Logo nele serão pregados pregos, estes terão quantidade diferente a cada indivíduo. Alguns, mais assustados, negar-se-ão a mudar com mais frequência e, então, terão menos pregos. Outros, mais ferozes e imperturbáveis, terão muitos pregos. Se bem que a quantidade de pregos pouco importa, mas o valor que cada prego teve.

- Por que me diz isso só agora?

- Eu partirei, minha missão se findou. Mas a tua começará.

- Qual será a minha missão?

- Lembra-se que a eternidade é só um espaço-tempo determinado a repetir-se infinitamente pela própria natureza do tempo-espaço marcar-se na eternidade?

- Lembro-me.

- Então já sabe sua missão.

- Qual ela é?

- É a experiência.

- O que é experiência? Como define isso?

- Ora, a palavra é menos que o pensamento e o pensamento menos que a experiência. A experiência é aquilo que chamamos em parte de incognoscível. Sua natureza mesma é perdida com o pensamento que não pode traduzi-la ao todo e na palavra que é incapaz de traduzir o todo do pensamento que é menos que a experiência. Uma hora você perceberá que há verdades que escapam a própria possibilidade de inteligibilidade com a razão.


    Um choro torna-se audível. O bebê que tornou-se homem velho olha para si mesmo bebê e, de súbito, toma consciência de sua missão. Uma quantidade de pregos, a mesma que tem em teu corpo, está dentro duma caixa. Ele tenta olhar para a figura cadavérica, a própria morte, para lhe clamar por misericórdia nessa torturante tarefa. Ela não está mais lá. Só há, na sala, "ele e ele". O homem velho pegará o martelo, olhará para o pobre bebê que lhe chora e dirá:

- Por muito tempo, acreditei na panaceia do espaço. Poderia tomar qualquer ação ou ação alguma, só que os pregos continuaram a vir. Então vi que o sofrimento era inevitável e que cada escolha arderia eternamente em meu corpo. Poderia dar-me conta disso e tomar escolhas mais prudentes, só que só percebi o valor do tempo que marcava na eternidade após grande tempo. Agora que o tempo passou, sei que na vida adulta tudo é erudição e que cada experiência é marcada pela experiência de outrora. Não há, na vida adulta, escolha sem marca de memória, memória sem marca de sensação, sensação sem marca de sentimento. Eu sinto muito, pobre pequeno. Terei que marcá-lo com os erros e acertos que cometi. Esses serão os mesmos erros e acertos que tu cometerás.


    O homem pegará o braço do pobre bebê, colocará o parafuso na boca e pegará o martelo. Chorará e martelará a criancinha. Então perceberá que sentirá dor intensificada na mesma parte que martelou o bebê. Chorará enquanto faz isso, relutará, só que continuará a sua missão. Sua mente tornar-se-á tão anuviada pelo sofrimento que causa a si mesmo que não conseguirá se expressar muito. A única coisa que ele sabe é que essa é a sua maldição eterna: não ter percebido que deveria ter vivido cada momento tal como se o vivesse pela eternidade, já que só assim aproveitá-lo-ia por completo.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Eu não quero estar vivo depois da madrugada...

 


 

    Eu não quero estar vivo depois da madrugada. Nela sou vítima de um acaso desacordado em que a vida é uma exaustão de desgaste. De tanta sobrecarga, sou obrigado a curtir o pouco do pouco em efervescência profanada. Se o que sobra é sempre menos, desgastar o que sobrou de nada é exigência da apequenada felicidade, única possível nessa cidade escravizada. Os prazeres efêmeros condizem muito com a necessidade temporal de horas condicionadas, a pseudotranscendência fez-se morada em minha alma atordoada. Nessa vida, é-se prostituta com ou sem necessidade sexualizada.


    Eu não quero estar vivo depois da madrugada. Eu não quero saber se as lebres pretas correm em corridas acirradas, elas se atropelam imersas na penumbra sem qualquer necessidade, o fazem para que haja um quê de desordem em sua vida normatizada. Elas creem que o preço da infidelidade ontológica pode ser compensado vivendo através de pequenos surtos. Surtos esses que furtam a quotidianidade de suas vidas falsificadas. Coelhos de terno amam entregar sua oferta as aranhas, assim sempre manda a proletariedade da descendência de Caim. Malditas aranhas, devoram seus filhos com parcimônia sensata, tradição das tradições dessa existência precária.  

 

    Eu não quero estar vivo depois da madrugada. Não quero andar de trem e metrô nessa cidade precária. Não quero olhar para cada morto que me olha sem saber que o tempo de partir há muito tempo se foi. Estou cansado de, em todo transporte público, esconder-me atrás de livros para não sentir a densidade atomizante da individualidade ultrajada. Estou cansado de fingir que a magia literária me livra da prisão da realidade. De círculo em círculo, repetindo ritualisticamente os erros antepassados, vivo rodando em minha senzala.

 

    Eu não quero viver depois da madrugada. Não quero me lembrar de quem realmente amo, fidedignamente me odeia. Não quero nem conjecturar pensar de novo naqueles que já se foram, pois sua partida me faz querer cada vez mais partir. Não obstante, sempre espero ver de novo aquilo que não dá mais para se ver, sempre espero ter de novo aquilo que já não posso ter, sempre sinto vontade de abraçar as pessoas que não posso mais conviver, na esperança de que o martelo do tempo tenha despregado o que pregou. O martelo do tempo nunca volta, cada prego é um imperativo categórico que a alma imortal cala.

 

    Eu não quero viver depois da madrugada. Eu sei que ela se jogou com a intenção de não sentir mais nada. Não quero lembrar de que toda vez que penso nela, vejo-a desfigurada e paralisada numa parca cama hospitalar.  Não quero sentir o gosto de nenhuma mulher, a mulher que mais eu amei me foi negada. Eu não quero pensar em cada osso dela que foi quebrado. Eu não quero saber se seu sorriso agora está deformado. Ao mesmo tempo que sinto a falta dela, tenho medo de ver como ela está em sua forma destroçada.


    Eu não quero viver depois da madrugada. Sei que sou mal-falado em cada espaço-tempo que preenchi com minha estranheza vivificada. Sei que meu gosto é o desgosto com que preenche o paladar de cada figura marcada. Eu sempre parto, eu nunca paro de partir e sempre que parto sei que é o melhor que posso dar a cada pessoa com quem estive em algum momento. Aliviar o desprazer de minha companhia é o melhor caminho que tomo, já que sou um desastroso canalha. Eu posso até sofrer com isso, conquanto sei que a frase: "eles ficarão melhor sem mim", sempre me acalma. E de fato o negrume de minha sombra priva o Sol das pessoas que encontraram-se com minha tragédia imanentizada.


    Eu não quero viver depois da madrugada. Sinto tanto de tanto sentir. Minha consciência toma como fardo o meu existir. Não quero pesar, nem para mim e nem para outrem. É por isso que eu não posso viver depois da madrugada. Estou cansado de noites dormidas em claro. Farto de acordar e pensar: "tudo bem, foi só mais um pesadelo". Estou cansado de cansar, cansado de estar cansado. O pesadelo do sonho precede o pesadelo de minha existência terrificada, dia após dia sinto a insanidade macular o que sobra do fragmento do que um dia já fui. E o mais triste disso, é que nunca fui nada. Sou cada vez mais a sombra dum passado de vanglória, então eu não quero viver depois da madrugada.