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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Acabo de ler "INVISIBLES: PROBLEMÁTICAS DE SALUD-ENFERMEDAD-ATENCIÓN DE PERSONAS BISEXUALES" de Osmar e Edgar (lido em espanhol/Parte 4 Final)

 


Nome:

INVISIBLES: PROBLEMÁTICAS DE SALUD-ENFERMEDAD-ATENCIÓN DE PERSONAS BISEXUALES 


Autores:

Omar Alejandro Olvera Muñoz;

Edgar Carlos Jarillo Soto.


Nota:

Essa pesquisa foi feita no México.


Deslocar a saúde do âmbito do sujeito histórico e espacial é deslocar a saúde da própria existência concreta enquanto tal. Haja em vista que os sujeitos não estão alheios a historicidade que lhes molda. A intersubjetividade – relações sociais – impacta na intrasubjetividade – psiquismo – e esse fator não deve ser desconsiderado.


A existência psicológica do ser também é a existência social do ser. Existência social e existência psicológica coexistem e influenciam uma na outra. É necessário compreender as práticas sociais – formação sociológica – que fomentam um indivíduo. Nisso entramos até nas práticas de institucionalização. O estudo da psicologia e da sociologia é, então, um compromisso que nenhum profissional poderia ver como isolado, mas como componente teórico vital. Todo indivíduo é fruto de processos sociais, todo indivíduo é fruto de acontecimentos histórico-sociais e esses mesmos acontecimentos criam nele práticas e construções subjetivas. Nenhum ser é uma ilha, mas está integrado numa estrutura e não pode ser abstraído por completo dela sem se tornar uma abstração.


No que tange a formação de pessoas do curso de psicologia, não há uma formação qualitativa para abordar questões de gênero e sexualidade. Tal debilidade é muitas vezes correspondida por duas vias: o estudo particular ou o conformismo diante dessa situação. O tratamento empático – que é central na saúde – não pode cair no "freestyle" e tampouco no "conformismo" sem levar a uma perda da qualidade técnica da própria prática dessas profissões. Também é necessário reconhecer que historicamente a psicoterapia teve um papel de patologização de pessoas não heterossexuais. 


É preciso uma formação sobre gênero e sexualidade para uma melhor atuação dos profissionais de saúde, só assim será possível que cada um reconheça a situação adversa que se encontram pessoas de gêneros e sexualidades distintas da maioria. Isso ajudaria a erradicar a desigualdade. 

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Acabo de ler "Militância enquanto Convite ao Diálogo" de Dani Vas e Danilo (Parte 8 Final)

 


Nome:

Militância enquanto Convite ao Diálogo: o Caso da Militância Monodissidente


Autores:

Dani Vas;

Danilo Silva Guimarães.


A militância tem um problema linguístico que leva a ausência de resolução entre o "eu" e o "outro". Entre "nós" e "eles". Se a linguagem em si mesma de perde, como é possível a comunicação? Teríamos duas emissões de códigos incompatíveis e nosso esforço se daria como frustrado. O exercício da linguagem requer um exercício de compreensão da própria linguagem. Há aquilo que pode ser chamado de "Outro-Self-Objeto", que é uma negociação simbólica entre membros de uma comunidade para a compreensão mútua – formação do "eu plural".


O self tem várias partes. A comunicação do self consigo mesmo já é bastante difícil – Jung falava bastante sobre a integração do Self, uma espécie de plenitude de si através da unidade de si. Em psicologia sabemos da confusão entre o "ego" e o "self", além da dificuldade de sermos sinceros e compreensíveis com nós mesmos. Se já é difícil a autocompreensão, o encontro de um self com outro self é ainda mais difícil. É por isso que a comunicação corre sempre o risco de se perder. O esforço comunicacional pode ser um esforço deficitário, visto que poderia ser visto como um jogo de tênis em que a bola representa o diálogo. Não há uma integração de jogador-jogador, apenas uma troca. E essa troca nem sempre é correspondida.


Temos dois principais problemas comunicacionais: o do "eu" consigo mesmo (comunicação self-self) e do "eu" com o "outro" (comunidade self-com-outro-self). Há outra consideração: as experiências intersubjetivas adentram em nós e se interiorizam, criando um tensionamento intrasubjetivo. Não somos alheios ao ambiente, muito pelo contrário: as pessoas e o ambiente em si mesmo sempre nos impactam e logo são percebidos afetivamente. E essa afetividade, positiva ou negativa, marca o nosso modo de pensar e de ser. 


Esse artigo, tão interessante e complexo, demonstra a grandiosidade da pesquisa de gênero e sexualidade. Não só ela, como é possível perceber que existem questões filosóficas, científicas, epistemológicas, psicológicas, sociológicas, políticas, culturais, dentre tantas outras ciências e assuntos. Logo o estudo da sexualidade e das questões de gênero é complexo e rico.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Acabo de ler "Militância enquanto Convite ao Diálogo" de Dani Vas e Danilo (Parte 3)

 


Nome:

Militância enquanto Convite ao Diálogo: o Caso da Militância Monodissidente


Autores:

Dani Vas;

Danilo Silva Guimarães.

A militância bissexual tem como pauta a criação de políticas públicas voltadas as pessoas bissexuais. Essa militância é forjada por várias redes. É um eixo que unifica: (I) experiência pessoal; (II) experiência coletiva; (III) pesquisa. Isso gera uma significação e resignificação. A experiência pessoal se ressignifica a partir do contato com a experiência de outras pessoas, que também se ressignifica com o estudo teorético. O que permitirá gradualmente um avanço na profundidade teórica e prática dessa militância.


É o contínuo avanço da compreensão que possibilita o aumento da capacidade atitudinal. Prática (praxis) se junta a teoria, com uma ressignificando a outra em todos os momentos. A monodissidência possibilita uma outra possibilidade de análise que só é possível por pessoas monodissidentes. Ela permite que seja vislumbrado algo além das sexualidades já exploradas e analisadas a fio, aprofundando distinções importantes. O campo-tema explorado permitirá ver, com o tempo, mais questões não só da sexualidade, como também de tantos outros temas.


A questão central da comunidade bissexual, ainda hoje, é uma questão de identidade. Ou seja, a sua especificidade de se atrair por mais de um gênero. Quanto a isso, muito raramente se contempla a bissexualidade por sua especificidade. Contempla-se mais homens e mulheres homossexuais, mas não bissexuais. A pessoa bissexual é apagada de toda estrutura de pesquisas, de políticas, de grupos. Tendo que viver como uma espécie de fantasma. Sem mundos que se abram e possibilitem uma existência integral ou própria.


Tudo impacta em tudo, embora nenhuma parte seja tudo. A bissexualidade não é só uma forma de se enxergar e se relacionar com a sexualidade e o gênero, é também um movimento político. Toda orientação sexual tem uma história, um atravessamento, um tensionamento, uma intencionalidade, uma identidade, um "porquê". A história do movimento bissexual, tal como de qualquer outro movimento, é a história de uma consolidação de uma identidade. Uma das principais questões do movimento bissexual e do movimento monodissidente está na não-homogenização dos diferentes tipos de monodissidência.


A questão da militância dialógica é a questão da via do diálogo e da troca. Diálogo implica em diferença, implica em disparidade, implica também em desencontro. A relação "eu"-"outro" está e estará sempre conectada. Existe o "outro" que possibilita o desenvolvimento e crescimento do "eu". Existe o "outro" que impossibilita o desenvolvimento e o crescimento do "eu". A chave da polícia militante é a união entre aqueles diferentes que podem, junto ao outro, auxiliarem-se em sua missão.


A problemática – e a raíz da problematização – está no fato de que monodissidentes são fluídos. A militância, em seu sentido tradicional, muitas vezes se encontra em identidades bem construídas e bem definidas. A ausência de definição ajuda a levar a um natural apagamento. É por isso que a militância monodissidente não deve ser uma militância fechada, mas um outro tipo de militância. A militância monodissidente é uma militância dialógica. Ela não se encerra, ela tem a característica de apresentar várias pontas soltas, ela tem o detalhe de apresentar lacunas. E essas lacunas apresentam a capacidade de adentrar em variações teóricas que, em vez de reduzirem e impossibilitarem o seu avanço, aumentam a qualidade e sofisticação de sua síntese. Isto é, é pelo fato da militância monodissidente ser tão fluída que ela é tão rica em elementos distintos e essa riqueza de elementos distintos a tornam mais poderosa.


Quanto mais transmutável e permeável algo for, maior é a capacidade de uma articulação dialógica. Essa articulação dialógica aumenta o enriquecimiento teórico e prático. 

sábado, 3 de agosto de 2024

Acabo de ler "Queering Queer Theory" de Laura e Jennifer (lido em inglês/Parte 5 Final)

 


Nome completo do artigo: Queering Queer Theory, or Why Bisexuality Matters


Autoras: Laura Erickson-Schroth e Jennifer Mitchell


Falamos sobre a possibilidade da estranheza. Isto é, um mundo que transcende a normalidade e vai aquém dos domínios delimitados pelas vias usuais. A possibilidade queer, a possibilidade estranha, se choca sempre com o discurso normativista e a imposição normativa. As pessoas confundem a estranheza ou o diferente como uma espécie de doença. Toda anormalidade é tratada como doença. A normalização muitas vezes vem carregada de patologização.

Quando falamos sobre movimento queer queremos falar sobre a possibilidade de escolha. A liberdade atitudinal. A liberdade sobre o próprio corpo, sobre a própria vestimenta, sobre a própria utilização da sexualidade, sobre a própria capacidade de decidir. O movimento queer é sobre não ser condicionado por construções sociais que são postas como indiscutíveis. A discussão de gênero e sexualidade muitas vezes se pauta dogmaticamente por construções históricas e sociais que não são essenciais e muito menos absolutas.

A luta da orientação sexual começou com a construção de uma orientação oposta a heterossexualidade. A identidade homossexual foi posta, assumida e levada a cabo. Porém é preciso pensar na identidade bissexual e como ela se manifesta. É preciso que os bissexuais estejam em diálogo com o movimento queer, mas também pensem acerca da sua orientação sexual em particular.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Acabo de ler "Queering Queer Theory" de Laura e Jennifer (lido em inglês/Parte 3)

 




Nome completo do artigo: Queering Queer Theory, or Why Bisexuality Matters

Autoras: Laura Erickson-Schroth e Jennifer Mitchell


A primeira utilização do termo bissexual era no sentido morfológico e não a uma prática sexual. Naquele período, em 1866, o termo "bissexual" era o que hoje seria chamado de hermafrodita. Só posteriormente o termo bissexual se referiria a uma prática.

O desenvolvimento da "bissexualidade moderna", conceitualmente falando, passa por alguns entraves. Anteriormente se especulava que o desenvolvimento do homem era superior ao da mulher e que homens passavam por uma fase feminizada antes de adentrarem na fase masculina. O desenvolvimento insuficiente causaria um aspecto feminizado, isto é, causaria uma vida sexual com pessoas do mesmo sexo (homossexualidade). Um feto imaturo produziria um adulto bissexual.

Avançando mais pelo tempo, chegou-se a conclusão de que homens e mulheres são gêneros opostos e que bissexuais não saberiam vislumbrar a diferença – o antagonismo – entre esses dois gêneros. O que levaria a percepção de que bissexuais estão internamente em conflito, emocional ou psicologicamente imaturos, além de qualquer outra forma de instabilidade. O desenvolvimento teórico diria aos bissexuais que eles deveriam "se decidir". Alcançar a "maturidade", seja pela via heterossexual, seja pelo via homossexual, mas preferencialmente pela vida heterossexual. Bissexuais deveriam receber suporte para "compreender" as distinções entre os "dois sexos" e "seus antagonismos".

A ideia era levar bissexuais a compreenderem as distinções entre "os dois sexos" para que eles se tornassem adultos saudáveis. A ideia de que a preferência pelos dois sexos era contraditória, levando a cisão interna, era o norte da antibissexualidade: o bissexual está eternamente dividido, incapaz de ter relacionamentos e estabilidade mental, até que se cure da bissexualidade. Um pouco dessa mensagem ainda ressoa em tempos modernos.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Acabo de ler "Queering Queer Theory" de Laura e Jennifer (lido em inglês/Parte 2)


Nome completo do artigo: Queering Queer Theory, or Why Bisexuality Matters

Autoras: Laura Erickson-Schroth e Jennifer Mitchell


Uma orientação sexual invisível e estranha, presa e atacada por pessoas heterossexuais ou homossexuais, que insistem em encaixar bissexuais em sua ordem binária. A questão é: quando uma pessoa é forçada a ser ou se identificar como algo que não é acaba por sofrer. O sofrimento bissexual se dá ante a negação da sua própria existência, tal como se fosse "proibido de existir". E quando identificam alguém que é bissexual, mesmo no âmbito do debate público, logo insistem que essa pessoa é heterossexual ou homossexual.


Outra questão que surge na bissexualidade é a questão do privilégio. Para alguns homossexuais, as pessoas bissexuais gozam do privilégio de terem relações heterossexuais, elas podem esconder a sua própria bissexualidade. Em outros termos, bissexuais podem ser classificados, para algumas pessoas, como "traidores da causa LGBT". Para alguns heterossexuais, bissexuais escondem a sua homossexualidade ou estão num período de confusão. Existem aqueles que, aceitando a existência da bissexualidade, acusam bissexuais de serem promíscuos ou "levarem as doenças sexualmente transmissíveis de um campo para outro".


Com toda literatura científica do mundo contemporânea acerca da sexualidade, além das comprovações continúas da própria existência da bissexualidade, ainda há quem queira negar a nossa existência. A bissexualidade pode existir, pode até mesmo ser comprovada a cada segundo ou milésimo, mas não pode ser socialmente aceita por causa do discurso dominante. A razão da bissexualidade não ser socialmente aceita foi descrita na parte anterior a essa, mas torno a repeti-la: num mundo estruturalmente projetado para privilegiar heterossexuais, muitos não heterossexuais não querem se ver privados desse privilégio e preferem que a bissexualidade não exista, visto que uma vida pública – e até mesmo privada – heterossexual não seria comprovação autossuficiente de heterossexualidade.


Há uma chave dupla dos problemas bissexuais. O maior problema é a sua invisibilidade – por não ser socialmente aceito como existente – e o segundo maior problema são acusações de alto teor moralista e normativista. A acusação de que bissexuais são "incapazes de serem monogâmicos", imaturos e promíscuos. O fato é bissexuais existem num número igual ou superior ao número de homossexuais. Homossexuais e heterossexuais veem o mundo de forma binária pois isso é inerente a própria sexualidade deles, em outros termos, eles veem o mundo a partir de sua experiência pessoal – de forma empírica –, mas a experiência pessoal não é comprovação das suas teses. É impossível ver o que há dentro do outro, sobretudo a alguns aspectos que não são de natureza reproduzível.


Quando cobram uma estabilidade de bissexuais, cobram uma estabilidade pautada na visão monossexista. Isto é, no binarismo maniqueísta da sexualidade.  Estabilidade seria ser "hétero ou homo", mas isso não faz sequer sentido. Estabilidade é continuidade de algo através do espaço-tempo e quem é bissexual é bissexual a vida inteira, logo a bissexualidade é uma sexualidade tão estável quanto a homossexualidade e heterossexualidade. A negação da bissexualidade é algo muito mais ditado de forma narrativa ou ideológica. E os argumentos não surgem pautados por uma pesquisa séria, mas através de uma linha se raciocínio turva que existe para defender um grupo de outro.


A questão apresentada pela bissexualidade é bem variada. Ela apresenta múltiplos caminhos que escapam ao controle, seja de heterossexuais, seja de homossexuais. É um tabu falar que bissexuais são vistos como inimigos de homossexuais e heterossexuais, mesmo que isso não seja conscientemente admito por nenhum desses grupos – além de certas pessoas que prezam pela sinceridade. Homossexuais precisam de uma visão de estabilidade da sua sexualidade para lutar contra o heterossexismo, mas isso leva a eles a atacarem bissexuais, visto que a bissexualidade pode ou poderia apresentar a hipótese de que a sexualidade é uma escolha e não algo essencial, isso favorecia a narrativa heterossexista e a sua normatização forçada. Fora isso, a visão poliamorista que muitos bissexuais apresentam feriu – e ainda fere – a imagem monogâmica que muitos homossexuais quem passar para tornar a homossexualidade mais socialmente aceita. Há também o fato de que homossexuais veem bissexuais como potenciais traidores pelo fato de que bissexuais podem entrar em relacionamentos heterossexuais.

domingo, 7 de julho de 2024

Acabo de ler "Queering Queer Theory" de Laura e Jennifer (lido em inglês/Parte 1)

 


Nome completo do artigo: Queering Queer Theory, or Why Bisexuality Matters
Autoras: Laura Erickson-Schroth e Jennifer Mitchell

Quando falamos sobre identidade bissexual falamos de uma identidade apagada. Não só apagada, mas também marginalizada e estruturalmente excluída. A esse sistema que tenta apagar a existência bissexual chamamos de "monossexismo". O "monossexismo" prevê uma binariedade sexual (hétero-homo), como uma espécie de maniqueísmo sexual. O monossexismo é praticado por heterossexuais e homossexuais, deslegitimando a existência das pessoas bissexuais.

A narrativa monossexista traz uma vantagem para heterossexuais e homossexuais. Se uma pessoa heterossexual quiser fugir do martírio social da homofobia, basta ela ter uma demonstração de afeto pública com uma pessoa do gênero oposto. Esse "argumento triunfal" é, para essa pessoa, comprovação suprema de sua heterossexualidade. Já nos casos de homossexuais, a bissexualidade é um problema pois pode servir como uma "carta coringa". Isto é, heterossexuais poderiam "comprovar" que a sexualidade é uma questão de escolha ou de boa criação. É também mais prático para heterossexuais fingirem ou acreditarem que a bissexualidade não existe, assim fugindo da fiscalização de normalidade.

A bissexualidade é uma ameaça a heteronormatividade, tal como a homossexualidade também o é. No entanto, quando começou a se levantar a questão de uma identidade não-heterossexual, apostou-se na existência duma identidade contraposta a heterossexualidade (a homossexualidade). A oposição binária (heterossexualidade vs homossexualidade) é um reducionismo e a radicalização maniqueísta dessa tendência teorética dualista sustenta uma visão monossexista que leva ao apagamento e exclusão das pessoas bissexuais.

A teoria queer bissexual vai contra a teoria binária pois a teoria binária nega a existência da bissexualidade. A teoria queer bissexual defende a possibilidade de uma existência que rompa estruturalmente com a estrutura binária (monossexismo). Isto é, ela ataca fundamentalmente a estrutura classificatória e engessada que é imposta para restringir a liberdade romântica e sexual.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Borboletas no Estômago e Esqueletos no Armário

Todo dia que desfilo, lembro de esqueletos gritando e batendo no meu armário. Na performance contínua, extraío o que é do outro, extraío o absorvido e não absolvo meu espírito acorrentado. As eternas borboletas que estão no meu estômago não encontram espaço além do interior de meu interior, clamam por ajuda de meu corpo que resiste a corrente de meu pensar preservado. É sempre essa confusão, num rolo de constante desilusão. A vida virou um teatro em que sou ator. Sempre ator. Nunca autor ou autora. Sou o imaginado, não sou nunca a imaginação. Já que a imaginação não tem limite concebível e adentra no não-inteligível. Um imaginário é aquele que internamente sofre dentro da coisa imaginada. Imaginar-se é construir-se em desconstrução, ser imaginado é ser marginalizado pelo dedo do criador precário.


Sigo sempre triste ao saber, que não sou o que sou, sou o enquadro teatral de um pensamento outrora forjado. Os esqueletos de meu armário, batem todas as noites, nunca me deixando dormir com profunda tranquilidade. Até quando eles me recordarão que em mim há menos espaço para as borboletas do que para o outro? O outro que adentra pela noite, o outro que esmaga a borboleta imaginária. Ressentidas caveiras, não se esquecem nunca da tenra mocidade que era ingênua o suficiente para não ser teatralmente vivenciada, eles não vão sempre me dizer que o imaginário é o que sou e que não sou o objeto imaginado.  Minha atitude prostituta de forma oculta, oculta as borboletas que gritam silenciosamente em meu útero. Meu ser fálico faliu dentro do caixão que lhe deram aos poucos para que eu soubesse: serei sempre morto-vivo, já que quem vive dentro do caixão não vive. Eterno zumbi a caminhar nos limites inteligíveis e pré-ordenados pelas elites grã pensantes numa tradição atroz e retrógrada que confronta a liquicidade condenando o mundo a se congelar numa nova Idade de Gelo.


Minha expectativa não é o ideal, é um sonho socioeconômico realizável. É o que espero todos os dias ao voltar de meu trabalho performático é um pouco de respeito a minha atitude condicionada. Eu espero respeito por não ser quem sou, espero respeito por obedecer o limite da faixa. Trabalho alienantemente de me configurar ao meu enquadro. E é por isso que toda vez que adentro em meu quarto, esqueletos batem em busca de sair de meu armário. Tudo é performance, tudo é socialmente calculado. Em todo cálculo, viso privar a liberdade da borboleta que vive no armário de meu estômago nauseado. O que tenho que confessar, o que tenho que verdadeiramente falar, é sempre cortado pelo limite do enquadro.


A regra máxima é sempre econômica. É sempre mais austera que a própria austeridade. É a privação do ser para a prostituição do ser. É buscar o viável. É buscar sempre o viável e esquecer o inviável. Esquecendo-se de si em busca do pré-configurado. O preconceito contra si é a segurança de uma prisão preventiva que se molda dentro do molde do corpo, para que a alma psíquica não se exploda em imaginatividade manifesta.

sábado, 6 de novembro de 2021

Acabo de ler "Teoria Queer" de Richard Miskolci.




    Acabo de ler "Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças" de Richard Miskolci.

    Se anteriormente eu compreendia muito pouco da Teoria Queer, agora compreendo alguma coisa ou outra - mesmo que isso seja ainda insuficiente (e o saber nunca é suficiente). Também é incrível como a teoria queer me leva entender mais a obra de Judith Butler e a obra de Judith Butler me leva a Freud e Foucault com mais profundidade.

    Voltando ao livro, creio que esse livro apresenta uma criticidade fora do comum, visto que ele vai além do que usualmente se questiona. Muitas vezes, temos várias coisas como "dadas" e tomamos essas coisas por naturais. Todavia muitos "dados" nos são dados através de uma construção social que nos precedeu e tomamos essa mesma construção social como natural.

    O livro questiona a padronicidade de gênero que é tida por natural e é "naturalmente imposta". O livro visa desconstruir o discurso que quer legitimar uma uniformização da humanidade por padrões binários que não são tão naturais quanto se pensa, mas sim sujeitos à condicionalidades do espaço-tempo - só que quem pensa nesses padrões binários, crê neles de forma extremista, mesmo que nenhum deles seja tão natural quanto se especula.

    É importante observar que a verdadeira educação não pode ser, tal como tem sido, uma mera engenharia para reproduzir uma série de produtos construídas anteriormente. Isso é, na verdade, um processo condicionante e não um processo investigativo. Reproduz-se papéis bem delimitados de gênero no âmbito educacional tal como um condicionamento pavloviano. Logo a vida passa a se tornar uma performática para o enquadramento social, a vida deixa de ser vida e vira uma mera reprodução vivencial de um padrão que é reproduzido ad aeternum.

    É preciso relativizar o padrão hegemônico, é preciso expandir os horizontes através de relativizações constantes que elevem a liberdade humana em sua mais justa dignidade ilimitada. É preciso que a única delimitância seja indelimitada.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Agnosticismo Metodológico - ou: da Mortificação Literária como Predisposição da Inteligência




    
Muitas vezes eu me pegava me perguntando sobre a chave da interpretação teológica. Acabei notando que o pensamento teológico envolve aquilo que chamo de "virtude negativa", ou seja, uma virtude que vem a partir da mortificação que leva a abertura do ser ao outro (ou Outro). Essa mortificação que fecha o espírito para si mesmo e o predispõe a outro espírito é aquela que torna o ser apto a recepção do divino - só que não serve só para a recepção do divino, serve para receber qualquer outra pessoa ou qualquer outro pensamento ou coisa. Lembrava-me ocasionalmente de frases - que vou reproduzir incorretamente - como: "você deve convencer a si mesmo daquilo que Deus quer de você" e "a inteligência só é exercida quando se cala". Foi pensando nessas frases que melhorei meu método de estudo, não só no estudo da teologia, mas no estudo geral, já que todo estudo envolve uma liberalidade, uma tolerância que se entrega e torna-se aceitação.

    A leitura pode ser muito útil e pode servir como um exercício não só de tolerância, mas um exercício duma alteridade dialógica que faz o ser se abrir e, abrindo-se, cresce. A pessoa que lê deve tentar, durante a leitura, não apenas tolerar a ideia do outro, é preciso que a pessoa leitora vá além daquilo que é e tentar, por meio da leitura, tornar-se o outro. Se faz necessário um esvaizamento do espírito para que outro espírito adentre e relativize, não anulando, mas expandindo o horizonte de consciência. O problema de muitas leituras é a incapacidade de aceitação, já que a aceitação é amarga. No entanto, a aceitação é absolutamente necessária para o entendimento do outro. Isso dói principalmente no entendimento de obras que nos são opostas ou que tocam em pontos sensíveis, só que mesmo nesses momentos o entendimento precisa da aceitação provisória para fins de inteligibilidade.

    É preciso que a gente leia, leia com atenção e mais do que isso: com recepção. É preciso que a gente se mortifique para nos abrirmos a leitura do próximo. Leitura que só será possível quando a gente se mortificar, quando sairmos de nós mesmos momentaneamente para que o outro ocupe nosso lugar e conduza-nos ao entendimento dele. Claro que não conseguiremos nos abrir em absoluto, mas é preciso que saiamos de nossa vontade para nos encontrarmos com o próximo. Já que não cabe a vontade inteligir, cabe a vontade decidir. Quando a vontade pega o lugar da inteligência, vemos o preconceito tomar forma. Já que a vontade serve para julgar, só que não se pode julgar verdadeiramente o que se desconhece. A inteligência é aquilo que recebe e a inteligência só é exercida quando se torna apta a receber. É preciso, então, que entremos numa apostasia temporária de nossas crenças.

    Se para o entendimento se faz necessário um processo de abertura, é preciso que também se tenha um processo de negação de nossas próprias crenças. Nesse ponto, o agnosticismo pode ser a chave para a inteligência já que o agnosticismo declara que não sabe. O agnosticismo é um bom termo e uma boa metodologia no tocante a vida intelectual. É preciso se esquecer momentaneamente do que se sabe para que haja a apreensão do objeto ou do "subjetivo" estudado. O termo que se utiliza para a palavra que chamaríamos de "autoprivação", no âmbito religioso, é chamado de mortificação. A palavra mortificação, em meu entender, pode ser usada para o entendimento do "agnosticismo metodológico". A mortificação do próprio pensamento (da vontade) é necessária para o entendimento. Logo é preciso uma mortificação durante a leitura, mortificação que predisporá a pessoa ao estudo real e mais concreto, já que o estudo requer essa abertura. A "apostasia provisória" é a abertura para a alteridade sem a qual o conhecimento se torna impossível. Quando a vontade domina, tem-se não a epistemologia e nem a empatia, mas o oposto disso: a doxa (opinião) ou o preconceito.

    Virou-se lugar-comum falar da "democracia", falar de "empatia", falar de "tolerância". Só que todas essas coisas não são coisas que são "essenciais", já que elas não surgem de algo natural e já dentro do sujeito. Nós não somos "democráticos", nós "estamos democráticos". De igual modo, nós não somos "empáticos", nós "estamos empáticos". Na tolerância, o mesmo se serve: não se "é" tolerante, se está "sendo" tolerante. E fundo isso na virtude negativa: uma virtude negativa é uma virtude que é exercida provisoriamente, uma virtude que envolve uma negativa do ser para consigo mesmo. Aceitar o outro ou outras ideias envolve virtude negativa. Aquele que se diz empático, tolerante e democrático já afirma como algo dentro de si mesmo, como algo natural, e se tem como algo natural, aquilo que fala já se perdeu. Se você acha que está aberto, você simplesmente não se abre. É por isso que vemos uma contradição: muitas pessoas que se julgam democráticas, tolerantes e empáticas não são nada disso. Só que a própria auto-intitulação gerou um "estado hipnótico" que a faz não perceber mais nada. 

    Muitas vezes vemos pessoas dizendo coisas preconceituosas e muitas vezes essas pessoas detêm algum conhecimento ou estudam ativamente algo. Só que o estudo delas é direcionado abertamente a um horizonte de assuntos e crenças bem delimitado. Quando a pessoa vê outra epistemologia, seja de qualquer grupo a qual ela não se vincula, ela sente um certo medo identitário que a coloca numa insegurança que ela fará tudo para evitar. É por isso que a leitura pode ser uma chave de encontro com o próximo, a gente pode ler algo de diferente e abrirmo-nos ao entendimento não do que a gente já crê e sim daquilo que a gente simplesmente não crê. Todo estudo normativo cria um discurso da naturalidade e um discurso da inaturalidade. O discurso da inaturalidade é um discurso racionalizante de uma pessoa que apagou a luz por não poder se lidar com o próprio medo. Aquilo que gera incerteza ameaça a onipotência do pensamento e tão logo que causa uma ameaça, essa mesma coisa é demonizada e exorcizada do campo teórico. Em outras palavras, cria-se uma ideia de natural (normal) e cria-se uma ideia de inatural (anormal) para se rejeitar algo da realidade. Só que quando isso ocorre, acontece aquilo que poderíamos chamar de inversão dogmática: esse fenômeno, "a inversão dogmática", ocorre quando a vontade (faculdade de julgamento) passa a ocupar o lugar da inteligência (faculdade de abertura).

    Se a gente pudesse ilustrar um momento de "inversão dogmática", poderíamos ilustrar com a islamofobia da sociedade brasileira contemporânea. Muitas vezes vemos cristãos se lidando com o islamismo de forma desrespeitosa e, quiçá, penosamente duvidosa. Eu percebi que o islamismo traz um discurso sobre o divino que o cristianismo faz parte, mas não catalogou. Um dos fenômenos intelectuais que geram erros e mais erros é a ausência de autocrítica e a ilusão do pensamento para consigo mesmo. O estudante vê tudo com um olhar externo, onde a sua própria figura não faz parte da arquitetura de seu pensamento - isso cria uma ilusão narcísica-dogmática chamada: onipotência intelectual. Vendo tudo externamente, vê-se longe de qualquer erro e torna-se um típico "fariseu intelectual". Já que um dos fenômenos que levam ao defeito da razão é, por excelência, a onipotência do pensamento que vê todos os fenômenos que ocorrem como uma figura onisciente - essa é a ilusão central do pensamento que traz uma espécie de narcismo intelectual que se recusa a se ver como errada. O narcisista cristão não pode suportar o muçulmano dizendo que Jesus não é Deus, assim ele só pode fazer uma coisa: reprimir, seja o Islã, seja qualquer outra crença que ponha em dúvida a sua própria identidade intelectual e/ou religiosa.

    No fundo, o islamismo faz crescer uma dúvida teológica. E toda teologia nasce, em primeiro lugar, duma dúvida que é respondida por algo/alguém que o homem considera como superior. Só que o islamismo faz voltar o cristão vulgar para a terra da incerteza e isso destrói o que o cristão ocultou de si mesmo: a dúvida quanto a sua religião. O islamismo faz a consciência perceber que o discurso teológico, até então predominante, não era de fato onipotente - não era imune de erros. A inteligência cristã, apercebe-se não de sua onipotência intelectual, mas sim de sua impotência intelectual: o cristão percebe que não abarcava a tudo, que seu pensamento não era tão perfeito e tão pleno. E é por isso que dizem: "isso é satanismo", só que tudo isso é gerado por uma "fé fraca" e uma "inteligência adormecida". Mas, é claro, isso não serve só ao cristão para com o Islã. A onipotência do pensamento é um mito que circunda todo pensamento e toda construção de pensamento. E toda vez que uma construção de pensamento se lida com algo estranho - que lida com uma identidade profunda - há esse choque.


    Pensando um pouco mais longe, indo do terreno religioso para o terreno de gênero: esse caso serve também para o homem que vê, no efeminado, a dúvida quanto a sua própria identidade e valores. Toda desconstrução - seja no islamismo desconstruindo a teologia cristã ou no não-binárie desconstruindo o gênero - traz uma dúvida quanto a construção. A construção de gênero ressente a não-binariedade que a desconstrói. O cristianismo ressente o agnosticismo que não o aceita. O construído ressente-se com o desconstruído, já que todo construção envolve personalidade e algum grau de certeza. E quanto maior a certeza, maior o medo para com aquilo ou aquele (a) que desconstrói. Já que aquele que assume uma identidade também assume uma forma de vida (modus vivendi) e isso gera uma dúvida quanto a forma de vida que ele leva. Se toda ação que fazemos é marcada no tempo para não poder ser contornada, aquele que se privou de muitas coisas por causa de sua identidade acaba por perceber que, quiçá, tenha jogada a sua vida fora. Toda desconstrução, todo "outro", leva o questionamento do ser para consigo mesmo. A consciência-de-si necessariamente termina na dúvida-de-si e isso pode levar a um sofrimento.

    Para lidar com esse sofrimento de dúvida quanto a nossa ação temporal que é irremediavelmente registrada na história sem possibilidade de mudança - não há como mudar o passado, ao menos não agora -, cabe um ceticismo para com nossas próprias crenças e também a aderência de pensamentos que relativizam nossa própria seriedade enquanto seres existenciais. É preciso que a dialogicidade adentre não para uma relativização que leve a anulação de duas coisas, mas uma relativização expansionista que leva a elevação das duas coisas num paradoxo harmônico - eis aí, meus amores, a chave do entendimento da dialética chestertoniana e a chave para o entendimento da sanidade em Chesterton. É por isso que, abrindo-me ao oposto, durante a leitura: se leio um autor islâmico sunita, tento convencer a mim mesmo a me tornar um islâmico sunita; se leio um ateu irreligioso, ou, até mesmo, antirreligioso, tento eu mesmo me tornar um ateu irreligioso ou antirreligioso. Esse processo de mortificação me abre ao entendimento do próximo e de sua obra, já que a inteligência só é exercida quando se cala. Voltando a uma das frases iniciais: "é preciso que você convença a si mesmo que o oposto está certo". Só aceitando o próximo, mesmo que com desgosto da vontade, podemos ter uma maior compreensão dele. Assim fica mais fácil: aderir um agnosticismo metodológico que faça uma mortificação para com nós mesmos e nossas crenças nos abre à verdadeira leitura.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Castrando para não Castrar

 Castrando para não Castrar


    (Esse texto é um texto inspirado em Freud, mas não só nele. Surgiu como ideia enquanto eu estudava sobre a teoria queer e lia um texto chamado "O Estranho" de Freud. É um texto que tende a heterodoxia ideológica e não se prende a um esquerdismo ou direitismo vulgar.)


    É preciso que eu me castre sempre para que não me castrem. A castração social é um mecanismo tão efetivo que adentra na interioridade de minha psiquê. E o que era anteriormente uma proibição social, torna-se uma proibição psíquica. O medo que a sociedade me impõe leva a um automedo autocastrante. A reprovação que vem de outrem, logo vira uma reprovação que vem de meu próprio coração. O medo que a sociedade tinha de mim, logo virará o medo que vem do automedo.


    Eu poderia um belo dia passear tranquilamente com uma saia escocesa num lindo parque, mas uma pessoa como eu não pode, já que o discurso aprioristicamente proibiu: saia é coisa de mulher e homens não usam saias. Em vez disso, jogarei futebol, mesmo que eu tivesse preferido ficar em casa lendo um livro - já que livro algum me proíbe. Só que tenho um compromisso, um compromisso marcado com a agenda que não fiz, é a agenda que tenho que cumprir. Já que a sociedade me diz: você é homem, aja como tal. Se eu for aquilo que alguns chamam de "não-binário", castrar-me-ão, então a solução é eu mesmo me castrar para que a sociedade não me castre.


    Scruton separa o "estar com o outro" do "estar no outro". Já eu, um pouco mais tímido e introvertido. Separo o "estar em mim" do "ser a mim". Já que não sou o que sou.


    Kant fala sobre o a priori e o a posteriori. O a priori é o que não precisa de justificação pela experiência. Já o a posteriori é o que vem com a experiência. Só que o discurso que a sociedade me impõe, o discurso que me regula, ele sempre vem a priori e impede todo o posteriori. Eu aceito o que a sociedade me diz, eu aceito toda a construção social que me precede, já que a construção social que me precede também é a construção social que me prevê. Sem a construção social que me prevê, como poderia andar em segurança? Já que só se anda em retitude de passos passados que marcam mais do que a experiência em si. O que me segura é o que me protege da liberdade, mas a liberdade é tão mal falada que causa mais medo do que a segurança que antecede a liberalidade. E a segurança é sempre normativamente fidedigna e garantidora pela a sua fórmula de sucesso.


    Eu poderia descobrir qual batom fica melhor em minha boca, mas não o farei. Já que a sociedade me disse que eu sou homem e mesmo que eu não tenha experiência própria em ser homem e não saber o que é o "homem em si" para me afirmar como homem, assim seguirei fidedignamente, numa retidão moral neurótica e infeliz, só que garantidamente segura. Já que o caminho da masculinidade já foi previsto, sendo previsto, é inteligível. Tudo que é inteligível é bom e o que não é inteligível é ininteligível e o ininteligível é o que dá medo. Já que o ininteligível é novo e também é o oposto do familiar, já que o oposto do familiar é o ifamiliar.


    Gostando eu de duas pessoas e essas duas pessoas gostando de mim e essas duas pessoas gostando umas das outras, cada uma terá que escolher apenas uma e cada uma sentirá parte de uma tristeza correlacionada a uma monogamia forçada, mas socialmente desejada. Já que o desejo que posso não é o desejo que desejo e sim o desejo que é previamente estabelecido. E tudo que é previamente estabelecido é socialmente trajado, socialmente imposto e socialmente necessário. O necessário antecede o ser e ultraja a minha alma, todavia o necessário é o necessário e o dever é o dever mesmo que o necessário, no fundo de minha alma, seja o imprevisto e não o imposto. Só que o imposto é o imposto, socialmente imposto e o imposto que mais dói não é aquele que com o dinheiro pago e sim aquele que com minha existência pago sacrificando a minha alma.


    Deus é Mamom? Deus é Cristo? Não, Deus é a sociedade. Sendo a sociedade normativamente imposta, tem-se não só a sociedade, tem-se também a idolatria social que confere a sociedade o poder de Deus. Sendo a sociedade Deus, a sociedade é inquestionável. Sendo a sociedade inquestionável, aquilo que é socialmente construído e previamente estabelecido é inquestionável. A única coisa questionável não é a sociedade em seu juízo que me parece hipócrita, a única coisa questionável sou eu e esse mesmo eu deve se curvar eternamente perante o construto social.


    Eu poderia descobrir pontos de convergência teológica entre o Islã e o Budismo, só que a única escolha que se tem no campo religioso é o cristianismo e 50% do judaísmo. Eu poderia juntar Chesterton com Foucault, só que os academicistas me condenariam. Só que, ao menos no fim do texto, quero ousar alguma coisa e dizer algo de original e inesperado. O enigma da prisão de Chesterton diz que os homens preferem escolher a melhor prisão em vez de sair da prisão. Só que há um porém: toda nova casa é uma prisão. Toda nova ideologia é uma prisão. Todo discurso cria uma prisão. Tudo que é antinormativo cria um novo normativo que logo se torna prisional. Então, qual seria a saída da prisão? A saída seria permanecer na prisão, aumentando-a infinitamente até que se torne cada vez menos prisonal. Já que a complexidade da sanidade não é um círculo que apenas dá voltas, mas um círculo que se expande. Nesse sentido, o movimento queer é mais libertário que o movimento gay - já que o movimento queer saiu da criação delimitada e foi para a criação continuamente aberta.


    Já disse demais. Em todo meu texto há contradição, só que o texto que fiz, cheio de contradições, ainda é melhor do que minha mente que está cheia de contradições. Só que que as contradições que carrego são necessárias, já que só a contradição leva a singularidade. E eu já disse isso em outro texto: "eu sou eu e minha contradição, se não salvo a minha contradição, não salvo a unidade de minha consciência". Se junto Roger Scruton com Karl Marx, misturando conservadorismo com marxismo, ou se junto Chesterton com Foucault, misturando tradicionalismo com pós-modernismo, assim o faço porque o próprio Chesterton disse que se um homem visse duas verdades, levaria as duas no bolso e a contradição junto com elas. Se sou contraditório é porque sou sistemático. Sistematização é sistematizar-se, sistematizar-se é pôr-se por inteiro.