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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Blog Cadáver Minimal

 O Blog Cadáver Minimal


– É um blog acadêmico que tem como fim a análise do debate público de diversos países do mundo, mas com foque central no continente americano;

– Analiso, de forma razoavelmente imparcial, pensadores dos mais diversos espectros;

– Os assuntos se centram nas ciências humanas, mas você poderá encontrar conteúdos que escapam um pouco desse escopo;

– Como a natureza do blog é analisar o debate, ele não se prende a uma análise conteudistística voltada à esquerda, à direita ou ao centro, mas ao debate em si;

– O blog varia em períodos, ora analisando mais questões e doutrinas que outras, mas isso não altera a natureza de analisar o debate em si.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Paulo Francis, Polemista Profissional" de Paulo Eduardo Nogueira

 



O que define um intelectual marcado pelo paradoxo? Sua aversão à crescente coletivização da consciência acadêmica em prol duma seitização do debate me encanta. Sabemos que, hoje, há uma tendência perniciosa que confunde escolas de pensamento com unidades doutrinais de sistemas teológicos que só podem ser aderidos por inteiro ou negados por inteiro. Com tal comportamento, vemos a negação sistemática do livre pensamento, do livre exame e, por fim, da consciência individual como consequência lógica deste encadeamento trágico.


Paulo Francis é um homem contraditório, de erros e acertos. Isto não é uma desqualificação: é a própria natureza humana que assim o é. A humanização do debate, se considerada seriamente, começaria pela aceitação da subjetividade humana. Isto é, em vez da classificação e adesão restrita aos conteúdos unitários de escolas de pensamento - tomadas em sentido religioso -, teríamos que considerar a pessoa, sua subjetividade e a individualidade de sua construção intelectual. Atualmente o que temos é um classificacionismo que visa, antes de tudo, transformar o debate em ordens tribais em que as pessoas são justificadas perante a sua tribo e condicionadas a elas.


A própria hipótese de que alguém possa, por livre exame, chegar a uma construção intelectual autêntica soa como uma heresia e é tomada com desdém ou com incredulidade. Em vez de pensar na pessoa em si, pensa ela em relação ao grupo e ao suposto grupo que pertence. O debate sempre terá frases como "isso vai em contradição com o seu grupo" ou "você está em contradição com a sua escola". Aos partidários dessas seitas infernais, uma resposta é necessária: minha escola é o mundo e meu método é o livre exame. Intimamente a consciência individual importa mais do que o (auto)condicionamento irrestrito.


Francis errava, como todo ser humano. E errar é da natureza humana. As críticas a Francis escondem mais do que ao erro "X" ou "Y", escondem uma postura disciplinada de tribalismo coercetivo que condena sobretudo a quem pertence supostamente ao grupo que se odeia ou ao grupo que se deve aderir fielmente como crente.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Agradecimentos

 



Fui buscar meu diploma hoje. Várias memórias se passaram dentro de minha cabeça, era como um episódio de flashbacks. Até aquele período em que estudei depressivamente, desmoronando pela submersão de vários sentimentos, tornaram-se alegres. Uma sensação, um sentimento de conquista justificado pelo esforço e a capacidade de não desistir.


Passei 3 anos em uma labuta, indo quase toda semana pegando livros da biblioteca em paralelo às aulas diárias que tinha. Durante o curso, frequentei duas bibliotecas para complementar a minha formação literária, fora alguns cursos que executava em paralelo. A formação se deu pelo esforço, muitas vezes foi uma batalha de vitalidade e persistência para dar continuidade a uma série de estudos privados e de ordem curricular. De qualquer modo, sempre decidi ir além. Eu tentei conciliar e fiz, na medida do possível, uma série de estudos que complementavam o curso.


A faculdade foi-me mais do que um compromisso burocrático. Era-me um mundo inteiro. As disciplinas - nem todas, mas a maioria - me encantaram. Os assuntos tratados, na sala de aula ou fora dela, foram-me de máxima importância. Em pouco tempo, eu, garoto revolto, tornei-me tão acadêmico quanto poderia ser. Embora eu sempre tenha mantido um olhar para aquelas questões e autores pouco olhados, visados ou admirados. A vida me foi como um grande pancânon dialético e ainda o é. A dialogicidade e a necessidade de negar-se para ir além do aceitável para mim mesmo me foi compromisso antes, durante e depois do curso.


Agradeço aos carinhosos professores, amigos e companheiros que, durante esse trajeto, acompanharam-me e ajudaram-me. Espero sempre estar, mesmo que espiritualmente, ao vosso lado. Foi difícil a minha trajetória, já que além de autista eu sou bipolar e tudo se atrapalha no meu autocentramento e mudanças de humor. Só que consegui superar isso e ir além graças a vocês. Também sou grato imensamente a minha família que esteve ao meu lado em todas essas múltiplas crises que se apresentaram em meu caminho. Espero um dia ser digno do amor que recebi de todos vocês.


Ao terminar essa postagem, sinto que estou mais velho e, quiçá, mais sábio também.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Uma defesa peculiar do livre-exame!

Penso no livre-exame da seguinte forma. Há três formas de se propor uma leitura de forma geral e essas três formas são: 

1- Leitura dogmática ou coletivo-normativa; 

2- Leitura livre-exame; 

3- Leitura livre-interpretação. 


A leitura dogmática não é por mim aplicada tão somente ao domínio das religiões, mas igualmente a qualquer método que leve a compreensão dogmática ou delimitada do pensamento. Creio que, cabe aqui, um adendo: há uma espécie de objetivismo-coletivista na leitura dogmática. Um objetivismo-coletivista está sempre assentado numa tradição de pensamento de determinado grupo, seja esse grupo religioso, ideológico ou filosófico. Assim sendo, toda leitura presumidamente dogmática segue alicerçada por uma mentalidade objetivista-coletivista. Aquele que está inserido formal (conscientemente) ou informalmente (inconscientemente) numa tradição sempre acaba por ter o resultado da leitura pré-modelado pela doutrina em que fixou e delimitou seu pensamento. Existe então uma “inteligibilidade plausível” de interpretação geral sobre todas as coisas sempre correlacionada e subordinada pelo mecanismo de interpretação dado por um grupo determinado. A leitura dogmática é viciada pois seu leitor é viciado numa escola de pensamento, doutrina e ideologia.


Podemos dizer que mesmo no campo ideológico político há uma leitura delimitada que produz resultados delimitados, tal leitura é, para mim, dogmática, pois sempre gira em torno de resultados já predefinidos pela chave de interpretação do texto. O dogmatismo pode estar ligado a algo que não é “uma verdade religiosa”, mas sim a uma “verdade coletiva” de determinado agrupamento social. Tal “verdade coletiva” filtra o pensar através de suas crenças e propõe sempre um resultado enviesado por um vício de pensar.


Leitura livre-interpretação é uma leitura descomprometida com o debate, é uma leitura inteiramente livre de qualquer debate sobre a natureza interpretativa do texto. E nquanto o leitor dogmático quer chegar a uma interpretação predefinida por uma linha de pensamento, o leitor livre-interpretacionista quer chegar a uma conclusão sem qualquer intermediação de ninguém e indo para um caráter individual-subjetivo de interpretação. Podemos ver que daí surge um subjetivismo tacanho que coloca o sujeito leitor como autoridade absoluta. Em vez de subordinar-se a um grupo predeterminado, subordina-se sempre ao próprio leitor e faz surgir uma leitura desinteressada pelo próprio debate acadêmico e impossibilitada de ir além do próprio leitor. 


Leitura livre-exame é uma leitura cuja o fim real é um debate intermediado. Ele não se prende ao subjetivismo-individualista e nem ao objetivismo-coletivista. Em vez disso, ele quer um debate franco que se atenha num número de interpretações razoavelmente possíveis. Diferentemente da leitura dogmatizada, não há um grupo de pensamento que subordina a leitura num resultado ideologicamente presumível. Diferentemente da leitura subjetivista, há uma atenção aos grupos de pensamento e as suas possíveis interpretações. É uma leitura intermediada por não se filiar a nenhuma tradição de pensamento e de interpretação. É uma leitura intermediada por não querer ser uma leitura egoísta, subjetivada por estar subordinada ao sujeito leitor como intérprete absoluto.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Acabo de ler "A sexualidade segundo a teoria psicanalítica freudiana e o papel dos pais neste processo" de Elis Regina e Kênia Eliane

 



Estudar psicanálise não é algo fácil e demora a vida toda. Como não sou nenhuma espécie de ser com aprendizado linear, resolvi complementar a leitura. Fora que ler artigos acadêmicos aprimora a capacidade de fazer bons artigos acadêmicos - o que pra mim é essencial.


Esse livro aborda as cinco fases do desenvolvimento: oral, anal, fálica, latência e genital. O interessante é que elas são explicadas tendo como objetivo de ser usadas na pedagogia e no aconselhamento dos pais. A razão é de que não de quer uma pessoa que cresce com traumas e complexos. Ver a psicanálise como uma ferramenta do desenvolvimento infantil é fantástico e muito útil, sobretudo pelo fato de que demonstra a amplitude da psicanálise.


Outro fato importante a ser comentado: as fases do desenvolvimento psicossexual são bem interessantes de serem analisadas. Aprendemos que a sexualidade é muito mais genitalidade e que somos seres sexuais desde o início de nossas vidas. Fora que temos que nos lidar com os nossos desejos e aprendendo como são, aprendemos a mesurá-los.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Terminei de ler "Fé Cristã, Razão e Secularismo: uma síntese do pensamento de Joseph Ratzinger"

    Terminei de ler "Fé Cristã, Razão e Secularismo: uma síntese do pensamento de Joseph Ratzinger" escrito por Heber Ramos Bertuci.


    A teologia que é o discurso sobre o divino é algo que sempre houve, houve até mesmo antes do surgimento do cristianismo, mas que é característica distinta da religião cristã devido a sua qualidade, quantidade e intensidade. O cristianismo desde o seu nascimento buscou a aproximação com a filosofia, sempre fusionando a mentalidade grega com a hebraica. Tal caldo cultural possibilitou o surgimento do discurso cristão enquanto tal. Apesar das constantes brigas e intrigas: o cristianismo é uma religião intelectual e sempre o foi. 


    Poder-se-ia dizer várias razões para se falar da intelectualidade cristã, mas deveríamos visar em primeiro lugar o básico. O que são as "religiões do livro"? São as três religiões abraâmicas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Nessas religiões, só se é possível ser verdadeiramente fiel se se for alfabetizado. Decorre-se desse fato a necessidade de se alfabetizar para se religiosizar. Já que todas essas religiões requerem a leitura de seu livro religioso. Começa-se a partir daí o desenvolvimento intelectual cristão: o contato com a sua religião depende da leitura de um livro. Só que quem quer se tornar mais cristão, inserir-se-á num esforço erudito de leitura comparada acerca de sua religião. A meditação cristã é, também, caracterizadamente intelectual: lê-se e reflete. É por isso que as pessoas cursam teologia, estudam teólogos, leem comentaristas bíblicos, estudam história da Igreja, buscam entender a vida de grandes santos. 


    Os primeiros cristãos entregavam-se a apologética (defesa da fé) já de maneira intelectual. A própria noção de teologia cristã é assim dita: 

"Assim, a Fides et Ratio conceitua que a teologia no sentido cristão: trata-se da '... elaboração reflexiva e científica da compreensão da palavra divina à luz da fé...'". 

    O cristianismo nunca se furtou ao debate intelectual e sempre produziu grandes intelectuais. E a doutrina cristã sempre se ampliou e ainda se amplia em constante evolução intelectual.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Acabo de ler: "Os Estudos na Ordem Dominicana"

 “In dulcedine societatis quarere veritatem"

(Na suave harmonia de uma comunidade fraterna, procurar a verdade em um estudo constante)




    Acabo de ler "Os Estudos na Ordem Dominicana" de Frei Carlos Josaphat OP.

    Esse "livreto" de 32 páginas foi a minha leitura diurna de hoje. Estou realmente feliz por ter entrado em contato com esse pequeno documento. Ele era a porta que eu precisava para entender a Ordem dos Pregadores (vulgo Ordem Dominicana). A forma com que essa ordem se liga a um exercício constante de estudo e de oração, em que cada convento é em si uma "escola", demonstra que o mundo ainda pode ter locais de contínua edificação. Usualmente estamos presos a rotinas emburrecedoras que têm a educação como algo meramente utilitário para a vida - e talvez até dispensável. Não se estuda porquê o estudo é também vida, mas sim por alguma razão utilitária - ascender a algum cargo, ter algum diploma ou conquistar alguma coisa. Os dominicanos têm uma relação mais pura com a vida intelectual e isso me encanta bastante.


    "Uma Ordem religiosa, uma comunidade que tendesse à perfeição evangélica, mediante a consagração da inteligência e fizesse do estudo sua grande ascese, nascia, portanto, como uma aspiração e uma exigência da Igreja, plenamente e em boa hora compreendidas por um grande Santo" 

    A Ordem Dominicana é muito interessante em muitos aspectos, só que é caracterizadamente intelectual. E sua inteligência é algo visto na amplitude de seus membros, todos dedicados a vida intelectual. O próprio convento é, em si, um local edificante: faz-se que se tenha tempo para o estudo e o estudo é élan vital da Ordem. A Ordem Dominicana é cheia de cursos e intelectuais. Um recanto de sabedoria e inteligência num mundo pouco amante da sabedoria e da vida intelectual como o nosso. Amar o estudo, consagrar-se ao estudo, é cumprir não só uma vocação puramente humana, mas também divina. O dominicano não pode ser só em coração dominicano, mas também em inteligência. Por tudo isso, a Ordem Dominicana é amável e, não só amável, como perfeitamente desejável e um exemplo de vida e inteligência para todos.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

RECOMENDAÇÃO DE AUTORES E LIVROS!

Atenção: esse texto é uma adaptação de uma postagem do facebook para o blog - fiz algumas adições para tornar o texto mais sério e, quem sabe, mais rigoroso. (A final, não sou tão produtivo para ficar criando conteúdo todos os dias, então tenho que me virar com as anotações, os comentários e os textos que tenho espalhados por aí).

    Por que não aproveitamos o tempo que estamos sem ver pornografia para ler livros? Nesse tópico, recomendem autores para a galera do grupo.

Recomendo a leitura da obra de:

- Chesterton:



O autor é católico, mas se você não é católico e acha que não deveria lê-lo por isso, saiba que: até mesmo o marxista Antônio Gramsci o elogiou. Chesterton é considerado o príncipe dos paradoxos, suas obras são focadas na construção de pensamentos paradoxais que elevam o campo de visão. Pode-se dizer também que suas obras são focadas na defesa do cristianismo - ou seja, são obras apologéticas -, só que a forma com que ele defende o cristianismo é cômica, inteligente e elegante. É um dos meus autores prediletos. 


- Nelson Rodrigues:


Autor brasileiro que eu mais li. Amo a forma que ele escreve. Nelson Rodrigues era "odiado pela direita" por causa da forma que desnudava a hipocrisias morais da classe média - e nesse sentido era um moralista. Um autor moralista é algo bem interessante: ele expõe ficcionalmente a vida de uma pessoa ficcional - que é uma forma de "conceito aplicado por simulacro" - que traduz uma mensagem moral. Só que era ele mesmo um autor conservador e um dos mais geniais que surgiu no Brasil. Sua obra foi e é aclamada pela esquerda e pela direita. Embora ele tenha, por um tempo, protegido o regime civil-militar. (Aviso: algumas obras podem conter gatilhos se você tem problemas com vício em pornografia).

- Simone Weil:



Freira anarquista, é uma das maiores místicas que o planeta Terra já viu. Pode ser até mesmo a maior mística que a esquerda já produziu. Para mim, uma das maiores escritoras da esquerda e uma das maiores anarquistas que já pisou na Terra. A ela pertence uma das obras que mais gosto: "A Gravidade e a Graça".  

- Haruki Murakami:



Excelente escritor japonês. Um homem fantástico e capaz de apresentar a densidade de roteiros profundos. Ele já foi indicado ao Nobel da Literatura é um dos maiores escritores japoneses da atualidade. Sua obra me é de imenso agrado e também muito marcante em toda minha vida. É-me um autor obrigatório e fortemente torço para que ele um dia ganhe o Nobel da Literatura. (Aviso: algumas de suas obras podem conter gatilhos).

domingo, 1 de agosto de 2021

Nem eu sou, nem tu és - Covil de Máscaras


"Minha maneira de caminhar"
"Eu não mudei, só ganhei alguém pra me acompanhar"
"A vida inteira que eu quis voar"
"O que pesava demais eu deixei e fiz minha mente decolar"

 

    Nem eu sou, nem tu és. E como nenhum de nós podia ser ao lado do outro, é melhor não ter um laço que prende para dividir. Esse é certamente o texto mais triste que já escrevi. Eu de fato cresci ao teu lado e talvez tenha crescido ao meu. Foi um milagre enquanto durou. E de fato foi um milagre: de todas as combinações possíveis, essa talvez tenha sido a melhor. A amizade é uma forma de loucura. Ela do nada aparece e nos tira a máscara. De repente na amizade percebemos: somos quem somos e somos quem somos já que estamos com alguém com quem podemos ser. Na amizade, você não se justifica, você é tão leve tanto quanto nasceu. Isso é a amizade e esse é o dom da amizade: a transparência da sinceridade. A amizade, o amor e a família são bons na mesma medida em que não têm peso. O filho se afasta da mãe e do pai na medida em que já não pode ser sincero com sua mãe e com seu pai. O namorado abandona a namorada quando já não suporta mais ter que fingir. A amizade dura até que tenhamos que vestir roupas morais - a amizade dura até quando podemos ser quem somos ao lado do amigo, aí a amizade acaba. Depois disso, há peso, cansaço e morte. 


    Num belo dia, andávamos de ônibus. Foi a primeira vez que você esboçou ódio com tanta claridade. Eu senti todo teu ódio na inteireza de meu coração. Naquele momento, eu percebi que ao seu lado, não poderia ser eu. E que ao meu lado, você não poderia ser você. Libertá-lo era simultaneamente libertar-me. Nosso laço agora era um abismo para cada um. Nossos corações já não se tocavam, cada qual se autocentrava em seu mundo. Cada qual num perfeito e sincrônico divórcio - e de separação talvez você entenda mais do que eu, já que é disso que mais tem orgulho. Éramos não mais amigos, éramos estranhos. Só que isso era para mim um fato desde que te conheci: nunca tivemos semelhanças reais. E conforme o tempo passava nossas dessemelhanças cresciam. Ignorávamos o óbvio destino dissoluto como tolas crianças num jardim de infância. Você era como um liberal extrovertido impondo a sua ditadura liberal ao mundo e eu era como um introvertido nato lutando pela preservação de meu espaço - não, não sou duginista, mas isso é o que sinto realmente. Segundo Robert A. Johnson, há dois caminhos para a masculinidade: o cavalheirismo e o eremitismo. Embora hajam infinitas variações para os dois. Você, desde que te conheço, é um homem que escolheu ser cavalheiro, ascender socialmente. E eu quero ser um eremita, buscando meu desenvolvimento interior. Logo busco apenas subsistência para continuar em minha prática religiosa e intelectual. Isso não quer dizer que não procure um emprego, vou começar a buscar a partir de amanhã. Faz parte de minha reforma vivencial planejada há um pequeno tempo, mas afastar-me de ti é algo que penso desde que te falei do "Incolor Tsukuru".


    A vestimenta moral é um eterno desastre. Adão se vestiu perante Deus e, desde então, a humanidade não era mais o que puramente era, mas um jogo de justificações em que a consciência individual se perdeu. A vontade de poder só existe por causa da inaturalidade da personalidade humana que não pode mais ser, mas estar numa qualidade relativa de maior ou menor plenitude. Ao decair do paraíso, havia a escassez de recursos. Nela, na queda do homem, criou-se o reino da necessidade de qual falam os socialistas Agora a possibilidade de ser se vinculava a preservação física do próprio ser. O homem tinha que escolher entre ter um emprego e ser um sincero filósofo que questiona a sociedade e também a si mesmo. Para que alguém seja o que é, é preciso que ela saia da casa de seus pais. De algum modo, você deve ter sentido isso com sua família e largou-a para buscar maior liberdade de ser. E, de fato, onde se tinha respostas diretas, rápidas e certeiras, agora se há racionalizações. A criança cresce e não pode mais falar e nem pensar com a mesma liberdade de outrora ao lado dos pais. Adão não estava mais nu. Seu discurso moral agora pesava, era um discurso "justificacionista". Em outras palavas, Adão se tornou falso na medida em que tinha que se justificar. Ele não podia falar o que de fato queria falar. Eu senti algo semelhante ao teu lado: fazia poses inaturais que gastavam energia. Nossa relação começou leve, tão leve quanto o vento, no fim se tornou grave de tanto peso: para mim e para ti. Ao teu lado, eu não era mais eu. Justificar-se, posar, fingir: tudo isso envolve peso. Só que peso é gravidade. Quando menos percebi, estava vivendo um jogo de vivo ou morto: levante-se para mentir, sente-se para ficar livre momentaneamente. Estar ao teu lado tirava a autenticidade e pureza de meu ser. E de igual modo, privo-lhe de ser autêntico ao meu lado. No ônibus, pensei o seguinte: "se a gravidade aumentar mais um pouco, não seremos mais estranhos, seremos inimigos". E já que não somos mais amigos, não quero fazer com que sejamos algo mais estranho que estranhos, não quero que nos tornemos inimigos. Como eu prefiro não ter inimigos, afasto-me de ti. Já que com inimigos só posso ter batalha por sobrevivência.


    A diferença entre mim e você, é que eu sei que há uma adesão normativa em qualquer grupo ou pensamento que se filie. Eu sei que, no momento em que fui do mundo, aderi normativamente uma mentalidade hedonista e liberal do mundo ao mesmo tempo em que rejeitava o cristianismo. Ao mesmo tempo em que parcialmente rejeitava trazer pessoas religiosas ao meu íntimo. No íntimo, só podem haver iguais. E como eu era liberal, hedonista e niilista, só poderia ser autêntico com liberais, hedonistas e niilistas. Não se pode falar sobre uma vida sexual liberal para um colega que defende a vida monogâmica. A intimidade se perde na ausência de autenticidade. E como eu quero que você seja você e que eu seja eu, o melhor a fazer é separar. Você escolheu se afastar de pessoas religiosas num ato de liberdade, mas possivelmente condenaria pessoas religiosas que se afastam de pessoas irreligiosas em um ato de liberdade. Cristianismo, para ti, é um retrocesso. Em sua forma de ver, todo avanço em direção à religião é um erro, ao menos para ti. Isso se dá pela seguinte razão: para você a religião não importa, para você a religião é um engodo. Para mim, o mesmo não se segue. Só que para ti a evolução natural da história é essa. Isso é obviamente um mito hipotético esquerdista, mito que talvez seja também hipnótico, em que o autor da história sempre se confere o maior avanço no tempo. E isso faz com que você inconscientemente repugne e afaste pessoas com algumas diferenças intelectuais. Do mesmo modo que um religioso se afasta de irreligiosos, você se afasta de religiosos. Uma frase minha que sempre me lembro e sempre me falo é: "os parcialistas parcializam a razão". Você é vítima de sua própria parcialidade sem sabê-lo. Quanto a mim, a totalidade do mundo abarcado me faz querer não me parcializar, mas para tal devo afastar as paixões que me parcializam. Minha parcialidade é recusar a parcialização pelo amor a Deus, essa é a delimitância indelimitada.


    A crescente complexidade de meu pensamento necessita de Deus para aceitar todas as coisas para se tornar mais complexa. Não posso, então, parcializar-me. A vida para mim não é sexo. A vida para mim não é bebida. A vida para mim não é economia. A vida para mim não é raça. A vida para mim não é nem política. A vida para mim não é você. A vida para mim é tudo e isso e ainda mais. Logo não posso ser limitado por isso. Deus é, para mim, tudo isso em perfeição e em plenitude. Logo é a pura liberdade, Deus é pura liberdade e a religião me liga com todas as coisas e pessoas. Só que só posso me ligar com todas as coisas e pessoas por um preço: nenhuma delas pode pseudotranscendentalmente me levar ao esquecimento de Deus. Esse para mim é o sentido profundo da liberdade cristã e expresso por Paulo na Carta aos Romanos.

Romanos 13,13-14:

[13]Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de contendas, nada de ciúmes.

[14]Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites.

    

    E sei que, no final, todos os avisos e argumentos teológicos lhe soam estúpidos. Já que eu odeio aquilo que mais ama e você odeia aquilo que mais amo. E você dirá: "esse alienado, alienou-se e foi-se embora por causa de sua religião". O que para ti é tragédia, para mim é comédia. O que para você é comédia, para mim é tragédia. Isso deve ser superado pela aceitação paradoxal das duas coisas, só que essa aceitação não pode ser autoanulativa tal como o símbolo da cobra que come a si mesma. Isso deve ser superado levando ao crescimento dos dois. O fim do paradoxo é não só a circularidade continuativa, mas o crescimento dessa mesma circularidade. Devo, para isso, fazer com que você não seja mais meu melhor amigo. Podo a árvore para que ela cresça saudavelmente. Julgar-me-á um fanático, julgar-me-á um preso e um alienado. O que sinto por ti é o mesmo: esse alienado alienou-se e pretende largar o próprio emprego por causa de sua irreligião e seu pensamento. Esse alienado alienou-se ao ponto de querer afastar-se de todos por conta de sua irreligião e seu pensamento. Esse alienado fez a si mesmo um monumento, no qual se vê como imperativo histórico categórico e a qual todas as pessoas do tempo devem se curvar e se tornar como ele. A única coisa que peço a um homem é que seja o que escolheu ser, o que é e o que idealmente segue. Não peço a um islâmico a adaptação a um regime liberal. Vejo que em ti a liberdade consiste em Nietzsche, a vontade de poder. Só que isso é uma aderência normativa a ele, embora você possa fingir que adere a si mesmo. Em mim, não há uma real "aderência normativa" no sentido ideológico - nego a imanentização escatológica e ideologias me são como religiões deformadas por causa de sua má estrutura fôntica: a teologia me oferece uma constante necessidade de purificação epistemológica que aumente a abarcabilidade de meu horizonte de consciência. É por isso que o centro de meu pensamento não é um homem, não sou antropoteísta para declarar o homem como limite transcendental e o homem como um deus, o meu fôntico é um Deus onisciente, onipresente e onipotente. Nunca o abarcarei, mas numa delimitância indelimitada dedicarei a minha vida a isso. Se eu desisto disso, acabo por me perder numa parcialidade qualquer que obscurece a minha capacidade de pensar. É por isso que aquilo que eu chamava de loucura verde era pensada no "ser-mais-ser" e não numa crença, vício ou ato que parcializasse o ser. O fim supremo do ser é ser um ser ser que é. Logo o ser só é ser enquanto absoluto. Sendo o absoluto Deus, o ser só é ser enquanto o busca. Essa, para mim, é a liberdade e a pura liberdade. A única loucura saudável era o crescimento do ser em nível de plenitude perfeita. Aderência normativa e aderência heteronormativa - aqui não no sentido que o movimento LGBT usa - são, em Deus, o mesmo, visto que ele é os dois - e também é os três: Pai, Filho e Espírito Santo. A única liberdade é dizer: "o ser é", e buscar ser pela vida toda. A filosofia é venerável, mas creio que só a teologia é adorável. A filosofia é boa, mas pode ser infinitamente errante. Logo digo que: Philosophia Ancilla Theologiae (a filosofia é serva da teologia).


     Você sempre se lembra de quando saiu da casa de seus pais. Pensando congruentemente, quando deixamos de ser amigos de nossos pais? Isso ocorre quando não podemos mais ser. A vida ao lado de nossos pais se torna um grande jogo de justificações. Não à toa se busca outra morada. Por vezes em peito de novos humanos amigos, por outras em moradas físicas distantes do originário lar. É-se amigo dos pais até o momento em que se tenha que se vestir, tal como Adão, perante Deus. E não mais sendo, fica-se pesado estar ao lado daqueles que antes eram a fonte de nosso poder - o centro de poder é a comunidade a qual nos inserimos, a primeira é o lar. Sim, eu creio que o centro do poder deve servir ao interesse do ser, é por isso que sou "anticapitalista". O desenvolvimento da personalidade é, por vezes, um crime insustentável para o próprio sujeito. O custo da personalidade é um "divórcio" que se separa para crescer. Já que personalidade indica ao mesmo tempo ser e devir. O ser e sua caminhada são o mesmo, se não o ser não é ser. Se um se desconstrói, outro se destrói. É por isso que o homem caminha de acordo com sua fé. Como viver ao lado de quem amamos, se aqueles que amamos nos dividem e sentimo-nos destruídos ao lado dessas pessoas? Torna-se insuportável. Amar e gostar já não são o mesmo. Aquele que gosta quer por perto, só que não podemos ter por perto quem nos divide. Eu te amo, meu ex-amigo. Te amo o suficiente para dizer que te amo e para mim o amor é eterno. Para mim, se o amor acaba, não era amor. Amo-te o suficiente para querer que você seja quem você é. Para amá-lo perfeitamente, abandoná-lo-ei para que você seja quem é. Amo-te, mas não gosto de você. Só gosto de quem eu posso ter por perto e ainda ser eu mesmo. Só gostamos de quem podemos puramente ser, se não se perde a autenticidade. Você não pode ser ao lado de sua família, você não pode ser ao meu lado. E, não estranhamente, eu não posso ser ao teu lado. Embora meu frágil coração queira estar sempre ao teu lado, como quer estar ao seu lado agora, sou um homem racional e de compromisso com a verdade: ser filósofo é preferir a sabedoria. Você limitou meu intelecto conforme eu cedia as coisas mais por sociabilização do que amor pela verdade. E se eu continuasse seguindo meu caminho, teria de te fazer ceder. Como resultado, eu e você inexistiríamos. Seríamos perfeitamente limitados um pelo outro em uma relação indecorosa que humilharia dois estudantes de filosofia, já que cada um seria impedido pelo outro de ser filósofo. E eu não seria só impedido de ser filósofo, também seria impedido de ser teólogo. Cada um seria indigno de si mesmo, cada um seria a negação de si mesmo.


    Eu poderia fingir que ainda somos amigos quando na verdade não suportamos mais estar ao lado um do outro. Eu poderia privar-me, você poderia privar-se. Só que isso geraria uma ruptura interna em nossas duas consciências. Éramos amigos, mas não podemos idolatrar a amizade e nem fingir que ainda somos amigos. Quando ela deixa de ser edificante, tornando-se para os envolvidos privação-de-si, deve haver separação para que se haja união.  Afasto-me de ti para não lhe irritar. E também afasto-lhe de mim para que eu possa continuar a crescer. Poderia muito bem negar minha consciência. Poderia muito bem dizer não a mim por mais um tempo. Poderia achar que a consciência que tenho agora deve acabar. Só que, tal como no livro de Eclesiastes, tudo isso é vaidade. Eu cansei de mentir. Eu cansei de fingir. Quando eu te conheci, eu era alguém. Alguém que podia ser ao seu lado. Eu sempre lhe disse que a sua aderência normativa era grande demais e que você era ordenado demais. Era uma projeção: eu que sempre almejei a ordem. E percebo que secretamente amei a ordem. Amei  suficiente e secretamente até chegar o ponto de querer assumi-la. Talvez a ordem tenha sido a única coisa que de fato amei. Não quero ser mais uma figura conservadora lhe pesando os ombros, tal como a sua família. E como eu sigo ao lado de Apolo e você segue ao lado de Dionísio, que cada um siga a sua vida conforme o que ama. Se ficarmos ao lado um do outro, teremos de ser hipócritas, fingidos, falsos. Um odeia o que o outro ama. E se ficarmos juntos, teremos que cair na heresia da idolatria social em que a sociabilidade está acima da verdade intelectual tomada por cada um. E a maior heresia no campo do pensamento é tirar o critério intelectual da verificação intelectual e substitui-lo pelo critério social. Já que isso é a negação da consciência individual - portanto, a negação de si mesmo em prol de uma opressão social aqui assumida em forma de martírio social. Eu teria que parar de ser eu, você teria que parar de ser você. É por isso que Tomás de Aquino dizia: "Ser amigo é amar as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas. Não seja amigo de quem odeia o que você ama".  


    Seria, no entanto, mentira dizer que faço tudo por motivos religiosos, também faço em parte por questões filosóficas, políticas, adictas, românticas e sexuais.  A filosofia é primeiramente uma análise da vida que visa se tornar autêntica e só se tornando autêntica aceita a verdade. O discurso só existe na medida em que o ser expressa a sua vida de forma autêntica, se a análise discursiva precede a própria vida e como se vive: perde-se a própria filosofia que trata da vida. Só há filosofia na confissão. A coisa mais filosófica da Igreja Católica é o sacramento da confissão. Não sou ainda um rigoroso confissionalista, mas quero sê-lo. Como isso é uma carta filosófica, não pode deixar de ser verdadeira sem se tornar antifilosófica. O amor a verdade existe na medida em que a verdade é a expressão do ser que é e o ser deixa de ser quando mente. Eu preciso falar de tudo que sinto. Se eu não for verdadeiro, não serei filósofo. Se eu for falso, Deus deixar-me-á em minha própria mentira. O drama da filosofia é a tensão da expressão do ser. Se o ser não se expressa ou falsamente se expressa, ele deixa de ser e deixa de filosofar. O drama tensional da personalidade é visto naquela famosa frase: "ser ou não ser, eis a questão?". Esse é enigma que corresponde a frase: a vida é um esforço comunicacional. O ser pode mentir, mas se mentir deixa de sê-lo. Todavia tem que mentir, tem que mentir para assegurar a sua subsistência. Só que chega uma hora que a pura materialidade do reino da necessidade não pode ser mais soberano. Chega a hora em que César não pode ser declarado sumo pontífice, visto que isso seria uma tirania na ordem espiritual. O poder temporal existe, o poder temporal tem que ser respeitado: mas damos a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Você não pode e nem deve habitar em meu espírito, isso seria uma tirania sua em mim. Já não estaria comigo, estaria em mim. Como meu caminho é idealmente distinto de ti, afastar-me é não impor também a minha ditadura em você. Como não pode, nenhum de nós, ser-com-o-outro, mas ser-no-outro, faz-se necessário o afastamento para a preservação da liberdade e da consciência.


    Com o tempo, você me era uma mistura de diferentes desgostos. Não vou dizer que faço uma separação baseado num espírito puramente estóico e virtuoso. Isso não é uma reação furibunda de um santo fugindo do pecado. Não sou uma pessoa ilibada que fala do alto. Era uma mistura. Orgulhava-me de ter um amigo pegador, mas odiava o fato de eu mesmo não ter sorte com mulheres. E inveja-lhe na medida em que tinha "sorte". Sempre lhe acreditei inteligente, sempre foi muito bom falar contigo. Debater ideias é sempre fantástico, mas se vive por ideais. Debate-se ideias, vive-se por ideais. Ideia é debatido, ideal é vivido. A vida é um caminhar ideal. Nossas vidas, com o tempo, se debateriam idealmente. Cada qual caminhando por seu ideal. A separação era tão óbvia quanto também era necessária. Talvez eu seja mais um idiota atacando pedras no Muro de Berlim, na expectativa de fugir de seu controle. Ou um russo voltando para Igreja Ortodoxa como a verdadeira salvação após a derrocada do comunismo soviético - não só derrocada física e institucional, mas na mente do indivíduo que abraçou a fé e agora acredita no Reino de Deus e não mais no reino da pós-escassez comunista do Evangelho da Guerra de Classes e de Marx segundo Stalin. Era-me difícil sustentar ao teu lado meus ideais, visto que tinha medo de feri-lo, de magoá-lo ou decepcioná-lo. Tinha de ser menos eu ao teu lado. O sentimento se tornou maior que a razão e a mente se fechou ao pensamento. Já lhe amava mais do que amava a verdade. Já lhe amava mais do que a filosofia. Não conseguiria mais pensar ao teu lado, já que sua presença era maior que meu pensamento. Do mesmo modo que você saiu da casa de seus pais, eu deveria sair de sua aterradora presença.


    Faço uma ação pecaminosa baseado em algumas invejas veladas. Há pecado em minha ação, há muito pecado em minha ação, mas há também virtude. Um teólogo católico tradicionalista diria que o divórcio é um pecado mortal e que o fim do homem é a união. Há quem advogue o fim do divórcio, visto que o casamento é eterno. Há quem diga que o Estado não pode casar ninguém, casamento é coisa de Deus. Só que muitas vezes existem uniões que nos tornam menores. Se, por um lado, poderei não mais sentir inveja de seu ajustamento social e facilidade com mulheres. Por outro lado posso me separar dos rolês infames em que eu me entregava a toda sorte de vícios ao teu lado. Acabo por facilitar minha reforma vivencial: torno-me uma pessoa melhor afastado de ti. Posso finalmente assumir com mais inteireza o meu jeito de ser. Ser uma pessoa religiosa já estava em potência dentro de mim, sobretudo pelo esforço e tempo dedicado ao estudo disso. A matéria que mais gostei da faculdade era a teodicéia (ou filosofia da religião), sempre estudei mais filosofia cristã e meu TCC é feito com base na filosofia e teologia cristã. O jeito que sempre fui é aquilo que resolvi assumir. A graça não altera a natureza, contudo a aperfeiçoa. É como a música Beach Punx de Rodolfo Abrantes: "Minha maneira de caminhar/ Eu não mudei, só ganhei alguém pra me acompanhar/ A vida inteira eu quis voar/ O que pesava demais eu deixei e fiz minha mente decolar".


    Poderia te dizer que você se tornou outra pessoa. Só que, para mim, você é o mesmo desde que te conheci. Logo é uma mentira: quem mudou fui eu. Na verdade, quem cedeu ao que não se era, fui eu. Eu que larguei o tradicionalismo para lhe seguir como um condenado e subordinar-me a tua imagem. Você sempre foi muito organizado, educado e metódico em setores que eu não era. Em alguns aspectos, mais normativo que eu. Em outros aspectos, menos normativo que eu. A constância no emprego, a capacidade de manter relações, a facilidade de construir relações. Com o tempo, percebi que desgostava de ti, mas bastava-me tornar mais liberal. Não consegui, não consegui parar de ler os autores que amava. Nem parar de ler livros religiosos. Senti-me um exilado. Exilei-me por bastante tempo de mim mesmo. Quanto mais eu me exilava de mim, não compactuando com as minhas próprias leituras, mais me odiava e mais te odiava. Um autista não pode enganar tanto o seu hiperfoco. Quando comecei a escrever esse texto, já desgostava de ti fortemente há um bom tempo, mas desde que uma de nossas amigas conversou comigo, dizendo atos que você praticou junto a outro amigo nosso e atribuiu a nós três, passei a ver uma crescente necessidade desvinculativa. Eu estava lá, conversando com todos, tal como uma pessoa real: entretanto, eu não era eu. Outras mulheres ali estavam, falaram-me mal de ti. Senti-me ambíguo: ao mesmo tempo em que odiava o que diziam, sentia que finalmente era benquisto socialmente como uma pessoa diferenciada e desvinculada de ti. Senti a necessidade de finalmente competir. 


    Não posso fugir dos dias em que conhecemos elas. Foi a segunda que me despertou, mas a primeira barbaramente dançou comigo e me tratou com carinho. Sabe como são as garotas gentis, sabe como a gentileza delas pode ser facilmente confundida com amor. Só que na primeira o meu coração não tinha se fincado tão fortemente nas trevas da rivalidade. Foi a segunda, foi com ela que as espessas penumbras fincaram-se em meu peito. Naquele dia, foi a primeira vez que ficamos com uma mesma mulher. Beijava a mesma mulher que você beijava num jogo tão democrático quanto estranho. Por um instante, igualei-me a ti, ao menos que em aparência. Era delicioso a sensação de aparente igualdade. Foi algo que envolveu poder, mas igualmente calor humano. O fato de envolver poder em minha mente, não tira a pureza do ato: eu era participante de tudo. Naquele momento, amava os dois e queria os dois. Era como vivenciar o dogma da trindade. Só que essa mesma pessoa que eu chamei brigou comigo atribuindo a mim atos que eram teus. Para ela, não éramos dois homens, éramos um homem só. Sua imagem era por demasiado grande para me verem como uma entidade diferente de ti. E isso dói. Dói como olhar para o espelho e ver que o coração foi raptado. Ali meu ser foi negado. Ali eu parei momentaneamente de existir como pessoa. Era como o livro do H. G. Wells: "O Homem Invisível".


    Como eu era tão somente uma pequena sombra a parasitar uma grande estátua pós-moderna num museu um tanto hedônico, decidi cair fora e visitar o museu da arte sacra - e é o único museu que eu poderia amar sem sentir vergonha. Secretamente juntava forças para me converter. Isso eu já antevia em H. G. Wells. Todos os seus personagens eram excêntricos e de algum modo participavam da discussão de sociabilização e dissociabilização. Alguém é mais ou menos sociável, alguém é mais ou menos dissociável. Eu me enquadrava mais, por minha excentricidade, no aspecto dissociável. Logo poderia me encaixar em sociedades fechadas. É por isso que eu fui channer por um grande período de minha vida. Já antevia que eu deveria seguir meu próprio caminho, tal como a Nintendo caiu fora da briga pelo melhor hardware na sétima geração de consoles, eu deveria fazer como ela, criando meu próprio "Nintendo Wii" de ser. Não competiria contigo vendo quem era mais progressista e mais "transudo". Deveria apostatar de minha vida hedoniilista para fugir da constante desigualdade. Assumir a assimetria como parâmetro e dissociar-me de grande parte do que fiz parte e que me caracterizou particularmente por um grande período de tempo. Tudo isso é gravidade, tudo isso é pecado, mas também coparticipante de meu desejo de ser santo. Sim, tudo isso é inveja. Só que o que é em parte inveja, pode ser reintegrado a outras coisas e participar de meu desejo de santidade. Sim, tudo isso é também uma forma de bissexualidade e poliamorismo. A estranha pergunta: "você namoraria com uma mesma mina que eu?" agora reaparecia. Só que não pude evitar o inevitável. E nem o posso. Você se tornou uma grande estátua pós-moderna: liberal, progressista, adicto, sexualmente liberal, reformista das tradições mitológicas, poliamorista, conversador nato, aderente da filosofia da esquerda progressista. Você era o artigo principal. 


    Didaticamente falando, meu caro, você era um grande PlayStation 2, o console que mais vendeu na história humana. Quem ficou em segundo lugar mal se comparou. Eu era como o último console da Sega, o Dreamcast, a ponto de falir. E de Sega eu entendo bem: alguns momentos de sucesso e muitos momentos de crise e fracasso. Só que mesmo quando a Sega fazia sucesso e dava certo, ficava em segundo lugar. Ao teu lado, eu sempre fui um marginalizado posto em segundo lugar. Por vezes eu era o Beta, mas em muitas eu era o Ômega. Não tinha conexão com nada e ninguém queria estar ao meu lado. Só me suportavam por eu ser seu amigo. Se tivesse muita gente, não me conectava integralmente com ninguém. Ficava na reserva em meu canto, não podendo falar para não criar constrangimento. Mesmo que eu te amasse enormemente como o melhor amigo que eu já tive, mesmo que você me quisesse ao teu lado, os encontros públicos com outras pessoas da faculdade me faziam ver que eu não poderia nunca estar em pé de igualdade com a sua pessoa e ter conexão real com elas. Nesse ponto, eu era como um grande Nintendo 64: meus pensamentos eram como cartuchos competindo com CD's. Enquanto você recebia coisas, eu recebia a conta gotas.  Acho que eles desgostavam de mim, mas eu secretamente desgostava de quase todos. Sua imagem é um álbum conceitual de uma banda indie bastante moderna. Sua vida é uma série da netflix cheia de um pluriverso de lacração. Você é a união de atributos que a sociedade gosta. Eu sou a união de atributos que ela desgosta.


    Constantemente eu pensava no meu eu anterior. O eu que era antes de ser internado em Santa Catarina. Sempre alternei entre o conservadorismo e o tradicionalismo e o liberalismo e o socialismo. Quando criança, quis ser padre. O cristianismo vinha e saia de minha vida - preferencialmente o católico. Só que eu nunca pude largá-lo em totalidade mesmo na época em que eu era ateu militante, eu sempre tinha que voltar ao meu hiperfoco autístico da religiosidade. Converter-me e desconverter-me era rotina constante. Eu sempre fui ordenador em certo aspecto. Sigo de forma estruturada e ordenada. Isso transparecia em meu método de anotação, mas logo começou a transparecer em outras coisas. Eu sempre organizo a comida de uma mesma maneira. Eu sempre sigo a mesma tática de gameplay em alguns jogos. Parece-me que a condição autística é ordenadora por ser viciada em reprodução. É nisso que consiste o meu "vício" em cultura japonesa: o foco deles na aprimoração do processo é fantástico e embora existam fórmulas semelhantes, o processo as torna diferente. Só que havia uma dúvida: eu era tão progressista, mas também era tão conservador; eu era tão liberal, mas também era tão tradicionalista. A unificação do eu se perdia com constância nos vaivéns. Coube-se a Chesterton, com a sua epistemologia da complexidade, unificar minha mente tão dividida. Foi assim que meu eu religioso encontrou-se com o irreligioso. Agora eu poderia finalmente integrar uma consciência que se envolvia em constantes jogos tensionais. 


    Só que foi na terceira mulher, aquela que tem nome daquela que aparece só de quatro em quatro anos, que a relação se tornou insuportável. Eu ouvi, vi e senti o inferno. Eu tinha encontrado uma mulher que eu poderia amar. Poderia até mesmo amar ela a teu lado. Completamente heterossexual, perfeitamente bissexual. Estávamos numa manifestação e talvez esse tenha sido um dos rolês mais loucos. Você ficou muito mal. Eu fiquei tão preocupado que segurei a tua mão. Tive medo, por ti. A filha de nosso outro amigo nasceu e morreu no dia anterior. Como alguém nasce e morre no mesmo dia? Voltando de ônibus, passamos pelo local em que eu passava, em que eu fazia tratamento, quando estava no pior período de minha vida. Naquele dia, dormimos na mesma cama. Você estava muito louco, mas naquele momento você estava acabado e dormiu como um urso em hibernação. Dormi pouco, visto que não consigo dormir sem remédios. E eu me lembrei de quando tinha dezessete anos. Lembrei-me de quando eu dormia o tempo todo. Dopava-me para dormir que nem um louco. Era como o livro: "Como me tornei estúpido" de Martin Page. Só que, em contrapartida, minha forma de impossibilitar o meu pensamento era via sono. Tomava remédios para dormir que nem um louco. Visto que, quando acordava, sentia dor e mais dor. Enquanto eu lembrava de meu sofrimento, enquanto eu recordava de como eu sofria ao estar acordado você dormia. Eu não podia fugir de meu sofrimento dormindo, tal como outrora. Naquele fatídico momento, eu me lembrei da opressão do não-ser. Eu senti tanto medo que tremi. Tremi e chorei. Não conseguia nem falar. Quis fugir. Quis me matar. Só que me controlei. Acordei-lhe, falei contigo enquanto me derretia em lágrimas. Você voltou a dormir após a breve conversa. Joguei Mario 3D Land enquanto arrumava meus pensamentos. Decidi que me tornaria um ex-covarde. Que arrumaria as opressões de minha vida. Que tiraria tudo que me particularizava. Agora tudo o que via em ti era a reprodução da opressão do período em que passei o maior sofrimento de minha vida. Eu não queria mais estar ao teu lado. O instinto vital bateu tão forte que me deixou novamente nu perante Deus. Tão nu que senti o frio do inverno do inferno, senti o quanto estava afastado de Deus no calor de teu lado. Quis mudar a minha vida, antes que ela terminasse numa tragédia grega. Conforme o tempo passava, Deus se tornava quente. Você se tornava frio. Por amor a ti, fiquei mais tempo ao teu lado. Só que não posso assim continuar: na noite em que dormi ao teu lado, cuidei de ti de forma que você nunca cuidaria de mim. E a frase que surgia de minhas entranhas era: "ele não faria o mesmo por mim". Senti raiva, uma raiva brutal. Navegar é preciso, é precisa relativizar o ídolo para se dar bem com Deus. Afastava-me, desde daquele dia, de ti e tua presença. Primeiro, mentalmente. Agora depois de tanto preparo, posso finalmente abandoná-lo com clareza e retidão. Embora meu coração ainda lhe queira como fiel amigo, devo seguir a razão. Naquele mesmo dia, eu mesmo lhe disse: "não há dependência e nem autonomia absoluta". Essa frase cravou mais meu peito do que o seu. Ela era a necessidade paradoxal-dialética, na qual comecei a minha pequena reforma.


    A "virada conservadora" não é um produto pensado por um curto prazo, pensava em iniciá-la até mesmo ao lado de minha ex-namorada e antes dela. Pensava, já naquele estranho momento, ter uma melhor gestão. Sair da sombra de ti. O plano não deu certo, mas foi prorrogado. Nada é feito a partir de nada. Toda conversão e toda apostasia é criada por uma sucessão de momentos até que adentrem na inteireza do ser. Eu marinava lentamente numa panela. Era preparado num jogo de temperos. Comentários aqui, pensamentos ali, vivências acolá, estudos para cá. Tudo me preparava para isso. Foi algo intencional, mas foi preciso juntar coragem. Conversei com meus dois mestres de filosofia algumas vezes sobre a minha possível reconversão, lentamente eu me preparava. O plano original ao entrar na faculdade era o de fazer filosofia enquanto eu me preparava parar entrar numa ordem religiosa. Depois era apenas estudar teologia. Com o tempo, o plano foi se alterando demais de seu percurso. De forma lamentável e lenta, eu já não era quem eu era. Meu ser ligava-se demasiadamente ao teu. Logo precisava tirá-lo lentamente de ti. Como eu mesmo lhe disse: não se pode tirar um braço na esperança de superar um vício, um pensamento ou alguém. Num sonho, faltava-lhe um braço. Só que eu também perdi meu braço. Eu perdi a mim mesmo. Deveria recuperar-me. Só se pode superar alguém por relativização, o que é grande de alguma forma deve ficar menor. Só se pode superar através de novas conexões. Todo ato agora era replanejado para ficar maior. Prenuncia-se a virada conservadora. Era preciso retomar o controle do corpo para retomar o controle da vontade. Era preciso preparar a inteligência para abdicar do mal. Era preciso fazer crescer a inteligência e a vontade para gerar a intencionalidade. Armei-me da filosofia cristã e de algumas outras mais tradicionais. Ato contínuo, aprontava-me cada vez mais. Primeiro, largar o cigarro. Depois estudar o suficiente para se preparar para a reconversão - não estranhamente meu TCC era de filosofia cristã. Ao escrever o TCC, lembrava-me constantemente que era a construção dessa grande retomada de controle de minha própria vida. Agora, era preciso parar de ver pornografia e afastar-se das outras drogas. Estou conseguindo com relativo sucesso parar de ver pornografia. Sem estar ao seu lado, as outras drogas saem facilmente, visto que só as utilizava socialmente. Conforme o tempo passava, eu ia galgando de controle em controle. Ao teu lado, habituava-me ao mal. Desviar-me de ti rapidamente era preciso, mas eu demorei para ceder nesse plano. Só que não poderia pausar a minha "virada conservadora" que alterava substancialmente a teia de relações com reformas que se prosseguiam. Procurar uma ordem ou arrumar uma namorada. Conseguir um emprego para conseguir pagar alguns cursos que quero entrar. Reformas e mais reformas. Só que toda essa autonomia que fui ganhando, foi um esforço contínuo de oração e reeducação da vontade. 


    Estar ao teu lado era a impotência perante a desordem. Enquanto estive contigo, não poderia tomar rumo na vida. Era desordem atrás de desordem. Tornei-me um extremista. Em meu jogo de pensamento, só havia a desordem em extremismo. A condição da aceitação do paradoxo, ou seja, da ordem junto a desordem foi necessária para o meu desenvolvimento. Tive que reconstruir a minha vivência religiosa de pouco a pouco para conseguir me manter sem me matar. Fui pouco a pouco acolhendo a Deus em meu coração. Tudo isso, é claro, foi um gigantesco processo. Simone Weil conseguiu também reestruturar a minha visão sobre Deus, a incapacidade de vê-lo uniformemente agora já não era um problema, era até um auxílio teológico. A leitura de Leonardo Boff ajudou em certo aspecto. Com eles, parei de me assemelhar contigo na visão sobre a ordem. Agora Deus era plena ordem e ordem nada mais era que desordem não assimilada. Aquilo que é momentaneamente ininteligível nos soa como loucura, mas conforme vamos avançando acabamos por nos tornar mais ordenados. Como pessoa influencia pelo conservadorismo e tradicionalismo, a filosofia é para mim uma constante ordenação do ser. Só que eu não fujo do conflito tensional da desordem: ela deve ser encarada, acumulada e inserida para o desenvolvimento do ser que ordena a desordem que assimilou: o homem sensato tem a tragédia em seu coração e a comédia em sua cabeça. O filósofo é amante da desordem, mas na mesma medida em que torna o dado ininteligível da desordem em ordem inteligível. A ilusão moderna é pegar sistemas pré-inteligibilizados para ordenar o mundo, a isso chamo de adesão coletiva-dogmática em que se pega a doutrina de outrem. Você pode reclamar disso da seguinte maneira: "há, há, há, mas você pegou a doutrina católica!". E eu lhe digo: recentemente Bento XVI afirmou que a pureza doutrinal é um engodo, a doutrina é filha de uma vida. Logo a doutrina é algo vinculado ao espaço-tempo e nele se insere. Não há pureza doutrinal, há uma doutrina que surge expressa pelo jogo tensional da vida. O religioso não tem como parâmetro algo falível como a guerra de classes, o mercado, o individualismo ou o coletivismo. O religioso tem como parâmetro a transcendência absoluta - Deus - em que os parâmetros crescem cada vez mais, isso torna a complexidade cada vez maior e inabarcável. O intelectual progressista só é inovador no sentido em que pega um aspecto do real, assume-o como realidade absoluta e cria argumentações com esse fetiche mental. O intelectual conservador pode não inovar, mas ele não tira a complexidade da realidade. Nesse sentido, prefiro tentar ser conservador.


    E conforme seguia meu ritmo de Apolo, mais me tornava um apologeta de Apolo. E, por ironia do destino, Apolo e apologeta rimam: um é um nome de um deus pagão, outro é costumeiramente empregado a defensores de alguma religião - sobretudo a cristã. Jovens feios e bobos como eu não "têm" escolha "além do idealismo". Somos platônicos na mesma medida em que não damos sorte com mulheres. Pessoas como eu, jogam de Nosferatu em Vampire Bloodlines: uma classe de personagens feios, excêntricos e que vivem no esgoto. Quando saímos de nosso esgoto, sentimos o martírio social. Somos repugnados do mundo. E você sempre prestou e prestará culto a Maia, deusa eterna do mundo físico e do mundanismo, vista que deusa da ilusão do aparente. Logo você é mais dionisíaco. Isso, para mim, é só um jogo de personalidades e não uma luta de verdade. Não sou "ideologicamente" introvertido, sou introvertido. Isso não é um problema, é um fato.


    Lembro-me que eu te falava, na rua, que há oprimidos que também são opressores. E você, para defendê-los, disse que pessoas que sofreram opressões tendem a se tornar reprodutoras da opressão de alguma maneira. E achei meio curioso, meio nojento e meio hipócrita: "um filósofo que defende a inconsciência irracional. Um aluno de psicologia que gosta de Freud e defende o reino perpétuo da opressão do inconsciente no sujeito, escravizando ele num período intemporal de opressão". Por outra ironia ou talvez por outra coincidência, estava assistindo a missa no momento em que comecei a pensar nesse texto e me senti extremamente feliz e liberto. Uma frase de São Paulo me libertou: "Eis, pois, o que eu digo e atesto no Senhor: não continueis a viver como vivem os pagãos, cuja inteligência os leva para o nada." (Efésios 4,17). E é aparentemente isso que sinto em sua frase: a defesa do nada. O vencimento do não-ser sobre o ser, da opressão sobre o homem, da antifilosofia sobre a filosofia. Para ti, o que reina é a desordem. Para mim, desordem é uma forma de loucura, mas a loucura deve ser abrida para que se torne sã: é o jogo paradoxal-dialético. Ordem é loucura assimilada. O homem para ser são deve transformar a desordem em ordem, isso é um esforço intelectual absurdo, mas necessário. É por isso que, creio eu, que Boff diz que fé é desordem: já que ela é a abertura do ser para uma complexidade que aumenta o seu horizonte de consciência e vivência na mesma medida em que o ser aceita a sua inabarcabilidade. Deus é ordem em perfeição, mas o religioso só pode assimilá-lo como desordem até que se torne ordem. Esse é o dom da fé.


    Quando eu me tornava cristão, um estranho fenômeno ocorreu. Para a maioria das pessoas, era como se eu fosse Anakin virando Darth Vader. Era como se Obi-Wan aparecesse e dissesse:

- Você se tornou tudo aquilo que jurou destruir. 

    É cômico como tal imagem aparece ao lado da imagem de Pedro fazendo a tripla confirmação perante Cristo, depois de negá-lo três vezes. Eu neguei a Cristo várias vezes para ser teu amigo. É ainda mais cômico como eu aparento ser um Judas Iscariotes reverso, tinha que escolher a autenticidade do ser ou ser teu amigo. Ou um apóstolo Paulo que não era um fariseu, mas um Agostinho inculto em sua vida sexual desregrada: eu tive que escolher entre a vida que tinha ao teu lado e a vida que eu realmente desejava ter. E embora eu adorasse falar para ti sobre meu passado sexual liberal e que hoje julgo perverso, nunca disse que amei o meu passado. Nunca amei e, não ironicamente, nunca fui amado. Não amava e nem era amado. Pertencia a descendência amaldiçoada de Caim: não era amaldiçoado naturalmente, mas sim pelo que eu acreditava erroneamente e fazia. Só que você adorava lembrar de quando nos conhecemos e o que lhe contei. "Você sabe o que você me disse quando me conheceu?", sim, eu sei. Eu sei que tenho vergonha do que te contei. E também sei o que sentia quando te conheci e o que sentia pelo o que te disse quando te conheci: dor. O que lhe contei só demonstrava a minha vida errante, reduzida as cinzas de uma diletante loucura. O que havia em mim e o que houve em grande parte do tempo era aquilo que se chamava desespero.


    Um jovem autista e imaturo é uma tragédia na escola, visto que se torna alvo perpétuo de quem descola. O descolado sempre me pareceu um vilão descomprometido. E como eu era forçado a aderir a descolagem para me manter vivo nessa sociedade hiperextrovertida, neguei-me por muito tempo. Veja, por exemplo, o programa Pânico na TV e Pânico na Band. Os personagens são descolados que vivem a irritar e perturbar. No fundo, todo programa do Pânico era para mim uma profunda e contínua sessão de humilhação. Minha real felicidade era a leitura e o videogame. Só que como somos condicionados, tive que admitir a falsa verdade do mundo: diversão é extroversão. Logo eu devia aderir uma vida vácua. E estar ao seu lado sempre foi um curso de extensão em bullying em sentido figurado. Você nunca me oprimiu, mas os seus (anti)valores sempre me foram opressivos. E esses mesmos (anti)valores foram a causa de minha punição cega no fundamental e no ensino médio. Você era o mesmo descolado descomprometido que sempre odiei e em parte sempre busquei adquirir alguns benefícios.  Só que não estou aqui para buscar uma forma "channer" de "orgulho falho", já que não sou mais "channer": o que tenho orgulho é da introspecção que faz parte profundamente de minha personalidade e de minha vida. A introspecção é mais benquista no meio religioso. Sou um introvertido que deve sair do armário da ideia. E sempre me orgulharei de preferir mergulhar em livros do que fazer sexo. É por isso que muito tempo quis e ainda sinto querer entrar na vida religiosa. 


    Conhecemo-nos há três anos atrás. Hoje sou "outro" alguém, e esse alguém que eu sou não suporta mais estar ao seu lado. Já que estar com você é gravidade. É peso. Já não suportava muitas de suas doxas. Tal como quando você me atacou gratuitamente na sala de aula virtual enquanto eu falava que o professor deve vestir o jaleco tal como o marido e a esposa vestem o anel de casamente. Coisa que faz sentido se houver uma mínima compreensão da chamada vida monástica e vida conventual: a vestimenta que o religioso ganha é para o religioso a prova de quem ele é "casado" com a sua religião. Sendo isso, senso profundo de religiosidade, senso profundo de identidade. Quando eu disse que o professor deve vestir o jaleco tal como o marido ou a esposa veste o anel eu quis dizer que: o professor deve ter um profundo senso de identidade que lhe dê responsabilidade para sua profissão e quem entra em sua responsabilidade, educando o aluno com amor e dedicação. O amor do professor é tão grande que ele quer que o aluno (ou educando, se preferir) consiga não só assimilar ao conhecimento, mas que também se torne um filósofo. O professor ama o saber mais do que qualquer coisa. E nesse preciso sentido ele veste o jaleco tal como o casado e a casada vestem a aliança: num profundo ato de amor, conhecimento e dedicação. Claro que você, desconhecedor da teologia - e, sim, você não sabe lhufas de teologia - não saberia do que se tratava. Mas é claro que isso não lhe impediu de agir como um babaca. Você disse a todos: "Gabriel, você é inconveniente". Minha filosofia parecer-lhe-á uma inconveniência, já que ela é, em parte, o oposto da sua e, em outra, é o que sou e me neguei a ver e a ser.


     Meu lado se tornou um enfado. Teu lado se tornou um enfado. E eu percebi: eu já era um peso para ti e você se tornou um peso para mim. Para que tanto teatro? Isso é vaidade. Isso é vaidade e vento que passa. Não, eu não lhe odeio e nem fico feliz com isso. Fico triste. Tristíssimo na verdade. Você foi o melhor amigo que já tive. Em meu coração, ainda é meu melhor amigo. Mas por vezes se deve se resistir a si mesmo. Só que você nunca me considerou o seu melhor amigo. Essa desproporcionalidade sempre caracterizou enfaticamente nossa relação. Só que eu sou também o partido que parte e se parte. E estou indo embora. Não quero me vingar de nada. Acontece que não te suporto. Como estar contigo é privar a mim de mim mesmo, nossa convivência é um enfado, mesmo que eu te ame e ainda te considere meu melhor amigo. Eu não posso ser eu mesmo. Eu não posso pensar como eu mesmo. Eu não posso falar como eu mesmo. Tudo tem limite. Quando algo que outrora era transcendental agora te priva do seu ser holístico, do seu ser integral, esse algo deve parar. E por vezes esse algo é alguém. A transcendência se integra a holisticidade do ser. A pseudotranscendência atrofia uma área do ser. Estar contigo era estar só contigo. Eu perdia a tudo mais, inclusive a mim. 


    Uma amizade deixa de ser amizade, um amor companheiro deixa de ser amor quando a autenticidade não é mais possível. Tudo vira um teatro. E logo a relação se perde, saindo da graça para a gravidade. O que antes se havia era uma pureza, em que cada um era o que era. E era pura e simplesmente. Agora quando um não pode ser, o outro também não pode. Um se torna o peso do outro, tornando um e o outro pouco sustentável. A circularidade normal de todas as relações se perdem e os relacionados se tornam um desgaste um para o outro. E no jogo das máscaras, em que cada um não pode usar a própria cara, há sempre um enfado. Vira-se um covil de máscaras em que cada um anda cego de si mesmo. E de enfado e em enfado se destrói. Já que na graça, os dois eram como se fossem uma fonte, fonte cooperante e edificante. Num livro islâmico, dizia-se que Alá multiplica o bem daquele que faz o bem; todavia dizia-se no mesmo livro que Alá fazia que aquele que fizesse o mal pagasse o preço dele de igual por igual. Alá não multiplica o mal por causa da natureza estéril do mal: o vício é pagado pelo vício, a virtude é recompensada aumentando o tamanho e nobreza do ser. Essa mesma regra se aplica a amizade e a condição tensional da personalidade daquele que quer ser quem de fato é. Aquilo que é verdadeiramente transcendente nos integra com todas as coisas. Aquilo que é falsamente transcendente nos faz pagar pelo que fazemos, afastando-nos de todas as coisas. Sendo um a negação do outro, nada se pode fazer. Viramos viciados. É preciso desatar o nó que prende para para dividir - ao teu lado, pouco sou eu; ao meu lado, pouco você será você. Assim você será livre e eu me verei livre para abraçar mais ardorosamente minha maneira de caminhar. Ver-se-á, também, livre para ser quem é. Nem eu sou seu teu amigo, nem tu és meu amigo. Nem eu sou, nem tu és.

sábado, 31 de julho de 2021

Um esboço de minha filosofia

Esse foi um pequeno texto escrito em meu celular, sem rigor e apenas para dar uma breve exposição do que realmente penso sobre as coisas.

    Decidi fazer um esboço de minha filosofia, já admito: é apenas um esboço. Não esperem grandes coisas e nem grandes respostas sistemáticas, é apenas o esboço. Se eu pudesse definir algo da estrutura central de meu pensamento, defini-lo-ia assim:


Há o fôntico:

    Essa é a estrutura primária e alta de meu pensamento. A minha "doutrina" seria a doutrina do fôntico. Nela se encontra a delimitância indelimitada, que é a negação da parcialização pelo amor a todas as coisas - ou seja: pelo amor ao absoluto. Só que isso é puramente negativo ou uma forma de crença metodológica: o movimento "natural" é o fechamento do ser para o absoluto, logo a abertura é um movimento que se recusa a esse fechamento. Visto que, embora seja natural se fechar, o ser se cumpre quando se totaliza. 


    É necessário entender: o absoluto é a busca por todas as coisas. E não só por todas as coisas: é a busca por todas as coisas de forma perfeita e plena. Logo é a busca pela essência - só que a essência é a condição minimal, quando a descobrimos, descobrimos que ela já não é mais essência. A característica da essência é ser mínima por abarcar um maior número de coisas. A medida em que as coisas conhecidas aumentam, a essência se torna mais mínima, visto que se torna mais abarcante. Logo decorre-se uma necessidade paradoxal-dialética: a essência é mínima já que é máxima, essa é a condição minimal.


O ser só é ser enquanto absoluto: 

    Sendo o ser humano aquele que não é, mas aquele que está (existência), devido ao seu caráter perfectível, mas imperfeito: o ser só é ser quando se abre. Sendo o homem imperfeito, ele não pode assumir uma forma absoluta de forma cabal. Sendo o homem perfectível, pode se tornar mais perfeito na medida em que atinge maior plenitude. O homem existe, o homem não é, mas o ser é: o homem "é" nesse movimento de abertura, só que o homem só se mantém aberto quando se fecha na abertura - paradoxal, mas o paradoxal é a condição do real. 


    Daqui se decorre que: o ser é. Mas ele não é de forma essencial, ele "é" de forma provisória: é na existência que o ser descobre a essência - logo o homem "está", mas estar é buscar o ser que é. O homem se esforça para abraçar o mundo, mundo que o torna maior. E toda vez que o homem se torna maior, torna-se menor. Visto que o homem é perfectível e todo estado de perfeição que se acrescenta lhe é insuficiente. A característica da proximidade é a equisdistância: quando mais se aproxima, mais se afasta. Esse é outro movimento paradoxal-dialético, só que como já disse: o paradoxal é a condição do real. Toda vez que descobrimos algo, toda vez que descobrimos alguém: então descobrimos que não descobrimos o suficiente, todo passo aproxima e todo passo afasta. Toda proximidade leva a distância. 


    O ser é. O ser busca estaticamente ser. Só que esse buscar é um buscar movente. Toda vez que o ser se realiza, sua potência se torna ato. E esse ato trás novas potências. O homem busca novamente o absoluto. E vai de absoluto em absoluto. A busca do ser é ser. Existência é essência. Essência é existência. A existência confirma a essência na medida em que o homem buscar ser. O ser confirma a existência na medida em que só há ser na existência. 


Delimitância indelimitada:

    É o fechamento na abertura, movimento paradoxal-dialético necessário ao pleno desenvolvimento humano. Veja que ele se fixa em consubstanciação contraditória: o homem deve se fechar na abertura. Só o fechamento na abertura é válido, visto que é o único fechamento que não se fecha ao absoluto - e o absoluto é a concretização do ser.  O homem, todavia, não abarca o absoluto: o homem só abarca parte dele e deve continuamente se abrir para ele. 


    Dá-se a busca brutal: o homem deve se abrir, mas muitas vezes não sabe que se fechou. E muitas vezes quando se abriu, naquele momento se fechou. É por isso que: a abertura não é um movimento natural, mas aparente. É preciso de um esforço purificador: se abre a algo e a alguém, mas depois é preciso se abrir a mais algo e mais alguém. Abre-se a um entendimento, fecha-se a outro. 


Do pôntico: 

    É o que se decorre da fonte. Se a fonte é o absoluto, o pôntico é a ligação para com o absoluto. Ele é a ligação que traçamos com todas as coisas. O fôntico determina tudo. O fôntico traça a energia. O pôntico é a relação com a fonte e decorre dele. 


    Toda crença central é o fôntico: seja a guerra de classes, a raça, a coletividade, a individualidade. O fôntico é a fonte que determina todas as coisas. Mas, como deve ter percebido, se o fôntico for demasiado limitado, também será limitada a relação (a pôntico). Logo uma crença limitada não é capaz de se correlacionar com o mundo de forma certa - a delimitância indelimitada.


Heterodoxia heresiarca:

    Somos singulares, logo somos relativos. Porém a busca do ser é a universalidade - que é o absoluto. Logo só se pode partir da relatividade que somos nós para o absoluto que devemos desejar.


    O objetivo da relatividade é absolutividade, visto que o contrário da ligação com todas as coisas é o sofrimento em alguma medida. A felicidade está em amar, amar é fechamento na abertura. Todo ser busca o universal, mas todo ser é relativo em sua universalidade. O homem só compreende o universal pelo relativo, mas o fim do relativo é o universal. Daí decorre a própria singularidade inabarcável de cada ser: todo ser é absoluto de alguma forma. E mesmo que estudemos alguém em toda nossa vida, não abarcaremos ele. Não se pode abarcar o singular, mas deve-se tentar abarcar o singular por toda nossa vida.


    Logo a própria doutrina vem do sujeito. É por isso que é heterodoxa: ela não busca se condicionar. E também é heresiarca: se só se pode partir do relativo ao universal, a única existência possível é a heresiarquia que nega sistematicamente tudo e com saber - não pode ser herege quem não sabe. Porém ao mesmo tempo a relação é feita pela busca do entendimento, é a abertura epistemológica que dita a relação. Todavia o ser só pode ser relativo, mesmo que compreenda o universal que se torna cada vez mais universal.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Sim, Saturno ainda devora seus filhos!


    

    Saturno devorou seu filho. Uma cena brutal, uma cena até mesmo "demoníaca". Poder-se-ia dizer que uma coisa tão má não aconteceria no tempo presente, em que a humanidade evoluiu ao seu ponto culminante. Só que isso seria um ledo engano: Saturno ainda devora seus filhos. Existem atos que são tal como Saturno: eles nos engolem com o tempo. Aquilo que nos dedicamos erradamente, acaba por nos engolir. Há até mesmo vezes em que aquilo que nos dedicamos nos mastiga furiosamente, destruindo-nos por dentro e por fora. E, se você tem um vício, você sabe do que falo. O vício vicia. O vício vicia a ponto de matar o seu usuário para qualquer outra coisa. E se ele mata o usuário para qualquer outra coisa, impede-lhe de ser pleno. E sem plenitude não há vida real. O usuário virou um cadáver ambulante, um homem que manca na ilusão de que anda.

    Por muito tempo o termo simbólico e satânico dominou meu pensamento como uma flor de obsessão. Numa aula, meu professor contou o real significado de simbólico e de satânico. Simbólico é aquilo que une. Satânico é o que separa. Certo dia, porém, eu tive uma ideia: certas ideias são como saltos de fé satânicos. E esses seriam a aceitação da parcialidade como o todo e a negação de tudo que fuja dessa parcialidade. Conversando com um amigo mais laico, ele achou o termo "salto de fé satânico" muito teológico e pouco filosófico. A partir de agora chamarei o "salto de fé satânico" de "salto de fé satúrnico" paralelamente para evitar uma leitura puramente teológica. Assim evito restringir e ofender dado público a qual quero prosear. E também dou uma girada macroecumênica a nível discursivo.    

    Bem, esse texto fala de pornografia. E você deve pensar: "pornografia? Os textos anteriores também eram sobre isso". E, de fato, você tem razão. Só que eu preciso falar de pornografia. Eu fui e creio que ainda sou um viciado em pornografia, só que não acesso e nem consumo mais. Quem era eu? De certa forma, eu era. De outra forma, eu não era. Vaguei muito tempo como um viciado, buscando no vício a plenitude que me faltava. E aquilo que me era uma parte, tornou-se todas as partes. Eu não amei de fato. Eu não estudei de fato. Eu estava lá, mas lá não estava: minha mente vagueava nas ilusões pornográficas. E da ilusão tirei meu triste salário: eu era a privação de mim mesmo. E na medida que eu era a privação de mim mesmo, eu era também eu e minha falta. A pornografia era meu grande Saturno. O Saturno que me devorava.

    No geral, o Saturno é para nós um pai. Um pai que temos natural devoção. Um pai que queremos por afeição. Só que Saturno não é um bom pai. E todos os seus abraços visam não abraçar, mas nos devorar. O nosso Saturno é nosso vício. Esse vício pode se encontrar em qualquer âmbito: no pensamento, na prática, na crença, no subconsciente. De qualquer forma, Saturno é o vício que nos devora. E nós estamos apaixonados por ele: somos um gigantesco cardume indo felizmente em direção da morte. E se você não está literalmente morto e acha tudo isso uma besteira por ainda não estar morto, permita-me dizer-lhe que: o homem vive enquanto morto. É possível estar vivo e apenas sobreviver. É possível estar num cadáver com a aparência de um ser vivo. Talvez você esteja interiormente morto e não o saiba.

    O que somos nós? Somos em parte o que queremos ser e em outra o que não queremos ser. O ideal é a transcendência. A imanência é o real. A união do real (imanente) com o ideal (transcendente) dá luz ao transparente. Essa transparência é o objetivo da vida: é a união da idealidade com a realidade. Ela se dá de forma mais ou menos harmônica. Posso ser mais pleno ou menos pleno. A luta pela transparência por atos e pensamentos é aquilo que deveríamos buscar. Não quero teologar muito, mas preciso para ser mais didático: como cristão, por exemplo, a transparência seria a vivência diária da fé. E quantas vezes eu deixei de ser sincero? Quantas vezes deixei de ser um confessor? Confessar é ser sincero, ser sincero é ter transparência. E o que é ter transparência? É ser autêntico. Ser autêntico é ser verdadeiro. Muitas vezes sou menos verdadeira do que eu gostaria de ser. Se a vida é um esforço comunicacional, aquele que mente se nega a viver.

    No período em que escrevo esse texto, o papa emérito Bento XVI se posicionou contra a pureza doutrinal. Fica claro que nem para o "conservador", se é possível viver tendo como base uma transcendência esmagadora que se mostra inflexível para com o real. E essa ideia de pureza doutrinal foi atribuída erroneamente a ele depois dele falar sobre o mundanismo. Sem querer me alongar muito nessa questão, mas utilizando esse trecho para clarificar uma coisa: a vida é um esforço comunicacional, em que nem sempre somos a plenitude do que poderíamos ser. Só que esse esforço comunicacional é precisamente um esforço: a gente tenta ser transparente. Muitas vezes não conseguimos. Só que a vida reside precisamente nesse esforço de comunicar com autenticidade quem somos e no que acreditamos. É disso que vem a verdadeira doutrina: do esforço vivencial de ser. Buscamos ser o tempo todo, só que por vezes buscamos ser de forma errada. Tentar comunicar é tentar ser. Só que às vezes o ser é esmagado na sua tentativa de ser. O ser é, mas tudo na vida leva a crer que não pode sê-lo. E tentando ser, tentando transparecer, é que vivemos. É assim que eu encaro a vida.   

    Admito que fui aluno de filosofia e ainda o sou: filosofar não me é só um dever acadêmico, mas um dever vivencial. A filosofia é a análise do pensamento pelo próprio pensamento. A isso costumo chamar de metapensamento, que é para mim a mesma coisa que filosofia. Dessa forma estabeleço democraticamente a filosofia: ela não é restrita a um círculo fechado de acadêmicos iluminados, ela é comum a todos os homens. Todo homem filosofa. Pode-se filosofar com maior ou menor qualidade. Só que a filosofia não depende inteiramente de uma organização do discurso, ela depende da organização da vida. Se a filosofia for meramente discursiva, ela é apenas algo atrofiado. A filosofia é expressão da vida. Se ela se perde unicamente no discurso, torna-se um mero clichê argumentativo. Quando passamos a pensar só na análise do discurso, tornamo-nos abstratistas que pouco se importam com a vida. E pouco se importar com a vida é se tornar um alienado. Eu quero me alienar, mas me alienar sem me tornar continuamente alienado. Quero me abrir, mas preciso me fechar para abraçar em meu coração aquilo para que me abri. E, se eu não abraçar, se eu não acolher, serei um fariseu com um fetiche do parecer ou com um diploma esteticamente belo em meu quarto. Eu não quero analisar um discurso oco, eu não quero ter uma vida falsa, eu não quero proferir um falso discurso.

    Sim, eu usei pornografia. Usei como qualquer pessoa normal em nossa sociedade hipergâmica e hiperssexualizada. Na quinta-série, pediram-me para usar. Essa era a inovação fatal a qual tudo deveria se curvar. Eu vi e me encantei com corpos. Corpos que me eram fascinantes. Tinha apenas onze anos e, na época, aquilo me foi uma porta até outro mundo até então desconhecido. Eu conhecia jogos, eu conhecia brinquedos, eu conhecia doces e salgados. Minha mente era de um menino, um menino pobre, mas não amargo. Só que tudo isso era o prenunciar de uma tragédia: aprendi sobre sexo, todavia não aprendi a amar. Eu não abri meu coração para ninguém, eu fui tão solitário quanto eu era pornográfico. Se fiquei com alguém, mal amei. Mal amando, fui também mal amado. O termo "reciprocidade" me era equidistante: a cada passo dado, aquilo que almejava se afastava simetricamente. Equidistância é um caminhar desejante, mas um caminhar que nunca alcança o objeto ou o sujeito de sua busca. Toda equidistância termina em dor.

    Tenho vinte e quatro anos agora. Não sou mais criança. Não sou mais pré-adolescente. Não sou nem mais adolescente. Escrevo como um adulto. Um adulto que quer ser responsável. Só que eu não acumulei em parte de minha juventude a sabedoria. Pois o amor é uma sabedoria: é o encontro de pessoas que de repente se abrem umas as outras, que de repente vivem umas com as outras e de repente elas não são mais só elas mesmas, elas também são parte de alguém. E eu sou parte de poucas pessoas, eu não me expresso em muitas pessoas. E essa ausência de expressão significativa me torna pequeno, muitissimamente pequeno: nem algo e nem alguém são grandes por serem grandes, são grandes por terem sido amados. Com relação ao amor: sou um moleque. Não amadureci como eu deveria, não amadureci por conta de meu vício.

    E quantas coisas eu poderia ter amado? E quantas pessoas poderia ter conhecido? Minha obsessão tinha um nome claro: pornografia. Acumulavam-se as tags, mas não se tinha a fidedigna expressão genuína do eros. Eu acumulava vazios em meu peito. Meu coração tinha tantas trevas ao seu redor que entrou em desespero. Às vezes o velho poema ressoava em meu peito aquele bom poema Carlos Drummond de Andrade: "Meu Deus, por que me abandonaste?/ Se sabias que eu não era Deus/ Se sabias que eu era fraco". Só que minha consciência sabe hoje que isso é uma mentira: não foi Deus que me abandonou, eu que o abandonei. Eu me entreguei à ilusão pornográfica: ela me era como tudo, mas não sabia que ela me era só uma parte. Aquilo que deveria ser parte do todo, agora era o todo. Se Deus está em todas as coisas criadas, aquele que se dedica exclusivamente a alguma coisa criada o nega. E é nesse preciso sentido parcializador que eu neguei a Deus: aquilo que eu julgava tudo, era aquilo que me parcializava, aquilo que me parcializava me negava a plenitude.

    Como grande parte das pessoas, eu sou e eu fui um grande entusiasta da cultura japonesa. Sou um fã confesso do autor Haruki Murakami. Sou também um leitor de mangás. E igualmente vejo animes. Mas confesso que li mais mangás pornográficos do que mangás de qualquer outra coisa. E isso demonstra o velho erro: aquilo que me parcializava, me impedia também de ser pleno. Fui um leitor assíduo de muitas obras e de muitos assuntos, mas fui um mau leitor: a pornografia comia minha consciência. Se fiz sexo nesse percurso, foi com pouco sabor. Eu não apreciava e não era apreciado. Tudo era estéril. O sexo estéril não é um sexo que falha em reproduzir, é um sexo que falha em se conectar. O sexo pode até não reproduzir fisicamente outro ser humano, mas o sexo não pode falhar em se conectar com outro ser humano. E aprendi da forma mais dura que a não conexão no ato sexual é uma das coisas mais dolorosas da vida. E se eu morresse agora, se eu me visse numa sala vazia, se eu tivesse que dar uma frase que resumisse a minha vida, essa frase seria: eu não amei e nem fui amado.

    A pornografia é grátis, mas sem gratidão. Ela não lhe dá uma experiência feliz que se integra a ti, uma experiência que no final você diz: eu sou grato verdadeiramente pelo que tive. Aquilo que você momentaneamente tem, é aquilo que momentaneamente foge de você. O final da pornografia é o vazio. A pornografia pode até mesmo ter sexo, mas é o oposto do sexo. Sexo tem consubstanciação: o ser que era, junta-se a outro ser que era e agora os dois são um só. Na pornografia, eu fui solitariamente eu. E muitas vezes chorei amargamente em minha solidão. Caminhei exilado. Minha condição de exilado era tão densa que até o mar de gente se abria, se abria para que eu passasse solitariamente. Era um milagre infernal. 

    Hoje eu sei que a pornografia era como um pai para mim, um pai que me abraçava, um pai que me abraçava para me devorar e destruir. Quando eu precisei de amigos, a pornografia esteve lá para impossibilitar qualquer hipótese de amizade. Quando eu precisei de estudo, a pornografia esteve lá para deter qualquer pretensão de vida intelectual. Quando precisei estar ao lado da garota que amei, a pornografia me afastou dela. De tudo Saturno me separou. De tudo Saturno me privou. Saturno era um pai possessivo. Sim, Saturno ainda devora seus filhos. Eu sei, eu fui deles.