terça-feira, 31 de maio de 2022

Um Gorducho com Duas Espadas - Parte 2 (Hereges - G. K. Chesterton, pág. 33 a 43) (Lamentações - Jeremias - 1)

 




A similitude de Hereges de G. K. Chesterton com Lamentações de Jeremias poderiam ser meramente ocasionais se não fosse pelo fato de que Chesterton era um teólogo no sentido mais substancial do termo e real em vivacidade, seja em inteligência ou vida em santidade. Mas cenas catastróficas das lamentações em que fala o profeta Jeremias, vemos uma cidade que se perdeu no peso de sua própria glória e esqueceu-se do motivo central que a edificou pomposamente. 


Olhando o argumento anterior, pensa-se: Jerusalém esqueceu-se de Deus, Deus maldosamente a castigou. Só que é má teologia pensar assim, Jerusalém não foi castigada por Deus e sim por si mesma. Ao viver uma vida que foge da substância e cai no mero acidente, perde-se a centralidade e consciência daquilo que nos circunda e importa. É como o homem que hipnotizado pelo amarelo do ouro, passa a acreditar que tudo que é dourado é ouro. Daí encontramos Chesterton: o peso doutrinal é sumamente ignorado e existem discussões que não tratam da essência das coisas, mas de meros itens secundários. É uma discussão metodológica sem a razão que fundamenta o método.






Por exemplo, Chesterton, ao ver que a frase de que "a vida não vale a pena ser vivida" é um bem elabora o seguinte argumento se o pensamento fosse sistematizado: 

Toda ordem que temos hoje seria posta ao contrário e o único objetivo da vida seria o extermínio da vida existente.






Chesterton e a Bíblia me fazem perceber que estou atirando cegamente, esses tiros escapam da seriedade pelo simples fatos de serem ingênuos. Perco-me no subordinado sem alcançar jamais a ordem, já que a centralidade do meu discurso e de minha vida se perderam em banalidades que escapam da centralidade almejada. A vida requer um sentido profundo que lhe dê plausibilidade e dirigibilidade radicada nesse ideal. Se não, perde-se em pormenores que são acidentais. Uma das próprias condições para se atingir isso é a aplicar as crenças num exercício mental de realidade, com pessoas e objetos concretos, testando a veracidade dessas crenças dentro do universo real. Voltar ao senso comum.

Psicologia Aplicada de Freud: o sexo seria o início de tudo

 



Tá, eu sei, demorei pra fazer essa parte da review. Eu realmente estava ocupado com o rumo aleatório que a minha vida se tornou - como se a aleatoriedade não ditasse a minha vida desde o começo. Só que um porém: eu nunca deixei de estudar psicanálise em todo o período em que essa parte não surgiu.

Voltando ao que interessa e a pergunta que aparece logo no título do capítulo: "o sexo seria o início de tudo?". Sim e não. O humano é caracterizado por diferentes períodos em que o desejo se manifesta de forma diferente e cumpre-se diferentemente. A sexualidade está em toda essa condição que chamamos de "desenvolvimento psicossexual", porém sexualidade é mais do que genitalidade.

Cabe falar as fases do desenvolvimento psicossexual:
1. Oral;
(Erotização na boca)
2. Anal;
(Erotização do ânus)
3. Fálica;
(Erotização no órgão sexual)
4. Latência;
(Transferência do desejo para atividades culturais)
5. Genital.
(Quando a erotização parte ao corpo do outro)

Todo esse processo de desenvolvimento psicossexual aqui é explicado. Só que a sublimação "surge" para dizer como o desejo pode ser deslocado e levar ao próprio desenvolvimento da pessoa à maturidade. Além de toda a compreensão que temos sobre o desenvolvimento psicossexual, temos outra: a sublimação não é a liberação e nem a repressão, ela é o redirecionamento da energia libidinal a outra atividade que a realiza e, mais do que isso, pode servir de alicerce ao desenvolvimento pessoal e ao ajuizamento dentro da sociedade.

Todos nós podemos correr o risco de sermos reprimidos, criarmos marcas mentais traumáticas e, também de salutar importância, desvirtuar o caminho do outro com a rigidez de nossa prepotente preconceituosidade. A psicanálise não é só uma ferramenta "terapêutica", ela se demonstra pedagógica em todo percurso vivencial humano.

Acabo de ler "Scott Pilgrim Contra o Mundo" de Bryan Lee O'Malley

 



Esse é o primeiro livro da aventura de Scott. Pelo o que me passaram, o livro todo é uma jornada em que Scott vai amadurecendo enquanto pessoa. Nós, leitores, vemos esse amadurecimento acontecendo.

Pensar nesse livro não é tão simples. Existem referências que aparecem o tempo todo e o humor se localiza no universo jovem-adulto e o rumo que a vida toma a partir daí. Scott é, aparentemente, inconsciente da própria idade e um protagonista bem cabeça oca (estilo Naruto? Acho que sim).

No começo, Scott começa a namorar uma garota colegial que parará de namorar mais tarde em virtude de conhecer Ramona Flower. Garota essa que ditará os rumos da moda contemporânea de minha geração. Antes não era "cool" (legal) ser nerd. Depois da HQ de Scott, o mundo geek e sua moda tornou-se inevitável e padrão. O que nos leva perceber que aquilo que era um ultraje pode muito bem virar moda, tal como o cristianismo virou uma religião perseguida ao nascer, virou religião do império e hoje vivemos na época pós-cristã (ou o parto/geração dessa época).

Excetuando as piadinhas nerds e referências ao universo gamer. A HQ trabalha mesmo com o ritmo da vida adulta e o que ela representa. Todas as vivências levam a um gosto de: eu queria ser mais maduro para ter experiências melhores. As piadas são típicas de nossa época e, por isso, o "livro" envelheceu muito bem - talvez por ter moldado a nossa cultura.

Se você ignorar a música do "Negative XP" (procure-a no Google) e todo fuzuê que virou essa coisa de "cultura geek", você poderá apreciar uma obra que, caso não considere muito profunda, ainda será um excelente passa-tempo. Eu mesmo sou um "problematizador" de toda essa cultura geek e como ela vulgarizou a cultura nerd. Embora eu esteja curtindo a leitura e queira ler a continuação assim que eu tiver tempo.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Um Gorducho com Duas Espadas - Parte 1 (Hereges - G. K. Chesterton, pág. 1 a 33)





Começando - e já amando - a leitura do livro "Hereges" de Chesterton, começo a entender mais do universo do nosso príncipe dos paradoxos. Certos sentidos me escapavam e me feriam a compreensão mais integral de seus escritos.






Uma das principais características a serem observadas é que a palavra senso comum (que seria mais para "bom senso" na língua inglesa) apresenta uma realidade que foge da radicalidade daqueles que têm uma visão um pouco excessiva e acentuada da realidade. O "senso comum" é um parâmetro que delimita as regras da vislumbração da própria realidade na qual nos inserimos.


É importante observar que o termo: "herege" não surge aqui por acaso. "Herege" não está no sentido daquele que compreende e nega a ortodoxia e sim daquele que acentua um ponto e que pode adicionar outros pontos a crença excessivada. Só que o desmembramento de uma crença só faz com que ela se radicalizesse e torne-se tão abstrata a ponto que a realidade mesma se perca. Sendo o real multifacetado, a crença do radical dirige-se contra essa mesma realidade que nega a crença do real: o mundo é muito mais complexo do que uma crença obsessiva e monótona possa comportar.





Chesterton questionava-se como teístas idealistas e ateus militantes encomtravam-se unidos num mesmo propósito e em mesmos locais. A resposta mais direta é: os dois condicionavam-se por uma crença que não era delimitada por nada, a própria radicalidade sem freio de suas ideias ([I] tudo é bom porque Deus existe; [II] tudo é ruim porque Deus não existe) carrega um fator que é igual: o radicalismo bestial na qual se encontram.





Por essa razão, Chesterton não se tornou ortodoxo lendo autores ortodoxos. Tornou-se ortodoxo simplesmente pela necessidade de ver uma razoabilidade plausível entre ideias que, quando extremadas, perdiam o próprio contato com a realidade e tornavam as pessoas cegas a visão da realidade enquanto tal. O pensamento de Chesterton é propriamente esse: o de comportar ideias num plausível para que elas se tornem comportáveis na realidade em vez de agigantar pontos específicos. Dialética pura, meus caros.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Acabo de ler "As Crônicas de Batman: a Prova" de Bruce Canwell, Lee Weeks e Matt Hollingsworfh

 



Nessa pequena HQ, vemos o teste que Batman ofereceu a Robin (Dick Grayson) para que ele o oficializasse como vigilante da justiça. O desafio era: fugir do Batman até o amanhecer. O que não é, para qualquer um que conhece o Batman, um desafio fácil.

No final, era evidente que Robin não conseguiria fugir do Batman. Porém o Menino Prodígio o surpreendeu fugindo de criminosos, em sua capacidade de lutar e também propondo enigmas para o Batman. Tudo isso leva a um questionamento moral: será que vale a pena colocar um menininho numa vida de trevas? Quem responderá é o próprio Batman: "quando perdi meus pais não encontrei maneira de expulsar minha ira, minha dor. E ainda que ele esconda bem, essas emoções estão se agitando dentro de Dick. Robin será uma válvula de escape, uma via para expulsar a escuridão antes que ela corrompa a sua alma".

Batman vê no Robin a imagem de si mesmo. Esse traço não é só mero capricho, talvez seja a forma com que Batman encontrou de redimir a si mesmo e um traço que lhe torna mais humano. Sabemos que Batman sem Robin é menos humano, mais violento e exatamente frio. Robin é um ponto de sanidade e humanidade, por outro lado: Robin consegue se enxergar dentro do próprio Batman, como uma espécie de arquétipo da redenção do mundo pelo movimento de uma pessoa bem-intencionada no combate ao mal. A crença final é a de redimir o mundo com o impulso da vontade.

No final, sentimos que, mesmo falhando, Robin cumpriu bem o ideal proposto. Viveu na prática surpreendendo o próprio Batman. Embora não sendo totalmente capaz, ainda apresentou estar bem o suficiente pra isso. Fora que a HQ traz uma faceta do Robin e a sua conexão com o Batman, além do próprio processo de treinamento e amadurecimento do rapaz que, com sua presença e semelhança, humaniza o próprio mestre.

sábado, 21 de maio de 2022

VOCÊ NUNCA SERÁ FELIZ SENDO PAULISTANO!



Esse é um texto pessoal, lide-se ou sofra. E você pode dizer: “isso é normal de qualquer local do mundo contemporâneo”. Só que se lembre: alguns locais são “bem mais contemporâneos que outros”.


Deixem-me jogar uma “redpill” sobre a capital paulista e o seu povo (paulistano). Talvez ela seja útil para quem tem a ilusão de que viver aqui seja uma coisa boa ou sensata a se fazer devido "a oportunidade de emprego, a diversidade da cidade e comidas do mundo todo, né?". Há, há, há. Você quer pagar o preço de sua alma tentando essa hipótese, meu caro tolo?


Não sei se vocês sabem, mas São Paulo é a cidade mais multicultural do Brasil. Talvez vocês achem que isso signifique a vivência de um sonho em que se pode comer comida de, hipoteticamente, qualquer lugar do mundo – e quiçá isso até seja uma coisa boa. Embora deva-se sustentar que: diversidade alimentícia é só um dos aspectos da experiência geral do todo e o efeito do todo, dentro de São Paulo, nunca é bom. Se isso não lhe serviu de argumento suficiente, lembre-se de uma coisa: nenhuma comida alterará o vazio que você sente por dentro. São Paulo tem tantas formas distintas que não há senso algum de unicidade que ligue a coisa toda e promova uma identificação real, desproporcionando o sentimento de pertencimento graças à ausência de um padrão conexual, mesmo que mínimo, que interligue todas as redes de estruturas que ali estão. É mais um caos sem forma do que uma unidade de variáveis. A consequência de viver aqui é o desgaste contínuo até o arrependimento constante. Eu já perdi as contas de quantas vezes me senti intensamente infeliz só nas últimas semanas. E pior do que isso: o desejo suicida aqui criado é de caráter inconsciente, você enlouquece calmamente e viciosamente sem prazer, tal como dizia uma música do Lobão ("Essa noite não"). 


Vivo em São Paulo há vinte e cinco anos, nasci e cresci aqui. Desde lá, nunca conheci um único paulistano que não tenha tendência suicida – e eu não conheci pouca gente. E, não, não importa a falsificação do discurso por trás disso. A esquerda está ocupada demais odiando o mundo injusto que supostamente está inserida, mesmo que a esquerda paulistana seja uma das esquerdas mais ouvidas e mais organizadas de todo país. Consegue-se, aqui, chegar-se a uma mobilização política de estatura alta e eficaz (ao menos para o padrão duma sociedade capitalista de “terceiro mundo”). Não, esse texto aqui não é uma crítica das pautas da esquerda - sou a favor de grande parte delas - e sim um reconhecimento de que, na realidade, tudo que há em São Paulo são hiperestímulos e movimentos múltiplos de exaustão incessantes. Quanto a direita - aqui trato da direita conservadora ou tradicionalista, esquecendo os "neoconservadores" já que nem conservadores eles são -, ela vê as coisas desordenadas demais para se sentir feliz por aqui e os mais sãos dão a "foda fora" (ok, eu uso chanspeak). Quanto mais a esquerda realiza a sua pauta de tirar de São Paulo qualquer valor autenticamente paulistano - se é que se pode falar de "valor autenticamente paulistano" nessa grande teia de multiplicidades que se alternam por aqui - e inserir São Paulo no cerco mais globalizado e cosmopolita do mundo, mais se sente insatisfeita com a própria pauta e mais radicalmente luta por ela (circlejerk [circulo idiota]?). Acontece que há uma razão para isso: quanto menos pertencimento você tem com o local que você mora, menos satisfeito você se sente com ele – e menos você o ama (Capitão Óbvio). É como aquele manifesto identitário, a esquerda 68tista criou um mundo sem pátria, sem religião, sem divindade, sem família. O resultado não é a imanentização escatológica de John Lennon na música “Imagine”, o resultado é a própria pessoa desgarrada de qualquer sentimento de pertença que lhe seria vital e, por conseguinte, uma fábrica de suicidas potenciais. Um mundo em que tudo se dilui é um mundo de uma massaroca genérica e sem singularidade, o preço da diluição de tudo não é a produção de singularidades, mas a destruição de qualquer possibilidade de singularidade e subjetividade. Se eu disser que todo paulistano é um potencial suicida, talvez a fala fosse um exagero quantitativo, mas não seria um exagero qualitativo. Por outro lado, a direita olha pra tudo, vê que não tem conexão com absolutamente nada, choca-se com a disformidade e, por fim, mata-se ou "dá a foda fora" - e a direita liberal contribui para a destruição de qualquer senso de pertencimento junto à esquerda pós-moderna, o que leva ao eterno lenga-lenga do fato de que a direita liberal (junto aos neoconservadores) é a direita progressista e é progressista no sentido mais profundo em que o progressismo erra. Só que há mais uma direita, de tendência radicalóide, que acha que pode voltar a um passado glorioso e ataca tudo reacionariamente como se isso fosse um meio de atuação efetivo e congruente.


A constante ideia de que a história segue linearmente é assumida simultaneamente por quase todas as esquerdas. Porém não esqueçam de um fato: o neoconservadorismo se assenta numa visão idealizada dos Estados Unidos e importa o seu modelo cultural para todos os países, em alguns casos gerando verdadeiras revoluções que, para qualquer pessoa razoavelmente pessimista (e, par excellence, cética da política e verdadeiramente conservadora e no melhor sentido de conservadorismo), nada tem de fato de conservador. O neoconservadorismo destoa-se do conservadorismo real, já que o neoconservadorismo crê na linearidade da história e tem por objetivo a imanentização escatológica. É por isso que o "neoconservadorismo" nada mais é do que um revolucionarismo americano, uma besteira que só poderia ser criado – e de fato foi – por ex-esquerdista que tiveram formação conservadora de caráter deficiente. Por conta disso, neoconservadores são tão ruins quanto esquerdistas pós-modernos e liberais pós-modernos em seus excessos. Neoconservadores têm um programa para São Paulo: transformá-lo num grande anexo cultural da cultura americana dos anos 50. O que não é uma identidade paulistana e, falando em identidade paulistana, quase ninguém mais faz a mínima ideia do que seja. O neoconservadorismo não é uma forma de conservar a sociedade, nem de reformá-la: é uma macaqueação dos padrões americanos. 


Se o progressismo é bom na medida em que traz pautas fundamentais ao desenvolvimento da humanidade para uma situação mais justa e equilibrada, o conservadorismo é bom na medida em que mesura as medidas experimentais com as medidas já testadas pela força do tempo. A vida é uma dialética constante entre mudanças que precisam ser feitas e condições que precisam ser mantidas. O teste contínuo de novas ideias levadas a cabo, de forma exaustiva, pode colocar em risco todo o desenvolvimento já adquirido pela sociedade. Por outro lado, a mera inalterância corre o risco de paralisar a sociedade e fazê-la estacionar no tempo. Povos fracassam por terem sido experimentais demais (progressistas) e/ou por terem sido estacionados demais (reacionários). Nós nunca sabemos onde estamos nos metendo de fato, tudo envolve cálculo e a política é sempre instável para as vãs e tolas previsões humanas. Só que a discussão aqui já se furtou a muito tempo. Temos neoconservadores que querem um padrão alienígena e progressistas que querem a total diluição da cidade em múltiplas formas que se perdem.


Tá, vamos voltar ao assunto de São Paulo mais propriamente. O nordestino se vê encarcerado num local que não o respeita e que não lhe dá boas oportunidades. Ele nem sabe que hoje em dia, São Paulo é tão ruim com os nordestinos tanto quanto é aos próprios habitantes – ignorando-se a xenofobia, ao menos na criação de uma atmosfera que leva todos ao surto a cidade de São Paulo é igualitária. O paulistano nem sabe a razão de seu sofrer, ele nem sabe que toda a arquitetura paulistana influência em sua sentimentalidade continuamente e o faz depressivo: prédios genéricos e de cores semelhantes (ausência de singularidade em prol da produtividade capitalista?, sei lá), padrões destoantes, arquitetura feia ou desgastada e sem política adequada de conservação, trânsitos que se prolongam em todos os dias da vida, ruas sem asfalto decente ou cheia de toscos preenchimentos superfaturados, nenhuma sensação de acolhimento ou qualquer caráter de historicidade que o ligue à terra nascente – agradeça a esquerda que queria tirar o caráter patriótico e regionalista paulista e, sobretudo, paulistano (e, olhem lá, eles foram bons pra caralho nisso). E o orgulho paulistano? “Nós pelo menos temos metrô”. Como se um sentimento patriótico, nacionalista ou regionalista se construísse com base no tamanho do local, do metrô ou de qualquer outra coisa que seja um produto secundário ou acidental de ações de pessoas bem-intencionadas e amorosamente inseridas num local durante um percurso histórico determinado. As coisas não são grandes e por isso são amadas, as coisas são amadas e tornam-se grandes por serem amadas. Esse é o problema do paulistano: não tendo um amor real por São Paulo, é incapaz de ter um espírito civilizatório crescente que faça com que a sua cidade se torne cada vez melhor. Dessa ausência de amor, a corrupção torna-se ignorável e o produto mais amável é o suposto desenvolvimento que a cidade tem. Só que não se esqueça: os problemas daqui continuam sendo corrigidos a passos de tartaruga, sendo simplesmente ignorados ou crescendo em meio a falsos estancamentos de políticas disfuncionais e o superfaturamento é altamente rentável para uma classe cleptocrata de patrimonialistas organizados que lucram em meio a nossa crescente destruição. Mas, tudo bem, para você a civilização pode ser uma bobagem e o patriotismo uma força de exercer a xenofobia. Você pode acreditar que o mundo se desenvolve pela ação de pessoas que desprezam o local que vivem, mesmo que isso seja flagrantemente contraditório. Amar a minha casa não quer dizer que eu deva odiar a do vizinho, tomá-la pra mim ou odiá-lo por ser meu vizinho – o mesmo é válido para pessoas de outra naturalidade ou até mesmo os possíveis alienígenas. Vale lembrar: o metrô não mata o vazio que você sente no seu peito.


Eu não estou fazendo ode à família tradicional, a religiosidade reacionária ou ao apego regionalista separatista. Creio que a família existe como um centro de poder que pode, se assertiva, potencializar cada indivíduo que esteja dentro dela. Se a família é o núcleo básico e a capacitadora imediata do ser nascente, uma boa família – e não: não estou dizendo “família padrão socialmente aceita e normativamente enquadrada” –  é capaz de dar ao filho e a filha um bom direcionamento. O legado da família é a crescente realização de seus membros – assim deveria ser o legado de todos os agrupamentos sociais. Família, escola, instituições, cidade, governo: tudo isso é centro de poder, formado por indivíduos, cada qual deveria ter o objetivo de transformar os seus membros em pessoas cada vez melhores. O espírito civilizacional é um esforço crescente de pessoas que estão determinadas em elevar-se além das condições que lhes eram anteriores. Só que isso só existe esporadicamente, ninguém está preocupado com a sociedade como um todo. Por vezes, nem com o desenvolvimento da própria família. O que mais precisamos é de que todos os grupos, do mais microcósmico ao mais macrocósmico, preocupe-se com a elevação da potencialidade de seus membros e, igualmente, com a condição física dos lugares que seus membros habitam. Só que entramos naquele “papo chato do amor”: sem o amor, não há predisposição para o bem para o outro – e nem para si mesmo. Esse monte de gente está tudo no mesmo local, só que cada uma atomisticamente separada e em um “eternos monólogos de objetivos”. O único grupo preocupado na elevação contínua da qualidade de seus membros – ignorando as contínuas brigas que têm dentro de si – é a elite cleptocrata patrimonialista. 


A religiosidade segue o mesmo sentido que deveria ter a família. O esforço religioso é a apreensão dum caráter iluminoso que transcende a própria contingencialidade humana e que nunca será, ao todo, abarcável. Tendo o ilimitado por base: a busca religiosa é sempre uma abertura ao infinito que descondiciona e deslegitima os limites que eram anteriormente intransponíveis. Só que esse aspecto de abertura ao infinito, superador das barreiras do imanente, que se projetava em todos os sentidos foi esquecido pela falsidade religiosa contemporânea. Se um religioso dedicava-se aos pobres, dedicava-se todos os dias para atender melhor os pobres. Se um religioso era intelectual, dedicar-se-ia todos os dias para aperfeiçoar-se na maestria da arte intelectual. A religião é espiritualista, seu fundamento é na busca do além de si. Transcendentalizar-se é superar-se. Porém a religião se perdeu por duas vias, seja na corrupção de esquerda ou de direita. Há aquelas que reacionariamente se portaram, tornando-se uma espécie de seita que idealiza o retorno ao passado perfeito – diferente do paraíso posterior defendido por qualquer grande tradição religiosa e que nada tem a ver com as promessas ideológicas (religiões civis: liberalismo, marxismo, anarquismo) de paraísos terrenos. Há, no entanto, aqueles que capitalização o discurso religioso para defender as velhas bobagens das esquerdas (a imanentização escatológica, o paraíso terrenal) e com isso ter poder político. Como se, mudado as condições, o todo da realidade humana fosse alternável pela engenharia social. Fora que há a dualidade corrupta entre: capacidade de gerar lucro (mercadologismo) ou acessibilidade democrática (vulgarização ou acessibilidade como sinônimo fetichista de democracia) só destrói a religião. A religiosidade é a busca pelo reino que, bem ou mal, transcende a esfera do atual e encontra-se superior a ele: é a própria caminha pela realização de um mundo melhor que não se concretizará aqui, mas será continuamente realizado de forma imperfeita – é claro que tudo se torna melhor com o nosso esforço, porém a melhora nunca é absoluta e toda promessa de melhora absoluta é uma ilusão de pessoas que se perderam na própria abstração. Além de que: as pautas de transcendência transcendem, por muitas vezes, as próprias necessidades econômicas do regime capitalista. Não por acaso, existe uma religiosidade autêntica que é anticapitalista ou apresenta pontos que não compactuam com ele – sem, contudo, tornar-se esquerdista. Fora que mesmo sendo a transcendência disponível a todos, ela requer um esforço de querer superar-se que não é da vontade de todos – a transcendência é “democrática” no sentido de que todos podem melhorar alguns pontos de si mesmos e de suas condições, porém mesmo que sujeita as condicionalidades que circunscrevem as vidas dos sujeitos, o esforço por querer mudar depende do ímpeto de cada um e da capacidade de aristocratizar-se (melhorar-se) como vocação. Outro lado que entrava a religiosidade é o próprio neoconservadorismo que avança com força, feito por uma série de igrejas mercadologicamente colocadas, com a pseudomística da teologia da prosperidade e aquela velha bobagem da mentalização psíquica como forma de atrair qualquer objetivo – geralmente estúpido, temporal e puramente material – para o colo. A reflexão intelectual verdadeira, que as formas verdadeiras de religiões impõem, é esquecida. Se o ímpeto religioso é uma abertura sem limite, a mentalidade religiosa abrir-se-ia ao próprio discurso intelectual que lhe é contemporâneo e apresentar-lhe-ia um discurso que lhe é cabível. O objetivo básico, primário e de suma importância da religião, o de reconectar-se com a instância última e primeira da vida, é esquecido completamente pela maioria dos religiosos do Brasil e eles vão muito bem com isso – e a religião vai mal, seguindo prostituída e/ou instrumentalizada para os mais diversos fins escusos.


Quanto a condição individual e o ser autorrealizável, há algumas coisas que devem ser ditas. O ambiente paulistano é péssimo para isso – é péssimo para qualquer realização de ímpeto mais ou menos transcendente. Você só poderá ter um pouco de autarquia (domínio sobre si) se ignorar toda a realidade que o cerca – e você terá que se esforçar para isso. Toda a teia de contínuas e múltiplas estimulações o fazem se perder numa série de múltiplos atos que condenam uns aos outros. Tendo múltiplas cabeças, uma ataca a outra e todo projeto se destrói. Ao paulistano, cabe a calma e o foco que, bem ou mal, fogem da realidade que o cercam. Ele precisa discriminar, escolher um único projeto e encabeçá-lo como escolha de vida – bem diferente do meio multicultural, cheio de opções e sem compromisso identitário a qual vivemos – ao menos que por um tempo limitado e concreto. Só que a pessoa está divorciada da intimidade de si mesma. Perde-se na coletividade ou na ausência de intimidade de si para si. Há diferença entre nutrir ideias políticas e organizar-se coletivamente para realizá-las para com esquecer-se da própria singularidade e tornar-se um ser condicionado a uma abstração coletiva. Infelizmente, o reducionismo politicista (“política é a única coisa que importa, é a realidade última do homem”) faz o homem esquecer-se das outras realidades tão reais quanto a própria política e subordinar-se a uma série de coletividades que, considerando a política a realidade última do homem, fazem-nos esquecer-se de seus outros objetivos vivenciais. É como se a perca de uma reforma, uma eleição ou uma campanha fizesse com que toda outra realização em outro setor vivencial fosse inutilizada. Se perdeu o objetivo político, perdeu também a família, a vida profissional, a vida espiritual, a vida intelectual, a vida cultural, tudo foi pro ralo ou a sensação psíquica é exatamente essa. É possível realizar-se em uma esfera enquanto perde em outra, não estamos num mundo unidimensional e a ausência de percepção disso esvazia a própria capacidade de realização. Não há possibilidade além da tribilização e seitização.


Conversando com um amigo fluminense, há uns quatro anos atrás, ele falou de como as pessoas se encontram ideologicamente afirmadas em São Paulo. Hoje eu não diria que se encontram “ideologicamente afirmadas”, eu diria que se encontram “ideologicamente reduzidas”. Existe uma condição de leitura a qual chamo de “leitura camisinha”. Isto é, ler outra vertente de pensamento só quando um autor de sua linha lhe diz como é essa linha de pensamento. A adoção de um padrão ideológico leva uma redução da capacidade da inteligência. Já que inteligência é o aumento do horizonte de consciência e razão é a aplicação daquilo que se sabe a uma realidade ou hipótese determinada. Exemplificando, é mais inteligência aprender múltiplas linhas de pensamento do que aprender uma única e aplicá-la em tudo. Porém a ideologização fecha a pessoa na redução da realidade, tornando-o um fetichista mental que aplica a sua forma de pensar em tudo em vez da preocupação em aumentar a própria capacidade de pensar. E é óbvio que, numa época tão dominada por fetiches mentais como essa, perder-nos-íamos num aspecto tão elementar quanto a diferenciação entre razão e inteligência, não é? Já que a mediocridade de nossa era consiste num uso exaustivo da vontade (faculdade de decisão) em vez da inteligência (faculdade de apreensão). Ser inteligente, tornar-se mais inteligente é um movimento de abertura e não de decisão. Inteligência é abertura e expansão daquilo que se sabe, vontade é a decisão, porém a inteligência potencializa a vontade e a vontade dobrada ao aumento percepcional potencializa a inteligência. Essa distinção fundamental tornaria tudo aqui menos fetichista e bobo. O resultado mais completo disso é a criação de grupos com uma mentalidade coletiva-normativa que ficam imersos em si mesmos como uma seita autohipnotizada (redundância, não é?).


Aí você escolhe: estude feito um louco, trabalhe feito um louco, faça as duas coisas feito um louco. Tudo em São Paulo é hiper estimulado e tudo deve ser feito com desgaste. Para sentir que se tem vida, faça tudo que faz até a exaustão. Aparentemente, todo paulistano está desgastado em sua adesão desgastante a qualquer coisa que faça. Se for desocupado, será o desocupado que quer demonstrar a sua própria desocupação todos os dias. Se for trabalhador, trabalhará até exaustão todos os dias. Se for intelectualizado, forçará a sua suposta inteligência todos os dias. Todo paulistano é excessivo e caricato pela sua própria excessividade, já que ele não tem ligação real com a realidade mesma que se circunscreve e que lhe trariam gosto pela Terra em que está: apreço ao religioso, inserimento na realidade local, sentimento de regionalidade, conhecimento da própria história, afetividade construída com o próprio percurso vivencial dentro dos locais que frequenta, uma família estruturada no sentido de garantir a potencialização de seu ser com uma história envolvente por gerações que lhe dão um sentido singular de vivência. No final, você bebe, fuma ou usa drogas ilícitas para ter uma efusão momentânea de prazer que, adivinha, vão te levar ao suicídio, a internação ou no mínimo reduzirão o seu tempo de vida. Sua escolha é viver dez anos a mil, só que essa sempre foi a única opção. Você não é hedonista e niilista por escolha própria, é por essa ser a via existencial mais acessível no mercado horrível em que está, por infelicidade do destino ou por burrice, inserido espaço-temporalmente. E você nem precisa ser paulistano pra sofrer disso: toda arquitetura zoada, ausência de cultura própria, caráter desgastante de todas as coisas farão que você vire um legítimo aspirante ao suicídio. Já conheci gente que veio “completamente apaixonada” e iludida pra cá. Eram “totalmente alegres” na medida em que essa aplicação hiperbólica e poética da linguagem o permite, feliz como uma abelha pegando pólen duma flor. Adivinha o que aconteceu com elas após alguns anos ou meros meses de “paulicéia”? “Necessidade” cada vez maior de suicidarem-se. Fora que o padrão exaustivo da vida paulistana faz com que tudo piore… É, esse é o espírito paulistano: você tem tantas cabeças que uma anula a outra por necessidade lógica, só que o processo é de natureza inconsciente e você nem sabe que está passando por ele – e, adivinhe só, você está sofrendo também por causa dele e pela autoanulação contínua do seu ser diante de múltiplas alternativas escolhidas que destroem umas outras preparando a sua psiquê para o surto e o suicídio.


Não se esqueça nunca disso: tudo na cidade de São Paulo levá-lo-á ao suicídio. Tudo levá-lo-á ao desgaste. No fim, o esgotamento é tanto que é melhor viver no interior do que nessa merda de fábrica de suicidas. Uma casinha organizada é melhor do que uma mansão caótica com todo tipo de problemas com os quais você tem que se lidar todos os dias de sua vida, porém, esqueça o que falei, baby, escolha o tamanho da gula com a qual você viverá (e regulará) a sua vida.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Acabo de ler "A sexualidade segundo a teoria psicanalítica freudiana e o papel dos pais neste processo" de Elis Regina e Kênia Eliane

 



Estudar psicanálise não é algo fácil e demora a vida toda. Como não sou nenhuma espécie de ser com aprendizado linear, resolvi complementar a leitura. Fora que ler artigos acadêmicos aprimora a capacidade de fazer bons artigos acadêmicos - o que pra mim é essencial.


Esse livro aborda as cinco fases do desenvolvimento: oral, anal, fálica, latência e genital. O interessante é que elas são explicadas tendo como objetivo de ser usadas na pedagogia e no aconselhamento dos pais. A razão é de que não de quer uma pessoa que cresce com traumas e complexos. Ver a psicanálise como uma ferramenta do desenvolvimento infantil é fantástico e muito útil, sobretudo pelo fato de que demonstra a amplitude da psicanálise.


Outro fato importante a ser comentado: as fases do desenvolvimento psicossexual são bem interessantes de serem analisadas. Aprendemos que a sexualidade é muito mais genitalidade e que somos seres sexuais desde o início de nossas vidas. Fora que temos que nos lidar com os nossos desejos e aprendendo como são, aprendemos a mesurá-los.

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Cadáver Minimal no Metaverso da Música


Demorei um tantinho pra chegar, mesmo assim cheguei bem mais cedo do que deveria. Tive que andar pelo local e pude avaliá-lo. Acabei gostando do ambiente logo de cara, ele é bonito por dentro e por fora. Creio que o local não agradaria um tradicionalista ferrenho preso no vigor das catedrais da Idade Média. Sorte minha, não sou tradicionalista. O local tem várias referências a esquerda e a direita. Um direitista ficaria irritado com a imagem de Simon Bolivar e verei nisso uma tentativa duma "pátria grande" ou interpretaria tudo como um sonho de um eterno terceiro-mundista.







Fiquei aguardando duas horas para que o auditório se abrisse. Entrando lá, comecei a reparar na indumentária do povo que ali se reunia. Percebi que as pessoas se portam de forma elegante, parecem todas terem formação acadêmica e/ou vieram de classes sociais médias e altas. Não que isso possa ser uma ilusão gerada pela necessidade de beleza dentro do evento. Quanto a união entre as vestimentas e a estética geral, o senso de estilo preenche todo o local, e agora me dou conta de que eu aparento ser o único que veio sozinho. Posso apreciar a beleza arquitetônica ao mesmo tempo que me dou conta de que estou inteiramente só.



As luzes vermelhas e brancas se encaixam. Todos aparentam ter mais de vinte e sete anos, embora tenham alguns que fogem da regra - alguns aparentam ser menores de dezoito e outros são evidentemente crianças acompanhadas pelos pais ou parentes. Posso testemunhar muitos casais, o que aumenta a certeza psicológica de que estou só. Junto o peso de estar só com o medo de não aparentar elegância ou sofisticação de caráter suficiente. Queria ter um livro para me omitir através dele, o ambiente aparenta ser tão acima de mim que me encurrala e me fere. Ler um livro traria a sensação de que há uma bolha restritiva ao meu redor. Estar escrevendo isso num caderno só me aumenta a distinção destoante e me focaliza, deixando-me para ser analisado por todas essas diferentes e estranhas pessoas que me circundam. Isso só traz um sentimento: de que o show comece logo e me tire da tortura do olhar alheio.


Com o acumular de tempo, vejo grandes grupos de pessoas se reunindo, solitários como eu talvez transmitam a ideia de impotência. Deveria ter utilizado uma roupagem social mais chique para me omitir na ambientalidade do recinto, teria feito isso se fosse possível: duvido que eu tivesse roupas boas para esse local, e agora começo a pensar no conselho de minha mãe de não ficar gastando todo meu dinheiro em livros e comprar mais roupas. Começo a nutrir uma dualidade: a primeira é que não me notem, a segunda é que alguém me note e se compadeça de minha solidão. Mesurando psiquicamente bem, o frio de lá fora era um pouco menos angustiante do que a sensação de "pressão social" que me aperta. Observando melhor: a maioria das pessoas têm uma coloração de pele bem mais clara que a minha. Pode-se notar que casais andam para lá e para cá, menos os grupos que ficam imobilizados em sua constante confabulação.



Observando agora os costumes de gênero: as mulheres aparentam usar majoritariamente saias, outras tendem a calças sociais. Os homens já são divididos entre os que usam calça jeans e os que usam calça social, alguns usam camisa polo e outros usam camisa social. Observei o vestuário até que a hora do evento se desse, quando finalmente pude subir, tirei foto de um pássaro gigante - duma longínqua ideia de liberdade - e perguntei-me se as cadeiras eram marcadas (queira Deus que não) quando cheguei ao local de apresentação.



Sentei-me num local determinado pelo nível de isolamento junto a capacidade ver melhor o palco. Espero que ninguém estranhe meu hábito de escrever ao mesmo tempo que ninguém mais escreve. Meu senso de anomalia se expande, só que a música me acalma. Em minha frente, a bandeira do Estado de São Paulo, a bandeira do Brasil e a bandeira da cidade de São Paulo permanecem imóveis, é atípico não ver elas tremulando pelo vento, embora seja mais atípico pensar que elas tremulariam num ambiente fechado - o nacionalismo faz a gente ter uma mística que pode ser meio burra. Minha localização? Estou bem mais à direita do palco do que o restante da plateia, sou uma espécie de lobo solitário nadando contra a maré. O que possivelmente é um ato de violência simbólica ou de deslocamento social, quem sabe os dois. Agora sinto algo diferente, sinto que deveria ter comido algo antes de entrar.


Grandes agrupamentos sociais se congratulam ao mesmo tempo em que me disfarço olhando para a arquitetura do local, não quero que percebam o grau de minha solidão. A música melosa não me ajuda, sinto-me mais só e mais apaixonado. Torno-me meio que tão meloso quanto a música do local é melosa. É mais sentimental significativo estar só do que ter companhia? Se a vida é uma condição em que se deve viver uma série de momentos, nem todos "acompanhadamente felizes", creio que tudo isso que sinto agora é um processo de vivência singular. Congratulo-me com a possibilidade de que devo viver esse momento porquê ele escapa daquilo que tenho controle ou de que vivi até agora. Não tenho que controlar e saber de tudo antecipadamente, isso me conforta tanto quanto a ansiedade que esse local me gera.


As músicas que só falam de amor, as pessoas que se encontram em festividade, um local que lembra um cinema com penumbra, a saudade de ter alguém - quem quer que seja - do meu lado. E, é claro, um tanto de fome. O tom melado da música me faz questionar o quanto eu gostaria de ser amado e preenchido por um afeto aconchegante. Deixa-me infeliz o afeto alheio, foda-se: estou aqui a trabalho e não para ser amado. Vem-me a frase: "esse ambiente é tão burguês quanto a burguesia pode ser, como pode me passar pela cabeça que eu consegui estar aqui de graça?". É de graça, só não é gratificante a sensação de isolamento que pulsa dentro de mim. Creio que o investimento financeiro possa ser burlado, só que há outras esferas que não podem ser burladas junto a eles. Estamos todos em igualdade de dinheiro na questão de entrar aqui, só que não estamos todos em igualdade de afeto. 


Enquanto pensava em minha gritante solidão, começo a ouvir uma música que conheço há tempos, mesmo que não tenha ouvido ela por desejo próprio. O que ouço? Ouço a música: "a alegria do pecado às vezes toma conta de mim". Aí vem uma questão de natureza teológica. Se teologicamente o pecado é a parcialização - redução - do ser, vem-me a pergunta: "por que tanto reclamo em vez de apenas me sentir feliz?". Sim, basta-me relaxar. Basta-me abrir-me a experiência, esquecer um pouco dos padrões que previamente espero. Com isso, meu corpo se sente cada vez mais leve e passo a sentir um tanto de acomodação. Do nado, percebo que meus olhos foram afetados por um movimento de intensidade. As luzes tornaram-se um pouco mais intensas e o local ligeiramente mais cheio. Creio que o show começará logo, vejo um acúmulo maior de pessoas que acenam freneticamente umas as outras. Se eu fosse conhecido por alguém, os meus escritos fanáticos seriam atrapalhados, vejo que valeu a pena estar só e não estar bêbado - não bebi nada, mesmo que tivesse gostado de ter bebido só para relaxar mais um pouco.


Penso agora numa reflexão sobre a natureza das músicas. Acredito que as músicas por vezes trazem a necessidade de beber. Nesse momento, não posso beber e tampouco acho que eu deveria relacionar música com bebida. Parece um imperativo dionisíaco correlacionar bebida com música e ambiente artístico com afeto. É um mal hábito, quiçá gerado pelo processo de endoculturação ou simplesmente pela boemia a qual me acostumei desde os dezesseis anos de idade. Poderia pensar mais sobre isso, só que agora o show começa estragando minha reflexão meditabunda. Descubro pelo apresentador que é a terceira noite do evento, uma pena: não fui em nenhuma outra. É a semifinal, meus caros, tão disputada quanto futebol. Um grande carnaval burguês no qual eu, lumpemproletariado, fui colocado para analisar em toda minha pequenez socioeconômica.


O apresentador cita várias pessoas de grandes feitos. Uma série de pessoas com as possíveis duas seguintes características: ricas e bem-sucedidas. Elas estão sendo analisadas por mim e minha impetuosa caneta. Isso é uma estranha forma de inversão de papéis, já que não sou rico e nem bem-sucedido, acho que a vida tem estranhos momentos de alteridade como esses. Quem são os citados? São juízes e bem-pensantes, integrados as maiores figuras das classes artísticas do país. Todos da platéia batem palmas pelos grandes nomes citados, só que vejo que minha consciência musical se perde em figuras centrais. Finalmente os músicos começarão a tocar, o que é uma coisa boa já haverá uma série de bandas. A primeira música é: "tem frevo".


Tem Frevo


A música é bem animada. Só que é muitas vezes cantada num tom muito rápido e a voz da cantora se perdia em alguns momentos. A música fala de um sucedâneo de sentimentos que se explodem, junto com o próprio batucar da música e a sua celeridade. O sentimento passado por ela se confundia com perfeição com o que o instrumental proporcionava. Mesmo com tudo isso, não achei "tão impactante", ao menos não criei uma relação de "intimidade" para com essa música. A próxima música é "tempo bom". Sinto que quero algo mais depressivo, só que aqui o que mais importa é a "felicidade" - ao menos é o que acho que virá, esse evento reúne várias escolas musicais e todas elas parecem mais ligadas ao rito carnavalesco. Preciso me divorciar de minha depressão e meu gosto por ela. 


Tempo Bom


Essa música já me invade pelo seu aspecto marcadamente introspectivo que é sucedido com uma indizível alegria. "Tá virando, já virou, tempo bom tá  pra chegar". A própria música parece ser composta como se "virasse". Ela parece meio que denominada por uma sensação fechada, contida e "lenta" que repentinamente transborda para algo mais explosivo. Eles souberam fazer com que o "tempo sentimental" fosse percebido com a música. Acabei gostando da técnica envolvida nela. 


Indas e Vindas


Já a música "Indas e Vindas" vem vestida com o grau de melancolia que eu quero, ela toca em conjunto ao ritmo de meu coração. "O que canta o amor, não é o canta a paixão, o que encanta o doce do seu coração?". "Não toque aqui, eu não sou de você, nem você é de mim". As minhas relações sintetizadas em um alguns versos: as inseguranças do afeto e a tentativa de exercer controle por um desejo que, no fundo, nem escolhemos ter só que temos que nos lidar. "Partiu um coração". Ah, como eu amo a dor. "Eu não vou lhe dizer, eu não posso explicar pra você". As coisas são complexas demais para serem explicadas, já que envolvem uma série de intercursos subjetivos que muitas vezes feririam a intimidade nossa com nós mesmos se contados.  "Vidas pra quê? Vidas por quê". Sim, fui tocado fundamentalmente em minha alma.


Ilogicamente


"As previsões não batem, as marés são outras". A música trabalha com a inversão da ordem, uma espécie de poesia que trabalha com a loucura do contraste. "Gênios emburrecidos, tolos geniais". "As noites tão quentes", "desertos nascentes", "anjos distraídos, veganos canibais", "ateus religiosos". Poder-se-ia dizer-se que ela fala de um mundo muito louco. O cantor de iniciar a música diz que ficou bastante tempo confinado por causa da pandemia, talvez a canção trate do rigor do confinamento e o efeito psicológico que ele teve nele e nas pessoas. Não sei, isso é uma tese minha, não posso afirmar. Porém o fato do músico tocar o instrumental sozinho tira seu "impacto", seria melhor se houvesse uma banda. A próxima música será: "sagrado serrado". Dessa vez, é de fato uma banda. Tomara que ela supere seus competidores.


Sagrado Serrado


Essa música é uma das mais líricas do evento. Ela traz uma melancolia reflexiva, bem meditabunda. Só que esse "pessimismo" não é ruim, é um pessimismo que encanta. Seria possível dizer que uma poesia bem cantada não é soa como um lacônico lamurio se muito bem escrita, aqui temos a síntese entre a perfeita beleza e a narrativa de uma consciência presa na incerteza. Com essa música, pude vislumbrar mais do grau de maestria no evento  e vi que ele é absurdo de bom. A forma com  que cada um compôs até agora, suas tentativas diferenciadas e com perspectivas bem diferentes umas das outras, tudo isso é vastamente interessante. 


Diante de Mim


Estamos chegando na metade do evento, essa já é a sexta música. Essa banda, ela é fantástica, já que há um "coro" nela - eu fiz coral por praticamente um ano de minha vida, então às vezes sou pego pela memória afetiva. Quatro cantores, cada um em sua parte e conjuntamente. O primeiro verso: "hoje eu acordei mais triste que gostaria, um grito preso insiste vivo muito forte". "Histórias lindas se eternizam quando bem contadas, histórias pobres carbonizam amarguradas". Será que essa música tem múltiplas camadas interpretativas? Eu poderia apostar que sim. Se eu pudesse chutar, o verso que acabei de citar conta o bom trabalho da própria música e a forma com que ele se eterniza agora com a sua realização. Já a segunda parte, deixa um péssimo sentimento nos rivais. Indiretas a parte, o grupo soube executar muito bem o trabalho coletivamente. Em outros momentos, a palavra "eu sinto muito por ser isso que temos que aprender, eu sinto mais de entender que só a dor é um motivo pra crescer": eles não foram arrogantes, foram emocionados e falaram sinceramente o que queriam. Eles também viram a própria dor e a possibilidade de crescimento diante da própria fragilidade, e a frase citada anteriormente "histórias pobres carbonizam amarguradas" também era uma auto-mensagem de reflexão existencial a si. "Eu sou todo amor, e este amor é meu". "A vida passeia, diante de mim, os meus olhos buscam os seus, já não sei se o destino é assim". Se a música "ilogicamente" se demarcou pela solidão do cantor guitarrista, essa foi o contrário: foi um conjunto harmônico, extremamente bem sintonizado entre si e uma excelente composição em letra ou em instrumental.


Anjo sem Asas


"Você me apareceu como um anjo sem asas, linda, delicada, parecia até voar/tão frágil que eu nem sabia como tocá-la, mas veio uma força em seu coração". Uma música sobre o amor, de forma profunda e não genérica, é uma raridade no oceano de vulgaridade. "Vamos namorar, vamos botar o pé na areia, vamos nos amar no mar, ficar assim a vida inteira". Outro ponto que curti nessa música foi a boa presença do guitarrista, não esperava um bom solo de guitarra nessa noite. A cantora demonstrou uma certa capacidade vocal em especial O conjunto da vocalista e do guitarrista se tornaram um tônus. Parece-me uma música que seria uma boa pedida se ouvir ao lado da namorada, da esposa ou da noiva.  


Entrepontos


Quando comecei ao ouvir essa canção, cheguei a pensar que a música falava de uma pessoa que contava a situação de seu próprio coração. Talvez seja projeção minha, pode ser que a canção descreva o coração de uma outra pessoa. Eu prefiro acreditar que a pessoa que o compôs falava de si mesma, sentir-me-ia mais encantado assim. "Tão cansado coração, faz concessão na transgressão", esse verso é denso: o coração que perdoa mesmo quando é transgredido. Estando cansado, põe-se a perdoar mais outra transgressão. Que intenso amor é esse? De um lado, queria sentir tão intenso amor; por outro me perco na percepção de que esse tipo de relação não seria saudável. Uma música que descreve o coração como pessoa, inserindo a expressão do afeto que se tem ao mesmo tempo que também fala de uma outra pessoa concreta. De fato, a atmosfera mudou: "em teus olhos o feitiço do perdão". Que ternura, imagina olhar para alguém e só por seus olhos se sentir tentado a perdoar. Um simples olhar, um olhar que a tudo muda. Certamente, uma excelente música e de profundidade inigualável. 


Trilha da cachoeira


"Suas asas pesadas escorrem nos meus ombros". "Leveza que boa com a mente", é uma música tensa e suave, levando a paz interior e que deságua o luto de minha alma. "Sai minha alma do corpo, levanta e vê o cansaço". Essa música me faz sentir como se eu estivesse sendo abraçado, creio que seja uma espécie de efeito terapêutico. A plateia explode depois da apresentação, só que a música continuava a tocar dentro de meu interior, eu não queria que ela acabasse.


Enquanto


"Os fortes perderam, foram invadidos, saqueados, enquanto vampiros comem pratos laqueados em seus jardins". O tom inicial é calmo, conduz-lhe na alteante sensação de crescente depressão. É como se eu fosse cercado, fechado num círculo e no meio dele começasse a surgir um angustiante sofrimento que é tão portentoso que alcança os céus em sua obscuridade. Eu não sei dizer a razão, mas de todo evento essa é a música que mais seriamente me impactou. Não é como se eu ficasse apenas triste, eu sinto literalmente desespero enquanto eu ouço essa música. Só que é completamente contraditório, sinto-me desesperado e encantado com meu próprio desespero e feliz por estar desesperado. A imagem de mundo destruído junto com o tom depressivo da música me deixaram não só hipnotizado, mas completamente apaixonado. Ela traz uma mensagem crítica que questiona a forma com que os poderosos gozam de uma boa vida enquanto os outros vivem nas cinzas do mundo destruído. Raramente vejo uma crítica social que, junto a ela, traga uma beleza imensa na forma com que é passada. "Não eram nevas, eram cinzas, e a guria em meio as cinzas". Dizem que sentir altos sentimentos é melhor do que nada sentir, a música despertou-me sentimentos tão profundos que eu sinto que meu universo se tornou mais rico, detalhado e multifacetado enquanto essa música tocava.


Solicitudes


A décima primeira música e penúltima música. Teremos uma dupla. "Sim, tudo vazio, o perene em si morreu", "não se nega o amor a vida, que ela toma o que é seu". Essa música, para mim, cai na temática do suicídio. Ao menos é o que eu consigo conjecturar com ela. A forma com que ela traz uma intensa descrição de um sofrimento abismal e o verso "não se nega o amor a vida, que ela toma o que é seu" se repete em minha cabeça, só posso pensar num "suicida terminal" próximo ao seu último desencanto ou ato final. Se essa interpretação ficou pessoal demais, peço-lhes perdão e licença poética. "De grão em grão a vida irá te mastigar". A depressão corrói a alma até o seu último respingo de espírito, essa letra manifesta sempre um cansaço exaustivo que gera até uma ansiedade em quem a ouve. "Se a solidão aperta o nó", "de onde vim, para onde vou, não viver sem ter o amor", "o cerco fecha, a porta trava e o Sol não brilha mais na cara": eu não consigo pensar em como uma letra pode ser tão bem composta. Tendo em vista que ela foi feita para demonstrar uma extrema infelicidade para com a vida, ela consegue fazer isso de forma completamente envolve e "tristemente motivante". Fora que o desempenho da dupla foi insano de bom. 


Chamamento



Última apresentação, décima segunda música. É um ode ao Brasil e identificação com a própria brasilidade: "se tiver que falar do amor, vou falar do Brasil". A música é nacionalista, reclama dos problemas sociais e, ao mesmo tempo que reconhece as várias mazelas, não deixa de amar o próprio país e chama a luta para melhorar o país. "Canto porque sou de lá, canto porque sou daqui": em nenhum momento há um abandono do país, já havíamos sido avisados pelo cantor que "pouco importa" a dor, o Brasil é o país que se ama e que se sofre por vários problemas, só que isso não nos faz desamá-lo. "Quem tirou da mesa o pão e o sal", essa é uma denúncia: o pão representa um alimento básico e o sal é o próprio tempero da vida. Ao terminar a música, somos saudados: "viva ao povo brasileiro, axé". É estranho observar que a última música apresentada é a música que mais parece ter um nível alto de "carnavalesquismo", e isso não pesa em nada no grau de sua sofisticalidade. 



No dia da apresentação, era aniversário do cantor Dorival Caymmi. O homem morreu em 2008, somos apresentados a uma sucinta descrição: sua música trabalhava com o cotidiano da Bahia e muitas vezes falando do seu amor pelo mar. Não que isso seja uma descrição simples, há de se dizer que ele chegou a um alto grau de abstração e descrição lírica nos dois pontos. Era uma autodidata que se apaixonou pela música quando ainda era criança, e com seu esforço renovou a música brasileira. Teremos algumas músicas dedicadas a ele agora, cantadas pelo seu próprio filho: Danilo Caymmi. Várias músicas que são passadas como o intuito de celebrá-lo, creio que será um cantor que eu voltarei a pesquisar várias e várias vezes. Queria ter conhecido Dorival, ao menos como ouvinte, antes dele morrer. Um das músicas que mais me impactaram foram essas: "Suíte do Pescador" e "Marina".



Ao sair do show, já penso em várias outras coisas. Foi-me uma vivência pesadamente significativa. Só os sentidos movem o coração, é pelo coração que queima que o intelecto age. Só aqueles que testemunham a luz do Sol podem se sentirem satisfeitos para meditar em suas cavernas. Não por mero acaso, o existencialismo trabalha em primeiro momento com o envolvimento existencial e só depois com o distanciamento crítico. É preciso estar pessoalmente envolvido para estar criticamente envolvido. Se meu coração não se move, meu espírito não se move. Se não há o dobrar dos joelhos, não há o voo espiritual do intelecto. Eu posso sentir que há sangue, que há vivência real, em cada música que aqui eu ouvi. Se eu não for igual, seu não puder derramar um pouco de sangue em cada ato, não estarei me projetando para fora e não estarei vivendo. O sentido da experiência, a significação de experienciar é sair de si.




Questiono-me o quão impactante eu tenho sido. O quanto eu tenho conseguido dar de mim. Não tenho me sentido satisfeito comigo mesmo. Eu sempre quero mais e o mais que eu quero parece não estar sendo concretizável. Quando estive aqui hoje, vi não só uma série de músicas, vi também uma série de histórias, de trajetórias, de movimentos. Só que o movimento é tão denso que me machuca. A solidão é tão perceptível que me destrói. A saudade é tão desastrada que me corta. A sensação é tão intensa que sinto vontade de que o sangue saia por cada olho meu mesmo que me cegue. Já que me é infinitamente melhor sentir do que não sentir. Nisso vem-me a noção de que devo me desconstruir. Devo criar uma série de novas experiências que me façam transcender de minha atual situação tal qual a experiência transcendental que hoje tive. Aquilo que me desconstrói é o que me renova. A serpente deve destruir a si mesma - a lei da troca equivalente - para se renovar. É por isso que eu vejo o símbolo do Ouroboros. 


Voltando pra casa, me pergunto quem sou e quem serei perante à morte. Se meu mundo era, no ano passado, ligado a uma relação pouco pessoal e nada "intimista", perdidas na virtualidade do mundo cibernético. Me perdi na tenacidade mesma dessas estranhas relações que facilmente se dissolviam. Hoje percebo que o "cordão relacional", a ligação existencial, quanto mais próxima, mais difícil é. Percebo que há um grau que me escapa, uma "força" ou "capacidade" que me foge. Ter uma capacidade de estar com o outro, de estar para o outro, de ser percebido ou relacionado com o outro... ainda me é difícil e o sentimento para com o outro escapa numa série de sutilizas que ainda não consigo ainda captar. Adentrar nesse reino sutil, de movimentos ínfimos que se perdem na minha capacidade perceptiva, é como olhar diretamente para o Sol depois de sair da caverna. Meus olhos queimam e fremem diante dessa nova realidade. É como se eu fosse um grande cegueta social. Meus olhos estão agora vermelhos e exaustos após tantos estímulos.



Se isso foi um extrato bancário, se é possível mesurar a infinidade da variedade incomensurável do que sinto: eu sinto dor e medo da realidade. Eu não sabia que a leitura poderia ser uma caverna e que a realidade externa tinha tantos estímulos que machucariam a minha própria autoestima e confiança em mim mesmo. Só que agora só me resta continuar, mesmo que eu seja a cobra alquímica que come a si mesma para o ciclo de renovação necessária. Eu terei que me destruir, eu terei que me digerir. Toda essa nova euforia, todo esse abatimento é como um longo processo de morte.


O medo me invade. Nutro "natural" desconfiança de caráter excessivo. Diz-se que o neurótico é composto por: inquietação, incerteza e insegurança o tempo inteiro. Eu duvido da exatidão dos trens, dos ônibus e dos metrôs. Eu duvido de meus pais. Eu duvido do valor objetivo do dinheiro. Eu duvido que meu cartão tenha dinheiro mesmo que tenha. Eu duvido que eu saiba a senha dele mesmo que eu saiba. Eu volto atrás o tempo todo, preciso conferir de novo e de novo, só pra por certo o que há de certo. Tudo isso leva a um gasto de energia psíquica bem maior do que deveria. Pergunto-me até quando sofrerei pelo o que não deveria. 


A diferença do medo para a ansiedade é que o medo é se encontra em algo real, de um objeto com "real valor objetivo". Já a ansiedade se refere a algo do campo da fantasia. Minha neurose escapa do campo pragmático e e tudo que tenho é dor. Até quando serei tão paranoico? Até quando me omitirei da realidade? Só que eu tenho que mudar. O tempo tá passando. E o pior de tudo é que eu tenho que "matar a mim mesmo" nesse processo evolutivo, tudo que até então constituía minha consagrada identidade e o chão que cobria meus pés. Tudo que vivi hoje me impactou e revelou uma coisa: eu tenho que mudar, mesmo que isso leve a autoantropofagia. Caminho rumo ao renascimento.

Acabo de ler "Em Defesa de Stalin" de Vários Autores (Parte 12)

  Essa é a última parte de Emil Ludwig, indo da página 185 à 208. Aqui termina a triunfalmente rica e arguta análise de Ludwig. E talvez sej...