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quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Acabo de ler "Sobre o sentido da Vida" de Viktor Frankl (Parte 4)

 



Dizer sim a vida, apesar de tudo. Esta é a condição para viver, embora não seja fácil. Sendo a vida a indagadora de tudo, temos que escolher como agir e não questionar as questões da vida. O que podemos questionar, e isso sim nos cabe, é como agir. Somos livres comportamentalmente, mas não somos livres quanto às questões apresentadas pela vida. Ela é, e sempre foi, tal qual o destino.


Frankl nos conta um lado profético, até mesmo poético, do campo de concentração de Buchenwald: "queremos, apesar de tudo, dizer sim para a vida". O que esses prisioneiros fizeram, cantar em meio há tanto sofrimento, transcende qualquer concepção. É aceitação da vida até as últimas consequências. Mesmo com o sofrimento, mesmo com a dor, mesmo com a morte. E a vida existe e tem sentido apesar de todas as realidades conjunturais que se apresentem circunstancialmente. Isto é, o questionamento que a vida apresenta é variável, mas o sentido não. O sentido existe apesar de toda situação apresentada. Tal qual "Deus é", o "sentido é". Pode mudar de figura, de forma, de conjectura, mas não deixa de existir.


É preciso que exista, dentro de nós, um ímpeto de responder tal questionamento. Já que, como disse Frankl, a vida é um jogo existencial e todo esse jogo só pode ser respondido existencialmente. Ser é assumir a responsabilidade e agir. Ser alegre na resposta que iremos tomar, pois toda decisão assume a roupa de eternidade. Toda ação tomada se registra na eternidade. Fazer algo é, em última instância, realizá-lo eternamente. Não fazê-lo é eternamente deixar de o fazer naquele momento em específico que se registrou na eternidade.


Frankl está, para mim, como uma das melhores leituras de 2023/2024. Me ajudou - e me ajuda - em muito nesse processo existencial que tenho passado. Há, em mim, o desejo de viver apesar de tudo que tenho passado, de toda angústia psíquica que venho, nos últimos tempos, sofrido. Tenho o desejo que continuar a caminhar - ou, melhor, marchar -, apesar das circunstâncias desfavoráveis.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Acabo de ler "O Outono da Idade Média (capítulo 1)" de Johan Huizinga

 



A Idade Média é, dentro os assuntos do debate nacional, um tema extremamente delicado. A razão principal dessa delicadeza se dá pelo fato da esquerda tem um estudo precário acerca do assunto. Usualmente essa mesma crê em mitos e factóides gerados não por estudiosos medievalistas sérios. Se o problema do debate do islamismo se dá pela ausência de uma revisão bibliográfica na direita, o contrário é verdadeiro no estudo medieval.

Esse é um livro carrega uma tradução mais precisa da decadência ou declínio do período medieval. Em vez de procurar o movimento que lhe sucederia, busca explicitar as razões que levaram ao falecimento do medievo. É interessante que, já na introdução, somos chamados a observar que o estudo da história não deveria ter um caráter voltado apenas aos movimentos nascentes. Os períodos de decadência e morte, bem compreendidos, são também úteis ao conhecimento e apreciáveis a existência.

Quando falamos de Idade Média, falamos dum contexto espaço-temporal em que tudo era preenchido por um simbolismo extenuante. Cada ato da vida, em si mesmo, não poderia deixar de ser colocado numa simbólica omniabrangente. Graças a tal modus pensadi, a própria forma de enxergar a vida adquiria um grau de excitação elevado - embora que, muitas vezes, para o prejuízo da razão. Os medievais buscavam simbolicamente a tudo distinguir, marcando até uma forma de "maniqueísmo inconsciente" que dava furor radical entre as diferenças da vida.

O leitor encantar-se-á, é claro, pela forma apaixonado, romântica e heróica que os medievais faziam qualquer ato da vida num salto simbólico e existencial. Mesmo que não se sinta muito disposto a ver excitações sentimentais como uma boa psicologia civilizacional. A nós, falta-nos encantamento. A eles, faltava-se uma certa frieza na análise de algumas partes da vida.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

O Necrófago

 


 

Se eu dissesse que eu sangro sem sangrar, isso lhe assustaria? Se eu lhe dissesse que posso sentir minha carne sendo cortada, sem ser cortada, você acreditaria? Se eu lhe disse que sinto gosto e ele tem gosto de desgosto, você saberia definir o que de fato sinto? E, por fim, se eu lhe disser que todo esse vaivém a qual a humanidade se destina é apenas uma marcha caimíca em que o progresso civilizacional é, tão apenas, o domínio do demônio e da totalização diabólica? Dir-me-ão que os remédios modernos são fruto do progresso, dir-lhes-ei que o holocausto baseou-se igualmente no progresso técnico e científico. A bomba atômica é um portentoso milagre científico e técnico que ceifou várias almas. Mas, pensando bem, é até mais misericordioso ser morto por uma bomba atômica do que estar num campo de concentração. Com ferramentas de capacidade superior, os novos deuses de pés de lama se erguem e a população com adora o mais novo bezerro de ouro em forma de Iphone ou o que quer que seja a nova forma dele. Religiões, ideologias e doutrinas se alternam no poder sem que o homem possa ir para o paraíso tão pedido e tão prometido. Sempre alguma nova ideia será enunciada prometendo a nova forma de chegar (ou seria retornar?) ao paraíso.

 

Perguntar-me-ão se eu tenho um programa, se eu tenho uma direção, um senso de unidade, uma doutrina a qual poder-se-ia remir o mal contínuo da humanidade. Negativamente responderei e negativamente serei encarado. Todos devem trazer alguma coisa, qualquer coisa. Em nossa época, se faz necessário publicalizar a consciência em todos os fenômenos que se sucedem. Todo esse esforço de pingar o fragmento das almas nas mais diversas ocasiões é, para alguns, o divertimento e realização de seus seres concomitantemente. Denuncia-se ali um caso de racismo, fala-se aqui duma manifestação por algum novo direito, comenta-se o protagonismo feminino ou a privatização indevida ou devida de alguma empresa. Eu me proponho o contrário: ignoro tudo o que acontece e não mais me posiciono. É fato que alguns homens tornam-se alguém, outros tornam-se alguma coisa e outros, menos sortudos, tornar-se-ão algo e haverá aquela parcela, mais numerosa em todas as épocas, que nada serão e a nada serão destinados. Afirmo-lhes que sou pessimista demais para acreditar em qualquer coisa. Sou pessimista demais para cair na estultice de acreditar em mim mesmo - apesar disso ser um dogma pós-moderno (e, se não o for, não sei de quando data tamanha idiotice). Toda minha afirmação é uma negação. A negação, nada mais é, algo que reacionariamente nega o que é afirmado. Um negacionista é um homem que nega o que é afirmado. Sou o homem que olhava para o abismo e quanto mais olhava para o abismo, mais sabia que olhava para a própria natureza.

 

Ultimamente eu sinto estar ficando mais cego a cada dia. Não que eu tenha perdido a visão no sentido físico do termo, é que há um lamaçal metafísico de natureza obscurantista que me atrapalha. Eu simplesmente não consigo enxergar nada de qualitativo, nada de prazeroso ou nada que me dê um bom gosto palatável. Com o tempo, torno-me niiliabsorto nessa malignidade. Muitos de meus contemporâneos gostam de denegrir ideias, doutrinas ou religiões. Para mim, o esforço satírico e o gosto pelo caos dionisíaco se evadiu na medida mesma em que eu crescia. Minha geração só é forte o suficiente para negar ideias que, por lhe serem absolutamente superiores, não tem capacidade de cumprir. As ideias, as doutrinas, as religiões, as ideologias... Tudo isso foi abandonado por essa geração de fracassados. Não que eu não seja um deles, só que reconheço o fato de que sou fraco. Satirizar aquilo que não tem capacidade de corresponder em força e em estilo é o jeito com que os fracassados encontram de não negarem o próprio fracasso, mas a transcendência que se lhes apresenta. Quanto mais eu crescia, mais a beleza se evadia. Quanto mais eu crescia, mais eu ia para a direção não da antissociabilidade, mas do divórcio social. O esforço da negação, tão comum aos meus "iguais" - ao menos inseridos no mesmo "espaço-tempo" -, tornou-se até a negação da negação. Eu não só nego, nego-me igualmente a negar. A corda num pescoço seria, tão apenas, um alívio a essa pressão de desgaste que me obscurifica. Sem vontade alguma de continuar, empurrado a andar pelo espírito das poucas almas que ao meu lado ainda ficam.

 

Ninguém poderia para mim olhar, conhecer e passar ao lado sem que lhe ocorresse o seguinte pensamento: "como alguém pode ser tão deprimente?". A resposta, se é que há uma, é que minha natureza é morta. Eu sou tão apenas um cadáver. Nesse ponto em que me encontro, creio que minha alma caiu fora de meu corpo por abjeção. Creio firmemente que minha alma me abandonou há muito tempo, se eu tivesse oportunidade, também abandonar-me-ia sem pestanejar. Vago aqui e acolá, a preencher o espaço com minha presença física vazia. Sou o paradoxo do corpo físico que, adicionado ao ambiente, não ocupa espaço. Pelo contrário, sou um buraco negro que suga toda positividade, toda esperança, matando tudo que há de bom com minha pessimistividade. Minhas palavras nada dizem, as ideias que, por algum acaso enuncio, nada a mim representam. Para ser sincero, o nada nadificante de minha condição tornou-se uma existência puramente negativa que anula qualquer possibilidade de positividade. A leitura, em vez de erudição, só me traz uma forma de pseudotranscendência evacionista da realidade. Os antidepressivos só atenuam o sofrimento físico e mental que passo, minha visão e minha essência é em si mesma depressiva.

 

Tudo vem sido uma lenta odisseia fúnebre na qual eu me sinto cada vez mais morto. É um ditado popular a ideia de que nos tornamos o que comemos. Eu só como coisas mortas. Os animais que me alimentam foram mortos. Os autores que leio morreram há muito tempo, quando não morreram há séculos. A única coisa que tenho é o reinado do niiliabsolutismo. Eu não posso ligar para grandes causas. O fascismo, o socialismo, o liberalismo, tudo isso me dá tédio. Mesmo que eu não seja tolo o suficiente para acreditar que, em meu relativismo singularista, eu seja superior a essas religiões civis que tanto marcaram a humanidade. O amor que a sociedade tem pelas crianças me entedia. Os grandes acontecimentos políticos são por mim ignorados. A própria capacidade empática de ligar para um acidente de avião ou a um genocídio que, esporadicamente a humanidade faz numa religiosidade ritualística, não me causa absolutamente nada. Todas as discussões que saem dos maiores anseios humanos de nada me representam. As transformações de ideias que se alternam e sucedem não me representam coisa alguma. Tive o infortúnio histórico de nascer depois das grandes religiões e civilizações religiosas, das grandes ideologias e suas revoluções.


Nos últimos tempos, empreguei-me a andar em campos vácuos. Seja fisicamente ou mentalmente. Afastar-me de qualquer criatura viva era meu modo de viver mortamente. Até que, um dia, deparei-me com um terreno baldio. Um cheiro horrendo despertou em minha narina. Deparei-me com um cadáver. Cadáver esse que estava passando por um processo de decomposição. Claramente, não habituado a tal cheiro, tão logo pus-me a vomitar. Por algum motivo, uma vaga similitudidade enunciou-se em minha cabeça. Embora esse cadáver estivesse de fato morto, estivesse fedendo e estivesse esquartejado, sua natureza em nada diferia da minha. Quem sou eu, se não a podridão? O cheiro dele é igual o de minha natureza. O estado físico de destruição é de igual modo semelhante a minha psique. O fato de estar morto há muito tempo só me lembrava, igualmente, que eu estava tão morto quanto ele há tanto tempo que não me lembro. Tão logo aproximei-me e pus-me a prosear com tão igualitária criatura.

- Está morto, tal como eu estou morto. Teu fedor repugnante assemelha-se a minha própria repugnância. Minha natureza é de igual repugnância a sua natureza. O abandono em que se encontra em nada difere-se do meu. Para ti, a condução política e cultural em nada representa, em nada promove. Sinto-me, então, igual a ti. Você não pode acreditar no amor, já que não está vivo. Eu, estando igualmente morto, não acredito igualmente no amor. Não pode ter amigos e nem ligaria de ter um amigo, tal como eu. De certo modo, afastei-me de todos aqueles que eram meus amigos apenas para nada mais sentir e, nisso, assemelho-te a ti que não tem amigo algum. Em certo tempo, também acreditei na relevância da vida e em como todas as ideias que sucediam em minha cabeça tinham algum grau de relevância graças o valor incalculável de minha vida humana. Hoje sei que sou tão irrelevante quanto qualquer outra coisa morta e que nenhum vivo tem valor. As ideologias não me encaixam, as religiões não me causam júbilo. O abraço confortante nada mais é do que uma doce ilusão de dois corpos que se encontram equidistantemente. A singularidade humana não pode ser compreendida por outra singularidade humana, toda comunicação nada mais é do que um monólogo falho.


Logo pararia de falar com meu mais novo amigo. Volvi para casa. Onde passei a ler até que o sono tornasse a leitura impossível. Passar duas semanas longe de meu companheiro cadavérico deu-me uma sensação estranha. Os homens, as mulheres, toda a humanidade viva me era tão estranha quanto nociva. A mera ideia de que um coração batesse me causava desconforto, isso se não me causasse nojo. O próprio fato de meu coração ainda bater me causava desgosto. Olhar os outros seres vivos só me deixou um único pensamento, na qual sintetizo numa curta frase: "Eles não eram tal como eu". Mesmo estando atomisticamente presos em si mesmos, incapazes de adentrarem em substancialidade total com outro ser, prendiam-se nas ilusões vãs de que era possível se conectar com o mundo exterior. Não há mutualidade no mundo, toda comunicação é uma inutilidade. Engana-se quem crê que há compreensão, que há gradação de proximidade, que o íntima revela-se a quem se aproxima. Tudo está separado, eternamente separado. Mas como, como só eu me dava conta disso? Eles não podem perceber? Eles não podem ter consciência? Se um time de futebol ganha, nada ganhou. Se um político se elege, nada se elegeu. Se há uma alegria após o orgasmo, é apenas um prazer efêmero gerado pela própria face animalesca do que sobrou do bestialogismo humano não totalmente humano. Humanizar-se é dar-se conta de que a vida é como um grão de areia, uma poeira sem valor a movimentar-se de acordo com a influência dum vento. Ao menos a própria razão conduz a percepção da niilitropia em que vivemos e o que distingue a humanidade é a faculdade da razão. Racionalizar é humanizar-se, humanizar-se é perceber-se nulo e, então, niilificar-se. Para percebermos o quanto somos sordidamente sós, basta que entremos num ônibus e dar-nos-emos conta de que não temos íntimo contato nem em nossa locomoção por esse torpe mundo.


Eu senti, eu senti que deveria voltar ao terreno baldio. Eu não pertenço a esse mundo das entidades móveis. Todo esse movimento me é estranho. Vida é aparência e o reino das aparências não pode ser factual. Eu sou tão inexpressivo, irrelevante, podre, sem valor, quanto um morto abandonado. A morte é imóvel, logo não é aparente. Não consigo achar inteligível qualquer sociedade viva. Tive que voltar para o terreno baldio. E uma surpresa tive ao voltar: a minha pequena sociedade secreta aumentou. Mais dois corpos dispunham-se ali, como a ter um descanso dessa ausência de sentido unificada na qual a humanidade se move. Ali, eu e mais três cadáveres, sabíamos irrelevantes e vazios. Todos niiliabsortificados pela despertar da consciência do átomo. Não falarei dos sexos de meus companheiros. O que é o sexo se não uma superficialidade para quem se encontra morto? Deixemos as vanidades dos vivos para trás. Vivamos a morte e o esquecimento. Eu lhes devia um discurso inaugural. Devia-lhes um acolhimento cadavérico. Logo, pus-me a falar.

- Felicito-lhes pela morte. A morte é a única que proseia com Sócrates e Dante. Os vivos acham-se acima dos mortos, só que não possuem qualquer similitude conosco. Eles desprezam os esforços dos ancestrais e negam-lhe a possibilidade de discursar. Acreditam que o fato de estarem vivos lhe torna especiais. A vida é efêmera. A ciência moderna está a provar que a vida na terra é um mero acidente, onde não há criador algum. Sem criador bem-intencionado, sem sentido próprio condicionado, sem nada que valha a pena para se viver, somos todos nós átomos a rondar um espaço sem capacidade de expressar o vazio em que nos encontramos. Morrer é despertar para a realidade e até mesmo para eternidade. A realidade é tão morta quando pode ser. Deixemos que os vivos aproveitem a curta vitória de suas eleições, as modas de pensamentos que morrerão, os prazeres efêmeros que logo acabarão, a sensação vaga de amor eterno que logo despedaçar-se-á. O aborto é o mais feliz dos seres, já que ele passa para eternidade da morte sem conhecer as ilusões da efemeridade da vida.


Com o tempo, passei a frequentar o terreno baldio com mais assiduidade. Deitava-me lá, esforçava-me para matar dentro de mim qualquer pensamento. Queria ser tal como um morto, um verdadeiro morto. Havia dentro de mim uma pulsão de natureza nirvânica que eliminava toda e qualquer energia mental dentro de meu aparelho psíquico. De que necessidade teria eu de pensamentos? De sentimentos? O esforço negativo leva a sonegação desses vãos alvoroços causados pelo efeito ilusionista da vida. Não comunicar-se com ninguém era meu deleite. Abandonar toda e qualquer possibilidade de amizade. Matar em mim qualquer ânsia por movimento e qualquer noção vaga ainda reminiscente da possibilidade de "calor" humano. O que move os vivos? A vida é uma existência numa caverna. O calor humano nada mais é o que alimenta as projeções das sombras ilusórias que são confundidas com a verdade ou a realidade. Tendo em conta isso, o cheiro podre deixou, com o tempo, de me importar. Cheiro nada mais é do que outra vaidade das ilusões dos vivos e suas maquinações ilusionistas. Mesmo quando os cadáveres aumentaram, eu me sentia como um deles e tudo que eles tinham era, para mim, de máximo valor e não de ojeriza.


Acreditava piamente na ideia de que o esforço anulativo era melhor que o esforço criativo. A estabilidade pertence ao reino do descanso e o reino do descanso pertence a morte. Esforçar-se para atenuar qualquer possibilidade de esforço, tirar da mente as ideias que tiranizam, afastar-se de qualquer "calor humano". Tudo isso, nirvanicamente enquadrado e enfatizado, torna-se num deleite sem o qual não poderia mais conjecturar o estado não vívido em que me encontrava. Adaptar-me a morte era o compromisso principal a qual me sujeitava. Imitando os mortos aprendi de fato ao destino comum que me era destino e glória. Pena que, tal deleite, provar-se-ia incapaz de durar para todo o sempre. Esqueci-me de que era ainda vivo e, como vivo, poderia ser perturbado por essa ordem caótica que se cria pela vaidade. Fui acordado por um estranho homem.

- Por que passa tanto tempo aqui?

- Gosto de me deitar e pensar que também estou morto.

- Por um tempo, pensei em te matar também.

- Eu já estou morto.

- Não entendo, nem sei se quero entender. Para mim, é simplesmente um louco. A única pergunta que tenho é: não me denunciará?

- Pelo o quê? Por ter libertado essas pessoas das ilusões criadas por Demiurgo ou pelo vazio ou seja lá pelo que tenha criado ou não esse mundo? Viver é uma ilusão. Todo reino de matéria nada mais é do que um aprisionamento na falsidade. Nada aqui faz sentido e tudo que há é um grotesco monumento confuso e assimétrico.

 

O homem simplesmente parou de me encarar. Pegou o seu saco preto e soltou mais um corpo morto. Certamente ele era o assassino de meus companheiros. De qualquer modo, essa informação me era tão irrelevante quanto tediosa. Ele era só mais um vivo. Todavia não pude deixar de felicitar meu novo companheiro:

- Seja bem-vindo, meu partidário.

- Do que está falando? - perguntou-me o serial killer.

- Não falo contigo, falo com o morto.

Olhando-me com estranheza, o homem simplesmente foi embora. Era um vivo e, tal como um vivo, não poderia compreender um partidário da morte. Nem sei se posso falar em "partido". A ideia de que há "parte" e não "todo" pertence a essa diferenciação do reino da necessidade. O partido, seja qual for, nada mais é do que um defeito na capacidade de pensar. Na totalidade, em que só os mortos estão, não há "partido" algum. Tudo se encontra e tudo está encontrado. Não sei se a felicidade do assassino consistia em matar. De qualquer modo, matar é um prazer tão sem graça e efêmero quanto qualquer outra vaidade que constitua a vida. Todo prazer de um vivo é um prazer efêmero, impróprio a capacidade eternalística que tem a própria morte. Não o condeno, toda atividade viva me é indiferente. Qualquer movimento me é estúpido. Que diferença me faria se ele fosse padeiro, açougueiro ou um simples pescador? Tudo isso é vaidade. Mesmo o assassino compulsivo tem o gosto de matar. Trazer pessoas ao mundo eterno da morte causa-lhe prazer. É um esforço idiota, tal qual todo esforço vivo. Tão sem valor, tão sem importância quanto qualquer coisa viva.


Meu bem-estar não durou tanto tempo. Minha única felicidade, que me conectava com o mundo transcendental, foi-me privada. Acabei por ser pego por um policial e colocado numa viatura de polícia. Não tardou que eu fosse investigado. Todas as vezes negando a mera hipótese de que tenha sido eu o assassino. Respondia vagamente que também era um morto. Achavam que eu era insano, simplesmente insano. É justamente o contrário: eles é que são insanos. Fiquei dias na cadeia, esperando e sonhando com minha volta ao terreno baldio. Pensava em me matar todos os dias. Isso não me era ruim ou depressivo. Eu simplesmente amava a ideia de me ver morto. Morto e liberto. Toda essa sucessão de ideias e gosto pela proximidade com a morte durou até que o assassino foi pego. O estranho homem confessou todos os crimes. Além de que, em sua casa, foram encontrados vídeos de tortura e assassinato de todas as pessoas que matou e que estavam no mesmo terreno baldio que eu. Ele ganhava dinheiro torturando pessoas ao vivo. Uma investigadora, antes de me soltar, fez-me a sua última pergunta:

- Se você não era o assassino, o que fazia ao lado dos corpos assassinados? É isso que ainda não pude compreender com totalidade.

- Ora, minha cara, eu apenas olhava para a minha própria natureza.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

A Panaceia do Espaço


 

 

     Quando uma tia minha morreu, fiquei a chorar sem ao menos conhecê-la direito. O dia era acinzentado e trazia a sensação dum mau agouro. Era a primeira vez, a morte fez-se morada em meu imaginário sem permissão ou pedido algum de concessão, ela simplesmente arrombou a porta e adentrou como nada se fosse. A mim só coube suportar a noção de que as pessoas não eram imortais, que eu um dia sumiria para sempre e que houve um mundo que não foi marcado pela minha presença e haverá um mundo em que minha presença já não será marcada. A ideia de que toda minha existencialidade era um grão de areia insignificante que se juntava a outros infinitos grãos de areia não me foram reconfortante. Só percebi a banalidade do valor superestimado que damos a todas as coisas.

 

    Se eu pudesse conceber uma imagem fidedigna ao tempo, teria que criar uma mitologia pra explicá-lo. Decidi fazer essa tarefa por não ter nada melhor para fazer e por ter a consciência de que já estive em dias melhores. Como sou um pessimista nato, não esperem de mim nada que fuja duma concepção injuriosamente sofrível. Quiçá tirem algo de bom, útil ou aproveitável desse pequeno conto. Eu mesmo, quando o criei em minha cabeça esquiva e atordoada, pude tirar dele uma importante lição.

 

    Quando um bebê nasce, ele se depara com um homem velho e barbudo a olhar-lhe. Ele não tem noção de quem esse homem é ou o que faz lá. Esse estranho homem tem vários pregos guardados numa caixa e carrega consigo um estranho martelo. O homem pega o martelo e coloca um dos pregos na boca. Vê o bebê e olha compadecido, conquanto que também frio. Ele pega o pequeno bracinho do bebê, segura-o fortemente para que não fuja e martela o prego no braço da pobre criatura. A criança chora compulsivamente, sem entender nada e sentindo a dor sem poder defini-la. Do mesmo modo, o velho também chora, tal como se ferisse a si mesmo nesse processo. Do momento em que nasce, até o momento que ela morrerá, esse estranho homem marcá-la-á com pregos a cada tempo.


    Cada prego representa uma ação dada no espaço-tempo. Esses pregos nunca saem ou cicatrizam. Eles doem eternamente, atordoando cada homem por sua ação. No começo, damo-nos por insatisfeitos e continuamos a agir com a dor acumulada. Só que desde logo sabemos que cada prego será fincado a cada ação e conosco ficará a afligir nossa consciência a cada passo. O bebê tão logo tornar-se-á menino, olhará ao velho aflitivamente e estenderá a sua mãozinha para que ele coloque outro prego. Esse processo se repetirá até que chegue à adolescência. Rebelar-se-á tentando fugir de todo esse processo repetidamente doloroso, tentando correr para todos os lados do infeliz idoso. Todo esse vaivém negacionista não poderá salvar o jovem, tornar-se-á adulto e com mais pregos ardentes em seu corpo.


    Um dia, mais adulto e consciente de si, o jovem que se torna homem perguntará ao idoso, pela primeira vez, a razão de tanto sofrimento. Mais uma vez, o homem pensará que o estranho torturador não dirá nada. Só que, dessa vez, ele lhe responde.

- Por que me faz isso? Que te fiz?

- Não sou eu que lhe faz isso, é você quem faz - diz o idoso com lágrimas nos olhos, numa voz débil e com as mãos frementes.

- Quem é você?

- Eu sou você. Você é a consciência da consciência. Eu sou a consciência da consciência da consciência.

- É impossível que eu me cause tanto sofrimento, está mentindo - dirá o homem hesitante perante si mesmo.

- Não, todo prego que lhe coloco é duma ação tua. Cada ação tua é marcada no tempo peremptoriamente, sendo irretornável. Todo passo é marcado pela eternidade, nessa eternidade do espaço-tempo em que se é impossível mudar. Tudo que faz é marcado, nada é retirado. Se viveres cem anos, terás tua história a repetir-se nesse espaço de cem anos pela eternidade.

- Eu não entendo.

- Pois um dia entenderá.

- Por que é a primeira vez que fala comigo?

- Não é a primeira, na primeira era muito novo para se lembrar. Só que um dia, lembrar-se-á.


    O homem tentará variadamente entrar em contato com o velho. O velho recursar-se-á a tornar a prosa. Com o tempo, o homem verificará que o velho se tornará tão apenas uma caveira. Caveira essa que omite a maior parte de seu corpo com um manto preto. Uma caveira de mesma função: colocar pregos em seu corpo, numa tortura sem fim. Um dia, essa caveira olhará para ele, não haverá mais nenhum prego para ser pregado. Ela simplesmente se despirá e dirá:

- Conte o número de pregos.

    

    Contando os pregos, o homem verá uma determinada quantia. Ainda não compreendendo, pedirá ajuda para a caveira que outrora era homem:

- Não consigo compreender.

- Conte, então, todos os pregos que tem em seu corpo. 

 

    O homem contará e verá que é o número exato de pregos que tem na caveira. Então se dará conta de que era ele mesmo o tempo todo pregando pregos em si mesmo. Olhará para a caveira e ela estará segurando um espelho, o homem olhar-se-á e verá que é o mesmo velho que viu quando era apenas um bebê.

 

- A vida se inicia com um bebê sem mácula. Logo nele serão pregados pregos, estes terão quantidade diferente a cada indivíduo. Alguns, mais assustados, negar-se-ão a mudar com mais frequência e, então, terão menos pregos. Outros, mais ferozes e imperturbáveis, terão muitos pregos. Se bem que a quantidade de pregos pouco importa, mas o valor que cada prego teve.

- Por que me diz isso só agora?

- Eu partirei, minha missão se findou. Mas a tua começará.

- Qual será a minha missão?

- Lembra-se que a eternidade é só um espaço-tempo determinado a repetir-se infinitamente pela própria natureza do tempo-espaço marcar-se na eternidade?

- Lembro-me.

- Então já sabe sua missão.

- Qual ela é?

- É a experiência.

- O que é experiência? Como define isso?

- Ora, a palavra é menos que o pensamento e o pensamento menos que a experiência. A experiência é aquilo que chamamos em parte de incognoscível. Sua natureza mesma é perdida com o pensamento que não pode traduzi-la ao todo e na palavra que é incapaz de traduzir o todo do pensamento que é menos que a experiência. Uma hora você perceberá que há verdades que escapam a própria possibilidade de inteligibilidade com a razão.


    Um choro torna-se audível. O bebê que tornou-se homem velho olha para si mesmo bebê e, de súbito, toma consciência de sua missão. Uma quantidade de pregos, a mesma que tem em teu corpo, está dentro duma caixa. Ele tenta olhar para a figura cadavérica, a própria morte, para lhe clamar por misericórdia nessa torturante tarefa. Ela não está mais lá. Só há, na sala, "ele e ele". O homem velho pegará o martelo, olhará para o pobre bebê que lhe chora e dirá:

- Por muito tempo, acreditei na panaceia do espaço. Poderia tomar qualquer ação ou ação alguma, só que os pregos continuaram a vir. Então vi que o sofrimento era inevitável e que cada escolha arderia eternamente em meu corpo. Poderia dar-me conta disso e tomar escolhas mais prudentes, só que só percebi o valor do tempo que marcava na eternidade após grande tempo. Agora que o tempo passou, sei que na vida adulta tudo é erudição e que cada experiência é marcada pela experiência de outrora. Não há, na vida adulta, escolha sem marca de memória, memória sem marca de sensação, sensação sem marca de sentimento. Eu sinto muito, pobre pequeno. Terei que marcá-lo com os erros e acertos que cometi. Esses serão os mesmos erros e acertos que tu cometerás.


    O homem pegará o braço do pobre bebê, colocará o parafuso na boca e pegará o martelo. Chorará e martelará a criancinha. Então perceberá que sentirá dor intensificada na mesma parte que martelou o bebê. Chorará enquanto faz isso, relutará, só que continuará a sua missão. Sua mente tornar-se-á tão anuviada pelo sofrimento que causa a si mesmo que não conseguirá se expressar muito. A única coisa que ele sabe é que essa é a sua maldição eterna: não ter percebido que deveria ter vivido cada momento tal como se o vivesse pela eternidade, já que só assim aproveitá-lo-ia por completo.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Eu não quero estar vivo depois da madrugada...

 


 

    Eu não quero estar vivo depois da madrugada. Nela sou vítima de um acaso desacordado em que a vida é uma exaustão de desgaste. De tanta sobrecarga, sou obrigado a curtir o pouco do pouco em efervescência profanada. Se o que sobra é sempre menos, desgastar o que sobrou de nada é exigência da apequenada felicidade, única possível nessa cidade escravizada. Os prazeres efêmeros condizem muito com a necessidade temporal de horas condicionadas, a pseudotranscendência fez-se morada em minha alma atordoada. Nessa vida, é-se prostituta com ou sem necessidade sexualizada.


    Eu não quero estar vivo depois da madrugada. Eu não quero saber se as lebres pretas correm em corridas acirradas, elas se atropelam imersas na penumbra sem qualquer necessidade, o fazem para que haja um quê de desordem em sua vida normatizada. Elas creem que o preço da infidelidade ontológica pode ser compensado vivendo através de pequenos surtos. Surtos esses que furtam a quotidianidade de suas vidas falsificadas. Coelhos de terno amam entregar sua oferta as aranhas, assim sempre manda a proletariedade da descendência de Caim. Malditas aranhas, devoram seus filhos com parcimônia sensata, tradição das tradições dessa existência precária.  

 

    Eu não quero estar vivo depois da madrugada. Não quero andar de trem e metrô nessa cidade precária. Não quero olhar para cada morto que me olha sem saber que o tempo de partir há muito tempo se foi. Estou cansado de, em todo transporte público, esconder-me atrás de livros para não sentir a densidade atomizante da individualidade ultrajada. Estou cansado de fingir que a magia literária me livra da prisão da realidade. De círculo em círculo, repetindo ritualisticamente os erros antepassados, vivo rodando em minha senzala.

 

    Eu não quero viver depois da madrugada. Não quero me lembrar de quem realmente amo, fidedignamente me odeia. Não quero nem conjecturar pensar de novo naqueles que já se foram, pois sua partida me faz querer cada vez mais partir. Não obstante, sempre espero ver de novo aquilo que não dá mais para se ver, sempre espero ter de novo aquilo que já não posso ter, sempre sinto vontade de abraçar as pessoas que não posso mais conviver, na esperança de que o martelo do tempo tenha despregado o que pregou. O martelo do tempo nunca volta, cada prego é um imperativo categórico que a alma imortal cala.

 

    Eu não quero viver depois da madrugada. Eu sei que ela se jogou com a intenção de não sentir mais nada. Não quero lembrar de que toda vez que penso nela, vejo-a desfigurada e paralisada numa parca cama hospitalar.  Não quero sentir o gosto de nenhuma mulher, a mulher que mais eu amei me foi negada. Eu não quero pensar em cada osso dela que foi quebrado. Eu não quero saber se seu sorriso agora está deformado. Ao mesmo tempo que sinto a falta dela, tenho medo de ver como ela está em sua forma destroçada.


    Eu não quero viver depois da madrugada. Sei que sou mal-falado em cada espaço-tempo que preenchi com minha estranheza vivificada. Sei que meu gosto é o desgosto com que preenche o paladar de cada figura marcada. Eu sempre parto, eu nunca paro de partir e sempre que parto sei que é o melhor que posso dar a cada pessoa com quem estive em algum momento. Aliviar o desprazer de minha companhia é o melhor caminho que tomo, já que sou um desastroso canalha. Eu posso até sofrer com isso, conquanto sei que a frase: "eles ficarão melhor sem mim", sempre me acalma. E de fato o negrume de minha sombra priva o Sol das pessoas que encontraram-se com minha tragédia imanentizada.


    Eu não quero viver depois da madrugada. Sinto tanto de tanto sentir. Minha consciência toma como fardo o meu existir. Não quero pesar, nem para mim e nem para outrem. É por isso que eu não posso viver depois da madrugada. Estou cansado de noites dormidas em claro. Farto de acordar e pensar: "tudo bem, foi só mais um pesadelo". Estou cansado de cansar, cansado de estar cansado. O pesadelo do sonho precede o pesadelo de minha existência terrificada, dia após dia sinto a insanidade macular o que sobra do fragmento do que um dia já fui. E o mais triste disso, é que nunca fui nada. Sou cada vez mais a sombra dum passado de vanglória, então eu não quero viver depois da madrugada.

domingo, 14 de agosto de 2022

Quando ela caiu...

 



Passei a maior parte da vida pensando que minha morte não causaria problema algum. Joguei-me numa série de situações de risco relativizando a importância de minha vida e, igualmente, o amor que as pessoas que me acompanhavam tinham por mim. Desde meus 17 anos sofro com episódios de depressão recorrente, quiçá pela minha bipolaridade que se acentua pela vida desregrada que levo. Nesses últimos tempos, só posso pensar em aumentar a qualidade de minha vida, retirando velhos vícios e conquistando o poder da vontade.

Recentemente uma mulher que amei se jogou no meio de vários carros. Só consigo conjecturar que ela se encontra desfigurada. E toda vez que penso nisso só consigo ter vontade de a tudo quebrar. Como não percebi a vocação suicida de minha amada? A forma enfadada com que falava, a sua boca a sempre demonstrar cansaço contínuo, a imagem autodepreciativa que nutria de si, a ideia constante de que estava no final de sua vida e que tudo nela gerava desinteresse global. Eu deveria ter juntado as peças desse estranho enigma, todavia estava ocupado em só prestar atenção em mim mesmo. Sou condenado pelo egocentrismo autocircular que carreguei.

Nos últimos tempos, conheci três pessoas que se mataram. Até hoje há um pingo de esperança meio tresloucada que as verei participando das atividades desse mundo. Eu até agora não pude aceitar a morte delas. A morte é a maior das certezas, porém é psicologicamente inaceitável. Meu antigo psiquiatra também faleceu, uma mulher que se perdia em suas deliberações e indecisões que conheci durante anos também bateu as botas. O trágico era a minha noção infantil de que todos eram imortais. A noção de que as pessoas poderiam morrer me era inconcebível e quanto mais as mortes são engendradas nesse roteiro paranoico, mais me causam suspeita e incredulidade em vez do contrário. A morte é a única certeza da vida, conquanto que uma certeza inaceitável. Quanto mais o tempo passa, mais percebo que a realidade é inevitável para todos.

Ainda vivamente me lembro de meu pescoço na barra de ferro do metrô. Lembro-me de quanto eu tive que meditar para aceitar a minha morte e o quanto eu recuei temerosamente com a aproximação do veículo. Depois disso, mais uma internação que gerou outra e mais outra. Por isso, afastei-me das drogas, das bebidas, das antigas amizades, ideias e sites. A luta pela sanidade se configura apaticamente: ela requer que se afaste daquilo que tensiona e o espírito corrói. Por muito tempo, fui completamente agnóstico e hoje creio em Deus - de tal modo que nunca acreditei. Toda essa monumental tragédia que se repetia circularmente numa roda gigante aproximou-me Dele.

Uma amiga que se afasta, um amigo que vai morar longe, um casal que concebe um filho. Uma pessoa pela qual se enamora e depois se afasta. Tudo isso impacta no eixo vivencial e na debilidade a qual se encontra o meu pensamento. Eu não estou preparado para isso, só que não estar preparado não é o mesmo que impedir que isso ocorra. A dor simplesmente virá e não poderei impedi-la. Talvez isso signifique crescer. Eu posso sentir da densidade da crueza do real.

Quando ela caiu, precisamente eu pude sentir. Eu também cai. Eu senti todo meu ser quebrar-se. Todas as antigas convicções e amizades espatifaram-se como vidro caindo no chão. O mundo de cristal, imaculado pela sua infantilidade, quebrou-se pela pedra da realidade que lhe acertou. Os cacos de vidro cortaram a minha pele. Agora só me resta sangrar, tirar os cacos fragmentários de ilusões e ver todas essas feridas cicatrizarem-se com o tempo. Andarei, daqui pra frente, com o corpo maculado de cortes. Nunca poderei esconder a armagura que meu coração partido lega. 

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Prelúdios do Cadáver #4 - Sinto Raiva

Texto publicado em 16/06/2018


O tempo passa e eu não sei o que estou a fazer de minha vida. A única que venho ficado a sentir, nos últimos tempos, é uma cólera abismal misturada com frustração colossal e com um punhado de letargia zumbificante.


Não sinto vontade de nada. Só sinto a letargia. A letargia devora-me por inteiro. Tenho vontade de ficar parado, deitado ou sentado e sentir a agonia consumir-me por inteiro. O tempo escaparia dolorosa e lentamente. Perguntar-me-ia novamente: “Quantas vezes já me senti assim?” ou “Quantas vezes esse ciclo repetir-se-á causando-me dor e sofrimento?”. Então eu teria as memórias invadindo-me, recordando-me amargamente de toda a minha vivencialidade obtusa.


Tento ler e tento escrever contra a minha própria vontade de nada fazer: acabo por escrever essa porcaria de texto mal inspirado. Tudo que crio é vazio. Tudo que crio é sem sentido. Tudo que crio é destituído de sabor. São criações mortas, criações sem vitalidade. Um produto acinzentado e nojentamente preparado. Tudo isso vem de minha interioridade, tudo isso é o próprio estado de minha interioridade.


Ouço só música cristã e harmônica. A mesma não me traz felicidade, a mesma não me traz alívio nenhum, é uma forma de busca de salvação desesperada. Talvez eu busque um escape mágico. Talvez eu busque fugir de meus pensamentos. Talvez eu busque fugir de mim mesmo. Talvez eu busque simplesmente não aceitar a mim mesmo, esse é sempre meu dilema!


Matar-me-ia se eu pudesse. Estrangular-me-ia mil e uma vezes se necessário. Violentar-me-ia se eu pudesse. Toda a angústia cessaria assim que eu cessasse de existir. Não haveria mais letargia. Não haveria mais ódio. Não haveria mais frustração. Violência autocentrada contra a existencialidade nauseabunda. Morte e desistência da futuridade. Só o adiantamento do fim!


quarta-feira, 6 de julho de 2022

Acabo de ler "A Inversão Revolucionária em Ação" de Olavo de Carvalho

 



Achei pertinente dar uma lida num livro do Olavo após um tempo de sua morte. Talvez para enxergar com olhos menos afetados pela sentimentalidade do tempo ou quiçá para um simples entendimento crítico do que estava sendo, até então, exposto nos círculos do jornalismo conservador. Fazia algum tempo que lia mais críticos do Olavão do que o Olavão em si. Li o livro da filha dele e do Meteoro Brasil, além disso, leio o livro do Orlando Fedeli e do Fernando Schlithler contra ele.

Quanto ao livro em si, creio que existam uma série de informações sortidas - é um livro de jornalismo - que, basicamente, variam no grau de plausibilidade e teriam de ser analisadas pormenorizadamente para uma maior razoabilidade. Quanto a estilística do autor, cabe lembrar que o Olavo foi um escritor de nível altíssimo e sua capacidade de escrever bem está acima da média - embora não se possa dizer o mesmo do valor informativo dos seus artigos jornalístico, visto que estão condensados com teorias conspiratórias. O humor do Olavo é sempre surpreendente e é possível dar boas risadas durante a leitura.

Perguntando-me agora a sensação que tenho após ler o Olavo de Carvalho depois de tanto tempo, vejo que sinto falta do "velho fumadeiro". Poderia ter com ele algumas divergências, só que tínhamos vários pontos em comum. E eu francamente achava o velho engraçado. Não ligava para as coisas que discordava ou para o que diziam dele. Ele, para mim, sempre foi uma figura que, pela força de sua personalidade e bom humor, eu sempre ouviria para dar boas risadas ou passar o tempo. Mesmo que isso aparente um desgosto ao querido leitor ou a leitora.

Eu sabia que um dia Olavo de Carvalho morreria, só que me habituei a pensar que não. Tive uma série de amigos que foram olavistas sinceros. Alguns que tive a alegria de conhecer pessoalmente e outros que, pela infelicidade do destino e localização geográfica, só conheci pela net. De qualquer forma, manti-me neutro e distante do debate olavista vs antiolavista. E espero permanecer com minha forma equidistante e confusa por um bom tempo até ter dados suficientes pra uma noção mais cabal.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Acabo de ler "Asa Noturna: Estágio Futuro" 1 e 2 de Andrew Constant e Nicola Scott

 




Essa HQ não explica nada, quase tudo que existe nela são apontamentos que, mesmo não dando uma condução mais literal pras coisas, possibilita várias margens para interpretação. O que pode ser visto como ruim e, pela experiência geral, geralmente é. Só que perceber o enredo pela ambientação é fantástico e ainda prende o leitor.




Vemos Asa Noturna após perder o Batman. Não sabemos se Batman está de fato morto ou se apenas sumiu provisoriamente. O Batman que aparece não é o Batman de fato e ao final da experiência não sabemos quem é. Creio que se ele fosse o Batman, o próprio Dick perceberia isso. De qualquer forma, o luto pela Batman e a personalidade abalada de Dick ocorrem durante todo percurso da história, criando uma atmosfera diferente e até sombriamente agradável.






Quando um personagem tira sarro do Asa Noturna e de seu descontrole é simplesmente maravilhoso. Temos um Asa Noturna diferente do habitual. Ele é sombrio e fatalista, virando o próprio Batman da história em termos atitudinais e de personalidade. O tempo todo, ele visa cumprir o legado de seu mestre. Ao ponto que ele é o próprio comandante da situação e atua como líder da batfamília. É por isso que gostei desse Asa: sendo taciturno, aparenta-se mais com o seu mentor e a ligação que constrói com ele, sendo uma espécie de novo Batman após a sua (suposta) morte é um dos pontos mais altos da história.





Carrego uma dualidade: tudo se resolveu facilmente demais. As duas HQs mais abrem uma aventura psicológica na mente de Dick Grayson do que uma aventura completa com um bom começo, meio e fim. E embora eu tenha gostado desse Dick, ainda considero a qualidade geral da obra baixa. É um gosto de "eu esperava mais" difícil de lidar, o potencial foi jogado no lixo.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Zumbis

 


Quando criança, eu já sabia. Eles um dia estariam lá. Não só pelas ruas, estariam nos metrôs e nos trens que se conectam com toda uma rede de locais que são pórticos de esperança. Não tardaria para que eles vissem, para que eles me cobrassem a tarifa da existência. Ignorei-os pelo fato de que achava que nada podia macular a minha integridade. A infância é sempre ditada pela tolice duma esperança ingênua e logo soube meu lugar no mundo: ou a vida zumbi que dilacera a carne do próximo na esperança que ele se adeque na solidão de seu corpo ou o suicídio idealista que a alma elava, já que no corpo não mais a contém.

Eu sempre soube que eles estariam também estariam nas linhas de trem. Caminhavam em seu sofrimento eterno. Condenados a comer a carne humana, condenados a destruir seus iguais e igualá-los em sua maldição. Crianças, adolescentes, adultos e velhos - nem mais crianças e adolescentes podiam se livrar do jugo da existência cadavérica. Todos deveriam caminhar zumbificados por todos os lugares, sempre e em todo lugar. Logo, nada diferentes do usual, nada diferentes dos seres humanos normais. E nada mais normal que a escravidão. Humanos, demasiadamente humanos, imersos em lodaçais de normas sem fim. Buscando um emprego prum sustento precário. Buscando o básico, o imanente, o nauseante nauseabundado.

Inicialmente desejei sobreviver, eu acreditei que era natural que o Sol se fizesse presente num novo alvorecer. Triste ilusão. A verdade é que o ideal sempre esmaga o real. Às vezes a gente aprende, por outras não. Por vezes só queremos acreditar que o mundo é burlável e que a alma é imortal - crença antiga e reacionária, portanto revolucionária para os parâmetros de hoje.


A noite aqui é sempre fim. Ela é sem fim, mas a Lua é sempre sem gosto. A Lua aqui nunca é mística e não há boêmia no amanhacer. Agora a rotina era mais que a rotina, a rotina era sem transcendência. Agora a rotina era utilitária sem a divindade da inutilidade que encanta a vida e o que objetivo da vida encerra. Era uma noite apolínea sem a dialética dionisíaca. Agora só era só isso, matar ou morrer. Infelizmente, viver não era viver. Infelizmente, viver só era sobreviver. Humanos tornam-se cruéis sem a domesticação da tirania, tão logo que se perde a elevada civilização, perde-se de igual modo a sobriedade da ideação corretamente ordenada. Não são agora só os zumbis problemáticos, são os estupradores, ladrões e aqueles que se fanatizaram pelo gosto pelo sangue, pelo gosto pela morte. Num mundo assim, do que adianta ainda viver? Viver aqui é inatural, já que tirando o sobrenatural do natural, sobra-se tão somente o inatural.

Eu escolhi. Escolhi tristemente, mas escolhi. Escolhi que fugiria dos zumbis na espera do próximo trem. Nesse trem, arquétipo da salvação da alma, entregar-me-ei de corpo para que salve a minha alma. Eu tinha que fugir dos zumbis. Eu tinha que fugir até de mim mesmo. Tinha que sair da cela não tão monástica de meu corpo. A cada dia, eles andavam lentamente ao meu lado. A cada dia, imploravam para que com eles eu caminhasse. Eles andavam sempre vagarosamente, o que era mais detestável era o cheiro. Cheiro cadavérico e distante de todo sonho. Cheiro de zumbi, conquanto cheiro de mim. Cheiro que só sobrevive e não vive. Alguns sem olhos, outros com tripas de fora. De tanto ao lado deles caminhar, cheiro deles já era cheiro meu.

 Quem eu sou? Eu sou o Hipo Cristo justificado, já que fui também crucificado. Um falso cristo, um cristo sem santidade. Cristo esse que tinha sonhos tão proféticos quanto o verdadeiro Cristo. Cristo esse tão crucificado quanto o próprio Cristo. A brutal diferença era que eu não tinha deidade e nem minha morte remia o mal do mundo, mas por ele era condenado. Adequei-me a cada dor. Aprendi com cada qual em seu ódio sem ódio. Com cada qual o ódio mortal, com cada qual o pior tipo de ódio, com cada qual o ódio realizado que matou o realizador. Eu não quero ser um zumbi, eu quero ser o ser amado e o ser que ama. Não quero ser encerrado num corpo que já não tem alma ou espírito, não quero ser um zumbi ou, mais precisamente, não quero ser um cidadão líquido duma pós-modernidade. Não quero, como eles, ser encerrado em um corpo desalmado, como num dia triste sem fim.



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Acabo de ler "Harry Potter e as Relíquias da Morte" de J. K. Rowling

 



Toda jornada tem seu fim, embora essa possa se tornar eterna no meu coração e no de muitos. Pelas minhas contas, li todos os livros em PDF, juntando todas as páginas de todos os livros: foram 2.260 páginas. Não me arrependo de nenhuma maneira por nenhuma delas, rejubilo-me.

“E o conhecimento dele permaneceu lamentavelmente incompleto, Harry! Aquilo a que Voldemort não dá valor ele não se dá sequer o trabalho de compreender. De elfos domésticos e contos infantis, amor, lealdade e inocência, Voldemort não entende nada. Nadinha. Que todos tenham um poder que supere o dele, um poder que supere o alcance da magia, é uma verdade que ele jamais compreendeu"
"É uma coisa curiosa, Harry, mas talvez os que têm maior talento para o poder sejam os que nunca o buscaram"
"Você é o verdadeiro senhor da Morte, porque o verdadeiro senhor não busca fugir da morte. Ele aceita que deve morrer, e compreende que há coisas piores, muito piores do que a morte no mundo dos viventes"
Dumbledore

A maior lição que temos de extrair de Harry Potter é a de que o amor é o maior poder. O amor anula a contradição, e por Voldemort não compreender o amor: fragmentava-se tolamente em itens amaldiçoados. Voldemort temia a morte, era temeroso e supersticioso. Seu medo se tornou em mal e quando a morte lhe sobreveio, a sua figura no outro mundo não era a de uma pessoa completa, mas a de uma criança deformada. Já que Voldemort nunca cresceu, estagnou em seu medo e criou uma longa crença narcisista sobre si mesmo, sem jamais compreender-se.

Por outro lado, Harry Potter nunca se julgou digno. Nunca desejou um poder imenso. E por não desejar: nunca se fragmentou em atos tolos. Quando se entregava a algo, era verdadeiro. Era de fato livre. Não estava aqui ou ali, onde estava é onde estava. As suas ações não se perdiam em multifacetagens diabólicos. Por amar, por aceitar a morte, era mais poderoso que Voldemort: aceitar que a vida é o que é leva ao melhor encaminhamento vocativo da vida. Ao aceitar a morte, aceita-se que se deve viver integralmente, de forma sã. O poder do amor é a união do sujeito no todo. Nenhum tirano compreenderia.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Acabo de ler "Harry Potter e o Enigma do Príncipe" de J. K. Rowling

 



"– E como é que se divide a alma? – Bem – respondeu Slughorn, constrangido –, você precisa compreender que a alma deve permanecer intocada e una. A divisão é um ato de violação, é contra a natureza."
"Contudo, se encaixava perfeitamente: com a passagem do tempo, Lorde Voldemort parecia ter se tornado menos humano, e as transformações que ele sofrera só me pareciam explicáveis se sua alma estivesse mutilada além da esfera do que chamaríamos de maldade normal...”

O livro nos introduz mais a vida de Voldemort. Não só de forma meramente biográfica, mas ao modus pensandi do icônico vilão que, para atingir a imortalidade, maculou a própria alma. Há também o fascínio pelo mal que atraí Harry a magia das trevas pelo Príncipe Mestiço - (spoiler) que, mais tarde, descobre-se que nada mais é que o próprio Snape. De qualquer forma, a relação com o Snape é ambígua: Harry conheceu e o admirou sem saber que estava a receber um conteúdo de um professor que ele próprio odiava. A relação com Snape (spoiler) é ambígua: admira-o sem saber que é ele, sabe que ele foi responsável por revelar a profecia que levou à morte dos seus pais e é o próprio Snape que mata Dumbledore. Todas essas ações carregam substancialiadade a obra, enriquecendo os personagens e dando um peso realístico dificilmente realizável em obras de menor peso.

O discurso sobre o "um e o múltiplo" me encantou, sobretudo quando se fala da divisibilidade da alma que é a sua corrupção em caráter maior. A divisão da alma, da psiquê, do espírito ou como quer se ouse chamar, é um absurdo trágico. O ser dividido é inautêntico e sofredor. É um ser que está sempre em parte, sofrendo pela mutilação de seu ser que nunca encontra paz. Tal assunto é encontrado na mais alta filosofia, teologia e, igualmente, na literatura e na mística. Nesse livro, vê-se a mística em Harry Potter, duma forma nunca dantes vista dentro do mundo de nosso querido bruxo. E o poder do amor (ou seria "Amor"?) é visto como o equilíbrio desejável, a união do ser consigo mesmo e o laço verdadeiro, o verdadeiro poder: não se pode unir pelo medo, o medo só consegue pressionar com força em determinado tempo e um dia esse mesmo aspecto tensional o arrefece. Logo há ilusão de poder, poder esse que será destruído por sua natureza corrupta e inatural. Não se pode perpetuar a corrupção, já que ela é de aspecto degradante. Onde não há liberdade, há uma gravidade que só pode ser respondida com outro jogo gravitacional de relações, relações essas marcadas pelo o que há de mais baixo.

"o último e maior de seus protetores morrera, e ele estava mais sozinho do que jamais estivera"

Esse livro é de suma importância para Harry Potter. Nele, ele se torna adulto. O mundo protegido por seu padrinho, pai, mãe e até mesmo Dumbledore entrou em colapso. Nas ruínas, ele terá que agora em diante buscar a própria solução, não mais como um menino, mas como um homem legítimo dentro de sua responsabilidade em ação humana. Nisso está a compreensão do livro: o rito de passagem da adolescência para a vida adulta em que se tem que se lutar para conseguir o que se quer. É por isso que esse livro é um dos mais bonitos da franquia, embora recheado duma morte nada agradável. Morte essa de alta significação: o tempo de ser protegido e ter o risco atenuado passou, agora é necessário ser adulto e arcar com as consequências de uma teia embaralhada de alta complexidade irresoluta.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Diários Cadavéricos #1 - Inluta

Se eu morresse hoje, sentir-me-ia triste. Sei que minha família me ama, mas queria algo quente vindo de outro alguém. Alguém não ligado pelo fogo do sangue. Se assim não é, o amor não me basta. Não é suficiente o amor que vem do sangue, já que ele é quase que necessário. O amor de sangue é necessário e gratuito, mas o amor do outro, que não de sangue, é apenas gratuito. É por isso que invejo quem ama e quem é amado.


A luta que "inluta" em meu peito é luta amarga, meu Deus. Eu receio desejar mais o amor do outro que o seu - e assim o é. Como humano, é-me mais fascinante o amor humano do que o divino. O divino me parece mais distante do que o próximo. Se não tenho amor das coisas visíveis, como posso sonhar com o amor do Deus invisível? Eu preciso de um amor de carne, estou sozinho e confuso. A cada dia mais, a consciência de sua presença se apaga.


"Os desígnios de Deus são inexoráveis; não trateis de apressá-los" (Surata 16:1)  

"Pede-me; dar-te-ei por herança todas as nações; tu possuirás os confins do mundo" (Salmos 2,8)


Os dois argumentos provêm do mesmo Deus. Só que a pergunta que vem é essa: quando devo pedir e quando devo esperar? Devo pedir e esperar? O meu coração é aflito e na obscuridade perece. Sinto saudades de minha mãe e de um amor tal qual dela: tão pulsante quanto seu coração batente. Só que o que tenho é: uma vida vácua de amor e espiritualidade, recheada de caminhos tortos e passos insensatos. Deus, afasto-me de Ti, já que a tua presença se apaga de minha vida. Não pela sua inexistência, mas pela minha impiedade. Sua glória é tão benigna que parece inalcançável e por ser tão benignamente inalcançável, soa-me como irreal, impossível e irreproduzível nesse Vale de Lágrimas.


"Ele criou, com justa finalidade, os céus e a terra. Exaltado seja, pelos parceiros que Lhe atribuem" (Surata 16:13).

"O rei Davi estava velho, avançado em anos, e por mais que o cobrissem de roupas, não se aquecia" (I Reis 1,1).


Deus, se a tudo você ordenou, a razão de meu conflito é como um pó que se desfaz com a vassoura do tempo. Do mesmo modo que Adonias governou por tempo delimitado, em aparente desordem, meu sofrimento é igualmente delimitado. Só que esse tempo delimitado, que para Ti é nada, para mim é muito. A desordem momentânea é sensitivamente eterna. Já que a ordem natural encerra o mal visto que por Ti ordenada. 


"Poder-se-á comparar o Criador com quem nada pode criar? Não meditais?

Porém, se pretenderdes contar as mercês de Deus, jamais podereis enumerá-las. Sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo.

Deus conhece tanto o que ocultais, como o que manifestais.

E os que eles invocam, em vez de Deus, nada podem criar, posto que eles mesmos são criados." (Surata 16:17-20)


O reino da matéria me parece tão único que minha pobre mente cai em idolatria, busco amar de forma deformada pois reduzida. A busca pelo amor daqueles que podem amar, mas não por Aquele que é o Amor. Busquei em outros amores te encontrar, quando encontrava, abandonava-o; quando eles sumiram, voltava a Ti tal como a ti volto agora. O que eu oculto é o que agora manifesto: sou tão errante quanto precário. Sou feio, meu Deus, e sofro de ausência de brio. Não sou bonito para ter direito e nem forte para conquistar. Se eu morresse hoje, arrepender-me-ia de ter passado tanto tempo me movendo pelo espaço-tempo do nada.