Mostrando postagens com marcador mística. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador mística. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 21 de julho de 2022

A Caveira e a Borboleta



Havia uma caveira que estava numa antiga caverna. Essa caveira não via a luz do dia e nem menos se alegrava com o passar do tempo – talvez essa caveira nem mais sentisse o passar do tempo ou, melhor, não quisesse sentir que o tempo passava, já que o tempo carrega sempre sofrimento. A caveira era tão branca quanto a mais ausente coloração. Graças a isso, tudo lhe era indiferente e a coloração era sempre incolor. O Sol era-lhe tão cinza quanto a própria vida lhe era cinza.




Perto dessa caverna, havia uma borboleta preta. Borboleta preta pelo preto ser a união de todas as cores. Por ser a união de todas as cores, todas as sensações, tal como todas as cores, se sintetizavam numa única e a sua percepção era tão densa que muitas vezes lhe fazia sofrer ou tão grande que muitas vezes percebia sem perceber, já que percebia tão imensamente que era até mesmo incapaz de perceber o que percebia – tanta coisa gera um Big Bang dentro dessa borboleta, a qual ela deve “guardar” para simplesmente não explodir, mesmo que isso seja impossível.




Certo dia, essa borboleta estava imersa em um constante sofrimento. Essa borboleta era um paradoxo: por sentir demais, não mais sentia; por sentir tudo, a tudo se unia indiferentemente; por perceber longamente, o longo era tão longo que parecia nem existir. Como, então, poderia criatura tão singular existir? Alguém dirá que a borboleta era Buda, digo-lhes que ela era “mais do que Buda”. Essa borboleta então voou sem perceber, mas percebendo: sua vida é uma sucessão de emoções que passam com tantos estímulos que a própria percepção de estímulo se perde. Consciente e inconsciente não são distinguíveis em tal borboleta e o místico é-lhe condição eterna.




A caveira estava em sua caverna. Essa caveira era tal como o Mito da Caverna ou tal como Matrix: um ser que se libertou do sistema. Só que, mesmo liberta do sistema, nada poderia fazer: a sociedade, como um todo, manifestava-se contrária a ela e, portanto, toda expressão lhe era calada de forma imediata e como toda expressão dela fosse abjeta. A caveira, então, cansando-se do mundo, fechou-se em si mesma. Já que foi morta espiritualmente dentro da caverna pelos tolos que não quiseram ouvir a verdade, na caverna ficou em obediência ao sofrimento causado pelos tolos. Não mais andava, não mais ria, queria fugir de todo sentimento. Por tal condição, foi pouco a pouco tendo seus músculos reduzidos e, depois, tornou-se mais e mais cadavérica, até tornar-se plenamente caveira.




A borboleta sentia tudo. A caveira não mais sentia. Seres opostos, seres de natureza dialética e dialógica, seres que juntos são contraditórios. Se na vida há um fato observável: é que usualmente os opostos se anulam, mas também a sorte – ou seria a providência divina? – que os opostos possam se complementar. Só que isso só ocorre por milagre, já que em nossa sociedade – seja hoje, ontem ou amanhã – é feita numa luta de contrários que pela eternidade se eterniza.




A borboleta voava no escuro da caverna. Essa caverna era tão escura quanto a união de todas as cores da borboleta. A borboleta voou por horas e horas nessa caverna, então decidiu repousar. Pousou, então, na caveira. E a caveira não falou nada, mesmo que quisesse falar, já que havia desistido de sentir por ter sentido em demasia. Estranhamente, a caveira e a borboleta ficaram juntas, por vários e vários dias. Era uma companhia real, em perpétuo silêncio sentimental. Um diálogo mais íntimo se construía na intimidade do silêncio, já que existem diálogos que só o silêncio pode construir na intimidade de cada coração.




Em um dia, a borboleta começou uma metamorfose e essa metamorfose atingia a caveira calada em sua solitude. Parecia que se havia um casulo que ia cobrindo cada parte da caveira e, em cada parte, uma nova pele ia surgindo. Era o milagre da ressurreição, tão forte quanto o milagre sofrido por Cristo na cruz. Os músculos logo iam se criando, conectando-se aos ossos da caveira. Com o tempo, de forma mística e misteriosa, a caveira e a borboleta se tornaram um só. Agora, aquele que via a borboleta, também via a caveira. Agora, aquele que via a caveira, também via a borboleta. Um revelava o outro dentro de si, no entanto, um também escondia o outro dentro de si. Só resta perguntar: “como isso é possível?”. Com isso só há uma resposta: há coisas que nunca conseguiremos expressar, por maior que seja a nossa inteligência.




Finalmente algo místico ocorreu, aquele novo ser, meio caveira meio borboleta, meio yin e meio yang, saiu da caverna sorrindo num riso que poderia abarcar mais do que infinitos universos inteiros. Aquele ser se pôs a dançar por aí, de forma infinita, seja na amargura da chuva ou no clarão estonteante do Sol. Não importava mais se fazia Lua ou se fazia Sol ou qual era a estação do ano, em todo lugar se via aquele ser misterioso dançando para lá e para cá, contrariando todos aqueles que achavam aquele ser-milagre impossível.




Como não poderia deixar de ser, esse ser dançante levou a uma série de juízos imperfeitos que não abarcavam a sua concretude poética. Uns diziam que esse ser era diabólico e que gozava da cara de todos ao ficar dançando por aí. Outros, também ingênuos, disseram que esse ser dançante e místico dançava já que não sentia o sofrer e quando o peso do real se fizesse mais presente, esse ser deixaria de dançar e até mesmo deixaria de ser – ledo engano, mas o ressentimento humano é sempre compreensível. Alguns, de natureza científica, acharam que o melhor seria separar a borboleta da caveira e trazer os dois a sua devida natureza, já que a união de seres tão diferentes era de natureza inatural – engano eterno: o amor é sempre eterno e quando une, não se pode mais desunir, já que o ser que ama não mais é a parte, mas o todo que é novo e o todo que é o ser.




Engana-se aquele que crê que o ser dançarino dança sem sofrer e engana-se aquele que pensa que o ser dançarino só sofre e por isso dança. Não, não, não é nada disso. É tudo isso, mas, ao mesmo tempo, é mais do que tudo isso e está acima de tudo isso. Não era um ser qualquer, não era qualquer coisa, não era nem um ser e muito menos eram dois seres e nem deixava de ser um ser – se já é difícil expressar o possível, é mais impossível expressar o impossível. Poder-se-ia falar-se em trindade? Não, não era uma santíssima trindade, mas uma santíssima dualidade que acoplava duas personalidades sem contradizer: não havia critério hierárquico e nem alternância contraditória em dualidade de ser. Eram dois seres, mas não eram dois seres. Era cada um, mas cada um desse um era apenas um.




Só que neles havia uma música em sintonia, uma música que só os mais puros ouviriam – já que os mais puros seriam capazes de sentir. Essa música sintônica, essa música sintética, essa música que gerava ressonância de alma a ponto de fazer que duas almas fossem uma e/ou única, essa música que lhes fazia dançar para sempre “os tornavam loucos” ou “o tornava louco”: já que aqueles que não ouvem a música, sempre chamam de louco aquele que dança – engano de compreensão? Não, a compreensão é fraca, mas o que falta é o engano de convivência empática, o que falta é sentir e não compreender, já que o sentir supera a compreensão tal como o amor transcende a razão. Tal como já dizia: a palavra é menos que o pensamento e o pensamento é menos que a experiência.

sábado, 11 de junho de 2022

Acabo de ler "Violent Cases" de Neil Gaiman e Dave Mckean

 



Essa HQ é bem diferente das que estou acostumado a ler. Para ser mais exato, propus-me a uma pequena loucura quando decidi lê-la: pegar uma HQ aleatoriamente, sem ler a sua sinopse e curtir essa experiência do acaso tal como alguém que abre um livro religioso aleatoriamente esperando uma resposta da providência divina. E não me decepcionei em momento algum, muito pelo contrário.

Essa revista em quadrinhos é meio confusa, já que o conto é narrado no presente, mas a história se passa na percepção meio infantil duma criança. Fora isso, há outro fator que complexifica a leitura da obra: a mistura entre realidade e fantasia dentro da mesma narrativa, o que leva a múltiplos caminhos interpretativos. Damo-nos conta de que estamos numa memória meio confusa que está sempre sincretizando múltiplos eventos.

A sensação de confusão que temos ao ler a HQ não é ruim, ela é prazerosa e dá-nos um quê de misticismo. Essa sensação mística se mistura com a própria beleza artística a qual somos expostos. A beleza e a confusão nos transbordam de sentimentos indescritíveis durante todo no intercurso de leitura. E mesmo não chegando a compreensão literal, compreendemos que ela não é necessária: trata-se, antes de tudo, de uma estranha experiência maravilhosa que joga o leitor numa penumbra lunática e maviosa.

Ao terminar de ler, sinto-me dado a grandes mistérios da vida, não concluindo logicamente sobre eles. O que tendo é entender que existem coisas que escapam as nossas mesquinhas definições.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Acabo de ler "Harry Potter e o Enigma do Príncipe" de J. K. Rowling

 



"– E como é que se divide a alma? – Bem – respondeu Slughorn, constrangido –, você precisa compreender que a alma deve permanecer intocada e una. A divisão é um ato de violação, é contra a natureza."
"Contudo, se encaixava perfeitamente: com a passagem do tempo, Lorde Voldemort parecia ter se tornado menos humano, e as transformações que ele sofrera só me pareciam explicáveis se sua alma estivesse mutilada além da esfera do que chamaríamos de maldade normal...”

O livro nos introduz mais a vida de Voldemort. Não só de forma meramente biográfica, mas ao modus pensandi do icônico vilão que, para atingir a imortalidade, maculou a própria alma. Há também o fascínio pelo mal que atraí Harry a magia das trevas pelo Príncipe Mestiço - (spoiler) que, mais tarde, descobre-se que nada mais é que o próprio Snape. De qualquer forma, a relação com o Snape é ambígua: Harry conheceu e o admirou sem saber que estava a receber um conteúdo de um professor que ele próprio odiava. A relação com Snape (spoiler) é ambígua: admira-o sem saber que é ele, sabe que ele foi responsável por revelar a profecia que levou à morte dos seus pais e é o próprio Snape que mata Dumbledore. Todas essas ações carregam substancialiadade a obra, enriquecendo os personagens e dando um peso realístico dificilmente realizável em obras de menor peso.

O discurso sobre o "um e o múltiplo" me encantou, sobretudo quando se fala da divisibilidade da alma que é a sua corrupção em caráter maior. A divisão da alma, da psiquê, do espírito ou como quer se ouse chamar, é um absurdo trágico. O ser dividido é inautêntico e sofredor. É um ser que está sempre em parte, sofrendo pela mutilação de seu ser que nunca encontra paz. Tal assunto é encontrado na mais alta filosofia, teologia e, igualmente, na literatura e na mística. Nesse livro, vê-se a mística em Harry Potter, duma forma nunca dantes vista dentro do mundo de nosso querido bruxo. E o poder do amor (ou seria "Amor"?) é visto como o equilíbrio desejável, a união do ser consigo mesmo e o laço verdadeiro, o verdadeiro poder: não se pode unir pelo medo, o medo só consegue pressionar com força em determinado tempo e um dia esse mesmo aspecto tensional o arrefece. Logo há ilusão de poder, poder esse que será destruído por sua natureza corrupta e inatural. Não se pode perpetuar a corrupção, já que ela é de aspecto degradante. Onde não há liberdade, há uma gravidade que só pode ser respondida com outro jogo gravitacional de relações, relações essas marcadas pelo o que há de mais baixo.

"o último e maior de seus protetores morrera, e ele estava mais sozinho do que jamais estivera"

Esse livro é de suma importância para Harry Potter. Nele, ele se torna adulto. O mundo protegido por seu padrinho, pai, mãe e até mesmo Dumbledore entrou em colapso. Nas ruínas, ele terá que agora em diante buscar a própria solução, não mais como um menino, mas como um homem legítimo dentro de sua responsabilidade em ação humana. Nisso está a compreensão do livro: o rito de passagem da adolescência para a vida adulta em que se tem que se lutar para conseguir o que se quer. É por isso que esse livro é um dos mais bonitos da franquia, embora recheado duma morte nada agradável. Morte essa de alta significação: o tempo de ser protegido e ter o risco atenuado passou, agora é necessário ser adulto e arcar com as consequências de uma teia embaralhada de alta complexidade irresoluta.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Pseudotranscendência e Pornografia

Pornografia e Pseudotranscendência




    Nelson Rodrigues disse uma vez: “todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”. Sempre achei essa frase meio estranha. Sempre discordei dela. Hoje creio que ela é tão real quanto o chão sob meus pés: aquilo que amamos, torna-se parte de nós e aquilo que é parte de nós nunca nos deixa. Posso até mesmo não ver mais uma pessoa que esteve comigo, posso até mesmo odiar o seu presente estado, todavia se a amei, ela é parte de mim e sendo parte de mim não me abandona e não acaba.

    Em primeiro lugar, esclareço o que é alienação: alienação é sair de si mesmo. Muitas coisas nos levam a sair de nós mesmos, tal é o efeito dos filmes, dos desenhos, dos livros, até mesmo da religião. Alienar-se é, em certo sentido, natural e necessário. Até mesmo quando olhamos a situação de uma pessoa marginalizada, se formos empáticos, alienamo-nos para compreendermos a essa pessoa marginalizada. O problema não é a alienação, é ser alienado – o alienado está continuamente fora de si. Ser alienado é diferente de alienar-se, pois aí se encontra não mais alguém que se aliena através de uma experiência de saída do ser – algo que pode ser enriquecedor –, mas alguém que permanece saído de si mesmo. E quando permanece fora de si, acaba por deixar de viver.
 
    Pseudotranscendência é um contínuo estado de alienação. O estado do alienado é o de pseudotranscendência. A verdadeira transcendência leva o ser a ser-mais-ser, ela está precisamento no ser que acresce, no ser que cresce com a saída e com o retorno a si mesmo. O fim da transcendência é o sublime: é aquele momento em que não somos mais nós mesmos, somos mais do que nós mesmos. É o momento em que a realização vem e nos torna melhores do que já éramos. O sublime é quando ultrapassamos a nós mesmos e tornamo-nos maiores. Aquilo que lhe momentaneamente alienou, agora é aquilo que lhe dá real um retorno ao seu ser, um conhecimento de si ainda mais íntimo e uma capacidade maior de se realizar. O fim mesmo da alienação – a saído do ser de si mesmo – é a volta do ser a si mesmo com o acréscimo.
 
    Toda transcendência é saudável, visto que a transcendência é o desenvolvimento contínuo do ser. Ela é a perfectibilização do ser: ela torna o ser-mais-ser. A humanidade não é perfeita, ela é perfectível. Na medida em que é perfectível, é capaz de se tornar mais feliz. E felicidade é a realização mesma do ser. Só que o ser só se realiza na medida em que se torna mais ser. É no momento em que se quer superar, que se quer progredir, que se quer avançar. Esse contínuo avançar, esse progresso, esse instinto espiritual, essa vocação de toda mulher e de todo homem é o que há de mais belo e o que tem de dever – e isso é um dever na medida em que cumpre a vocação da humanidade: a de ser feliz. Os outros animais conhecidos na natureza, são causas inequívocas: eles seguem uma ordenação instintual. O homem é uma causa equívoca – não equívoca por ser errada, mas equívoca por ser livre –, ou seja: ele não é delimitado por seu instinto, mas livre para percorrer o seu caminho. E, na medida em que prossegue em seu caminho, tem que arcar o peso da liberdade. Todo animal é, quase que naturalmente, realizado em sua mesma natureza. Mas a humanidade não é quase que naturalmente realizada, ela pode escolher ser realizada ou não. E essa capacidade de se realizar ou não é o que define a humanidade.

O problema da pseudotranscendência

    A transcendência naturalmente acopla-se ao ser. Na medida em que se acopla, atualiza esse ser. O ser que anteriormente existia em potência, agora é plenificado – ele não é mais só que era, mas mais do que isso. Ele se torna um ser melhor, tornar-se até “maior”. Ou seja, a transcendência é natural, ela entra e se integra ao ser enquanto ser. E a pseudotranscendência é falsa, pois ela só existe no momento mesmo que o ser se aliena. Logo a pseudotranscendência é como uma alienação-pela-alienação: ela não existe para complementar, ela não existe para atualizar o ser numa versão superior de si mesmo, ela existe para alienar pura e simplesmente. Logo ela é artificial. O ser, para seguir a pseudotranscendência, deve como que se mutilar: deve haver algo de específico, algo de especificado, algo que foge da integralidade de sua vida.

    É nessa diferença transcendental e pseudotranscendental que reside o problema: uma torna o ser melhor, outra o priva de ser. Como a pseudotranscendência é uma alienação pela alienação, é evidente que o ser não volta para si mesmo e se torna uma pessoa maior. E o hábito da alienação-pela-alienação torna o ser incompatível. Um setor de sua vida é pura fantasia, mas não uma fantasia que leva ele a caminhar por ideal melhor, que o torne uma pessoa melhor e sim uma fantasia que existe tão somente para a fuga da realidade. O hábito pseudotranscendental nega o real e é nisso que reside o pseudotranscendental: a alienação-pela-alienação e não a alienação-pela-realização. O alienar só é frutífero na medida em que existe para um realizamento.
 
“O problema da droga não é a viagem, é a volta da viagem, quando então não se suporta mais o cotidiano. O cotidiano que é a imanência, que é a rotina chata, a obrigação diuturna de trabalhar, de levantar, de seguir horários, de pagar contas, tudo isso é estafante e enervante. Então, é muito melhor viajar, saltar para fora dessas limitações, artificialmente, a preço de destruir a liberdade e a vida” (Leonardo Boff, Tempo de Transcendência, pág. 21).

    A característica do alienado não é a recusa do ser, mas a egolatria. E o problema na egolatria não é o ser, mas o ser fechado em si mesmo. Ao mesmo tempo em que o ególatra vive em si mesmo, ele desconhece a si mesmo: a verdadeira alienação lhe é desconhecida, já que a verdadeira alienação é a abertura do ser para o outro, para o conhecimento e a acolhida do outro em si e acolhida do conhecimento em si no fechamento. A pessoa adulta se abre para fechar e na medida em que se fecha, cresce, já que agora ela não é mais só ela mesma, mas mais do que si mesma – o outro, o conhecimento, a completou.
 
Pornografia é pseudotranscendência

    Nem tudo que é “bom para você” é “bom para você”. Um dos efeitos do reboot é a procura por pessoas reais e relacionamentos reais. A pornografia lhe deixa satisfeito demais para a busca por relações concretas e com o tempo isso lhe torna uma pessoa menos madura. Tal característica de satisfação imediatizada se torna alienante: você se desabitua a buscar metas de longo prazo e sempre busca satisfação imediata. Para a consecução de obras de longo prazo se faz necessário o desvio do prazer imediato para um agir contínuo de uma obra que leva mais tempo e só dará satisfação posteriormente.

    Temos uma tendência natural de buscar o mais fácil, mas nem todo relaxamento é bom. É, melhor, por exemplo: caminhar cinco minutos por dia do que ficar o dia todo deitado numa cama. A busca por satisfação imediata pode e deve ocorrer, mas quando ela vira a peça central de uma vida, ela corrói e mata a própria vida. Já que a vida é uma questão de longo prazo. Em questão do uso temporal: uma pessoa que busca tão simplesmente passar no ensino médio e outra pessoa que pretende ser intelectual farão de seu tempo algo determinante. O tempo do intelectual será sempre ligado a estudar todos os dias. E isso pressuporá certos sacrifícios e privações de prazeres imediatos. Só que essa privação é algo bom: a vida intelectual lhe dará uma contínua expansão do horizonte de consciência que com o tempo lhe dará uma vida mais proveitosa. Se a vida é determinada por escolhas, aquele que escolhe conscientemente aproveita mais a vida. E é por esse motivo que estudar é curtir a vida: quem estuda mais, curte mais a vida na medida em que escolhe melhor como se deve viver.

    Os teóricos do relaxamento sempre se esquecem que a vida não é só uma contínua satisfação, mas também é um deserto árido. E se esquecem que se uma pessoa busca uma satisfação maior, deve buscar essa satisfação maior congruentemente. E buscar satisfação maior congruentemente exige tempo e esforço. Tempo e esforço que será dificilmente alcançado por alguém que não consegue sair do prazer imediato. A não satisfação imediata é o pressuposto para a consecução de metas de longo prazo. Tal como poupar dinheiro para comprar uma casa. Na vida, se faz necessário um ordenamento até mesmo para o prazer: se você quer comprar um videogame de última geração, terá que, provavelmente, poupar dinheiro.

Ser-no-outro e ser-com-o-outro

    Há uma diferença entre o ser que é com o outro e o ser que é no outro. O senhor é no seu escravo. O estuprador é na sua vítima. O assassino é no seu assassinado. É a diferença entre aquele que está junto e aquele que se sobrepõe. Ou seja, ser-com-o-outro é buscar ser em igualdade. É buscar a satisfação. É buscar o mútuo acordo, a reciprocidade, a alteridade. E ser-no-outro é impor-se. A plena realização do ser-no-outro é aquilo que chamamos de escravidão. A plena realização daquilo que chamamos de ser-com-o-outro é aquilo que chamamos de igualdade – ou, quiçá, aquilo que chamamos de amor.

    Sabemos que o vício em pornografia torna as pessoas menos empáticas. O viciado vê no outro não um outro ser, mas sim um instrumento para sua “realização”. E tal instrumentação do ser humano reduz a sua dignidade. Já que não há mais igualdade entre humanidades, mas servidão. O outro é reduzido a um mero instrumento e perde a sua capacidade de ser equívoco – ou, como já dito, ser livre. Isso é, de fato, um dos frutos da insatisfação sexual moderna: ela não é fundada na igualdade e na alteridade, mas na busca ególatra de autossatisfação. Logo ela não é o ser-com-o-outro e sim o ser-no-outro, é uma relação de dominação e subordinação.

Pseudotranscendentalidade pornográfica

    Sabemos que a pornografia leva a satisfação imediata e que a satisfação imediata se torna o fim do viciado. Sendo a pornografia autossatisfatória, se há uma diminuição da capacidade do ser de se realizar em longo prazo. Logo qualquer meta mais séria da vida se torna impossível. Visto que o ser está continuamente buscando só a satisfação mais imediata. E isso lhe torna imaturo: ele não conseguirá fazer coisas que levem grande tempo, estará sempre buscando os prazeres mais imediatos. Logo ele será incapaz de manter uma verdadeira vida intelectual, uma verdadeira saúde econômica, uma verdadeira vida amorosa. Até para amar alguém, há tempo para isso: é um processo longo de conhecimento, autoconhecimento, alteridade, desenvolvimento.

    Um exemplo pessoal: eu era incapaz de ter uma leitura ordenada. A leitura ordenada pressupunha um grande tempo de dedicação. Se eu quisesse, por exemplo, ler na ordem correta todos os livros do Paul Tillich ou do Haruki Murakami para uma maior assimilação do seu pensamento ou da sua obra, ser-me-ia impossível. Se você quer ser um intelectual melhor, um intelectual mais capaz de estudar, largue a pornografia. A pornografia lhe mata por dentro na medida em que te torna incapaz de realizar metas de longo prazo. Tudo deve ser reduzido para se encaixar no plano pornográfico. Como, por exemplo, um viciado em pornografia escreveria um TCC? Isso envolveria um planejamento, dedicação, tempo e esforço fenomenal. E tal necessidade de satisfação imediata destruiria a própria possibilidade de uma realização ordenada de longo esforço.

Não tenhais medo

“Portanto, não os temais; porque nada há encoberto que não haja de revelar-se, nem oculto que não haja de saber-se.
O que vos digo em trevas dizei-o em luz; e o que escutais ao ouvido pregai-o sobre os telhados” (Mt 10:26,27)

    Se alguém lhe disser que você não vive, argumente acerca da vida a partir da sabedoria que se expande para melhor viver.
- Você não vive, pois não bebe!
- Se beber é viver, o certo seria conhecer as melhores bebidas e aprender a degustá-las. Para tal, há um estudo.
- Você não vive, pois não vê pornografia!
- Se a pornografia é boa, quem dirá a experiência real. Logo é melhor buscar uma pessoa real e, nisso, crescer em vivências sexuais reais com pessoas concretas.
- Você não vive, pois não pega ninguém!
- Se pegar alguém é bom, imagine vivenciar toda densidade humana. Imagina integrar-se com alguém e viver uma relação de pleno desenvolvimento em alteridade, em que essa pessoa e eu vivemos numa crescente relação em que a cada dia nos tornamos mais íntimos.
- Você não vive, pois não joga!
- Se jogar videogame é bom, quem dirá jogar os melhores jogos e quem dirá compreendê-los: imagine jogar um videogame sabendo de seu hardware, sabendo da sua arte, sabendo de sua arte.
- Mas conhecer não é viver, viver é fazer!
- Mas aquele que mais faz é aquele que faz com sabedoria, o teórico não se destrói na prática, pelo contrário, aperfeiçoa. A práxis não é destruída pela teoresis, a práxis é íntima da teoresis. E aquele que não tem teoria, não vivencia a prática. 
- Isso é coisa de velho!
- E seus argumentos são superficiais, tal como a sua pessoa. Você pode até pegar alguém, mas não consegue chegar no mais íntimo contato com essa pessoa. Você pode até jogar videogame, mas não sabe nada de como ele é feito e logo também não sabe como verdadeiramente apreciá-lo. Você pode até beber, mas não sabe o que há de melhor para beber. Tudo que você faz é superficial, tudo que você faz é morno, logo a realidade total nunca é conseguida: sua experiência é tão oca quanto a sua inteligência!

    Não se enganem. Quando você pega um livro, quando você lê um artigo, quando você conversa com aquela pessoa que você ama e descobre mais sobre ela: isso é tão real quanto o real. Nem se enganem por essas pessoas superficiais, pois tudo que elas fazem não é real. O real é profundo, o real é íntimo, portanto todo real exige dedicação, tempo e conhecimento. Não é você que não vive, não é você que é careta: são essas pessoas que são superficiais. Na chuva, não se molham; no calor, não se esquentam; no amor, não são íntimas; no sexo, não dão satisfação.

Conclusão
 
    A pornografia não é só alienadora, é continuamente alienadora. E essa contínua alienação que lhe marca faz com que o ser seja incapaz de se abrir para a realidade. Já que vida é experiência e experiência é se projetar para fora – mesmo que após isso haja uma introspecção de algo ou alguém que se assimila junto ao ser que experiencia. Tornar-se autossatisfeito é se incapacitar: visto que toda vida é um grande projeto de convivência. A vida é um esforço comunicacional. Quem se recusa a se comunicar, recusar-se-á também a crescer. Uma pessoa autossatisfeita é imatura, visto que a experiência nasce de uma insatisfação que quer se satisfazer. E quando melhor e mais sensatamente se satisfaz, mais se torna integralmente satisfeita. Como a pornografia é um mundo a parte e o fechamento nesse mundo a parte que não se integra na totalidade do sujeito – tal como toda alienação – ela é incapaz de propulsionar a realização do ser. Eu não sei se você está satisfeito com o que falei, mas se eu pudesse lhe dizer uma última coisa, essa coisa seria: se você quer ser feliz, largue a pornografia. A pornografia mata o amor e a ausência de amor mata a felicidade.

domingo, 4 de julho de 2021

Havia um Gato Morto no Meio do Caminho



    Eu passeava tranquilamente com meu cachorro pela praça, parei e vi um gato morto no meio do caminho. Assustei-me e olhei-o fixamente. O tempo transcorreu, cinco, dez ou quinze minutos. Fui embora e mantive o gato morto na minha mente. O gato morto virou minha flor da obsessão.


    Eu era um gato que andava pelo meio da floresta. Vi um humano morto deitado no chão. Parei, olhei o humano fixamente e fiquei a lamber meu pelo tediosamente. Alonguei-me, enrolei-me e botei-me a dormir perto do humano morto que estava num dormir perene.

    Havia um gato morto no meio do caminho. Eu era um homem morto no meio do caminho. Eu andava com meu cachorro morto no meio do caminho. Eu era uma rua morta no meio do caminho. Havia uma rua meio morta no meio do caminho morto. Eu era rua morta no meio do caminho que partia pro abismo. Eu era a morte que morre no caminho morto.

    Nos dias posteriores, o gato morto ainda ficou por lá. Passava e olhava-o todos os dias, era o seu mais fidedigno espectador. Via o gato na praça, na mente e no sonhar. Dava-me sempre por dizer: "há um gato morto no meio do caminho". Havia em mim uma nostalgia trágica. O gato morto ficava a se decompor e eu a sonhar com o gato morto. Era o gato morto minha ideia fixa e obtusa.

    Um dia fui para passear, encontrar a tranquilidade e trazer paz pro espírito. Vi e não pude acreditar: eu estava morto no meio do caminho. Vi-me enforcado na floresta no meio do caminho. Eu estava morto no meio do caminho. Olhava-me a decompor com um divertido horror. Horroriza-me e fixava-me em minha figura morta no meio do caminho. Só podia pensar: "Eu estou morto no meio do caminho morto".

    Nos outros dias, o humano morto permaneceu lá. Descompôs-se serenamente. Teria sido ele assassinado por outro humano? Seria ele um suicida? Teria sido envenenado? Morreu vagarosamente sem nem se dar conta? Ensandeceu pacificamente e findou seus dias penumbrosos? Não sei, o humano estava morto e nada poderia ser falado. Só se sabia que era a morte, trágica e determinante. Eu era um gato, um inocente gato andando pela praça. Ninguém suspeitaria de minha inocência felina. Caçava um rato, caçava um pássaro. Atormentava aqueles que por mim se fixavam.

    Em meu sonho o gato era grande, maior que um carro, maior que um elefante. Seus ossos faziam-se mais presentes. Ele andava como um zumbi dócil por meio da praça. Matando os pássaros pelo meio do caminho, devorando-os graciosa e despreocupadamente.

    Eu era um gato grande no meio do caminho. Matava pombo e rato no meio do caminho. Um dia arrefeci no meio do caminho. A chuva, o frio e a fome ficaram comigo no meio do caminho. Eu morri no meio do caminho. Eu morri no meio do caminho e ninguém viu o meu finar. A solidão morreu ao meu lado no meio do caminho. Por que ninguém viu ao menos o meu esfalecer? Nem em minha morte sou digno de se ver. Eu sou o gato morto no meio do caminho: passam, veem, ignoram-me e partem. Preencho-me de vazio no meio do caminho.

    Em meu sonho o humano era zumbi. Ele botava fogo em gravetos recolhidos e alimentava-me com peixes frescos e quentes. Em sua pele decomposta insetos andavam por toda parte, numa hora saindo e noutra entrando. O humano nunca chegava a falar. Era um humano taciturno e pacífico no meio do caminho. Vivia enquanto morto no meio do caminho.

    Por vezes sonhava que eu ia a praça e via-me morto a me decompor. Olhava-me indiferentemente num prazer tedioso. O que me assustava não era minha figura morta: era a ideia do tédio e pequenez da morte. Eu era tal como o gato: um morto banal a preencher o cenário.

    Eu era uma pessoa viva que era morta e que morreu sem perceber no meio do caminho. O gato que era vivo. Achei-o morto por negação. Eu era um homem morto no meio do caminho. Quando dei por mim, eu já não era homem, eu já não era morto, eu já não era nada.

    Havia um gato morto em meu coração. Ele crescia vagarosamente em meio a turbulência de meu coração. O gato arranhava, miava e ronronava. Percebi-o tardiamente. Gato morto, morto, morto. Morto dentro de mim. Eu morto. Havia um gato morto dentro dum homem morto. Maldito gato morto que era eu no meio de meu caminho. Gato morto, homem morto, caminho morto. Havia um gato morto no meio do caminho. Havia um homem morto dentro do gato morto. Havia um gato morto que era um homem que vivia vivo enquanto morto. Maldito gato morto no meio do caminho. Maldita figura obsessiva que turva o meu caminho turvo.

    Era um gato morto a olhar um humano morto. Era um humano morto a olhar um gato morto. Era um meio caminho morto a olhar o passado vivo e o futuro sobrevivo. Era um morto vivo a olhar o vivo morto. Havia o morto dentro do vivo que vivia como morto. Havia o morto que vivia sem perceber que ainda vivia. Havia o que havia sem saber que se havia.

    Havia um gato morto no meio do caminho. Eu nunca me esquecerei disso. Eu era o gato morto no meio do caminho. Eu era o gato, eu era o homem, eu era o morto e o que também vivia.

A Prisão

     


    Apercebo-me, enfim, de minha prisão: ela começou cômoda, abriu-se e tornou-se mais cômoda. Em meu caminho de errático eremita: vi que todo fim era um começo. No fim, encontramos um começo e a escravidão torna-se mais branda até que a suavidade perca-se numa constante norma de sufocamento. Infelizmente, só posso ver paredes quanto estou próximo de me afogar. E quando me afogo, vem-me a necessidade de mudar. Quando mudo, a minha nova prisão me faz relaxar. A pergunta que não tem fim, mas tem metáfora é: qual é a melhor prisão? Essa pergunta descortina-se sempre numa série de mudanças as quais me abro, conquanto que eu ainda esteja peremptoriamente escravizado. De ideologia em ideologia, de música em música, de religião em religião: mudo-me de cárcere em cárcere, pois a próxima cela sempre tem um alvorecer do Sol quadrático ainda mais belo que a cela em que eu era anteriormente escravizado. Nessa eterna desgraça move-se a minha inconstante personalidade outonal. Vem-me sempre o paradoxo: estou preso numa inconstante constância e numa constante inconstância, daí provirá a minha essência: ela é como o Outono, quente no começo e fria no final. Tornar-me doce no começo, agridoce no meio, azedo no final. Sucedem-se colegas que se tornam íntimos, íntimos que se tornam inimigos, inimigos que se tornam passageiros, passageiros que vão-se embora numa foto em preto e branco de uma memória atordoada. Nestes velhos momentos, marcados em minha mente neurótica e delirante, tinha-se primeiro o sentimento e depois só o ressentimento. Tudo vem de uma pureza divina, de um ato de amor em estado de espírito, tornando-se posteriormente impuro, satânico e odiável. Aquilo que é potencialmente belo é potencialmente feio. Só Deus pode converter-se no puro mal, mas não o faz por ser a negação de si mesmo e até a sua onipotência observa a lógica - Deus só faz aquilo que é logicamente possível. E é nas andanças amarguradas que podemos extrair o fel da anti-abelha: um ato de amizade é potencialmente um ato de inimizade até que se torne inimizade. Tudo nasce de uma pureza de espírito para apodrecer na cicatriz da carne de um velho defunto. Todavia estou aberto: meu gosto agora é de plástico, ele não reflete a mim mesmo, visto que é só uma parte de mim. E quanto mais meu ser se recorda de si mesmo, mais ele vai do plástico para a carne e da carne para o espírito. Ainda sou idiota o suficiente para pagar uma passagem para uma nova escravidão: "porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço" (Romanos, 7, 19). Pois como esse ser adâmico estou preso no cadáver de minha carne enquanto relutantemente meu espírito luta para libertar-se do prejuízo da putrefação de seu corpo desajuizado que sempre se mergulha na antiga e nova iniquidade. E, nas palavras de um ex-amigo, que reproduzo mal por ausência de boa memória: "hoje eu vi alguém que só me trás más recordações". Assim eu de fato sou: doce, agridoce e azedo. Sou uma flor bonita até descobrir que sou uma anti-flor atômica parecida com a de Hiroshima. Só espere o Outono reiniciar, pois o começo do fim termina no começo, logo volto a ser doce, para voltar a essência inconstante de minha constância.