Mostrando postagens com marcador Agostinho de Hipona. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Agostinho de Hipona. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Acabo de ler "A Filosofia do Direito Natural de John Finnis" (Parte 1)

 


Nome:

A Filosofia do Direito Natural de John Finnis


Autores:

Victor Sales Pinheiro

Horácio Lopes Mousinho Neiva


O jusnaturalismo, diga-se de passagem, é muito atacado e sempre encontra uma indisposição de diálogo e preconceito ideológico. Muitas vezes, não atacam ele, mas o seu espantalho.


John Finnis, um defensor moderno do jusnaturalismo, trabalha com a ética dos bens humanos básicos e da necessidade do bem comum. É evidente que há uma interdependência entre a ética da razão prática, a ética dos bens humanos básicos no direito comum, a necessidade da autoridade do Estado de direito de se firmar nos direitos humanos, além de uma indagação a respeito da existência de Deus como fundamento último da racionalidade humana.


Como é importante salientar, o jusnaturalismo se contrapõe ao juspositivismo. O positivismo jurídico (juspositivismo) apresenta uma tese acerca dos critérios da validade jurídica que é diferente da tese jusnaturalista. Nele há a separação dos valores morais. Isto é, os valores morais não entrarão no conjunto de razões relevantes para aceitação de um ordenamento jurídico como ordenamento jurídico. O positivismo metodológico defende a neutralidade moral da teoria do direito. O que John Finnis verá como inconsistente. Visto que a teoria do direito, para ele, apresenta valor substantivo.


Quando pensamos a respeito do direito, temos um empreendimento normativo. As normas necessariamente passam por uma dimensão valorativa. Elas não podem ser avaliadas de modo puramente descritivo. Nenhum teórico pode dar uma descrição ou análise teórica dos fatos sociais sem também participar do trabalho de avaliação. Ele sempre se questionará o que é bom para as pessoas. O que é realmente exigido pela razoabilidade prática. Quando ele faz isso, ele faz um julgamento avaliativo. É por isso que Finnis defende que a teoria do direito deve ser diretamente avaliativa. Logo ela não será normativamente inerte. Qualquer teoria geral do direito, mesmo que com ambições meramente descritivas (tal como os juspositivistas intentam fazer), necessariamente preferirá um conceito de direito a inumeráveis outros. E aí vem o questionamento: "por qual razão esse conceito de direito é melhor do que os outros?".


O nosso conceito de direito não é algo neutro. Ele vem de uma importante parte de nossa cultura, de nossas tradições culturais e de nosso autoentendimento enquanto sociedade. Isso ocorre pois a sociedade precisa de conceitos compartilhados para existir enquanto sociedade. A sociedade precisa de uma concepção de propósito/finalidade, visto que não há prática humana sem finalidade. Além disso, ações e práticas humanas só podem ser compreendidas em correlação a sua finalidade, com seu ponto, com seu valor, com o seu propósito. Em outras palavras, há uma dimensão teleológica, visto que é observável que não se pode reconhecer uma ação sem saber qual é a sua finalidade.


O direito, enquanto instituição social, requer um telos. Isto é, um fim para que ele se volta. Ele requer um caso central. Quando questionamos a função do direito, perguntamo-nos a respeito da sua finalidade. Em outras palavras, é implícito que buscamos a sua prioridade. O ponto de união: como as pessoas entendem a sociedade e o sistema jurídico. E todo sistema jurídico necessariamente afirma ser uma autoridade legítima. Para justificar essa legitimidade ele requererá um caso central e significado focal.


Existem diversos conceitos de direito, diversas intuições e opiniões diversas a respeito dos limites do direito e de seus propósitos. É preciso elencar uma prioridade. Logo precisamos, para cumprir essa finalidade, rejeitar a natureza moralmente neutra da teoria do direito. Visto que para escolher razões normativas, que justifiquem nossas normas, precisar dar razão para nossas escolhas conceituais. Em última instância, um argumento normativo (e o direito é uma ciência social normativa) é um argumento que aponta para o caráter bom de determinada característica ou propriedade do direito. O direito, enquanto ciência social normativa, requer argumentos normativos e precisa determinar um conceito focal. Ele precisa justificar o seu propósito, a sua finalidade.


Um jusnaturalista procura a justificação axiológica da existência do direito. Ele busca saber o que é moralmente aceitável. E é por isso que John Finnis procurou determinados pontos basilares:

1. Teoria moral do florescimento humano;

2. Bens humanos básicos;

3. Razoabilidade prática;

4. Bem comum.


O bem comum é um conjunto de condições necessárias para a realização dos bens humanos básicos, os bens humanos básicos constituem a base necessária para o florescimento humano. O direito tem autoridade legítima quando serve ao bem comum, quando promove a justiça dos direitos humanos. A razão jurídica, por sua vez, serão as razões para a ação com a finalidade de promover o bem comum.


Toda ação humana carrega uma dimensão teleológica. Visto que toda ação humana carrega um sentido, um propósito. O direito também tem uma dimensão teleológica. E só pode ser justificado que a sua finalidade for boa. Como uma instituição social, ele deve ser socialmente justificável. Então o bem comum é necessário para a existência do direito. É por isso que Agostinho de Hipona diz que "lex iniusta non est lex" (lei injusta não é lei). Visto que se a finalidade da lei é o cumprimento do bem comum, uma lei injusta não cumpre o bem comum, sendo portanto um desvio ou uma subversão do que a lei deveria ser. É por isso que há uma conexão entre a obrigação jurídica e a obrigação moral na teoria jusnaturalista, visto que há uma obrigação do bem comum na esfera da justiça.


O teórico jusnaturalista deve se tornar cada vez mais reflexivo e crítico, visto que essa escola doutrinária, exige juízos cada vez mais bem dotados de razoabilidade a respeito do que é bom e razoável na prática. O jusnaturalista vê o bem comum como fundamento do Estado de Direito. E o seu compromisso moral é assegurar o bem comum.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #5: Agostinho e o Direito Natural

 



— Curiosidades Históricas:


1. Quando Agostinho estava escrevendo ainda não havia ocorrido a redescoberta dos trabalhos aristotélicos e tampouco dos livros de Aristóteles;

2. A tradição do Direito Natural teve uma radical transformação com a influência da nova religião que se instaurava na época, o cristianismo;

3. O cristianismo, em específico, era aquele da Doutrina Católica;

4. Naquele período, o cristianismo de um movimento religioso perseguido para a posição de religião formal do Império Romano, o que fez com que ele se espalhasse por toda Europa e partes do norte da África;

5. Os pensadores mais importantes para compreender filosoficamente e teologicamente o Direto Natural na esfera cristã são Santo Agostinho de Hipona e São Tomás de Aquino;

6. Agostinho de Hipona é a figura mais importante da Patrística e Tomás de Aquino é a figura mais importante da Escolástica.


— Relevância de Santo Agostinho de Hipona:


Agostinho de Hipona foi um dos Pais da Igreja, vivendo entre 354 a 430 d.C. e ajudou no desenvolvimento inicial do cristianismo. Nesse período a Cristandade era influenciadas por diferentes teorias e contribuições sobre como interpretar os textos bíblicos. Tão logo, práticas consideradas heréticas se estabeleceram. Nessa época, houve uma tentativa de dar uma codificação formal da Doutrina Cristã e uma codificação formal de como a teologia deveria ser interpretada.


Agostinho de Hipona nasceu no norte da África, que era parte do Império Romano. Seus escritos sobre a teologia e a doutrina cristã exerceram um grande impacto nos trabalhos dos teólogos que vieram depois dele. Foi ele que desenvolveu a Doutrina do Pecado Original, a Doutrina da Graça e deu elucidações a respeito da Santíssima Trindade. Impactando o Primeiro Concílio de Constantinopla em 381.


— Santo Agostinho de Hipona e o Direito Natural:


A primeira distinção a ser feita é o papel que Aristóteles exerceu em seu trabalho. Como dito anteriormente, numa nota pública anterior, Aristóteles é a chave fundacional do Direito Natural. E, como bem sabemos, os trabalhos de Aristóteles não tinham sido recuperados no tempo de Agostinho. Se muito, a influência de Aristóteles no pensamento de Agostinho é limitada, provavelmente inexistente. Quem terá mais influência aristotélica é Tomás de Aquino. Agostinho de Hipona, por sua vez, terá influência de Platão.


Agostinho trabalha com a ideia do bem e do mal para compreender a natureza humana e a condição da humanidade, acreditando que a submissão para Deus é a mais favorável. A conexão que podemos traçar é a ideia de Platão a respeito da submissão à autoridade máxima do Rei Filósofo.


O que podemos ver é que Agostinho procura uma autoridade mais extrema, mais poderosa e mais sábia que o Rei Filósofo como ponto para submissão. E essa autoridade é o próprio Deus. Deus é uma autoridade tão máxima que ele é o único que comporta a lex aeterna (lei eterna). Todas as outras leis, isto é, as leis positivas criadas pelo homem (leis do Estado), não são necessárias caso se siga a lex aeterna (lei eterna). A lei positiva (lei do Estado) é chamada de lex temporalis (lei temporária) e tem importância menor, visto que pode ser substituída se os humanos simplesmente se submeterem a lex aeterna (lei eterna) que é derivada do próprio Deus.


— "Do Livre Arbítrio" (livro de Agostinho):


Uma das maiores frases de Santo Agostinho de Hipona é "lex iniusta non est lex" (uma lei injusta não é lei). Essa frase tem correlação direta com o conceito de direitos naturais, com a moralidade natural e com o conceito natural de lei baseada em princípios morais.


A escola doutrinária do Direito Natural crê na possibilidade de se chegar a um padrão objetivo de moralidade e nesse padrão objetivo de moralidade está o Direito Natural. Se uma lei criada pelo Parlamento (o Poder Legislativo) não adere aos direitos naturais, essa lei é automaticamente inválida.


Para Agostinho, as leis positivas (as criadas pelo homem para serem usadas pelo Estado) só são aceitáveis se encontram fundamentação na lex aeterna (leis eternas). Isso abriu margem para o Direito Positivo basear-se teologicamente na lex aeterna (lei eterna). Estamos falando da teologização do Direito.

sábado, 16 de agosto de 2025

Acabo de ler "Teoria Geral do Estado e Ciência Política" de Cláudio e Alvaro (Parte 23)

 


Nome:

Teoria Geral do Estado e Ciência Política


Autores:

Cláudio de Cicco;

Alvaro de Azevedo Gonzaga.


Vou me centrar em anunciar os pontos essenciais.


Estado na Antiguidade Oriental:

1. Caráter sacro e divino do poder;

2. Identificação total entre poder político e religioso, entre patriotismo e religião;

3. Concentração dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário nas mãos do rei;

4. Absolutismo ou despotismo absoluto.


Instituições políticas gregas:

1. Surgimento de governos republicanos;

2. Separação da moral e da religião do Direito;

3. Governante não é mais considerado divino, nem indicado pelos deuses, é eleito pelo povo, os cidadãos comuns.


Grécia: cidades-Estados.


— Esparta:

- Diarquia: dois reis com funções militares e religiosas;

A) Eforato: cinco membros de eleitos anualmente, dirigiam o Estado;

B) Gerúsia: vinte oito homens maiores de sessenta anos, controlavam as atividades dos monarcas e atuavam no campo legislativo;

C) Apela: composta todos os cidadãos espartanos maiores de trinta anos, com funções eletivas e legislativas.


— Atenas:

- Aristocracia dos nove arcontes;

- Reforma de Clistenes traz à democracia;

- Democracia excluía estrangeiros, mulheres e grande massa dos escravos;

- Péricles e presidencialismo: o Senado atuou vetando Leis emanadas pela Apela — assembleia popular — pois as via como inconvenientes para "o bem da Polis" (era uma ditadura disfarçada).


— Teoria Política de Platão:

- O Estado deve ser, em ponto maior, o que o homem é, em ponto menor;

- Como o homem é governado pela razão, deveria o Estado ser governado por sábios filósofos;

- Tal como o corpo com suas paixões e instintos segue o que é determinado pela inteligência, assim os trabalhadores devem obedecer os sábios governantes que possuem os conhecimentos verdadeiros;

- Guerreiros e guardiões: responsáveis por defender a Pólis contra a subversão dos trabalhadores (para eles cumprirem os mandamentos dos sábios) e repelir ameaças externas;

- Todos deveriam agir conforme os papéis sociais fixos para que haja justiça;

- A mulher pode exercer qualquer função na cidade (igualdade de gênero).


— Teoria Política de Aristóteles:

- "O bem próprio visado pela comunidade soberana é o bem soberano";

- Três formas de governo em forma funcional ou corrupta: monarquia/tirania, aristocracia/oligarquia e democracia/demagogia;

- Melhor forma de governo como a monarquia;

- Homem como animal social.


— Pensamento Político Romano: 


— Cícero:

- Ecletismo: une monarquia, aristocracia e democracia;

- Unidade da Monarquia;

- Excelência da Aristocracia;

- Consenso da Democracia.


— Santo Agostinho:

- Cidade de Deus como obra de Filosofia da História;

- Dois tipos de homem: os que amam a si mesmos a ponto de desprezar a Deus e aqueles que amam a Deus a ponto de desprezarem a si mesmos;

- As duas cidades (A de Deus e a dos Homens) estão unidas como joio e trigo;

- O Estado deve se subordinar aos valores cristãos.

sábado, 29 de junho de 2024

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 6)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

Drácula é o começo e é o fim. A razão para isso? Talvez seja porquê a pergunta final revela a primeira pergunta. A questão central de Castlevania Symphony of the Night é a questão da moralidade. Richter Belmont, homem que derrotou Drácula, foi enganado pela magia e tornou-se um homem a serviço das trevas. Anteriormente era o próprio Richter que lutou contra o mal no mundo, agora ele mesmo é o mal no mundo. Em primeiro lugar, Richter é apresentado como um herói em seus dias de glória. Depois disso, ele é apresentado como vilão. Posteriormente, ele aparece como alguém que foi controlado pela magia, sendo por isso envergonhado. É interessante observar a lógica da inversão aparece constantemente nesse jogo, muito mencionada nas outras partes dessa análise.

No começo do jogo – que é o final do jogo anterior – temos uma imagem concreta do Drácula. Essa imagem aparece como a figura de um nobre – apesar disso ser uma inversão total de valores –, mas posteriormente revela a sua verdadeira natureza: a de um monstro. Creio que o jogo "brinca" com a imagem do Drácula. O Drácula aparece como uma figura bastante concreta e bem discernível, no final do jogo ele aparecerá como uma mescla de distintos tipos de "criaturas demoníacas". Nem o Drácula, nem o Castelo, apresentam uma solução a questão do mal: o mal pode ser inúmeras coisas, tendo inúmeras formas, podendo se realizar em múltiplas vias, de forma indefinida. Inclusive, o mal pode se realizar no mais nobre dos homens, tal como ocorreu com Richter Belmont.

A inversão que o jogo causa agora é essa: o mal não se apresenta como algo bem discernível e bem catalogável. Muito pelo contrário, o mal é algo que está dentro de cada um de nós e o custo da liberdade é a eterna vigilância, visto que o mal nos espreita a cada momento, a cada batida de nosso coração e, igualmente, em cada uma de nossas intencionalidades. É por isso que a classificação do mal de forma "preconceituosa" leva a ocultação do mal que pode residir dentro de nós. Classificar o mal é desenvolver interior e psicologicamente uma figura externa de mal que pode ser livrada ou estar em outro, mas saber que o mal pode estar em tudo nos revela algo sobre nós mesmos.

Tudo que existe pode ter a sua finalidade desviada e corrompida. Uma ação aparentemente boa pode ter um objetivo escuso. Por exemplo, o marketing moral dos tempos modernos revela uma sociedade narcisista e não uma sociedade caridosa. Estamos sempre sujeitos a sermos veículos do mal. É por isso que o jogo metodologicamente desconstrói a figura do Drácula, colocando-o como uma mescla de múltiplos demônios, como uma mescla de múltiplas intencionalidades sombrias. O mal.escapa a nossa própria compreensão e só pode ser melhor compreendido por um rigoroso exercício da consciência interior, analisando de forma confessional cada memória, num exercício catártico. Não por acaso, uma das principais obras de Agostinho de Hipona é "Confissões". Uma vida não analisada cai muito facilmente na externalização da figura do mal, o mal logo se torna inconsciente e a pessoa se torna má sem perceber. A ausência de autocrítica é uma questão séria.

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Intimação a Si #2 - E quando adaptar-se torna-se negar-se, o que sobrou do resto que havia em mim?




1. Imerso em tensionalidade, busco um pouco de fuga no sossego. A música sacra se encontra ao lado de minha libidinosidade deturpada. Amá-lo é ofender a quem amo, não amá-lo é negar a profundidade do que sinto. 

2. O que sobra de minha leitura? Talvez a realidade a qual me choco. Amo-o como amo a catedral. Só que pode o inferno posicionar-se tal como se fosse o céu? Por um lado, a construção de uma vivência super-egóica, por outro a romântica-sexual que, tal como um Deus-Vivo, a tudo evade. Nada pode deter o amor que sinto, só a ansiedade neurótica do condicionado que condiciona sempre ao enquadro.

3.  Se ele é bom ator, ator o suficiente para separar o teatro da vida, como eu que pouco sei de teatro posso alcançá-lo nessa originalidade que ao palco se sobressai pelo coração pulsante que a vida deseja e a sociedade escapa? Quero-o. Desejo-o tanto quanto sinto que a minha carne é de carne. Só que o que temo é esse corpo imaterial a qual chamamos de sociedade. 

4. Sinto que meu coração que hoje se homorromantiza fosse tão de fogo quanto o coração queimante de Agostinho de Hipona era de fogo. E quando ele está a queimar meu coração até meu corpo se queima e sente a minha alma. Tão empírico quanto Aristóteles meu corpo pulsiona, tão idealístico quanto Platão minha alma transcende e aos céus se direciona. A metafísica celeste e a homossexualidade dançam numa dialética que ao meu coração agrada!

5. E quando adaptar-se torna-se negar-se, o que sobrou do resto que havia em mim? Com o bater do martelo, vem-me só o desejo de para sempre amá-lo.

domingo, 24 de outubro de 2021

A Ilusão Conservadora - ou: da Inversão Ritualística como Obra de Confusão Mental

 

"Se é verdade que o socialismo ataca a família na teoria, é muito mais verdade que o capitalismo ataca na prática"

Chesterton


    Existe um fenômeno a qual eu denomino de "inversão ritualística". Aquilo que chamamos de ritual é a manifestação no espaço-tempo de uma ideia. O ritual não é a ideia em si, o ritual é tão apenas a manifestação da ideia num determinado espaço-tempo. Só que há gente que confunda ritual com ideia. O fenômeno da inversão ritualística ocorre quando um ritual adquire a forma de ideia na cabeça daquele que é confundido. Um bom exemplo: o calvinismo não é o cristianismo em si e sim uma forma de se manifestar o cristianismo, tal como o cristianismo não é a religião por si mesma e sim uma forma de se viver a religiosidade. Indo um pouco mais longe, a União Soviética não é o socialismo e sim uma forma que se manifestou o socialismo. Só que a pessoa que confunde o ritual com a ideia não é capaz de saber que a ideia não se manifesta puramente na realidade e, quando se manifesta, manifesta-se de uma forma imperfeita. 


    Qualquer coisa, pessoa ou ideia pode se tornar vítima da inversão ritualística. E a confusão mental que enfrentamos é tão grande que se pensa que o ritual está acima da ideia que ele tenta reproduzir. Vê-se nisso quando se fala a palavra "teologia" que quer dizer: "discurso sobre o divino". Só que a palavra "teologia" é tão má empregada e tão má entendida que, para muitos, ela quer dizer: "discurso sobre o cristianismo". Na verdade, até mesmo a mitologia grega é teologia. Para ser sincero, até mesmo aqueles que chamamos de "umbandistas" praticam a sua teologia - mesmo que, muitas vezes, sem o aval dessas pessoas ilustres a qual chamamos de cristãos. Até mesmo a "bruxaria", vista como algo horrível para pessoas tão ilustres quanto cristãs, é uma forma de teologia. Só que a inversão ritualística leva a crer que teologia é cristianismo tal como leva a crer que socialismo é marxismo ou que socialismo é stalinismo.


    O legal da história é que ela prova quase sempre o contrário do que se espera. Pegue todas as maiores figuras da Idade Média e verificar-se-á um punhado de desajustados hereges que só depois de muito tempo foram tidos como bons, já que a maior parte do tempo em que viveram ou até depois do tempo de sua morte, foram tidos como maus. Se o que define alguém como parte de seu tempo é estar contra o seu tempo, tal regra se aplica até mesmo aquela idade espaço-temporal tida como conservadora chamada Idade Média. E falo isso sem a menor vergonha. Qualquer grande figura, da Idade Média, foi uma figura desajustada: seja Dante, Tomás de Aquino, Boaventura, Francisco de Assis, Domingos. Podemos pegar até mesmo o ilustre Agostinho de Hipona, o nosso santo que disse: "Deus, dai-me continência e castidade, mas não agora". Agostinho de Hipona foi tido como um gigantesco devasso hipócrita a qual todo mundo atribuía luxúria sem fim - e, quiçá, sem retorno. Só que hoje, todas essas figuras de desordem, são tidas como figuras de ordem por defensores da ordem. O que é engraçado, já que nenhuma dessas figuras representou ordem alguma. Sabem o que isso demonstra? Demonstra que nada compreendemos sobre história.


    O maior problema de tudo: tudo foi invertido para que desajustados ululantes parecessem ajustados ululantes para aqueles que não o conheciam de fato. Assim a ordem engoliu a desordem como Saturno engolia seus filhos. Assim a ordem gerou ordem matando a desordem. Assim a desordem desonrada e deslegitimada foi feita ordem por um revisionismo reacionário. O sistema é tão alienantemente denso e hipócrita que não se negará a mentir a cada capítulo da história, colocando figuras desajustadas como ajustadas até que todos se ajustem ao sistema como que por efeito cascata.


    Dante foi um poeta popular, que escreveu sua maior obra não em latim, mas numa língua vulgar para que não só a elite o lesse, mas sim para que todos pudessem ler. Dante defendeu a separação entre o Estado e a Igreja, já que a autoridade chamada de temporal precede à Igreja e não é causa necessária da Igreja - Dante era, meus senhores, um teólogo diferente: ele era o teólogo do laicismo. Tomás de Aquino foi um cara duma ordem considerada herege (Dominicanos) por muitos e ainda defendeu Aristóteles, sua tarefa era, estranhamente, conciliar razão e fé - coisa absurdamente progressista que almejava diminuir a penúria de uma vida puramente condicionada aos ditames do canôn bíblico. A fé de Tomás de Aquino era tão grande que em sua Bíblia não cabia só Paulo de Tarso e Isaías, mas também Aristóteles. Já que para ele, haviam-se modos de se descobrir a obra de Deus: e a sagrada escritura não era a única, visto que Deus, meus amores, é extrabíblico. Francisco de Assis era um daqueles vagabundos que andavam feito mendigos pregando o Evangelho. Já que os monges viviam encastelados em seus mosteiros longe do povo pecaminoso, Francisco, em sua estranha humildade, preferia viver entre os mendigos do que viver feito um elitista em um mosteiro. Domingos literalmente defendeu uma ordem em que todo mundo pudesse pregar, coisa que era compromisso só de bispos e até mesmo aos padres isso era dificultado. O compromisso de Domingos era com a democratização do discurso cristão, numa clara revolta hierárquica. Boaventura foi um místico duma ordem de vagabundos (franciscanos) que teve que sofrer as pressões que queriam a dissolução de sua ordem por causa de arautos do conservadorismo católico. Boaventura era um descendente espiritual de Francisco de Assis e toda a sua teologia mística é baseada nesse modus vivendi herético o qual se chama franciscanismo. Agostinho de Hipona teve uma das maiores obras no campo da teologia, da psicologia e da moral. Nessa obra, ele não analisa uma série de erros cometidos por outra pessoa e sim uma série de erros cometidos por ele mesmo.


    Todas essas figuras são utilizadas de modo errôneo. Tomás de Aquino, defensor da liberdade de estudo, da liberdade de investigação é utilizado por pessoas que são contra essa mesma liberdade. Dante Alighieri é utilizado por elitistas, só que Dante era o contrário de um elitista. Domingos, defensor da pregação como meio efetivo de conversão, é hoje utilizado por aqueles que querem, pura e simplesmente, a imposição da fé por vias não dialogais. Agostinho de Hipona, homem sincero para aquilo que ele próprio acreditava como sendo parte de seus erros, é utilizado por pessoas que se veem imunes de qualquer erro e no direito pleno de culpar o mundo inteiro. Francisco de Assis, homem que decidiu viver em meio ao povo pobre e converter as pessoas através de atos e não de palavras, é hoje utilizado por pessoas que odeiam a população em geral e que amam mais suas riquezas do que qualquer outra coisa. O resultado da obra mística de Boaventura não está naquilo que ele mais disse, mas no silêncio: ele entendia que Deus só se manifestava para aqueles que se calavam, pois aquele que se cala, se abre. Só que os seguidores de Boaventura nunca calam a própria boca, já que só suportam a própria voz e não a voz do outro, seja o outro o próximo, seja o outro a Deus. Se todas essas pessoas ilustres pudessem conjecturar como seus nomes seriam usados por nós, perdem-se-iam de vergonha.


    Sobre todas essas pessoas ilustres, só posso dizer uma coisa sobre nós pensando neles: nós não somos dignos deles, nós os arrastamos para as nossas conclusões errôneas e manchamos os seus legados em nossos fetiches mentais. O que temos deles, não são eles, mas aquilo que foi dito sobre eles e mais precisamente naquilo que se tornou "conventual" sobre eles. Nessa série de mentiras assimiladas, reduzimos suas pessoas ao pó e suas ambições mais puras viram alvo de nossa zombaria preconceituosa. O que vemos é uma série de pensamentos ritualizados que não conseguem trazer as coisas ou as pessoas em si, mas só a deformidade daquilo que se tem das coisas e das pessoas. Na sociedade perfeita de Thomas More, descrita no livro "Utopia", o catolicismo não é a religião oficial, mas quase toda santa vez que se fala dele, lembramo-nos mais de sua religiosidade católica do que qualquer outra coisa. Assim é com quase todas as coisas, tem-se mais o ritual do que aquilo que há em si.


    A inversão ritualística nos faz pensar em Tomás de Aquino como um exemplo de padronicidade, só que Tomás de Aquino era um destruidor de rituais, sobretudo o ritual platonista que virou o cristianismo. Tomás de Aquino foi perseguido por defender as heresias de Aristóteles e hoje queremos usar Tomás de Aquino para expurgar a academia das heresias modernas sendo que Tomás de Aquino era modernamente um herege. Colocamos tanta santidade em Francisco de Assis que o afastamos do "povo pecador" com que ele viveu. Queremos adornar com tantas palavras a mística de Boaventura que esquecemos que a mística se encontra mais na abertura total da percepção do que no julgamento desenfreado. Falamos de alta cultura e colocamos Dante Alighieri como o portador máximo da alta cultura, só que Dante defendia a cultura popular e por causa dela, virou mártir. Utilizamos Agostinho para condenar a sociedade, mas o que mais Agostinho condenou era a si mesmo. Falamos de Domingos para calar a sociedade, mas o método dominicano era dialógico. Tem-se sempre o ritual, mas nunca se tem a ideia.


    Heterossexuais viveram o amor, então criaram preceitos sobre como ordenar o amor. Sem perceber, transformaram o amor em heterossexualidade. O preceito heterossexual de amor é o preconceito contra qualquer outro tipo de amor. Já, em gênero, conventuou-se que cada peça cabia a determinado gênero e, desde então, tudo virou uma normativa em que o gênero em si mesmo se perdeu. Em jogos, diz-se que o melhor videogame é o que possui mais gráficos, mas o videogame que venceu a sétima geração não foi o PlayStation 3 com a sua arquitetura arrogantemente sofisticada e sim o Nintendo Wii que era o console mais fraco. Na música, disseram que a única música que importava era a clássica e que todo restante era uma falsidade ou uma espécie de música antimúsica. Todo preceito vira preconceito, já que a realidade não é normativa, mas descritiva. Aquele que dá preceitos a todas as coisas, cria preconceito sobre todas as coisas. A norma pode ser tudo, mas se tem uma coisa que define toda norma não é a sua naturalidade, mas sim a sua inaturalidade. O problema da normatividade é nunca ser normal, o problema da normatividade é ser antinatural.


    Se buscarmos nacionalmente, no Brasil, fala-se de Nelson Rodrigues. E o "maior reacionário" não era um santinho e sim um cara que mostrava sistematicamente os erros dos paladinos da moral. Só que o que mais se vê são paladinos da moral defendendo Nelson como se o Nelson fosse um deles. Na verdade, Nelson Rodrigues era contra eles. Nelson Rodrigues dizia: "atrás de todo paladino da moral, vive um canalha". Até quando vamos errar tanto? Até quando nosso juízo será o ritual e não o ideal? Até quando teremos aquilo que nos disseram, mas não aquilo que era aquilo ou a pessoa que era a pessoa? Acho que se eu pudesse definir tudo isso que escrevi numa única frase, sintetizando toda essa série de convenientes contradições que pega cada desordenado e transforma num ordenado, essa única frase seria: 

- A ilusão conservadora é crer que houve conservadorismo.