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terça-feira, 13 de junho de 2023

Tautologia de Lázaro

Às vezes meu passado póstumo volta-me como que numa forma de revólver


Por vezes sonho dormir como num desejo náufrago


E por mais que eu queira quebrar os turbilhões agônicos que me acorrentam neste cadáver plástico


Tenho uma interior luminescência que me ata neste corpo pútrido


Ressuscitar, mais uma vez


Já que se vive enquanto morto, pode-se também ressuscitar-se enquanto morto, infinita e nauseabundamente


Como numa tautologia de Lázaro

domingo, 2 de outubro de 2022

Nas Entrelinhas

Olho-te a ir desesperançado, o tempo junto parece cada vez menor na medida paradoxal em que ele aumenta. Quanto mais ficamos ao lado, mais quero-te ao meu lado. Dez horas são-me agora efêmero prazer, quero-a em todo o momento, quero-lhe sempre. Passo o dia a viajar imaginativamente quando lhe terei de volta, minha consciência não participa de nada que eu faço - meu pensamento perde-se inteiramente em ti. Só consigo mentalizá-la em todo momento que passo, nada mais me é importante.


E quando te abraçar novamente, meu coração baterá mais forte que todos os corações do mundo. Quando beijá-la, terei a sensação beatífica prévia do paraíso. Tê-la é ter a imanentização paradisíaca a bater no meu peito. E, se um dia eu pudesse escolher o mundo, escolheria a ti, já que tu és meu mundo, inteiramente meu mundo.


Não posso esperar até o amanhã, não posso esperar um dia sequer, um segundo sequer, nem um milésimo sequer para tê-la como minha mulher. Eu só quero sentir a ti, só quero beijar a ti, só quero amar a ti, só quero desejar a ti, só quero abraçar a ti, só quero ver a ti. E quando me disserem que você é pouco para suprir todas as demandas que minha alma humana quer, responderei que me é de inteireza perfeita e suficiente. Tu és a omniabrangência que meu apaixonado coração precisa.


Nas entrelinhas, toda vez que te abraço sinto um pedacinho do céu. Nas entrelinhas, toda vez que você se afasta, encontro-me no inferno. Nas entrelinhas, ter-te ao meu lado e não poder beijá-la é como estar no purgatório privado da proximidade do amor divino que tanto se espera. Nas entrelinhas, estar perto de ti é como ser conduzido ao nirvana. Nas entrelinhas, vê-la sorrir é como olhar uma linda Lua cheia estrelada. Nas entrelinhas, ouvir a tua voz é como ver o Sol depois de achar que ele nunca voltaria. Nas entrelinhas, amá-la é ter certeza que o paraíso é realizável.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

A Caveira e a Borboleta



Havia uma caveira que estava numa antiga caverna. Essa caveira não via a luz do dia e nem menos se alegrava com o passar do tempo – talvez essa caveira nem mais sentisse o passar do tempo ou, melhor, não quisesse sentir que o tempo passava, já que o tempo carrega sempre sofrimento. A caveira era tão branca quanto a mais ausente coloração. Graças a isso, tudo lhe era indiferente e a coloração era sempre incolor. O Sol era-lhe tão cinza quanto a própria vida lhe era cinza.




Perto dessa caverna, havia uma borboleta preta. Borboleta preta pelo preto ser a união de todas as cores. Por ser a união de todas as cores, todas as sensações, tal como todas as cores, se sintetizavam numa única e a sua percepção era tão densa que muitas vezes lhe fazia sofrer ou tão grande que muitas vezes percebia sem perceber, já que percebia tão imensamente que era até mesmo incapaz de perceber o que percebia – tanta coisa gera um Big Bang dentro dessa borboleta, a qual ela deve “guardar” para simplesmente não explodir, mesmo que isso seja impossível.




Certo dia, essa borboleta estava imersa em um constante sofrimento. Essa borboleta era um paradoxo: por sentir demais, não mais sentia; por sentir tudo, a tudo se unia indiferentemente; por perceber longamente, o longo era tão longo que parecia nem existir. Como, então, poderia criatura tão singular existir? Alguém dirá que a borboleta era Buda, digo-lhes que ela era “mais do que Buda”. Essa borboleta então voou sem perceber, mas percebendo: sua vida é uma sucessão de emoções que passam com tantos estímulos que a própria percepção de estímulo se perde. Consciente e inconsciente não são distinguíveis em tal borboleta e o místico é-lhe condição eterna.




A caveira estava em sua caverna. Essa caveira era tal como o Mito da Caverna ou tal como Matrix: um ser que se libertou do sistema. Só que, mesmo liberta do sistema, nada poderia fazer: a sociedade, como um todo, manifestava-se contrária a ela e, portanto, toda expressão lhe era calada de forma imediata e como toda expressão dela fosse abjeta. A caveira, então, cansando-se do mundo, fechou-se em si mesma. Já que foi morta espiritualmente dentro da caverna pelos tolos que não quiseram ouvir a verdade, na caverna ficou em obediência ao sofrimento causado pelos tolos. Não mais andava, não mais ria, queria fugir de todo sentimento. Por tal condição, foi pouco a pouco tendo seus músculos reduzidos e, depois, tornou-se mais e mais cadavérica, até tornar-se plenamente caveira.




A borboleta sentia tudo. A caveira não mais sentia. Seres opostos, seres de natureza dialética e dialógica, seres que juntos são contraditórios. Se na vida há um fato observável: é que usualmente os opostos se anulam, mas também a sorte – ou seria a providência divina? – que os opostos possam se complementar. Só que isso só ocorre por milagre, já que em nossa sociedade – seja hoje, ontem ou amanhã – é feita numa luta de contrários que pela eternidade se eterniza.




A borboleta voava no escuro da caverna. Essa caverna era tão escura quanto a união de todas as cores da borboleta. A borboleta voou por horas e horas nessa caverna, então decidiu repousar. Pousou, então, na caveira. E a caveira não falou nada, mesmo que quisesse falar, já que havia desistido de sentir por ter sentido em demasia. Estranhamente, a caveira e a borboleta ficaram juntas, por vários e vários dias. Era uma companhia real, em perpétuo silêncio sentimental. Um diálogo mais íntimo se construía na intimidade do silêncio, já que existem diálogos que só o silêncio pode construir na intimidade de cada coração.




Em um dia, a borboleta começou uma metamorfose e essa metamorfose atingia a caveira calada em sua solitude. Parecia que se havia um casulo que ia cobrindo cada parte da caveira e, em cada parte, uma nova pele ia surgindo. Era o milagre da ressurreição, tão forte quanto o milagre sofrido por Cristo na cruz. Os músculos logo iam se criando, conectando-se aos ossos da caveira. Com o tempo, de forma mística e misteriosa, a caveira e a borboleta se tornaram um só. Agora, aquele que via a borboleta, também via a caveira. Agora, aquele que via a caveira, também via a borboleta. Um revelava o outro dentro de si, no entanto, um também escondia o outro dentro de si. Só resta perguntar: “como isso é possível?”. Com isso só há uma resposta: há coisas que nunca conseguiremos expressar, por maior que seja a nossa inteligência.




Finalmente algo místico ocorreu, aquele novo ser, meio caveira meio borboleta, meio yin e meio yang, saiu da caverna sorrindo num riso que poderia abarcar mais do que infinitos universos inteiros. Aquele ser se pôs a dançar por aí, de forma infinita, seja na amargura da chuva ou no clarão estonteante do Sol. Não importava mais se fazia Lua ou se fazia Sol ou qual era a estação do ano, em todo lugar se via aquele ser misterioso dançando para lá e para cá, contrariando todos aqueles que achavam aquele ser-milagre impossível.




Como não poderia deixar de ser, esse ser dançante levou a uma série de juízos imperfeitos que não abarcavam a sua concretude poética. Uns diziam que esse ser era diabólico e que gozava da cara de todos ao ficar dançando por aí. Outros, também ingênuos, disseram que esse ser dançante e místico dançava já que não sentia o sofrer e quando o peso do real se fizesse mais presente, esse ser deixaria de dançar e até mesmo deixaria de ser – ledo engano, mas o ressentimento humano é sempre compreensível. Alguns, de natureza científica, acharam que o melhor seria separar a borboleta da caveira e trazer os dois a sua devida natureza, já que a união de seres tão diferentes era de natureza inatural – engano eterno: o amor é sempre eterno e quando une, não se pode mais desunir, já que o ser que ama não mais é a parte, mas o todo que é novo e o todo que é o ser.




Engana-se aquele que crê que o ser dançarino dança sem sofrer e engana-se aquele que pensa que o ser dançarino só sofre e por isso dança. Não, não, não é nada disso. É tudo isso, mas, ao mesmo tempo, é mais do que tudo isso e está acima de tudo isso. Não era um ser qualquer, não era qualquer coisa, não era nem um ser e muito menos eram dois seres e nem deixava de ser um ser – se já é difícil expressar o possível, é mais impossível expressar o impossível. Poder-se-ia falar-se em trindade? Não, não era uma santíssima trindade, mas uma santíssima dualidade que acoplava duas personalidades sem contradizer: não havia critério hierárquico e nem alternância contraditória em dualidade de ser. Eram dois seres, mas não eram dois seres. Era cada um, mas cada um desse um era apenas um.




Só que neles havia uma música em sintonia, uma música que só os mais puros ouviriam – já que os mais puros seriam capazes de sentir. Essa música sintônica, essa música sintética, essa música que gerava ressonância de alma a ponto de fazer que duas almas fossem uma e/ou única, essa música que lhes fazia dançar para sempre “os tornavam loucos” ou “o tornava louco”: já que aqueles que não ouvem a música, sempre chamam de louco aquele que dança – engano de compreensão? Não, a compreensão é fraca, mas o que falta é o engano de convivência empática, o que falta é sentir e não compreender, já que o sentir supera a compreensão tal como o amor transcende a razão. Tal como já dizia: a palavra é menos que o pensamento e o pensamento é menos que a experiência.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Carta a Fada Azul

Enquanto vejo o Sol surgir após essa noite tardia. Busco conciliar a angústia que até agora dominou meu peito com o alvorecer da nova manhã. Só que depois de tanta escuridão, a claridade que me ficou desconhecida agora queima meus olhos. O calor que tanto esperei me queima e, após tanta melancolia meditabunda, pergunto-me se não morrerei pelos raios solares que ao meu peito invadem.


A paradoxidade do que sinto: buscar a luz, mas estar habituado a escuridão. Eu nasci do primeiro princípio, Deus mesmo, só que meu corpo recobriu-se de satânica canção. O que fazer agora que a obscuridade me evade e a claridade me queima? Conciliar o degosto com o gosto para que o bom gosto não mate toda toxina que carrego? Toxina essa que lentamente me mata, porém é o veneno a qual estou habituado.

O problema do tumor que carrego é que ele foi alimentado, muito bem alimentado, pela minha vida perversa. De perversidade em perversidade, corrompia-me a cada página. Meu caderno é cheio de rabiscos ininteligíveis. Meu braço é cheio de riscos que outrora sangravam. Machucava-me para que, no mínimo, sentisse qualquer coisa em vez de nada. O vazio, a privação, o niiliabsorto: tudo isso dói mais do que a sensação amena de parca felicidade.

Confesso que não sou feliz há oito anos. Só que nesses oito longo anos, tive momentos de felicidade em tempo raso. Só que nessa mesma rasura encontrei boêmia longevidade. Uma pena: agora só sobrou a dor. Sou como o Papa Gregório em "Vida de São Bento": "Estou, pois, avaliando o que sofro, avaliando o que perdi; e, enquanto considero o que perdi, pesa-me ainda mais o que suporto".

terça-feira, 12 de abril de 2022

Martelo de Rosas

Ele não é de forma alguma um martelo maquinal. Ele é um laborioso e artístico artesão a destruir com a arte os limites duma sociedade petrificada em ilusão. É Dionísio com rigorosidade de um Apolo revolto. Ele é um novo Lutero atualizado a contemporaneidade. E em teus olhos substanciosos de águia encontro um conforto místico que me distancia da pulsão de morte. Com seu tocar, o eterno e o temporal se encontram em dualidade harmônica, levando a sensação de que o trivial possa se encontrar com a equidistante beleza do arroubo poético.


Seus pregos são como rosas duma revolução com que ele demarca o novo tempo. É confuso e transcendente a forma com que ele marca cada tempo com a pregada duma rosa numa selva de concreto que se esqueceu da beleza de sua íntima natureza. Em tuas mãos sente-se ao mesmo tempo o cansaço para com o mundo e a capacidade de amor para com esse mesmo mundo. Em teus beijos encontro o retorno a aurora do passado juvenil a retornar no meu ser envelhecido, restaurando-me o conforto maternal uterino e a percepção de que ainda se vale a pena viver mesmo que só mais um pouco.

No teu abraço todo restante se dissipa, já que já não me importa mais nada que com ele não esteja. No teu dormir vejo a humanidade que um dia abandonei e me esqueci. É como se houvesse volta numa revolta que se apaixona pelo novo ao mesmo tempo que confere gosto num mundo antigo que se desgosta. Ele é o martelo do paradoxo, o marteleiro das rosas. E em cada prego rosado encontro o amor abandonado dum desejo juvenil de outrora.

Sem braço


Parte agora, alma de minha alma. Parte agora, parte de meu corpo. Fui amputado. E finalmente entendi o velho sonho de que fiquei sem um braço. Saudade agora, saudade sempiterna. Parte de minha alma se despede, sem tempo para que meu espírito volte a ser completo. Há diferença entre estar com e torna-se. Forma tua tomei, e agora sua forma se parte. Sem tua forma, fico disformado. É como se eu fosse até mesmo deformado. Nenhuma oração a quem quer que seja pode unificar a alma de minha alma. Amigo perene, em tua falta sinto meu peito amargo. É como se até agora a vida fosse inteiramente doce e agora tenho que me contentar com o amargo. Em um instante, em um mísero milésimo, em saudade eterna minha alma se embate. Como é longevo o tempo minímo dessa triste saudade. Já que o tempo do coração nunca é o mesmo tempo exato do maquinal relógio. O coração é de diferente engrenagem, de natureza subjetiva e demasiado sentimental. Até ontem me sentia homem póstumo, hoje me sinto mais que reacionário. O tempo novo não me é mais novo, e só o velho meu coração agrada. Adeus amigo meu, adeus meu braço.

sábado, 2 de abril de 2022

O Trágico Fulminante #2 - As Garotas Mais Bonitas da Escola




Conte-me mentiras. Diga-me como esconde a sua consistência líquida e superficial por trás de um belo sorriso e um corpo gostoso. Fale-me sobre sua vida niilista que se resume a uma mera relação insertiva e receptiva de dois órgãos um tanto banais. As revistas de moda não escondem, sua vida mental é como a de um inseto que morrerá após um coito infernal. Como se o que bastasse fosse o pouco do pouco do sexo após sexo e mais sexo, seu único élan existencial que mantém a sua vida vazia de conteudismo enquanto tal.

As garotas mais bonitas da escola são como lindas flores de plástico. Belas, cheirosas, eternamente petrificadas como uma estátua humana após o olhar hipnótico de uma sociedade medusada num vácuo existencial. Tão ricas em exterioridades e tão mortas em interioridades. Incapazes de um assunto que toque as faculdades superiores que não pertencem ao corpo, mas a alma. Ordenadas pelas desordenadas duma sociedade antiaristocrática, enternecidas pelo ode ao mediocracismo dum materialismo sem igual. Num Brasil degenerado em que introspecção virou ofensa pessoal.

Pior do que não entender, é viver para nunca querer entender. A troca da picanha pela maestria do palito. A inversão referencial como meta diabólica de uma revolução ultra dionisíaca. O sexo em vez do amor cria o antisexo, a pornografia mata o erotismo como se matasse uma formiga. É ironia, mas o auge da criação se pôs a andar de quatro. Tornou-se um mero cachorro idealizador do cheiramento de nádegas. A civilização, do cume da sua sapiência, entrou em mantra hipnótico e anticivilizatório em ode pela dança da chuva do acasalamento.

Revele-me como você se despiu de toda humanidade que lhe restou apenas para um momento que se esqueceu. Implore-me para que eu faça parte da quantificação do antivalor. Levante o meu pau, já que sou o animal agonizante. Mas a minha alma você não leva, já que ela é por excelência espiritualizante. E depois de todos os fatos vãos, vá embora por um prazer debilitante do mundanismo ocidental antiocidentalizante.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Há um buraco no meu peito!

Há um buraco no meu peito amargo. Há um buraco que ninguém mais vê. Ninguém mais vê, ninguém nunca viu absolutamente nada. Ando a sangrar a cada dia, ando padecendo a cada instante. Em cada camiseta, há um sangue invisível escorrendo do meu peito. Eu tenho fôlego, folego o suficiente para caminhar sem coração. Sou esperto o suficiente para dizer que em palavras sutis, vejo conjurações. Conjurações diabólicas do inferno que são os outros. Tudo que quero hoje é chorar, tudo que quero hoje é esquecer até da mais feliz reminiscência, já que mesmo nelas me mergulho em ressentimento.


Eu não tenho esperança. O futuro não é incerto, ele é trágico. De onde vem tal certeza autovitimada? De onde vem a loucura que me abarca. Sinto meu nariz sangrar enquanto não sangra. Sinto meus olhos chorarem enquanto não choram. Sinto minha boca gritar enquanto não grita. Pessoalmente, pareço normal. Tão normal quanto qualquer pessoa normal pode ser. Só que meu grito silencioso só é silencioso externamente. Internamente ele é tão audível quanto real, não só real, é tão real quanto desesperador. Quem pode livrar o moderno átomo da consciência atormentada? É como se vermes invisíveis crescessem em minha cabeça anuviada, mexendo-se interminavelmente em minha consciência precária.

Eu vi o reflexo do espelho. Eu o vi. Ninguém mais o viu, só eu o vi, só eu ouvi, só eu senti. Ele gritava. Gritava enquanto saia sangue de seus olhos, de sua boca e nariz. Eu tive que fugir do banheiro em que estava o seu abjeto ser, para fugir do reflexo. Tão logo fugia, igualmente, da imagem da câmera frontal de meu celular. Tão logo fugia de cada encontro desencontrado. Minha boca secou, secou depois de imensamente gritar em gritos inaudíveis. Isso não é biológico, não é natural gritar sem gritar e depois cansar de tanto não gritar. Não é natural, não é normal, é sumamente antinatural e sobrenatural, portanto nada mais é mais estranho e mais humano.

As ideações suicidas são pensamentos ou projeções imagéticas? As ideações suicidas são pensamentos ou previsões de um futuro não tão incerto? O que eu quero é uma arma em minha boca seca, separando cada pedaço de meu cérebro num equidistante eterno. Eu quero ver, perto de uma estação de trem, um trem a passar na caminha cabeça, tal como se passasse num monótono trilho velho, livrando-lhe do que há de torpe. Eu quero morrer e mesmo assim ver todas as faces horrorizadas dessa cidade desalmada, conquanto que abundante em almas. Almas não mais conscientes, mas doentiamente alienadas.

Se tudo que vejo são demônios, é natural que eu igualmente o seja. Se o fim do homem é a felicidade, quão corrupto sou eu e quão corrupta é a nossa sociedade. Eu não posso mais beber para esquecer, já que o anjo da morte está sempre ao meu lado. Não posso fumar, nem a tranquilidade tóxica ao meu peito invade. Pelo contrário, sou bomba atômica em perene externalidade. É como se a tensão gravitacional ao meu ser esmagasse. É como se eu já soubesse: há mais coisas entre o Inferno e a Terra que a nossa vã esperança pode conceber. É impossível não falar tamanha heresia que no meu peito vazio e niilista se cria: preferível é a sorte do aborto, já que o destino do homem é caminhar em desalegria.

domingo, 4 de julho de 2021

Havia um Gato Morto no Meio do Caminho



    Eu passeava tranquilamente com meu cachorro pela praça, parei e vi um gato morto no meio do caminho. Assustei-me e olhei-o fixamente. O tempo transcorreu, cinco, dez ou quinze minutos. Fui embora e mantive o gato morto na minha mente. O gato morto virou minha flor da obsessão.


    Eu era um gato que andava pelo meio da floresta. Vi um humano morto deitado no chão. Parei, olhei o humano fixamente e fiquei a lamber meu pelo tediosamente. Alonguei-me, enrolei-me e botei-me a dormir perto do humano morto que estava num dormir perene.

    Havia um gato morto no meio do caminho. Eu era um homem morto no meio do caminho. Eu andava com meu cachorro morto no meio do caminho. Eu era uma rua morta no meio do caminho. Havia uma rua meio morta no meio do caminho morto. Eu era rua morta no meio do caminho que partia pro abismo. Eu era a morte que morre no caminho morto.

    Nos dias posteriores, o gato morto ainda ficou por lá. Passava e olhava-o todos os dias, era o seu mais fidedigno espectador. Via o gato na praça, na mente e no sonhar. Dava-me sempre por dizer: "há um gato morto no meio do caminho". Havia em mim uma nostalgia trágica. O gato morto ficava a se decompor e eu a sonhar com o gato morto. Era o gato morto minha ideia fixa e obtusa.

    Um dia fui para passear, encontrar a tranquilidade e trazer paz pro espírito. Vi e não pude acreditar: eu estava morto no meio do caminho. Vi-me enforcado na floresta no meio do caminho. Eu estava morto no meio do caminho. Olhava-me a decompor com um divertido horror. Horroriza-me e fixava-me em minha figura morta no meio do caminho. Só podia pensar: "Eu estou morto no meio do caminho morto".

    Nos outros dias, o humano morto permaneceu lá. Descompôs-se serenamente. Teria sido ele assassinado por outro humano? Seria ele um suicida? Teria sido envenenado? Morreu vagarosamente sem nem se dar conta? Ensandeceu pacificamente e findou seus dias penumbrosos? Não sei, o humano estava morto e nada poderia ser falado. Só se sabia que era a morte, trágica e determinante. Eu era um gato, um inocente gato andando pela praça. Ninguém suspeitaria de minha inocência felina. Caçava um rato, caçava um pássaro. Atormentava aqueles que por mim se fixavam.

    Em meu sonho o gato era grande, maior que um carro, maior que um elefante. Seus ossos faziam-se mais presentes. Ele andava como um zumbi dócil por meio da praça. Matando os pássaros pelo meio do caminho, devorando-os graciosa e despreocupadamente.

    Eu era um gato grande no meio do caminho. Matava pombo e rato no meio do caminho. Um dia arrefeci no meio do caminho. A chuva, o frio e a fome ficaram comigo no meio do caminho. Eu morri no meio do caminho. Eu morri no meio do caminho e ninguém viu o meu finar. A solidão morreu ao meu lado no meio do caminho. Por que ninguém viu ao menos o meu esfalecer? Nem em minha morte sou digno de se ver. Eu sou o gato morto no meio do caminho: passam, veem, ignoram-me e partem. Preencho-me de vazio no meio do caminho.

    Em meu sonho o humano era zumbi. Ele botava fogo em gravetos recolhidos e alimentava-me com peixes frescos e quentes. Em sua pele decomposta insetos andavam por toda parte, numa hora saindo e noutra entrando. O humano nunca chegava a falar. Era um humano taciturno e pacífico no meio do caminho. Vivia enquanto morto no meio do caminho.

    Por vezes sonhava que eu ia a praça e via-me morto a me decompor. Olhava-me indiferentemente num prazer tedioso. O que me assustava não era minha figura morta: era a ideia do tédio e pequenez da morte. Eu era tal como o gato: um morto banal a preencher o cenário.

    Eu era uma pessoa viva que era morta e que morreu sem perceber no meio do caminho. O gato que era vivo. Achei-o morto por negação. Eu era um homem morto no meio do caminho. Quando dei por mim, eu já não era homem, eu já não era morto, eu já não era nada.

    Havia um gato morto em meu coração. Ele crescia vagarosamente em meio a turbulência de meu coração. O gato arranhava, miava e ronronava. Percebi-o tardiamente. Gato morto, morto, morto. Morto dentro de mim. Eu morto. Havia um gato morto dentro dum homem morto. Maldito gato morto que era eu no meio de meu caminho. Gato morto, homem morto, caminho morto. Havia um gato morto no meio do caminho. Havia um homem morto dentro do gato morto. Havia um gato morto que era um homem que vivia vivo enquanto morto. Maldito gato morto no meio do caminho. Maldita figura obsessiva que turva o meu caminho turvo.

    Era um gato morto a olhar um humano morto. Era um humano morto a olhar um gato morto. Era um meio caminho morto a olhar o passado vivo e o futuro sobrevivo. Era um morto vivo a olhar o vivo morto. Havia o morto dentro do vivo que vivia como morto. Havia o morto que vivia sem perceber que ainda vivia. Havia o que havia sem saber que se havia.

    Havia um gato morto no meio do caminho. Eu nunca me esquecerei disso. Eu era o gato morto no meio do caminho. Eu era o gato, eu era o homem, eu era o morto e o que também vivia.