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quarta-feira, 16 de março de 2022

Acabo de ler "As Crônicas de Nárnia Vol. 1: O Sobrinho do Mago" de C. S. Lewis

 



"— Riam sem temor, criaturas. Agora, que perderam a mudez e ganharam o espírito, não são obrigados a manter sempre a gravidade. Pois também o humor, e não só a justiça, mora na palavra" (Aslam).
Apesar da aparente simplicidade, o livro é bastante complexo e, como não haveria deixar de ser, esconde uma "mensagem cristã criptografada". O livro tem uma lição moral que quer conduzir o jovem leitor - ou o "velho leitor", como em meu caso - para um entendimento cristão de mundo.
Por um lado, o livro apresenta um conflito quase que cósmico entre uma figura de uma rainha de gelo (Jadis) contra um Leão bem próximo ao fogo (Aslam). Jadis representa não só a figura de Satã, mas bem simboliza a idolatria e o Estado-Deus. Jadis é tirânica e se julga além de qualquer coisa "fortuita" como as emoções e ambições humanas. Já Aslam crê na liberdade, não por acaso uma de suas frases, citada bem no começo, fala sobre o riso e a liberdade de rir. Aslam não se impõe, mesmo sendo imponente, pois crê na liberdade. A salvação traz não somente o paraíso da ausência de escassez, também traz o paraíso do sorriso e do riso. Aslam, tal como Verbo Divino (Jesus Cristo), produz um mundo pelo seu canto majestoso ("no princípio era o verbo", já dizia a Bíblia). Já Jadis representa a gravidade, onde toda ação tem um preço e tudo se correlaciona a um poder gravitacional - lógica da escassez, diferente do paraíso.

André, tio do protagonista, mexe com algo que não sabe e acaba por trazer o mal para a Terra. Digory e Polly, nossas duas crianças, em sua pureza, vão acabar por impedir o mal. As ambições de André, o feiticeiro, acabam dando errado e ele acaba por descobrir que o mal é sempre ligado numa lógica dura, numa lógica de coração de pedra em que a ambição do mais forte recai sobre o mais fraco e o mais fraco se curva - diferentemente do bem, movimento pela graça, que ama todas as criaturas em igualdade e as ela quer bem, não por algo prévio e sim pelo amor. De tal modo, Aslam (figura cristã) é o amor e Jadis (figura satânica) quer só o próprio benefício, abusando dos mais fracos. Simples, mas complexo.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Acabo de (re)ler "Há um outro mundo" de André Frossard

 



Ser cristão, no mais íntimo e profundo sentido do termo, não é crer meramente que o mundo se afastou de Deus pelo pecado. É crer, no mais angustiante desespero desconsolador, que tudo será salvo. É ver o mundo em ruínas, não só permanecendo de pé, mas sorrindo numa densa chuva sem fim, é preciso sorrir até no dilúvio, já que Deus é bom. Não abalado e niilificado com a presente derrota, e sim com a íntima certeza que esse mundo de dor e sofrimento, que esse vale de lágrimas, está em estado gestacional e o que vem depois é mais do que o progresso, é o paraíso. Lá, após toda dor, tudo fará um sentido e se terá uma conexão tão grandiosa, que tudo será perdoado. Mais do que perdoado, tudo será salvo.


Embora hoje não se possa dizer o mesmo. Embora hoje a contradição e a escravidão do ser sejam a norma. Embora hoje não há como dizer que o "Senhor é meu Pastor", já que hoje só se pode dizer: "Por que me abandonaste?". Todo esse sofrimento sem fim, esse mundo líquido de areia movediça sempiterna, esse desconsolo que arrasta o sofrimento em um constante holocausto, em constante desemprego, fome e miséria. É preciso crer num novo ser, ser esse que não é o cidadão perfeito duma utópica sociedade comunista ou duma sociedade conduzida por uma suspeita mão invisível. É preciso crer num novo Céu e numa nova Terra. Num Céu que se faz Terra. Numa Terra que nunca se desconectou e nem mais se desconectará do Céu. Mesmo que agora só haja o império da vaidade. Mesmo que agora só haja o retorno ao pó.


O mundo leva a crer que Deus não existe. O próprio afastamento de Deus o leva. Tudo leva a crer na escravidão da Serperte. O próprio enigma da Serpente é prometer o que já se tem, para se tirar o que se tinha. Só que um dia haverá um mundo, um mundo que não é desse mundo, só que nesse mundo se revela e se faz. Mesmo com tudo isso, mesmo com perene depressão, mesmo com hipotetéticos paraísos revolucionários ou reacionários. Devemos seguir em frente com esse paraíso que é gerado, a cada dia, em direção ao Reino Celeste. Mesmo que agora não o haja, mesmo com a razão condenando qualquer hipótese do milagre nesse vale de lágrimas.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Diários Cadavéricos #3 - Espírito Celeste

 "Não obstante, eles adoram, em vez d'Ele, divindades que nada podem criar, posto que elas mesmas foram criadas. E não podem prejudicar nem beneficiar a si mesmas, e não dispõem da morte, nem da vida, nem da ressurreição"

(Surata 25:3)


Se eu morresse hoje, estaria completamente insatisfeito. É difícil, meu Deus, não cair na idolatria quando o peso do mundo bate forte. E, se assim o é, é pelo jogo gravitacional das relações humanas e meu parco caráter. Sei que sou moralmente fraco, e minha performace social a isso indica: não sou o que sou, sou a negação do que deveria ser. Só que tão grandes são as vozes sociais que minha mente de Ti distoa por causa de vários gritos.


"15. Pergunta-lhes: Que é preferível: isto, ou o Jardim da Eternidade que tem sido prometido aos devotos como recompensa e destino,"
"16. De onde obterão tudo quanto anelarem, e em que morarão eternamente, porque é uma promessa inexorável do teu Senhor?"
(Surata 25:15-16)

Deus, sou um traidor, mas sei que és glorioso e misericordioso. Só que a sociedade me traz um jugo idólatra, já que a ela sou temente. O sofrimento psíquico se condensa e condena junto com o inferno vindouro, já que o caminho do idólatra nada mais é que o desvio da senda reta. Por temer tanto a sociedade, por ser com ela um covarde, sigo o caminho da vã vanidade. A ela atribuo mais do que é capaz, faço por temor e complacência, mas nada dela vem de modo autogerado, já que só Deus é capaz de criar. Então, pergunto-me: por que temo esse deus de barro e não me aconchego em Ti, verdadeiro Deus?

"[7]Zain. Nestes dias de males e vida errante, recorda-se Jerusalém das delícias dos tempos idos. Agora que seu povo sucumbiu sob os golpes do inimigo e ninguém vem socorrê-la! Olham-na seus inimigos, e zombam de sua devastação."
"[8]Het. Graves foram os pecados de Jerusalém: ela ficou uma imundície. Quem a honrava, agora a despreza porque lhe viram a nudez. E ela geme e esconde o rosto."
(Lamentações 1,7-8)

Lamento agora a vanglória de outrora. Meu pensamento perdeu retitude e atitude. Conforme esmorecia, ajuntava-me a tragédia de minha comédia. A Tua lógica não é dos homens e a lógica dos homens é torta. A Tua senda é reta, mas a senda dos homens engendra tragédias com pratos cheios de aparentes comédias. Se assim é, sou tolo. Guia-me, Alá, a Tua senda reta. Já que sofro mais por ter te esquecido do que por ter te seguido. Se tivesse te seguido, não me surpreenderia com os ventos mutantes que mudam os rumos dos homens e nem edificaria morada em areia movediça. Como assim fiz, vi meu império de areia ruir. Já que o homem abandona e só o Senhor cuida do homem abandonado.

"[18]Sade. O Senhor é justo, porque fui rebelde à sua voz. Escutai todos vós, ó povos, e vede a minha dor. Minhas virgens e meus jovens foram conduzidos para o exílio."
"[19]Cof. Implorei a meus amigos e eles me iludiram. Meus sacerdotes e os anciãos pereceram na cidade enquanto buscavam alimento para revigorar as forças."
"[20]Res. Vede, Senhor, a minha angústia! Tremem minhas entranhas, e meu coração está perturbado por causa de minhas revoltas. De fora mata a espada, de dentro alastra a morte."
(Lamentações 1,18-20)

Deus, Tu bens sabes, a glória ensorbece e a humildade pouco apetece. Não que saiba de modo vivencial, mas sabe pela debilidade que o homem se encontra. O homem, Vossa criatura, sofre por a Ti não te ver mais do que deve. E não vê porquê não é digno. E eu de nada sou útil, já que me desviei de Ti e sou tão impuro quanto aqueles que mal acuso. Decepciono-me com o óbvio: tal como me movo pelo vento, em passo insólito, abrigo-me no sofrimento pelo mundo vão que me decepcionou e assim necessariamente seria. Minha burrice, meu Deus, perdoai. Dai-me um tanto de Sua luz, renovai-me com Teu Espírito Celeste.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Diários Cadavéricos #2 - Soberba

Diários Cadavéricos - Soberba


"Indubitavelmente Deus conhece tanto o que ocultam, como o que manifestam. Ele não aprecia os ensoberbecidos" (Surata 16:23)


Sou absurdamente soberbo, tão soberbo quanto medíocre. Minha obra é um peido comparado aos que me precederam e insisto em permanecer ridículo por causa de meu alto ego. Faz muito tempo que não escrevo com seriedade e ocupo-me com vanidades. Deus, pesa-me a minha falta de caráter e a impossibilidade de agir por preguiça e humor flutuante. Só que eu escondo: não sou feliz com o que escrevo, já que o que escrevo é precário. Contento-me, então, com escrever mal e mediocremente.


Se eu morresse hoje, nada de feliz eu teria. Sentir-me-ia incompleto, com jeito de mal-acabado. Quase tudo que quero fazer, não fiz. Como posso me sentir feliz? Falta-me práxis. Só que tudo é tão difícil e mutável que parece que a imutabilidade divina Daquele que É não existe. Como enxergar um Deus imutável numa mundanidade líquida? Como ver através do reino das aparências mutáveis enxergando a Ordem Oculta atrás disso? Parece que há mais abstração nos assuntos teológicos que uma ordem invisível que a tudo transcende. E, se assim escrevo, escrevo-lhe por minha tendência agnóstica. Como não confio em minha razão, de Ti igualmente desconfio, já que não posso prová-lo, seja por burrice, seja por incapacidade de alma ou de vivência.


"Dessa forma, por Zeus, teremos de admitir que, assim como as outras artes se aperfeiçoaram a ponto de fazerem figura feia os artesãos antigos, em comparação com os de agora: diremos também que vossa arte particular, a dos sofistas, progrediu, e que os antigos, em confronto convosco, são principiantes em matéria de sabedoria?" (Hipias Maior - Sócrates).


Quando eu me tornei tão arrogante e esquivo? Quando eu passei para as sombras, fugindo de minhas obrigações e lutando para omitir meus movimentos preguiçosos e covardes? 


Minha percepção soberba volta-se contra Ti. É como ver uma obra caótica sem Criador. E eu mesmo sou caótico, seja em questão de gênero ou em filosofia. O sofrimento é inalterável num mundo alterável e alteridade sem fim quase sempre implica em sofrimento. Escrevo em lamúrias, já que sou inconstante e constantemente melancólico.


"Ela chora pela noite adentro, lágrimas lhe inundam as faces, ninguém mais a consola de quantos a amavam. Seus amigos todos a traíram, e se tornaram seus inimigos"
Lamentações 1,2
"E lançamos, no Livro, um vaticínio aos israelitas: causareis corrupção duas vezes na terra e vos tornareis muito arrogantes"
Surata 17:4


A natureza do pensamento dos antigos é essa: toda vez que uma parcialidade redutora chegava ao pensamento, diziam que Deus é maior. Assim evitavam qualquer idiotice redutor. No caso, Israel chora pelo seu povo oprimido e abandonado, o que prova a volatilidade traidora dos interesses humanos. Como homem, só posso ser traidor e traído. Ora reclamo a Deus o ataque aos que me traíram, ora peço a Deus o perdão de minhas traições, já que suporto, como hipócrita, mais minhas traições do que as de outrem. Embora, perante Deus, sejam iguais em iniquidade. E, perante minha personalidade, tenha natureza de peso assimétrico. Tornei-me arrogante e indolente com a conquista adquirida, essa é a arrogância humana.


A relação que devo ter contigo é de abertura, já que Ti não é abarcado por minha redutibilidade e adquiro-Te reduzindo-O. Se assim o é, é por minha deformidade humana. Só que todo avanço pode, em minha pessoa, virar regresso com a redução de Ti a parte recebida.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Novas Aquisições





Novas aquisições:

    A "Bíblia do Peregrino" e "Didaqué".
    A "Bíblia do Peregrino" é uma Bíblia de tradução de enfoque poético, mas não se engane pela beleza do livro: ele também apresenta uma série de notas que enriquecem a leitura do livro, e também preenchem boa parte dele - o que é ótimo: a Bíblia é um livro absurdamente difícil de ler e requer anos e anos de erudição para se ter uma compreensão parca dela. Embora muitos incautos pensem que podem interpretar a Bíblia literalmente - o que seria analfabetismo metodológico puro e simples.

    Já o "Didaqué" apresenta tradução bilíngue: está em grego e português. É um livro de suma importância e era utilizado pelos primeiros cristãos para instrução. Apesar do pouco tamanho, meras 49 páginas, ao se engane: o livro é bastante profundo, além do valor propriamente histórico.

sábado, 16 de outubro de 2021

Acabo de ler "Sobre o Desapego" do Mestre Eckhart.




Acabo de ler "Sobre o Desapego" do Mestre Eckhart.

Esse livro só ressalta um ponto teológico que já tinha em mente há algum tempo: Fé é Desordem, ao menos inicialmente.

O mais incrível desse livro é que ele faz o seu discurso teológico elencando não a humildade como principal virtude, mas o desapego. O autor realmente defende o desapego acima da humildade e até mesmo do amor. A forma com que faz isso é genial e brilhante.

Se Deus é infinito e absoluto, nada pode retê-le. Se nada pode retê-lo, e o homem tem como objetivo principal de vida reter o seu Criador, então ele deve adquirir partículas de Deus. Só que aí vem o problema: se Deus é infinito, se Deus é tudo, tal abertura não é uma abertura que se faça momentaneamente: aquele que quer abraçar a Deus, deve abrir-se infinitamente. Daí vem a natureza desordenada do estudo teológico: aquele que quer a Deus, deve buscá-lo eternamente. O estudo teológico abarca o absoluto por querer abarcar a tudo e só pode abarcar a tudo aquele que se abre a tudo.

Para o estudo teológico, não há contingencialidade adequável, já que o ser deve se abrir ao ser que lhe que é inabarcável. É próprio do diálogo com Deus ser o diálogo com o Outro, já que Deus é o Outro em absoluto: a convivência com Deus é, em si, abertura permanente para esse Outro que é o Outro absolutamente. É incrível que tal percepção encontrava-se na obra de Gustavo Corção ("A Descoberta do Outro").

Sei que alguém dirá: "como a fé é desordem se o fim da fé é a ordenação da alma?". A alma ordena-se na medida em que abarca o infinito, logo o primeiro impulso da fé não é o universo já inteligível, mas aquilo que se deve inteligibilizar. O que marca a fé é a desestruturação do pensamento pela abertura epistêmica que, em primeiro lugar, causa desordem e só depois causa uma adequação ordenadora que deixa o ser, enfim, aliviado momentaneamente. É o desapego, seja a nível doutrinal ou em qualquer outra instância, que abre o ser ao absoluto. Fé é desordem e só a contínua abertura desordenada pode ordenar o homem.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Acabo de ler "Agnosticismo" de Laurence B. Brown




    Acabo de ler "Agnosticismo" de Laurence B. Brown.


    O agnosticismo era para ser uma metodologia que tenta verificar a verdade ou inverdade presente na religião. Se o agnosticismo configura ou leva a uma covardia intelectual que se recusa a encontrar uma solução para o drama religioso, isso é uma questão que precisa ser avaliada com mais calma.


    A questão da verdade, na esfera da religião, é um terreno turvo e turbulento. Sendo transcendental, deve estar acima e imaculado. A transcendência é ascendência do espírito, mas como podemos saber se nossa crença é, de fato, real? Se Deus é puro e não erra, como pode nos passar algo que não é crível? Se o paraíso depende de uma crença, como poderíamos crer em algo pouco razoável? Se a crença não é razoável, a própria fundamentação escatológica está inteiramente errada ou é injusta - não se pode condenar alguém por errar num debate sem fontes cabíveis e estruturação intelectual certa. Essas questões sempre vão e voltam na questão teológica, questões difíceis de responder e que carregam uma eterna tensão. O pensamento religioso não pode se dar o luxo de errar sem se tornar menos religioso. 


    O autor fala de diferentes tipos de vivência de fé entre cristãos:

    "Adeptos doutrinários podem ser divididos em subcategorias funcionais com base nisso. Por exemplo, os cristãos teístas (ortodoxos) que concebem que concebem que a realidade de Deus pode ser provada, os cristãos gnósticos que concebem o conhecimento da verdade de Deus como reservado à elite espiritual, e os cristãos agnósticos, que mantém a fé ao mesmo tempo em que admitem a incapacidade de provar a realidade de Deus. A diferença distinguível entre esses vários subgrupos não reside na presença na fé, mas nas tentativas de justificá-la"

    A forma como ele coloca três alternativas que são quase sempre resumidas em duas: teístas e gnósticos. Apresentar a opção de um cristianismo agnóstico enriquece o debate na medida em que tira a sua imprecisão.


    Esse livro demonstra que o drama religioso tem múltiplas vias, todas difíceis e com alta tensão para o vivenciador da fé. Algumas mais sentimentais, outras mais racionais e outras menos seguras de si. Teologia não é pra criança.

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Acabo de ler "A Cruz Azul" de Chesterton


 "— Você atacou a razão — disse o Padre Brown. — Isso é má teologia"


    Acabo de ler "A Cruz Azul". Esse é o primeiro conto em que o Sherlock Holmes católico, o Padre Brown, aparece. Ele descobre tudo mais pela introspecção sobre a natureza humana do que por uma metodologia científica - apesar de não negá-la. 


    Na teologia cristã, até a onipotência divina obedece a lógica. E isso se dá por uma razão precisa: a esperança superará o desespero por causa da esperança ser um fim supremo e a desesperança ser só a privação da esperança. A aparente desordem será um dia compreendida e quem crê em Deus crê na ordem, mesmo que esteja na mais profunda noite do espírito, na mais profunda depressão: um dia tudo há de ser salvo. E a salvação da criação é o mais profundo desejo cristão. É por isso que tudo nesse conto não parece ter sentido até chegar ao final. E no final tudo é salvo, tudo é ordenado, por uma boa razão: o fim da humanidade é retornar ao Jardim do Éden, para viver o paraíso da perfeita plenitude.


    Poderia dizer muitas coisas, mas seria privar esse magnânimo conto de falar por si só:


"— Ah! Sim, esses infiéis modernos apelam para a sua razão; mas quem seria capaz de olhar para aqueles milhares de mundos e não sentir que podem existir universos maravilhosos acima de nós, onde a razão é completamente irracional?"


"— Não — disse o outro padre —, a razão é sempre racional, mesmo no último limbo, na fronteira perdida das coisas. Eu sei que as pessoas acusam a Igreja de desvalorizar a razão, mas na verdade é o contrário. Sozinha na Terra, a Igreja torna a razão realmente suprema. Sozinha na Terra, a Igreja afirma que o próprio Deus é limitado pela razão." 


"O outro padre ergueu a face austera para o céu cintilante e disse: — Além disso, quem sabe se naquele universo infinito?..."


"— Infinito apenas fisicamente — disse o pequenino padre, voltando-se com energia energia em seu banco —, não infinito no senso de escapar das leis da verdade"


    O que há de se afirmar é que: o ser é. O sofrimento terá fim. É isso que aprendi com esse conto. O fim é a ordem suprema. O mal acabará. Essa é a razão da esperança e do caminhar. Essa é a fé cristã: o fim de tudo é a felicidade.

sábado, 14 de agosto de 2021

A fim de ler artigos católicos?


     Sou o tipo de idiota que fica feliz com pequenas coisas. E gostaria de dizer que acabo de conhecer um site muito interessante cheio de artigos católicos para se baixar e se inteirar pela fé católica. Isso mesmo, você poderá conhecer um bom site tomista e baixar artigos de graça:

http://filosofante.org/filosofante/

    Eu já estou fazendo o meu compilado de artigos para eu ler nas horas vagas. O autor deles é o mesmo que escreveu sobre a teologia da inquisição de Tomás de Aquino.

Acabo de ler "O Carisma de São Domingos"

 


"Sua cela é o mundo, e o oceano é o seu claustro"

Mateus de Paris


    Acabo de ler "O Carisma de São Domingos" do Frei M. D. Chenu OP


    Ler um livro - ou, nesse contexto, um livreto - que trata da história da Igreja e a forma como que ela se organiza ou se organizou é sempre um trabalho grato. Já que não ensina tão apenas uma erudição vácua, mas uma possibilidade real de aprendizagem não só histórica, como também evangélica.


    A imagem de Igreja meramente estática é perfeita e cabível para quem não conhece a sua história. Sim, a Igreja é sempre estática, mas também é sempre nova. Ela é algo sempre velha e sempre nova. Já que o Cristo é o mesmo, mas o homem que caminha com ele é sempre outro. Escrevi em uma de minhas anotações acerca desse pequeno livreto que: tradição é caminhada. E creio que essa frase possa dizer que tradição é transmissão e até mesmo expressão. A tradição não é uma mera expressão ritualística, ela é também uma ideia que pode assumir até mesmo outra forma de ritual. Visto que a essência da tradição é a ideia. E o contato e relação da ideia com o mundo é sempre renovado com uma nova forma de expressão.


    Chesterton define o movimento dos frades como algo revolucionário na sua biografia sobre Santo Tomás de Aquino. O antigo religioso construía o seu mosteiro longe do povo para viver em intensidade evangélica e vivia numa rígida hierarquia. O novo religioso viverá ao lado do povo para convertê-lo, o novo religioso será dinâmico e menos hierárquico. O novo religioso acrescentará o voto de pobreza ao lado do voto de castidade e obediência. Coisa que será encarada como uma forma de heresia e tentará até se proibir, mas logo se foi aceita essa "revolução religiosa". Chesterton diz graciosamente que se tornar um frade era como se anunciar comunista - ao menos para efeito cômico, alegórico e poético. Só que tal piada tem um fundo de verdade amplo e histórico. Os frades eram reformadores sensatos e compreenderam a necessidade histórica. São Francisco e São Domingos são sempre exemplos clássicos por sua eternidade e beleza. Sua "revolução" é eterna, já que é assentada em Cristo Rei.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Terminei de ler "Fé Cristã, Razão e Secularismo: uma síntese do pensamento de Joseph Ratzinger"

    Terminei de ler "Fé Cristã, Razão e Secularismo: uma síntese do pensamento de Joseph Ratzinger" escrito por Heber Ramos Bertuci.


    A teologia que é o discurso sobre o divino é algo que sempre houve, houve até mesmo antes do surgimento do cristianismo, mas que é característica distinta da religião cristã devido a sua qualidade, quantidade e intensidade. O cristianismo desde o seu nascimento buscou a aproximação com a filosofia, sempre fusionando a mentalidade grega com a hebraica. Tal caldo cultural possibilitou o surgimento do discurso cristão enquanto tal. Apesar das constantes brigas e intrigas: o cristianismo é uma religião intelectual e sempre o foi. 


    Poder-se-ia dizer várias razões para se falar da intelectualidade cristã, mas deveríamos visar em primeiro lugar o básico. O que são as "religiões do livro"? São as três religiões abraâmicas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Nessas religiões, só se é possível ser verdadeiramente fiel se se for alfabetizado. Decorre-se desse fato a necessidade de se alfabetizar para se religiosizar. Já que todas essas religiões requerem a leitura de seu livro religioso. Começa-se a partir daí o desenvolvimento intelectual cristão: o contato com a sua religião depende da leitura de um livro. Só que quem quer se tornar mais cristão, inserir-se-á num esforço erudito de leitura comparada acerca de sua religião. A meditação cristã é, também, caracterizadamente intelectual: lê-se e reflete. É por isso que as pessoas cursam teologia, estudam teólogos, leem comentaristas bíblicos, estudam história da Igreja, buscam entender a vida de grandes santos. 


    Os primeiros cristãos entregavam-se a apologética (defesa da fé) já de maneira intelectual. A própria noção de teologia cristã é assim dita: 

"Assim, a Fides et Ratio conceitua que a teologia no sentido cristão: trata-se da '... elaboração reflexiva e científica da compreensão da palavra divina à luz da fé...'". 

    O cristianismo nunca se furtou ao debate intelectual e sempre produziu grandes intelectuais. E a doutrina cristã sempre se ampliou e ainda se amplia em constante evolução intelectual.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Metodologia da Esperança: a profecia primordial da humanidade!



Que das minhas feridas
Saia poder pra curar
Que cada hora perdida
Me lembre que não é pra eu parar
(Rodolfo Abrantes - Até que a casa esteja cheia)

    Existe uma profecia que nunca deixou de ser afirmada, pouco se importando o período histórico. Existe uma profecia primordial que só pode ser intimamente afirmada e não pode ser nunca intimamente negada, pois até o suicida quer uma expansão, pois até o suicida visa se conectar: mesmo que com uma última mensagem. Essa é a profecia da vida. É a vida, a vida imortal, é a profecia primordial da humanidade. A verdadeira profecia não é só verdadeira, como se cumpre. O profeta não é só aquele que diz a verdade, mas aquele com que a verdade concorda e faz cumprir o que ele afirma. No peito de cada homem há um coração que diz: "o ser é". O ser é, o ser não está, o ser é. E a afirmação de que o ser é, é a profecia de que a vida resistirá a morte. É a profecia da esperança. Essa profecia da esperança é sustentada em cada peito humano. Essa profecia é a verdadeira tradição, a tradição das tradições, pois: "Os céus e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão" (Mateus 24:35). É como a música de Rodolfo Abrantes citada no começo dessa postagem: mesmo que eu seja ferido, mesmo que eu perca tempo, eu devo saber que não devo parar. O ser é, mas tudo leva a crer que não pode sê-lo. Só que o ser precisa lutar para ser. Essa é a condição tensional da vida.

    O que nos deprime não é a vida, mas a ausência de vida. Tal como o que nos mata não é a vida, mas aquilo que nos priva dela. O assassino não assassina alguém dando a esse alguém mais vida, mas privando esse alguém de vida. Acreditar que o assassino transmite ao assassinado a vida é o mesmo que pensar que ficamos deprimidos pela vida e não pela ausência dela. O deprimido não está deprimido por causa da vida, mas por causa da ausência de vida: é a incapacidade conectiva e expansiva que lhe deixa deprimido. É a irrealização do ser que deprime o deprimido e não o contrário. Um deprimido é um não realizado, é um ser privado de ser, é um ser que padece do não-ser. É por isso que a frase de Cristo é: "O ladrão não vem senão a roubar, a matar, e a destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância" (João 10:10). A cultura da morte separa o ideal do real. Ela prende o ser no peso do real ou na alienação da pura idealidade.

     Para fins meramente ilustrativos, é preciso dizer certas coisas que podem ser contundentes. Algumas vezes acabamos por nos perder em alguns pensamentos pela falta de parâmetros. Muitas pessoas ficam pensando sobre a idealidade e a realidade, só que elas creem que há uma diferença muito grande entre realidade e idealidade. Sim, eu também compreendo essas duas "condições" como diferentes, todavia creio que há uma terceira forma: a expressão comunicativa do ser. Entre o real e o ideal há um intercâmbio que traz a comunicação entre essas duas condições. Nossa vida é, propriamente, a expressão desse intercâmbio.

    Essa postagem fala da esperança. Esperança que não se finca inteiramente no ideal e nem se esmaga inteiramente pelo real. A esperança é um contínuo caminhar que conecta sempre o real e o ideal. Ela é, propriamente, isso: a tentativa de junção do ideal e do real. Aquele que não caminha, não crê. Aquele que crê, caminha. É preciso crer e caminhar. Creio que poderia dizer que entre o ideal e o real há uma caminhada que une os dois. Há uma tentativa. A esperança é a busca de conectar a realidade com a idealidade. Sem isso, ela é vã. Você não pode tão somente desejar, você precisa buscar o desejo. Buscar o desejo é transformar o desejo em vontade. Conforme o desejo é transformado em vontade, ele se torna mais racional e ao mesmo tempo mais concreto. Visto que se caminha e se pensa como chegar. Cria-se aquilo que chamamos de intencionalidade. 

    O que move o ser é a beleza "tão antiga e tão nova", pois o ser absoluto, o sumo ser, que é Deus: é sempre tão antigo e tão novo. E assim o é pelo fato de que aquilo que temos de Deus é o cumprimento daquilo que será a afirmação mais radicalmente plena do ser: a alma imortal. Caminhamos para o Reino de Deus que cumprirá o fim da escassez e o reino absoluto da plenitude. A suma felicidade é afirmação de que o ser é. "Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti", afirma Santo Agostinho em seu livro "Confissões". O que muitas vezes no segura na Terra é essa parcialidade, essa parcialização, esse constante caminhar por privações. Caminha-se de privação em privação em vez de buscar a plenitude que é mais perfeita, por ser mais plena, que todas essas privações. Deus é a plenitude perfeita de todas as coisas, isso o torna mais perfeito do que todas as partes plenificadas, visto que ele é a união perfeita e plena de todas as partes plenas e perfeitas. 

5. Exalaste Teu Perfume e respirei. Agora suspiro por Ti, anseio por Ti! Deus… de Quem separar-se é morrer, de Quem aproximar-se é ressuscitar, com Quem habitar é viver. Deus… de Quem fugir é cair, a Quem voltar é levantar-se, em Quem apoiar-se é estar seguro. Deus… a Quem esquecer é perecer, a Quem buscar é renascer, a Quem conhecer é possuir. Foi assim que descobri a Deus e me dei conta de que, no fundo, era a Ele, mesmo sem saber, a Quem buscava ardentemente o meu coração. (Santo Agostinho, Confissões)


    Essa série de afirmações brutais e fulminantes caracterizam uma consciência sensata quando encontra o objeto formal de toda consciência sensata: a suma complexidade divina. Visto que tudo que sei de Deus é pouco. Todo conhecimento divino, todo conhecimento teológico é muito pouco: Deus, suma complexidade, nunca será abarcado pelo intelecto humano e por isso é nosso objeto de adoração! Só aquilo que nos ultrapassa transcendentalmente de forma inequívoca é aquilo que pode corresponder a nossa contínua insatisfação. A nossa insatisfação tem o tamanha de Deus, a nossa insatisfação é infinita e só um Deus infinito pode corresponder a essa insatisfação infinita.


13.Respondeu-lhe Jesus: “Todo aquele que beber des­ta água tornará a ter sede, 14.mas o que beber da água que eu lhe der jamais terá sede. Mas a água que eu lhe der virá a ser nele fonte de água, que jorrará até a vida eterna”.
São João, 4:13-14 - Bíblia Católica Online

    Se eu falar para você que o fim supremo da vida é a morte, você sentirá uma negativa constante que afirma o contrário: que o fim da vida é a vida. Se vive para se aproveitar a vida. E quanto melhor se vive, melhor é o viver. Já que o fim da vida é a vida. Se eu te falar que a derrota é melhor que a vitória, você também sentirá uma negativa constante, você sentirá algo tão claro quanto o chão que pisa: a derrota é a negação da vida e a vida tem como fim uma vitória constante e afirmativa. Há um saber que sabe que sabe. Um saber que quer superar. Um saber que quer crescer. Um saber que quer viver. E tal saber afirma triunfantemente a imortalidade e o paraíso: o homem não vive pela escassez e nem gosta da escassez, o que o homem quer é perfeição e plenitude. 

    A afirmação do ser perante o não-ser é o dever teológico primeiro. É quando o ser se torna mais pleno, quando o ser se torna mais capaz, que ele se torna mais feliz. A diferença entre o simbólico e o diabólico está no grau de participação. O ser só é ser quando o é em absoluto, logo o ser só é ser quando participante de Deus, que é onipresente. Quando buscamos a sabedoria, queremos ser capazes de responder todas as questões, sobretudo as questões que reverberam na intimidade das nossas entranhas: queremos e buscamos a onisciência de Deus. O objetivo da ciência é a participação na onisciência de Deus. Quando exigimos reformas, quando queremos mais justiça, quando queremos melhoras, queremos a plenitude da onipotência divina. O fim do poder não é a destruição dos sonhos: o fim do poder é a realização de todos os sonhos. Aquele que corrompe o poder é aquele que priva o ser de seu sonho, levando o ser ao não-ser. 

29.Jesus respondeu-lhe: “O primeiro de todos os mandamentos é este: Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor; 30.amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças. 31.Eis aqui o segundo: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Outro mandamento maior do que estes não existe”.
São Marcos, 12:29-31 - Bíblia Católica Online


    Por que amar a Deus em primeiro lugar? Para que tal mandamento? É pelo seguinte: Deus tudo é. Sendo Deus tudo, conectarmo-nos com ele é estarmos junto de tudo. Sem ele, estamos presos em alguma particularidade que nos prende e nos desconecta da existência. O objetivo de amar a Deus é amar a tudo. E é nesse sentido que vem o "amar o próximo como a ti mesmo": amar a Deus é se abrir, aquele que não ama o próximo, não pode amar a Deus. Se Deus está em tudo, Deus está presente no próximo, negar a amar o próximo é negar a amar a Deus. É por isso que se deve amar primeiramente a Deus. Aquele que ama qualquer outra coisa, ama-a parcializando-se. Parcializando-se, perde a conexão para com a própria vida.


    Essa é a metologia da esperança: crer e caminhar. Caminhar exige realidade. Crer exige fé. É preciso não só crer, mas expressar o que crê na realidade. É preciso não só amar o ideal, mas colocá-lo no real. É preciso ser absurdamente realista para expressar o ideal de alguma forma no real. Ignorar a realidade é incapacitar a expressão do ideal. Aquele que se prende no ideal, torna-se alienado. Aquele que se prende no real, torna-se escravo. Na realidade, o peso nos esmaga. Na idealidade, flutuamos infinitamente, fugindo eternamente da Terra. É preciso estar com os pés no chão e a cabeça no céu. Isso é aquilo que chamo de metodologia da esperança: é preciso crer e caminhar, mesmo que às vezes a caminhada contradiga a fé e que a fé contradiga a caminhada. A doutrina é a expressão da conexão do real com o ideal. Aquele que melhor conectar as duas instâncias melhor se expressará como ser humano. Tudo isso pode ser resumido na frase de Santo Inácio de Loyola: "ore como se tudo dependesse de Deus e trabalhe como se tudo dependesse de você", essa é a metodologia da esperança. 

Terminei de ler "O duelo do Dr. Hirsch"



    É um conto fantástico, tal como o anteriormente lido ("A Ausência de Mr. Glass"), faz parte da série de contos que envolvem o investigador Padre Brown. Um homem, que também é um sacerdote, que possui um grande conhecimento sobre a natureza humana e é capaz de desvendar todo tipo de crime. Se você se pergunta se vale a pena ler esse conto, diria que sim. Vale muitíssimo a pena. É incrível como Chesterton nos conduz num conto em que a gente não sabe qual será o final, mas o final é sempre surpreende. O enredo fascina e a conclusão é sempre recompensadora. Fico sempre feliz de Chesterton ser um dos meus autores prediletos.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Acabo de ler "A Ausência de Mr Glass" de Chesterton!



    Acabo de terminar de ler esse maravilhoso livreto escrito por Chesterton. É engraçado a forma com que ele desmonta a grande cientificidade do Dr. Orion Hood, personagem de grande severidade intelectual, porém incapaz de se utilizar do senso comum. A própria natureza abstrata de seu pensamento acaba por se tornar porcamente abstrata: se a abstração é a capacidade humana de divorciar objetos de um conjunto estrutural para encará-los sob o microscópio da razão, tal capacidade se perde quando o todo estrutural se perde e se foca só no objeto. O objeto não faz sentido fora de sua estrutura. O abstratista perde-se em sua abstração. Se torna muito capaz de reconhecer um árvore, mas pouco capaz de saber que se encontra numa floresta ao passear por uma floresta - reconhecer-se numa floresta ao caminhar por uma floresta é uma capacidade simples, mas o intelectual preso na abstração não consegue mais perceber o óbvio: ele reduziu o mundo ao conhecimento que abstraiu.


    Esse livro, apesar de cômico, revela uma profunda lição: a inteligência se perde na parcialização. A incapacidade de absorver a estrutura do real por causa de uma simplificação complexa é por demasiado característica em muitos intelectuais. É como, por exemplo, o economicista querendo compreender a realidade do pensamento através unicamente da estrutura econômica; ou do religioso que quer aplicar unicamente um padrão metafísico para compreender o mundo quantitativo; ou, quiçá, daquela galera que acredita fielmente tão apenas no padrão biológico para legitimar as suas crenças - esquecendo do psíquico, do social e do espiritual. De qualquer forma, tudo isso só leva uma simplificação grosseira da realidade total: o saber é dialógico, não só no sentido humano de contato, mas também pelo fato de se comunicar com outros saberes para ser construído de fato. O saber é uma floresta e não uma árvore. O microscópio da razão utilizado para apreender uma árvore é interessante e necessário, mas não devemos pegar uma árvore e pensar que estamos a ver a floresta inteira. Não querendo criar um paradoxo, mas já criando: é preciso reaprender a ser "comum" para ser inteligente sem ser grosseiro.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Sim, Saturno ainda devora seus filhos!


    

    Saturno devorou seu filho. Uma cena brutal, uma cena até mesmo "demoníaca". Poder-se-ia dizer que uma coisa tão má não aconteceria no tempo presente, em que a humanidade evoluiu ao seu ponto culminante. Só que isso seria um ledo engano: Saturno ainda devora seus filhos. Existem atos que são tal como Saturno: eles nos engolem com o tempo. Aquilo que nos dedicamos erradamente, acaba por nos engolir. Há até mesmo vezes em que aquilo que nos dedicamos nos mastiga furiosamente, destruindo-nos por dentro e por fora. E, se você tem um vício, você sabe do que falo. O vício vicia. O vício vicia a ponto de matar o seu usuário para qualquer outra coisa. E se ele mata o usuário para qualquer outra coisa, impede-lhe de ser pleno. E sem plenitude não há vida real. O usuário virou um cadáver ambulante, um homem que manca na ilusão de que anda.

    Por muito tempo o termo simbólico e satânico dominou meu pensamento como uma flor de obsessão. Numa aula, meu professor contou o real significado de simbólico e de satânico. Simbólico é aquilo que une. Satânico é o que separa. Certo dia, porém, eu tive uma ideia: certas ideias são como saltos de fé satânicos. E esses seriam a aceitação da parcialidade como o todo e a negação de tudo que fuja dessa parcialidade. Conversando com um amigo mais laico, ele achou o termo "salto de fé satânico" muito teológico e pouco filosófico. A partir de agora chamarei o "salto de fé satânico" de "salto de fé satúrnico" paralelamente para evitar uma leitura puramente teológica. Assim evito restringir e ofender dado público a qual quero prosear. E também dou uma girada macroecumênica a nível discursivo.    

    Bem, esse texto fala de pornografia. E você deve pensar: "pornografia? Os textos anteriores também eram sobre isso". E, de fato, você tem razão. Só que eu preciso falar de pornografia. Eu fui e creio que ainda sou um viciado em pornografia, só que não acesso e nem consumo mais. Quem era eu? De certa forma, eu era. De outra forma, eu não era. Vaguei muito tempo como um viciado, buscando no vício a plenitude que me faltava. E aquilo que me era uma parte, tornou-se todas as partes. Eu não amei de fato. Eu não estudei de fato. Eu estava lá, mas lá não estava: minha mente vagueava nas ilusões pornográficas. E da ilusão tirei meu triste salário: eu era a privação de mim mesmo. E na medida que eu era a privação de mim mesmo, eu era também eu e minha falta. A pornografia era meu grande Saturno. O Saturno que me devorava.

    No geral, o Saturno é para nós um pai. Um pai que temos natural devoção. Um pai que queremos por afeição. Só que Saturno não é um bom pai. E todos os seus abraços visam não abraçar, mas nos devorar. O nosso Saturno é nosso vício. Esse vício pode se encontrar em qualquer âmbito: no pensamento, na prática, na crença, no subconsciente. De qualquer forma, Saturno é o vício que nos devora. E nós estamos apaixonados por ele: somos um gigantesco cardume indo felizmente em direção da morte. E se você não está literalmente morto e acha tudo isso uma besteira por ainda não estar morto, permita-me dizer-lhe que: o homem vive enquanto morto. É possível estar vivo e apenas sobreviver. É possível estar num cadáver com a aparência de um ser vivo. Talvez você esteja interiormente morto e não o saiba.

    O que somos nós? Somos em parte o que queremos ser e em outra o que não queremos ser. O ideal é a transcendência. A imanência é o real. A união do real (imanente) com o ideal (transcendente) dá luz ao transparente. Essa transparência é o objetivo da vida: é a união da idealidade com a realidade. Ela se dá de forma mais ou menos harmônica. Posso ser mais pleno ou menos pleno. A luta pela transparência por atos e pensamentos é aquilo que deveríamos buscar. Não quero teologar muito, mas preciso para ser mais didático: como cristão, por exemplo, a transparência seria a vivência diária da fé. E quantas vezes eu deixei de ser sincero? Quantas vezes deixei de ser um confessor? Confessar é ser sincero, ser sincero é ter transparência. E o que é ter transparência? É ser autêntico. Ser autêntico é ser verdadeiro. Muitas vezes sou menos verdadeira do que eu gostaria de ser. Se a vida é um esforço comunicacional, aquele que mente se nega a viver.

    No período em que escrevo esse texto, o papa emérito Bento XVI se posicionou contra a pureza doutrinal. Fica claro que nem para o "conservador", se é possível viver tendo como base uma transcendência esmagadora que se mostra inflexível para com o real. E essa ideia de pureza doutrinal foi atribuída erroneamente a ele depois dele falar sobre o mundanismo. Sem querer me alongar muito nessa questão, mas utilizando esse trecho para clarificar uma coisa: a vida é um esforço comunicacional, em que nem sempre somos a plenitude do que poderíamos ser. Só que esse esforço comunicacional é precisamente um esforço: a gente tenta ser transparente. Muitas vezes não conseguimos. Só que a vida reside precisamente nesse esforço de comunicar com autenticidade quem somos e no que acreditamos. É disso que vem a verdadeira doutrina: do esforço vivencial de ser. Buscamos ser o tempo todo, só que por vezes buscamos ser de forma errada. Tentar comunicar é tentar ser. Só que às vezes o ser é esmagado na sua tentativa de ser. O ser é, mas tudo na vida leva a crer que não pode sê-lo. E tentando ser, tentando transparecer, é que vivemos. É assim que eu encaro a vida.   

    Admito que fui aluno de filosofia e ainda o sou: filosofar não me é só um dever acadêmico, mas um dever vivencial. A filosofia é a análise do pensamento pelo próprio pensamento. A isso costumo chamar de metapensamento, que é para mim a mesma coisa que filosofia. Dessa forma estabeleço democraticamente a filosofia: ela não é restrita a um círculo fechado de acadêmicos iluminados, ela é comum a todos os homens. Todo homem filosofa. Pode-se filosofar com maior ou menor qualidade. Só que a filosofia não depende inteiramente de uma organização do discurso, ela depende da organização da vida. Se a filosofia for meramente discursiva, ela é apenas algo atrofiado. A filosofia é expressão da vida. Se ela se perde unicamente no discurso, torna-se um mero clichê argumentativo. Quando passamos a pensar só na análise do discurso, tornamo-nos abstratistas que pouco se importam com a vida. E pouco se importar com a vida é se tornar um alienado. Eu quero me alienar, mas me alienar sem me tornar continuamente alienado. Quero me abrir, mas preciso me fechar para abraçar em meu coração aquilo para que me abri. E, se eu não abraçar, se eu não acolher, serei um fariseu com um fetiche do parecer ou com um diploma esteticamente belo em meu quarto. Eu não quero analisar um discurso oco, eu não quero ter uma vida falsa, eu não quero proferir um falso discurso.

    Sim, eu usei pornografia. Usei como qualquer pessoa normal em nossa sociedade hipergâmica e hiperssexualizada. Na quinta-série, pediram-me para usar. Essa era a inovação fatal a qual tudo deveria se curvar. Eu vi e me encantei com corpos. Corpos que me eram fascinantes. Tinha apenas onze anos e, na época, aquilo me foi uma porta até outro mundo até então desconhecido. Eu conhecia jogos, eu conhecia brinquedos, eu conhecia doces e salgados. Minha mente era de um menino, um menino pobre, mas não amargo. Só que tudo isso era o prenunciar de uma tragédia: aprendi sobre sexo, todavia não aprendi a amar. Eu não abri meu coração para ninguém, eu fui tão solitário quanto eu era pornográfico. Se fiquei com alguém, mal amei. Mal amando, fui também mal amado. O termo "reciprocidade" me era equidistante: a cada passo dado, aquilo que almejava se afastava simetricamente. Equidistância é um caminhar desejante, mas um caminhar que nunca alcança o objeto ou o sujeito de sua busca. Toda equidistância termina em dor.

    Tenho vinte e quatro anos agora. Não sou mais criança. Não sou mais pré-adolescente. Não sou nem mais adolescente. Escrevo como um adulto. Um adulto que quer ser responsável. Só que eu não acumulei em parte de minha juventude a sabedoria. Pois o amor é uma sabedoria: é o encontro de pessoas que de repente se abrem umas as outras, que de repente vivem umas com as outras e de repente elas não são mais só elas mesmas, elas também são parte de alguém. E eu sou parte de poucas pessoas, eu não me expresso em muitas pessoas. E essa ausência de expressão significativa me torna pequeno, muitissimamente pequeno: nem algo e nem alguém são grandes por serem grandes, são grandes por terem sido amados. Com relação ao amor: sou um moleque. Não amadureci como eu deveria, não amadureci por conta de meu vício.

    E quantas coisas eu poderia ter amado? E quantas pessoas poderia ter conhecido? Minha obsessão tinha um nome claro: pornografia. Acumulavam-se as tags, mas não se tinha a fidedigna expressão genuína do eros. Eu acumulava vazios em meu peito. Meu coração tinha tantas trevas ao seu redor que entrou em desespero. Às vezes o velho poema ressoava em meu peito aquele bom poema Carlos Drummond de Andrade: "Meu Deus, por que me abandonaste?/ Se sabias que eu não era Deus/ Se sabias que eu era fraco". Só que minha consciência sabe hoje que isso é uma mentira: não foi Deus que me abandonou, eu que o abandonei. Eu me entreguei à ilusão pornográfica: ela me era como tudo, mas não sabia que ela me era só uma parte. Aquilo que deveria ser parte do todo, agora era o todo. Se Deus está em todas as coisas criadas, aquele que se dedica exclusivamente a alguma coisa criada o nega. E é nesse preciso sentido parcializador que eu neguei a Deus: aquilo que eu julgava tudo, era aquilo que me parcializava, aquilo que me parcializava me negava a plenitude.

    Como grande parte das pessoas, eu sou e eu fui um grande entusiasta da cultura japonesa. Sou um fã confesso do autor Haruki Murakami. Sou também um leitor de mangás. E igualmente vejo animes. Mas confesso que li mais mangás pornográficos do que mangás de qualquer outra coisa. E isso demonstra o velho erro: aquilo que me parcializava, me impedia também de ser pleno. Fui um leitor assíduo de muitas obras e de muitos assuntos, mas fui um mau leitor: a pornografia comia minha consciência. Se fiz sexo nesse percurso, foi com pouco sabor. Eu não apreciava e não era apreciado. Tudo era estéril. O sexo estéril não é um sexo que falha em reproduzir, é um sexo que falha em se conectar. O sexo pode até não reproduzir fisicamente outro ser humano, mas o sexo não pode falhar em se conectar com outro ser humano. E aprendi da forma mais dura que a não conexão no ato sexual é uma das coisas mais dolorosas da vida. E se eu morresse agora, se eu me visse numa sala vazia, se eu tivesse que dar uma frase que resumisse a minha vida, essa frase seria: eu não amei e nem fui amado.

    A pornografia é grátis, mas sem gratidão. Ela não lhe dá uma experiência feliz que se integra a ti, uma experiência que no final você diz: eu sou grato verdadeiramente pelo que tive. Aquilo que você momentaneamente tem, é aquilo que momentaneamente foge de você. O final da pornografia é o vazio. A pornografia pode até mesmo ter sexo, mas é o oposto do sexo. Sexo tem consubstanciação: o ser que era, junta-se a outro ser que era e agora os dois são um só. Na pornografia, eu fui solitariamente eu. E muitas vezes chorei amargamente em minha solidão. Caminhei exilado. Minha condição de exilado era tão densa que até o mar de gente se abria, se abria para que eu passasse solitariamente. Era um milagre infernal. 

    Hoje eu sei que a pornografia era como um pai para mim, um pai que me abraçava, um pai que me abraçava para me devorar e destruir. Quando eu precisei de amigos, a pornografia esteve lá para impossibilitar qualquer hipótese de amizade. Quando eu precisei de estudo, a pornografia esteve lá para deter qualquer pretensão de vida intelectual. Quando precisei estar ao lado da garota que amei, a pornografia me afastou dela. De tudo Saturno me separou. De tudo Saturno me privou. Saturno era um pai possessivo. Sim, Saturno ainda devora seus filhos. Eu sei, eu fui deles.

domingo, 4 de julho de 2021

O MOMENTO DE MINHA RECONVERSÃO

 



"No entanto, Ele restringiu algo. Digo isso com reverência: havia naquela personalidade perturbadora um fio que deve ser chamado de timidez. Havia algo que Ele escondia de todos os homens quando subia ao monte para orar. Havia algo que Ele cobria constantemente por um silêncio abrupto ou por um isolamento impetuoso. Havia uma coisa que era grande demais para Deus nos mostrar quando andou sobre a Terra, e, por vezes, tenho imaginado que era a Sua alegria". (Ortodoxia, Chesterton).


    Eu tenho há muito tempo negado a me confessar. Chesterton diz que: "Um dos paradoxos da história é que cada geração é convertida pelo santo que se encontra mais em contradição com ela" (Santo Tomás de Aquino, Chesterton). No tempo pós-moderno, ideologicamente moldado no extremo-mundanismo, confessar-se é o oposto de nosso tempo. Tudo é volátil, sem essência e com pouca direção. É por essa razão que o religioso é visto com tamanho desdém. O problema é que eu vi que eu era um hipócrita. O problema é que eu vi que eu era uma pessoa de péssimo caráter. E o pior de tudo: eu vi que era profundamente infeliz. Não confessar é negar-se a ser sincero, é negar-se a ser filósofo, pois não há filosofia sem sinceridade. E quanto mais eu tentei ser sincero, mais vi que desejava ardorosamente a Deus. No livro "Filosofia da Crise", Mario Ferreira dos Santos conta-nos que há um "saber que sabe que sabe". Esse saber é a profunda consciência. É, talvez, a reminiscência do mundo das ideias. Ou, melhor, a recordação do amor divino - que é a transcendência por si mesma:

"Tomamos consciência da nossa individualidade através do eu. Mas acaso o eu não tome consciência de si mesmo quando toma consciência da individualidade? Não há aqui uma consciência da consciência? Um saber que sabe que sabe? E não há em nós algo que sempre se coloca além de todo o nosso conhecimento, algo que conhecemos, sempre distante, sempre cada vez mais distante, que marca uma presença que sempre se separa de tudo quanto delimitamos, pois conhecer é sempre delimitar? E esse saber de um saber que se distancia, logo que traçamos um limite, não é um grande ilimitado, que constantemente evita prender-se dentro dos limites?"

"E dessa forma, entre os limites de todo o nosso conhecer, não há sempre em nós, algo que conhece, que os vence, porque deles não se deixa apreender? E que sempre se separa, distante, sempre o mesmo?"
"Ainda é crisis. Mas é também já um apontar de uma vitória que vivemos em nós."

"O leitor, ao ler estas páginas, pode tomar consciência de que lê estas páginas. Não se desdobrou agora? E não pode tomar consciência de que se desdobrou nesse momento em que toma consciência que lê estas páginas? E que sente em tudo isso? Que algo nele é rebelde a prender-se em limites."

"Algo que os capta, mas que não quer limitar-se, e que sempre escapa a toda limitação, algo que em nós é ilimitado, algo que em nós afirma uma vitória sobre tudo quanto estabelece uma fronteira, porque vence e ultrapassa as fronteiras."

    Eu estava em crise. A minha crise durou anos. Mas nesses últimos dias eu chorei de felicidade. A negação de ser foi superada pelo amor de ser. Eu não estava vivo. Vivia num cadáver. Eu fugia do grito profundo de minha alma. Tal como Gustavo Corção disse no livro "A Descoberta do Outro": "foi preciso que coisas graves acontecessem para que eu me desse conta de estar amarrado ao meu próprio cadáver". Foi preciso um longo período de crises recorrentes para que buscasse uma transcendência que até então negava. Foi preciso que eu me encharcasse no lodaçal para ver que eu era um perfeito idiota. E quanto mais eu estudava, mas percebia o quão longe do Belo, Bom e Verdadeiro estava.

    É engraçado, certas coisas marcam mais a mente do que outras. E, apesar de parecerem desconexas, dão uma iluminação de ordem crescente na razão - e ultrapassam-na gerando aquilo que chamamos de fé. Eu estava num "encontro a dois" com o meu melhor amigo, a ex-namorada dele e uma mulher que acabara de conhecer. E eu fazia uma série de piadas acerca de tudo, visto o perfeito imbecil niilista, liberal e pessimista que era. E, de certa forma, as pessoas curtiam minhas piadas indecorosas, asquerosas, desordenadas e baixas. Só que depois eu disse que lia um livro islâmico e isso, para minha surpresa, causou um tremendo mal estar. Isso lhes soou insuportável. Era-lhes intolerável a religião.
Não me entendam mal, não sou islâmico e no momento em que contava as piadas também não era cristão. Só que sentia solene respeito, um respeito mais amável para com o Islã, para com o cristianismo e para com o judaísmo com o respeito que devotava a qualquer outra coisa. O Islã para eles era mais insuportável que qualquer outra coisa, ao menos eu senti essa atmosfera. E eu já haveria de supor o resto: a religião haveria de ser mais odiável que qualquer outra coisa, a Igreja Católica haveria de ser mais odiável que os mortos pelos sistemas ideológicos que a substituíram. Perdi a conta de quantas vezes neguei-me a dizer o meu amor cristandade, amor que me era quase inconsciente, mas persistente.

    Achava-me numa contradição. Numa contradição brutal. Num mundo líquido, irresponsável por inconsistência lógica, nesse extremo-mundanismo da vaidade e vento que passa, eu sentia respeito venerável por aqueles que tinha na vida uma hierarquia e uma meta. Eu respeitava os muçulmanos, pois sua vida tinha "dirigibilidade". Eu admirava Dugin, por romper com a pós-modernidade ultraliberal. Eu admirava a China por ser ter a sua própria identidade política. E cada vez mais eu via que todos aqueles que estavam ao meu redor nada tinha a ver comigo em minhas crenças e respeitos. Era-me melhor um católico rezando para Virgem Maria do que um liberal hedonista cultuando o Super Mario e autointitulando-se "gamer" - como se jogar videogame fosse o suficiente para se construir uma sólida personalidade. Só que, para a maioria de meus contemporâneos academicizados o suficiente para pensar descompromissadamente, idolatrar um entretenimento deveria ser menos ofensivo do que venerar uma mulher digna, a maior mulher que já andou por esse vale de lágrimas.

    Descobri que minha vida era uma grande caminhada inconsciente. Em um momento, uma mulher que conhecia pouquíssimo tempo perguntou algo mais ou menos assim: "se você tivesse um gênio (leia-se gênio mágico) perante você, o que você pediria?". Essa pergunta infantil, que norteia para o real entendimento da consciência me despertou. Mas, momentaneamente, eu disse que queria pegá-la. E de fato a pegaria. Mas hoje, com sinceridade suficiente, eu diria algo mais que isso. O pensamento daquele momento era desordenado, mas a pergunta era tão real como uma faca no coração. A resposta que eu daria hoje seria: "que eu prefiro o cristianismo a tudo isso". Eu diria que: "um ano de cristianismo é mais louvável que toda a história pós-cristã". Eu diria que: "os dogmas são mais louváveis e livres que todo pensamento supostamente livre". Que "minha vida não faz sentido algum". E que "aderir a essa era me tornou um enfado para mim mesmo e para todos os outros que eu amei". E que Eclesiastes, ao lado de Ortodoxia, encontram-se nas leituras mais prazerosas que já tive em toda minha vida. Diria que amo mais a patrística, que amo mais a escolástica. Que minha disciplina favorita, nesses três anos que estudei filosofia, era a teodiceia. Mas se eu pudesse dar uma resposta cabal, uma resposta como que definitiva, essa resposta perfeitíssima, essa resposta seria a oração do credo:
"Creio em Deus pai todo poderoso, criador do céu e da terra, e em Jesus cristo seu único filho, nosso senhor que foi concebido, pelo poder do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu a mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia subiu aos céus e está sentado a direita de Deus pai todo poderoso donde há de vir e julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito santo, na Santa igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém."

    Eu não suportava mais acessar mais à internet. Um mundo cheio de pornografistas e palpiterios, vulgarizadores até da vulgarização e o que mais era insuportável era que eu era um desses pornografistas, palpiteiros e vulgarizadores. Meus amigos afastavam-se de mim na medida em que me aproximava da teologia e por devotar-lhe respeito. Percebi que um grande contingente de pessoas me desgostavam por gostar do cristianismo e desgostavam-me por não ser cristão. Desse duplo desgosto, que era encontrado na vísceras do discurso, me revelou um triplo desgosto: "desgostam-me por gostar do cristianismo, desgostam-me por não ser cristão e desgostam do cristianismo!". O que lhes seria mais odiável:
A- achar admirável as respostas cristãs mesmo sendo agnóstico?;
B- achar admirável as respostas cristãs mesmo não as seguindo?;
C- achar admirável o cristianismo?

    Não sou referencial moral para coisa alguma. Na verdade, eu sou o pior dos pecadores. Não sirvo para base de nada. Todos aqueles que se basearem em mim cairão em pecado. Confesso que não levei uma boa vida até o presente momento. Confesso que sou pouco provido de inteligência. Confesso que me falta o dom da escrita. Mas o que sobretudo agora confesso é que se desgostavam de mim por gostar do cristianismo, desgostem de mim agora por ser cristão. E a única afirmação que lhes darei se encontra em 1 Timóteo 1:15: "Esta afirmação é fiel e digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior.". A única afirmação real, a única afirmação possível é que sou o pior pecador que vocês conhecem. E a minha única salvação está presente nesse fato agora consciente: a consciência de minha própria ignominia, de toda minha iniquidade, de todo meu mau senso.

    A pergunta sobre qual era o fim último do homem e qual vida vale a pena ser vivida. Esse tipo de dúvida me pegou e refleti. Eu levei o "liberalismo" a sério - entenda-se liberal por "mente aberta". Deveria ler de tudo, ser mente aberta. Eu fui um agnóstico metodológico lendo livros judaicos, cristãos, islâmicos e até budistas. Eu busquei a verdade em diversas doutrinas que mantive recorrente contato. Eu era um ateu prático e um agnóstico imbuído de um amor à literatura religiosa. Eu fui liberal o suficiente para ser superficial o suficiente de não dar rumo a minha vida. E eu admirava aqueles que, a contramão do gosto pós-moderno, deixaram o "mundo líquido" de lado e responderam o que precisava ser respondido. Pois responder é ser responsável e aquele que não responde é quase sempre um depressivo preso na sua própria inconsistência. E eu era um depressivo preso na minha própria inconsistência. Eu vejo mais felicidade num monge "preso" na sua clausura monástica do que no homem preso na liberdade pornográfica. Eu vejo mais realidade no "velho testamento" do que em toda indústria pornográfica. Se um pobre homem disser que está viciado em pornografia, um gentil defensor da liberdade sexual o sondará a acreditar mais fortemente na fé da revolução sexual e da grandeza da indústria pornográfica - essa, claramente, ligada ao tráfico de pessoas - do que com a própria razoabilidade e o bom senso - ou o senso comum: pare de ver pornografia.

    Pensava com meus botões desmiolados e tipicamente desordenados: "quem eu sou?". Toda resposta era subjetiva demais. Era "individualista" demais. Era fraca demais. No fundo, no fundo mesmo: admirava-me com o descomprometimento. Só que eu era vítima e ideólogo de minha própria morte. Todo esse descomprometimento revelava uma patologia deliberativa que só me levava a uma procrastinação vivencial. Essa procrastinação tornava-me débil. Eu me tornei um fracassado na medida em que me tornei um homem conformante ao meu próprio tempo. "Se o mundo é líquido, cabe-me ser volátil". A volatilidade era um de meus principais problemas. Eu me tornei um inútil, um amante de vanidades. Minha vida esbarrava-se em coisas menores, as coisas menores pareciam-me grandes por falta de proporção e hierarquia de valores adequada. Até a vida intelectual tornou-se quase impossível devido a ausência de ordem e disciplina daí decorrentes.

    Fui um desses vulgarizadores da vontade - e usualmente quem vulgariza algo é quem mais pretende defender esse algo como doutrina -, tornei-a uma ideologia. Agora o que me importava era "cumprir". A execução deixou de ser quase que inexistente para se tornar um fetiche. E, de fato, eu cumpria uma série de coisas. Cumpria livros. Cumpria listas. Cumpria jogos. Só que isso era apenas uma forma de viver debilmente, não aparentava direção alguma. Só que havia uma direção inconsciente: era a velha crença liberal, subjetivista, mente aberta e descomprometida. No fundo, no fundo mesmo, eu só falava de uma série de coisas aleatórias e contraditórias para não ter vinculação alguma e, por conseguinte, eximir-me de uma responsabilidade vivencial que desse sentido real a minha vida. O cumprimento de uma vontade era mais uma desordenada forma de ser um idiota, mais uma forma de fugir da verdade. A vontade pela vontade é a negação da própria vontade: uma vontade desordenada é só uma forma bestialógica de um desejo travestido de vontade. É animalesco.

    Eu estive num grande exílio. Um grande exílio em que tudo me era equidistante. Todo passo afastava-me da onde eu queria chegar. Não havia leveza. Não havia amor. Só havia um desespero que fingia ser coragem. E meus únicos momentos de felicidade real encontravam-se na leitura prazerosa de Chesterton, que me fez rir de verdade. Suas eternas palavras gravaram-se em minha mente: "o homem sensato tem a tragédia em seu coração e a comédia em sua cabeça". Eu era um fanático. E toda fanatismo que tinha foi gerado por minha mentalidade antirreligiosa, anticristã e anticatólica. O "credo acadêmico" diz que a "liberdade do pensamento" gerará pessoas críticas, mas o que as escolas formam todos os dias não são socialistas, anarquistas ou liberais, ela gera gamers, quiçá "potterheads" ou algum vulgar amante de futebol. E isso não é estranho, até estranhamente me lembra outra frase de Chesterton: : “Tire o sobrenatural, e o que resta é o antinatural”. Quando eu comecei a orar e pedir a Deus o aumento de minha inteligência, quando eu comecei a amar a ordem, tudo isso propiciou um aumento qualitativo nos estudos - não só qualitativo, quantitativo também. Tornei-me mais inteligente, mais estudioso. Eu estudava agora com confessionalidade, meu estudo era voltado à salvação de minha alma e não ao velho liberalismo descomprometido. Custou-me muito entender que toda linha de estudo segue, consciente ou inconsciente, uma doutrina. Eu estudava de tudo, aleatoriamente, para seguir fielmente a ideia liberal. Como resultado: criei um saber pouco sistemático, desordenado e causador de toda uma série de crises mentais. Agora todo estudo que faço tem como fim a verdade.

    Tudo que antes eu virava contradizia-se vivencialmente, embora houvesse lógica no meu discurso e ele fosse "lindo, democrático e popular": ao virar socialista, odiei a burrice das classes mais baixas; ao virar nacionalista, odiei o Brasil; ao virar anarquista, odiei a forma como os homens gastavam a sua liberdade; ao virar progressista, odeie fortemente as minorias em sua condição alienante; ao virar liberal, matei minha liberdade; ao virar individualista, só via abstrações e não humanos; ao aderir o amor livre, parei de amar. Todo discurso era belo, mas a consciência sempre me alertava que era o contrário. No fundo, bem no fundo, eu sabia que eu era um mentiroso. Essa criticidade que rodeia os meios acadêmicos nunca acaba em autocriticidade e toda ausência de autocrítica leva a consumação de uma vida hipócrita.

    Pensando novamente na frase do Chesterton: "Tire o sobrenatural, e o que resta é o antinatural", parece-me que o mundo moderno segue essa regra a risca. Toda intenção termina num redundante fracasso. Quando os antigos defensores da liberdade sexual pensavam que, com sua doutrina nova e libertária, levariam a um florescimento erótico em que todos conseguissem liberar ao máximo a sua sexualidade, eles não sabiam que posteriormente essa mesma liberdade sexual mataria até mesmo o erotismo - lembre-se: pornografia não é erotismo. Quando os progressos defensores do livre-pensamento acreditavam que iriam gerar a mais fantástica abertura epistemológica da história, eles não sabiam que, num futuro nem tão distante, viveríamos na ditadura da doxa ou "volitiva", em que cada um enclausurar-se-ia em seu castelo opinativo e odiaria qualquer pessoa discordante. A defesa original do livre-exame, em que cada um olharia uma obra e entraria num debate coletivo para entendê-la precisamente, foi destruída: o livre-exame logo se tornou livre-interpretação e a livre-interpretação tornou-se a ditadura da doxa, a unidade perdeu-se.

    Há algo que eu demorei a entender. E essa foi a transdescendência que leva à transcendência. Só que teve um dia que eu compreendi tudo. Foi quando busquei a Deus. Foi no momento que percebi que a autonomia e dependência não são opostas, mas um paradoxo amável que faz com que cada uma seja o que é. E essa transdescendência já estava prevista, filosoficamente, em Sócrates na douta ignorância: "só sei que nada sei". E essa douta ignorância que em humildade busca o conhecimento, sempre sabendo-se ignorante e incompleta, torna-se mais conhecedora na medida em que sabe que não sabe. E isso me remete a Chesterton: "Ele não apenas se sentia mais livre quando se curvava; ele de fato se sentia mais alto quando se curvava; ele de fato se sentia mais alto quando se curvava. Dali em diante qualquer coisa que retirasse esse gesto de adoração acabaria atrofiando-o ou mutilando-o para sempre. Dali em diante ser meramente secular seria servidão e inibição. Se não pode orar, o homem se sente amordaçado; se não pode ajoelhar-se, ele se sente posto a ferros" (O Homem Eterno). Eu aderi a maior tarefa intelectual já concebida: estudar e amar a um Deus onisciente, onipresente e onipotente - perto disso, tudo parece coisa pouca, pois o grau de abstração da teologia está para além do máximo e do possível, a teologia é a ciência do impossível. Ao orar e ao chorar eu compreendia algo: eu sou maior quando me ajoelho a algo que me transborda. O paradoxo é a chave do real, o paradoxo é a condição mesma do real e Jesus mesmo disse: “Eu vim a este mundo para julgamento, a fim de que os cegos vejam e os que vêem se tornem cegos.” (Jo, 9:39). O paradoxo é a condição do real e o cristianismo é a religião do paradoxo. Viro cristão por amor ao real e por amor a verdade.

    Após esse relato, segue-se a oração "Tarde Te amei" de Santo Agostinho, Confissões 10, 27-29:

1. Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova… Tarde Te amei! Trinta anos estive longe de Deus. Mas, durante esse tempo, algo se movia dentro do meu coração… Eu era inquieto, alguém que buscava a felicidade, buscava algo que não achava… Mas Tu Te compadeceste de mim e tudo mudou, porque Tu me deixaste conhecer-Te. Entrei no meu íntimo sob a Tua Guia e consegui, porque Tu Te fizeste meu auxílio.
2. Tu estavas dentro de mim e eu fora… “Os homens saem para fazer passeios, a fim de admirar o alto dos montes, o ruído incessante dos mares, o belo e ininterrupto curso dos rios, os majestosos movimentos dos astros. E, no entanto, passam ao largo de si mesmos. Não se arriscam na aventura de um passeio interior”. Durante os anos de minha juventude, pus meu coração em coisas exteriores que só faziam me afastar cada vez mais d’Aquele a Quem meu coração, sem saber, desejava… Eis que estavas dentro e eu fora! Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti. Estavas comigo e não eu Contigo…
3. Mas Tu me chamaste, clamaste por mim e Teu grito rompeu a minha surdez… “Fizeste-me entrar em mim mesmo… Para não olhar para dentro de mim, eu tinha me escondido. Mas Tu me arrancaste do meu esconderijo e me puseste diante de mim mesmo, a fim de que eu enxergasse o indigno que era, o quão deformado, manchado e sujo eu estava”. Em meio à luta, recorri a meu grande amigo Alípio e lhe disse: “Os ignorantes nos arrebatam o céu e nós, com toda a nossa ciência, nos debatemos em nossa carne”. Assim me encontrava, chorando desconsolado, enquanto perguntava a mim mesmo quando deixaria de dizer “Amanhã, amanhã”… Foi então que escutei uma voz que vinha da casa vizinha… Uma voz que dizia: “Pega e lê. Pega e lê!”.
4. Brilhaste, resplandeceste sobre mim e afugentaste a minha cegueira. Então corri à Bíblia, abri-a e li o primeiro capítulo sobre o qual caiu o meu olhar. Pertencia à carta de São Paulo aos Romanos e dizia assim: “Não em orgias e bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,13s). Aquelas Palavras ressoaram dentro de mim. Pareciam escritas por uma pessoa que me conhecia, que sabia da minha vida.
5. Exalaste Teu Perfume e respirei. Agora suspiro por Ti, anseio por Ti! Deus… de Quem separar-se é morrer, de Quem aproximar-se é ressuscitar, com Quem habitar é viver. Deus… de Quem fugir é cair, a Quem voltar é levantar-se, em Quem apoiar-se é estar seguro. Deus… a Quem esquecer é perecer, a Quem buscar é renascer, a Quem conhecer é possuir. Foi assim que descobri a Deus e me dei conta de que, no fundo, era a Ele, mesmo sem saber, a Quem buscava ardentemente o meu coração.
6. Provei-Te, e, agora, tenho fome e sede de Ti. Tocaste-me, e agora ardo por Tua Paz. “Deus começa a habitar em ti quando tu começas a amá-Lo”. Vi dentro de mim a Luz Imutável, Forte e Brilhante! Quem conhece a Verdade conhece esta Luz. Ó Eterna Verdade! Verdadeira Caridade! Tu és o meu Deus! Por Ti suspiro dia e noite desde que Te conheci. E mostraste-me então Quem eras. E irradiaste sobre mim a Tua Força dando-me o Teu Amor!
7. E agora, Senhor, só amo a Ti! Só sigo a Ti! Só busco a Ti! Só ardo por Ti!…
8. Tarde te amei! Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu Te amei! Eis que estavas dentro, e eu, fora – e fora Te buscava, e me lançava, disforme e nada belo, perante a beleza de tudo e de todos que criaste. Estavas comigo, e eu não estava Contigo… Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti. Chamaste, clamaste por mim e rompeste a minha surdez. Brilhaste, resplandeceste, e a Tua Luz afugentou minha cegueira. Exalaste o Teu Perfume e, respirando-o, suspirei por Ti, Te desejei. Eu Te provei, Te saboreei e, agora, tenho fome e sede de Ti. Tocaste-me e agora ardo em desejos por Tua Paz!

A Prisão

     


    Apercebo-me, enfim, de minha prisão: ela começou cômoda, abriu-se e tornou-se mais cômoda. Em meu caminho de errático eremita: vi que todo fim era um começo. No fim, encontramos um começo e a escravidão torna-se mais branda até que a suavidade perca-se numa constante norma de sufocamento. Infelizmente, só posso ver paredes quanto estou próximo de me afogar. E quando me afogo, vem-me a necessidade de mudar. Quando mudo, a minha nova prisão me faz relaxar. A pergunta que não tem fim, mas tem metáfora é: qual é a melhor prisão? Essa pergunta descortina-se sempre numa série de mudanças as quais me abro, conquanto que eu ainda esteja peremptoriamente escravizado. De ideologia em ideologia, de música em música, de religião em religião: mudo-me de cárcere em cárcere, pois a próxima cela sempre tem um alvorecer do Sol quadrático ainda mais belo que a cela em que eu era anteriormente escravizado. Nessa eterna desgraça move-se a minha inconstante personalidade outonal. Vem-me sempre o paradoxo: estou preso numa inconstante constância e numa constante inconstância, daí provirá a minha essência: ela é como o Outono, quente no começo e fria no final. Tornar-me doce no começo, agridoce no meio, azedo no final. Sucedem-se colegas que se tornam íntimos, íntimos que se tornam inimigos, inimigos que se tornam passageiros, passageiros que vão-se embora numa foto em preto e branco de uma memória atordoada. Nestes velhos momentos, marcados em minha mente neurótica e delirante, tinha-se primeiro o sentimento e depois só o ressentimento. Tudo vem de uma pureza divina, de um ato de amor em estado de espírito, tornando-se posteriormente impuro, satânico e odiável. Aquilo que é potencialmente belo é potencialmente feio. Só Deus pode converter-se no puro mal, mas não o faz por ser a negação de si mesmo e até a sua onipotência observa a lógica - Deus só faz aquilo que é logicamente possível. E é nas andanças amarguradas que podemos extrair o fel da anti-abelha: um ato de amizade é potencialmente um ato de inimizade até que se torne inimizade. Tudo nasce de uma pureza de espírito para apodrecer na cicatriz da carne de um velho defunto. Todavia estou aberto: meu gosto agora é de plástico, ele não reflete a mim mesmo, visto que é só uma parte de mim. E quanto mais meu ser se recorda de si mesmo, mais ele vai do plástico para a carne e da carne para o espírito. Ainda sou idiota o suficiente para pagar uma passagem para uma nova escravidão: "porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço" (Romanos, 7, 19). Pois como esse ser adâmico estou preso no cadáver de minha carne enquanto relutantemente meu espírito luta para libertar-se do prejuízo da putrefação de seu corpo desajuizado que sempre se mergulha na antiga e nova iniquidade. E, nas palavras de um ex-amigo, que reproduzo mal por ausência de boa memória: "hoje eu vi alguém que só me trás más recordações". Assim eu de fato sou: doce, agridoce e azedo. Sou uma flor bonita até descobrir que sou uma anti-flor atômica parecida com a de Hiroshima. Só espere o Outono reiniciar, pois o começo do fim termina no começo, logo volto a ser doce, para voltar a essência inconstante de minha constância.