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domingo, 16 de junho de 2024

Acabo de ler "A Tirania dos Especialistas" de Martim Vasques da Cunha (Parte 3)

 


A palavra IYI (abreviação de "intellectual yet idiot = intelectual, porém idiota") é bem exemplificada aqui. Existe uma estupidez inteligente e todas as inteligências, por maiores que sejam, estão sujeitas a terem traços de idiotia. É da natureza humana estar sujeita a imperfectude e por mais grandioso que um intelectual possa ser, ele sempre terá falhas. Não reconhecer a tendência a cometer erros é o que implica psicologicamente a alguém ser um intelectual estúpido ou um estúpido inteligente. Não saber que intelectuais podem ser estúpidos e ter pontos de vista deformados graças a uma adesão perniciosa a uma ideia é o que faz da modernidade um palco para os mais estúpidos intelectuais.


A tirania dos especialistas – título do livro, por sinal – surge da ideia de uma elite iluminada que guiará o mundo, através de muita modelagem e engenharia social, ao progresso. Essa tendência tecnocrática – consciente ou não – é amplamente observável no meio acadêmico. Os intelectuais, a elite técnica, teria a capacidade de se tornar uma espécie de "novo deus" e, em sua unidade de técnicos/especialistas, daria luz a um mundo perfeito onde todo mundo é feliz e não há opressão. É evidente que esses especialistas ao amontoarem o poder para si, tornam-se, pouco a pouco, detentores de poderes que estão acima do horizonte de possibilidades do cidadão comum. Ou seja, justificam a si mesmos como uma casta iluminada que pode alterar a vida de qualquer cidadão sem que nenhum cidadão possa fazer qualquer coisa.


A elite iluminada dos especialistas é irresponsável, ela não liga para as consequências do que intelectualmente afirma e é psicologicamente imune à capacidade de autocrítica – visto que não se vê como defeituosa e passível de erros. Em suas certezas dogmáticas, pegam prontamente o poder para si e remodelam a humanidade de acordo com os seus gostos. O poder dos especialistas aumenta prodigiosamente ao mesmo tempo em que a sua capacidade de tiranizar os outros se torna maior. Um dia, os especialistas se tornaram metodológicamente aptos para quebrar qualquer "direito humano" que anteriormente defendeu.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Paulo Francis, Polemista Profissional" de Paulo Eduardo Nogueira

 



O que define um intelectual marcado pelo paradoxo? Sua aversão à crescente coletivização da consciência acadêmica em prol duma seitização do debate me encanta. Sabemos que, hoje, há uma tendência perniciosa que confunde escolas de pensamento com unidades doutrinais de sistemas teológicos que só podem ser aderidos por inteiro ou negados por inteiro. Com tal comportamento, vemos a negação sistemática do livre pensamento, do livre exame e, por fim, da consciência individual como consequência lógica deste encadeamento trágico.


Paulo Francis é um homem contraditório, de erros e acertos. Isto não é uma desqualificação: é a própria natureza humana que assim o é. A humanização do debate, se considerada seriamente, começaria pela aceitação da subjetividade humana. Isto é, em vez da classificação e adesão restrita aos conteúdos unitários de escolas de pensamento - tomadas em sentido religioso -, teríamos que considerar a pessoa, sua subjetividade e a individualidade de sua construção intelectual. Atualmente o que temos é um classificacionismo que visa, antes de tudo, transformar o debate em ordens tribais em que as pessoas são justificadas perante a sua tribo e condicionadas a elas.


A própria hipótese de que alguém possa, por livre exame, chegar a uma construção intelectual autêntica soa como uma heresia e é tomada com desdém ou com incredulidade. Em vez de pensar na pessoa em si, pensa ela em relação ao grupo e ao suposto grupo que pertence. O debate sempre terá frases como "isso vai em contradição com o seu grupo" ou "você está em contradição com a sua escola". Aos partidários dessas seitas infernais, uma resposta é necessária: minha escola é o mundo e meu método é o livre exame. Intimamente a consciência individual importa mais do que o (auto)condicionamento irrestrito.


Francis errava, como todo ser humano. E errar é da natureza humana. As críticas a Francis escondem mais do que ao erro "X" ou "Y", escondem uma postura disciplinada de tribalismo coercetivo que condena sobretudo a quem pertence supostamente ao grupo que se odeia ou ao grupo que se deve aderir fielmente como crente.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Análise de "O Enigma da Religião" de Rubem Alves - Parte 1

 



A ideia de que possamos ter uma vida intelectual neutra é uma ideia que não possui cabimento. O ser humano sempre encara a realidade sentimentalmente, visto que viver implica em sobrevivência e sobreviver carrega emoção. Não há como permanecer neutro para com a vida, logo não há como ser intelectualmente neutro.


A religiosidade é busca pela transformação simbólica do mundo. A religiosidade é o alicerce que tenta sintetizar desejo e ambiente. Tanto que a manifestação máxima da religião é o paraíso: neste momento, desejo e realidade são o mesmo. Toda busca por transformar o mundo caótico numa "ordo amoris" é uma busca religiosa. O homem está, neste sentido, condenado à religião - mesmo que não saiba disso de maneira consciente.


No entanto, o mundo atualmente está situado numa situação cruel. Quando vamos crescendo, influências do mundo externo adentram em nosso psiquismo e formam nossa visão. Essa visão é um "acordo silencioso": enxergamos a realidade por meio desses olhos e não questionamos os nossos olhos. A vida intelectual autêntica é um questionamento constante de nossos próprios olhos. Não se trata tão somente de questionar o que se vê, visto que isto é só um julgamento ou simplesmente arrogância, trata-se de questionar os próprios olhos e, com isto, abrir a percepção para que a capacidade de ver aumente.


Um ser que queira se libertar precisa constantemente se abrir através da autocrítica, este movimento aumentará a sua capacidade de perceber e, por fim, será melhor na arte de julgar. Porém a abertura deve preceder à crítica. O aumento do horizonte de consciência é mais importante que o julgamento, visto que o aumento da inteligência possibilita uma maior capacidade de julgamento.


O homem, ao ser um ser contingencial, não tem o direito de ser sério. Já que o homem é limitado e só pode fugir de suas limitações ao rir de si mesmo, questionando e relativizando suas crenças passadas em uma síntese com a cultura presente de forma a se locupletar e tornar-se mais sábio. A sabedoria é um paradoxo: questionar fortemente a si mesmo e acreditar que possa superar infinitamente a si mesmo.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Da Possibilidade de Inteligir




1. A inteligência é de natureza diferente da razão. Enquanto que a razão se propõe a aplicar aquilo que o horizonte de consciência já abarca, a inteligência é a faculdade que possibilita a própria expansão desse horizonte de consciência. Tornar-se mais inteligente é, então, transcender o próprio universo que se está inserido intelectualmente. A inteligência só aumenta quando a experiência - e experiência é projetar-se para fora - aumenta. Só que a experiência requer a negação de si.


2. A inteligência é, então, o objetivo primordial da vida intelectual. Todavia a inteligência encontra um obstáculo que lhe pesa em sentido tensionalmente contrário. Esse obstáculo é a natureza da vontade que busca, acima de tudo, não o fenômeno em si, mas o analisante do fenômeno em questão. O que o homem, fanatizado narcisiacamente consigo mesmo, busca não é a natureza dos objetos que observa, mas aquilo que lhe é conveniente aos seus próprios gostos. Tão logo tua cabeça pendula ao que lhe é próprio ou que lhe seja agradável, mas nunca para algo que fuja do próprio gosto que lhe encerra.


3. A diferença primordial, aquilo que define o conhecimento filosófico por si mesmo, de uma tarefa substancialmente filosófica é o encontro com a sabedoria. Só que a sabedoria é um paradoxo, ela requer algo além da razão, ela requer um movimento negativo de afirmação. Ir para além dos domínios e gostos é o dever do filosofar, porém essa esbarra no ego. A natureza do discurso filosófico, em sua máxima depuração, não é a definição doutrinária. A natureza do discurso filosófico é a aporia, um discurso que aumenta a qualidade e a quantidade do saber, só que nunca se encerra. Não determinar-se é o que determina a filosofia.


4. É necessário não confundir a filosofia com o ceticismo extremado. Para o ceticismo brutal, o conhecimento é de natureza impossível visto que não se pode adicionar nada a ele - o cético extremo questiona tudo a ponto de ser impossível de afirmar qualquer coisa. O conhecimento se aperfeiçoa, amplia-se e perfectibiliza-se sem contudo esgotar-se.


5. É da atitude filosófica não negar ou afirmar algo por tabela. Seria incongruente a um pensador negar sistematicamente, visto que seria mais um movimento impensado e irracional. Negar ou aceitar sistematicamente: essa já é mais propriamente uma posição mais teológica que converge em pontos doutrinais - e, igualmente, das religiões políticas e seus ideólogos. A atitude filosófica é a de analisar propriamente cada afirmação ou negação contida numa série de pensamentos, caso por caso, nunca adentrando num movimento reativo.


6. A teologização do debate contemporâneo é de natureza desconhecida aos próprios pseudoirreligiosos que soterram o debate intelectual e acadêmico com sua volição exacerbada. A isso se deve ao inconsciente teológico encontrado inconscientemente na esfera de seu próprio discurso: quando esse tipo de pessoa põe-se a raciocinar, não encontra em si mesma nada que se funde autocriticamente. Pelo contrário, é próprio deles analisar todos os fenômenos como um narrador onisciente que, bem ou mal, está aquém de todos os erros possíveis. Por causa disso, inconscientemente se veem como seres dotados de inteligência omniabrangente, acima dos erros de todos os seus contemporâneos e ancestrais. Esse vício mental caracteriza, em muito, a argumentação contemporânea. A pessoa entra numa certa forma de onipotência intelectual sem sabê-lo - e a vaidade come pouco a pouco a sua capacidade de inteligir. 


7. Se eu pudesse definir o que é inteligência, adentraria no posicionamento chestertoniano, defini-lo-ia como um paradoxo. Quando Chesterton diz que os homens querem escolher qual a melhor prisão, ele fala dum ponto epistemológico de altíssimo nível. A razão é viciada por ser a aplicação do que já se sabe, a inteligência é a abertura construtiva do intelecto. Nesse ponto, não se trata de escolher entre dois pontos ou mais, mas sim criar um mundo monumental via apreensão da realidade. Escolher entre um raciocínio ou outro é optar em qual lugar ficará a sua prisão.


8. Sendo assim, pensemos num quadro que, pouco a pouco, aumenta de tamanho. Essa regra que fixa a própria inteligência. Isto é, o desenvolvimento da inteligência é a própria abertura complexuante do ser que aumenta a cada dia o seu saber por múltiplas vias. Não é sobre escolher ideologia x ou y.


9. Quando vemos alguém que, graças a um ou mais pontos de divergência, histericamente coloca-se contra algum conjunto de ideias, não temos aí um uso da inteligência e muito menos um exercício filosófico. Temos, pelo contrário, um movimento reacionário. Reacionário no sentido se que reage a algo. Na verdade, o que temos é alguém que teve o ego ferido devido a uma argumentação ir contra àquilo que ele acredita. Nesse ponto, só podemos exigir tolerância ou maturidade, visto que encontramo-nos no seio duma sociedade democrática.


10. Indo em relação a religião, muita coisa se fala e pouca se é compreendida. Em primeiro lugar, sendo íntima ou não, nenhuma discussão religiosa se pauta pela relatividade absoluta das crenças. Pelo contrário, a teologia de qualquer religião sempre se pautou no avanço de sua própria ciência teológica. Por exemplo, sabe-se mais sobre teologia cristã hoje do que no século I. Não saber disso é, propriamente, não saber o básico de religião. É nivelar puramente por baixo o pensamento religioso. É como dizer que, sendo a religião puramente objeto da subjetividade, pouco importa se o cristianismo vem de um dos maiores teólogos de todos os tempos ou se é formada por um semi-analfabeto. Também é ignorar os progressos encontrados no debate acadêmico dessas áreas.


11. Exigir que todo discurso se dê tão unicamente pela via natural é como não entender também o básico de teologia. Toda crença natural de um religioso advém duma crença preternatural. Acreditar, por exemplo, que a Doutrina Social da Igreja Católica se fundamenta pura e simplesmente em conhecimentos naturais sobre a sociedade é ultrapassar os limites da baixeza intelectual. Todavia essa mesma Doutrina Social da Igreja Católica é posta em linguagem puramente natural. Só que a impossibilidade de viés religioso faria com que, até os conhecimentos expostos em forma natural, tudo que é de natural porém de origem de pensamento religioso fosse amplamente ignorado pelos próprios religiosos na hora de sua argumentação. O que seria o mesmo que dizer: "você deve ser puramente materialista nessa argumentação". Uma tirania instalada ao gosto de naturalistas, a exigência de apostasia provisória para a frequentação de lugares públicos.


12. Só que a discussão sobre a ausência de viés religioso censurará mais do que religiões tradicionais como budismo, islamismo ou xintoísmo. Ela atacará várias constatações ideológicas de fundo religioso. Como, por exemplo, o fenômeno da imanentização escatológica (comunismo, Estado mínimo, sociedade regida pela Ordem e Progresso). Além da soteriologia revolucionária, seja essa marxista, liberal, anarquista, positivista ou o que for. Assim, todo e qualquer discurso, poderia ser impossibilitado se aplicado com rigor. Além disso, toda mensagem que fala sobre o sentido último da natureza humana - a ontologia em sentido final - contém um fundo religioso. Religioso no mais exato sentido do termo: a religação com algo que se veja como primordial - coisa que ocorre em quase toda esfera discursiva.


13. Não vou exigir, é claro, que meus colegas de grupo sejam capazes de compreender pensadores tão complexos como Tilich, Barth, Ratzinger, Lonergan, Teilhard de Chardin, etc. Eu mesmo sou um agnóstico convicto e não creio em nenhuma religião propriamente dita, embora eu não seja reducionista a ponto de acreditar na ideia de que eu poderia suplantar toda essa longa e complexa discussão nesse âmbito.


14. Só que há um porém que se apresenta diante de minha argumentação: a ideia de sistematizar o agnosticismo, criando um sistema de pensamento agnóstico, é em muito baseada na ideia de abertura ao absoluto e tem fontes místicas notórias, embora seu "fundo" seja plenamente natural. A abertura radical é, para mim, crença central e de fundo e viés religioso.


15. Ora, toda a minha epistemologia é formada numa crítica a gnose e suas formulações modernas por meios ideológicos. Se assim não o fosse, não se chamaria de Agnose a forma que me considero. Vejo, nas formulações políticas, uma forma religiosa de pensamento. Buscando a superação disso, busco uma saída agnóstica ao pensamento religioso-político das ideologias (fascismo, liberalismo, socialismo, positivismo, etc). Sem esse pensamento, toda a ideia de criar um sistema de pensamento agnóstico se perde e a minha própria substancialidade como intelectual também.


16. Tudo que projetei até o presente momento tem como busca a abertura radical do ser a universalidade que nunca poderá ser realizada, mas que lhe surge como tarefa primordial. Quando escrevi sobre a neossistemática como uma tentativa de superar os limites do mundo pré-inteligível era nisso que pensava: na superação do pensamento condicional. Quando critiquei o aspecto coletivo-normativo e propus uma nova interpretação de livre-exame, fiz-o com a mesma intenção. Quando estive a criar um método de meditação chamado Ouroboros para encontrar uma forma coerente de autocrítica, o objetivo era o mesmo. A ideia de desconstrução niilidionisíaca das ideias segue o mesmo pressuposto: a relativização para plenitude sintética do ser, visto que o ser só é ser enquanto absoluto. A posterior crítica ao pensamento tradicionalista pelo erro da inversão ritualística e a crítica ao esquerdismo pelo imperativo histórico categórico igualmente. Até mesmo a ideia de delimitância indelimitada como desenvolvimento do ser segue a mesma linha. O próprio método de leitura que envolve uma engenharia mental reversa envolve isso. Tirando o "viés religioso" a própria possibilidade de tudo que eu criei é, por assim dizer, inexistente e contraditória.


17. Se a minha busca pela superação das incapacidades de inteligir se baseia estruturalmente num estudo aprofundado da religião e, igualmente, na consequente abertura ao absoluto (loucura verde ou condução do inconsciente como metodologia epistemológica): não há nada que eu possa fazer quanto a isso. A fé na aleatoriedade da desordem e, igualmente, na leitura das mais diversas linhas de pensamento para superação da diversidade marginal que aprisiona o saber é consequência lógica do sistema que sistematizo. Ou devo jogar no lixo todos os anos de estudo e pesquisa para ter uma argumentação de viés irreligioso - embora contraditoriamente inconscientemente religiosa no discurso de meus colegas - ou devo ir embora.


18. Mesmo que minhas crenças sejam de caráter conscientemente naturais (o que não é nenhuma surpresa, visto que sou agnóstico), o fundamento último é a religação com a abertura radical do ser - a busca pela universalidade pelo impulso negativista de negar-se para mais abarcar simbolicamente a totalidade do real. Logo meu viés, mesmo que naturalista, é religioso, visto que se liga ontologicamente com uma afirmação última que valida minha existência e expressa aquilo que mais acredito. Tornar-me inautêntico falsificando minha existencialidade não é opção. (Você não sabe verdadeiramente quem é até saber pelo que você morreria para defender).


19. Parece que, devido aos últimos posicionamentos, terei que continuar sozinho em minha jornada. Admito que, em minha índole tempestuosamente pessimista, nunca esperei o contrário - vida intelectual e perda de amizades sempre se consubstanciam. Como não cabe entrar nessas questões, dou espaço para aqueles que não conseguem entrar nelas ou as odeiam. Tenho certeza que o grupo conseguirá ir em frente com suas ideias, visto que são "avançadíssimas". Possibilito todo espaço restritamente epistêmico que vocês ansiosamente querem.

sábado, 21 de maio de 2022

VOCÊ NUNCA SERÁ FELIZ SENDO PAULISTANO!



Esse é um texto pessoal, lide-se ou sofra. E você pode dizer: “isso é normal de qualquer local do mundo contemporâneo”. Só que se lembre: alguns locais são “bem mais contemporâneos que outros”.


Deixem-me jogar uma “redpill” sobre a capital paulista e o seu povo (paulistano). Talvez ela seja útil para quem tem a ilusão de que viver aqui seja uma coisa boa ou sensata a se fazer devido "a oportunidade de emprego, a diversidade da cidade e comidas do mundo todo, né?". Há, há, há. Você quer pagar o preço de sua alma tentando essa hipótese, meu caro tolo?


Não sei se vocês sabem, mas São Paulo é a cidade mais multicultural do Brasil. Talvez vocês achem que isso signifique a vivência de um sonho em que se pode comer comida de, hipoteticamente, qualquer lugar do mundo – e quiçá isso até seja uma coisa boa. Embora deva-se sustentar que: diversidade alimentícia é só um dos aspectos da experiência geral do todo e o efeito do todo, dentro de São Paulo, nunca é bom. Se isso não lhe serviu de argumento suficiente, lembre-se de uma coisa: nenhuma comida alterará o vazio que você sente por dentro. São Paulo tem tantas formas distintas que não há senso algum de unicidade que ligue a coisa toda e promova uma identificação real, desproporcionando o sentimento de pertencimento graças à ausência de um padrão conexual, mesmo que mínimo, que interligue todas as redes de estruturas que ali estão. É mais um caos sem forma do que uma unidade de variáveis. A consequência de viver aqui é o desgaste contínuo até o arrependimento constante. Eu já perdi as contas de quantas vezes me senti intensamente infeliz só nas últimas semanas. E pior do que isso: o desejo suicida aqui criado é de caráter inconsciente, você enlouquece calmamente e viciosamente sem prazer, tal como dizia uma música do Lobão ("Essa noite não"). 


Vivo em São Paulo há vinte e cinco anos, nasci e cresci aqui. Desde lá, nunca conheci um único paulistano que não tenha tendência suicida – e eu não conheci pouca gente. E, não, não importa a falsificação do discurso por trás disso. A esquerda está ocupada demais odiando o mundo injusto que supostamente está inserida, mesmo que a esquerda paulistana seja uma das esquerdas mais ouvidas e mais organizadas de todo país. Consegue-se, aqui, chegar-se a uma mobilização política de estatura alta e eficaz (ao menos para o padrão duma sociedade capitalista de “terceiro mundo”). Não, esse texto aqui não é uma crítica das pautas da esquerda - sou a favor de grande parte delas - e sim um reconhecimento de que, na realidade, tudo que há em São Paulo são hiperestímulos e movimentos múltiplos de exaustão incessantes. Quanto a direita - aqui trato da direita conservadora ou tradicionalista, esquecendo os "neoconservadores" já que nem conservadores eles são -, ela vê as coisas desordenadas demais para se sentir feliz por aqui e os mais sãos dão a "foda fora" (ok, eu uso chanspeak). Quanto mais a esquerda realiza a sua pauta de tirar de São Paulo qualquer valor autenticamente paulistano - se é que se pode falar de "valor autenticamente paulistano" nessa grande teia de multiplicidades que se alternam por aqui - e inserir São Paulo no cerco mais globalizado e cosmopolita do mundo, mais se sente insatisfeita com a própria pauta e mais radicalmente luta por ela (circlejerk [circulo idiota]?). Acontece que há uma razão para isso: quanto menos pertencimento você tem com o local que você mora, menos satisfeito você se sente com ele – e menos você o ama (Capitão Óbvio). É como aquele manifesto identitário, a esquerda 68tista criou um mundo sem pátria, sem religião, sem divindade, sem família. O resultado não é a imanentização escatológica de John Lennon na música “Imagine”, o resultado é a própria pessoa desgarrada de qualquer sentimento de pertença que lhe seria vital e, por conseguinte, uma fábrica de suicidas potenciais. Um mundo em que tudo se dilui é um mundo de uma massaroca genérica e sem singularidade, o preço da diluição de tudo não é a produção de singularidades, mas a destruição de qualquer possibilidade de singularidade e subjetividade. Se eu disser que todo paulistano é um potencial suicida, talvez a fala fosse um exagero quantitativo, mas não seria um exagero qualitativo. Por outro lado, a direita olha pra tudo, vê que não tem conexão com absolutamente nada, choca-se com a disformidade e, por fim, mata-se ou "dá a foda fora" - e a direita liberal contribui para a destruição de qualquer senso de pertencimento junto à esquerda pós-moderna, o que leva ao eterno lenga-lenga do fato de que a direita liberal (junto aos neoconservadores) é a direita progressista e é progressista no sentido mais profundo em que o progressismo erra. Só que há mais uma direita, de tendência radicalóide, que acha que pode voltar a um passado glorioso e ataca tudo reacionariamente como se isso fosse um meio de atuação efetivo e congruente.


A constante ideia de que a história segue linearmente é assumida simultaneamente por quase todas as esquerdas. Porém não esqueçam de um fato: o neoconservadorismo se assenta numa visão idealizada dos Estados Unidos e importa o seu modelo cultural para todos os países, em alguns casos gerando verdadeiras revoluções que, para qualquer pessoa razoavelmente pessimista (e, par excellence, cética da política e verdadeiramente conservadora e no melhor sentido de conservadorismo), nada tem de fato de conservador. O neoconservadorismo destoa-se do conservadorismo real, já que o neoconservadorismo crê na linearidade da história e tem por objetivo a imanentização escatológica. É por isso que o "neoconservadorismo" nada mais é do que um revolucionarismo americano, uma besteira que só poderia ser criado – e de fato foi – por ex-esquerdista que tiveram formação conservadora de caráter deficiente. Por conta disso, neoconservadores são tão ruins quanto esquerdistas pós-modernos e liberais pós-modernos em seus excessos. Neoconservadores têm um programa para São Paulo: transformá-lo num grande anexo cultural da cultura americana dos anos 50. O que não é uma identidade paulistana e, falando em identidade paulistana, quase ninguém mais faz a mínima ideia do que seja. O neoconservadorismo não é uma forma de conservar a sociedade, nem de reformá-la: é uma macaqueação dos padrões americanos. 


Se o progressismo é bom na medida em que traz pautas fundamentais ao desenvolvimento da humanidade para uma situação mais justa e equilibrada, o conservadorismo é bom na medida em que mesura as medidas experimentais com as medidas já testadas pela força do tempo. A vida é uma dialética constante entre mudanças que precisam ser feitas e condições que precisam ser mantidas. O teste contínuo de novas ideias levadas a cabo, de forma exaustiva, pode colocar em risco todo o desenvolvimento já adquirido pela sociedade. Por outro lado, a mera inalterância corre o risco de paralisar a sociedade e fazê-la estacionar no tempo. Povos fracassam por terem sido experimentais demais (progressistas) e/ou por terem sido estacionados demais (reacionários). Nós nunca sabemos onde estamos nos metendo de fato, tudo envolve cálculo e a política é sempre instável para as vãs e tolas previsões humanas. Só que a discussão aqui já se furtou a muito tempo. Temos neoconservadores que querem um padrão alienígena e progressistas que querem a total diluição da cidade em múltiplas formas que se perdem.


Tá, vamos voltar ao assunto de São Paulo mais propriamente. O nordestino se vê encarcerado num local que não o respeita e que não lhe dá boas oportunidades. Ele nem sabe que hoje em dia, São Paulo é tão ruim com os nordestinos tanto quanto é aos próprios habitantes – ignorando-se a xenofobia, ao menos na criação de uma atmosfera que leva todos ao surto a cidade de São Paulo é igualitária. O paulistano nem sabe a razão de seu sofrer, ele nem sabe que toda a arquitetura paulistana influência em sua sentimentalidade continuamente e o faz depressivo: prédios genéricos e de cores semelhantes (ausência de singularidade em prol da produtividade capitalista?, sei lá), padrões destoantes, arquitetura feia ou desgastada e sem política adequada de conservação, trânsitos que se prolongam em todos os dias da vida, ruas sem asfalto decente ou cheia de toscos preenchimentos superfaturados, nenhuma sensação de acolhimento ou qualquer caráter de historicidade que o ligue à terra nascente – agradeça a esquerda que queria tirar o caráter patriótico e regionalista paulista e, sobretudo, paulistano (e, olhem lá, eles foram bons pra caralho nisso). E o orgulho paulistano? “Nós pelo menos temos metrô”. Como se um sentimento patriótico, nacionalista ou regionalista se construísse com base no tamanho do local, do metrô ou de qualquer outra coisa que seja um produto secundário ou acidental de ações de pessoas bem-intencionadas e amorosamente inseridas num local durante um percurso histórico determinado. As coisas não são grandes e por isso são amadas, as coisas são amadas e tornam-se grandes por serem amadas. Esse é o problema do paulistano: não tendo um amor real por São Paulo, é incapaz de ter um espírito civilizatório crescente que faça com que a sua cidade se torne cada vez melhor. Dessa ausência de amor, a corrupção torna-se ignorável e o produto mais amável é o suposto desenvolvimento que a cidade tem. Só que não se esqueça: os problemas daqui continuam sendo corrigidos a passos de tartaruga, sendo simplesmente ignorados ou crescendo em meio a falsos estancamentos de políticas disfuncionais e o superfaturamento é altamente rentável para uma classe cleptocrata de patrimonialistas organizados que lucram em meio a nossa crescente destruição. Mas, tudo bem, para você a civilização pode ser uma bobagem e o patriotismo uma força de exercer a xenofobia. Você pode acreditar que o mundo se desenvolve pela ação de pessoas que desprezam o local que vivem, mesmo que isso seja flagrantemente contraditório. Amar a minha casa não quer dizer que eu deva odiar a do vizinho, tomá-la pra mim ou odiá-lo por ser meu vizinho – o mesmo é válido para pessoas de outra naturalidade ou até mesmo os possíveis alienígenas. Vale lembrar: o metrô não mata o vazio que você sente no seu peito.


Eu não estou fazendo ode à família tradicional, a religiosidade reacionária ou ao apego regionalista separatista. Creio que a família existe como um centro de poder que pode, se assertiva, potencializar cada indivíduo que esteja dentro dela. Se a família é o núcleo básico e a capacitadora imediata do ser nascente, uma boa família – e não: não estou dizendo “família padrão socialmente aceita e normativamente enquadrada” –  é capaz de dar ao filho e a filha um bom direcionamento. O legado da família é a crescente realização de seus membros – assim deveria ser o legado de todos os agrupamentos sociais. Família, escola, instituições, cidade, governo: tudo isso é centro de poder, formado por indivíduos, cada qual deveria ter o objetivo de transformar os seus membros em pessoas cada vez melhores. O espírito civilizacional é um esforço crescente de pessoas que estão determinadas em elevar-se além das condições que lhes eram anteriores. Só que isso só existe esporadicamente, ninguém está preocupado com a sociedade como um todo. Por vezes, nem com o desenvolvimento da própria família. O que mais precisamos é de que todos os grupos, do mais microcósmico ao mais macrocósmico, preocupe-se com a elevação da potencialidade de seus membros e, igualmente, com a condição física dos lugares que seus membros habitam. Só que entramos naquele “papo chato do amor”: sem o amor, não há predisposição para o bem para o outro – e nem para si mesmo. Esse monte de gente está tudo no mesmo local, só que cada uma atomisticamente separada e em um “eternos monólogos de objetivos”. O único grupo preocupado na elevação contínua da qualidade de seus membros – ignorando as contínuas brigas que têm dentro de si – é a elite cleptocrata patrimonialista. 


A religiosidade segue o mesmo sentido que deveria ter a família. O esforço religioso é a apreensão dum caráter iluminoso que transcende a própria contingencialidade humana e que nunca será, ao todo, abarcável. Tendo o ilimitado por base: a busca religiosa é sempre uma abertura ao infinito que descondiciona e deslegitima os limites que eram anteriormente intransponíveis. Só que esse aspecto de abertura ao infinito, superador das barreiras do imanente, que se projetava em todos os sentidos foi esquecido pela falsidade religiosa contemporânea. Se um religioso dedicava-se aos pobres, dedicava-se todos os dias para atender melhor os pobres. Se um religioso era intelectual, dedicar-se-ia todos os dias para aperfeiçoar-se na maestria da arte intelectual. A religião é espiritualista, seu fundamento é na busca do além de si. Transcendentalizar-se é superar-se. Porém a religião se perdeu por duas vias, seja na corrupção de esquerda ou de direita. Há aquelas que reacionariamente se portaram, tornando-se uma espécie de seita que idealiza o retorno ao passado perfeito – diferente do paraíso posterior defendido por qualquer grande tradição religiosa e que nada tem a ver com as promessas ideológicas (religiões civis: liberalismo, marxismo, anarquismo) de paraísos terrenos. Há, no entanto, aqueles que capitalização o discurso religioso para defender as velhas bobagens das esquerdas (a imanentização escatológica, o paraíso terrenal) e com isso ter poder político. Como se, mudado as condições, o todo da realidade humana fosse alternável pela engenharia social. Fora que há a dualidade corrupta entre: capacidade de gerar lucro (mercadologismo) ou acessibilidade democrática (vulgarização ou acessibilidade como sinônimo fetichista de democracia) só destrói a religião. A religiosidade é a busca pelo reino que, bem ou mal, transcende a esfera do atual e encontra-se superior a ele: é a própria caminha pela realização de um mundo melhor que não se concretizará aqui, mas será continuamente realizado de forma imperfeita – é claro que tudo se torna melhor com o nosso esforço, porém a melhora nunca é absoluta e toda promessa de melhora absoluta é uma ilusão de pessoas que se perderam na própria abstração. Além de que: as pautas de transcendência transcendem, por muitas vezes, as próprias necessidades econômicas do regime capitalista. Não por acaso, existe uma religiosidade autêntica que é anticapitalista ou apresenta pontos que não compactuam com ele – sem, contudo, tornar-se esquerdista. Fora que mesmo sendo a transcendência disponível a todos, ela requer um esforço de querer superar-se que não é da vontade de todos – a transcendência é “democrática” no sentido de que todos podem melhorar alguns pontos de si mesmos e de suas condições, porém mesmo que sujeita as condicionalidades que circunscrevem as vidas dos sujeitos, o esforço por querer mudar depende do ímpeto de cada um e da capacidade de aristocratizar-se (melhorar-se) como vocação. Outro lado que entrava a religiosidade é o próprio neoconservadorismo que avança com força, feito por uma série de igrejas mercadologicamente colocadas, com a pseudomística da teologia da prosperidade e aquela velha bobagem da mentalização psíquica como forma de atrair qualquer objetivo – geralmente estúpido, temporal e puramente material – para o colo. A reflexão intelectual verdadeira, que as formas verdadeiras de religiões impõem, é esquecida. Se o ímpeto religioso é uma abertura sem limite, a mentalidade religiosa abrir-se-ia ao próprio discurso intelectual que lhe é contemporâneo e apresentar-lhe-ia um discurso que lhe é cabível. O objetivo básico, primário e de suma importância da religião, o de reconectar-se com a instância última e primeira da vida, é esquecido completamente pela maioria dos religiosos do Brasil e eles vão muito bem com isso – e a religião vai mal, seguindo prostituída e/ou instrumentalizada para os mais diversos fins escusos.


Quanto a condição individual e o ser autorrealizável, há algumas coisas que devem ser ditas. O ambiente paulistano é péssimo para isso – é péssimo para qualquer realização de ímpeto mais ou menos transcendente. Você só poderá ter um pouco de autarquia (domínio sobre si) se ignorar toda a realidade que o cerca – e você terá que se esforçar para isso. Toda a teia de contínuas e múltiplas estimulações o fazem se perder numa série de múltiplos atos que condenam uns aos outros. Tendo múltiplas cabeças, uma ataca a outra e todo projeto se destrói. Ao paulistano, cabe a calma e o foco que, bem ou mal, fogem da realidade que o cercam. Ele precisa discriminar, escolher um único projeto e encabeçá-lo como escolha de vida – bem diferente do meio multicultural, cheio de opções e sem compromisso identitário a qual vivemos – ao menos que por um tempo limitado e concreto. Só que a pessoa está divorciada da intimidade de si mesma. Perde-se na coletividade ou na ausência de intimidade de si para si. Há diferença entre nutrir ideias políticas e organizar-se coletivamente para realizá-las para com esquecer-se da própria singularidade e tornar-se um ser condicionado a uma abstração coletiva. Infelizmente, o reducionismo politicista (“política é a única coisa que importa, é a realidade última do homem”) faz o homem esquecer-se das outras realidades tão reais quanto a própria política e subordinar-se a uma série de coletividades que, considerando a política a realidade última do homem, fazem-nos esquecer-se de seus outros objetivos vivenciais. É como se a perca de uma reforma, uma eleição ou uma campanha fizesse com que toda outra realização em outro setor vivencial fosse inutilizada. Se perdeu o objetivo político, perdeu também a família, a vida profissional, a vida espiritual, a vida intelectual, a vida cultural, tudo foi pro ralo ou a sensação psíquica é exatamente essa. É possível realizar-se em uma esfera enquanto perde em outra, não estamos num mundo unidimensional e a ausência de percepção disso esvazia a própria capacidade de realização. Não há possibilidade além da tribilização e seitização.


Conversando com um amigo fluminense, há uns quatro anos atrás, ele falou de como as pessoas se encontram ideologicamente afirmadas em São Paulo. Hoje eu não diria que se encontram “ideologicamente afirmadas”, eu diria que se encontram “ideologicamente reduzidas”. Existe uma condição de leitura a qual chamo de “leitura camisinha”. Isto é, ler outra vertente de pensamento só quando um autor de sua linha lhe diz como é essa linha de pensamento. A adoção de um padrão ideológico leva uma redução da capacidade da inteligência. Já que inteligência é o aumento do horizonte de consciência e razão é a aplicação daquilo que se sabe a uma realidade ou hipótese determinada. Exemplificando, é mais inteligência aprender múltiplas linhas de pensamento do que aprender uma única e aplicá-la em tudo. Porém a ideologização fecha a pessoa na redução da realidade, tornando-o um fetichista mental que aplica a sua forma de pensar em tudo em vez da preocupação em aumentar a própria capacidade de pensar. E é óbvio que, numa época tão dominada por fetiches mentais como essa, perder-nos-íamos num aspecto tão elementar quanto a diferenciação entre razão e inteligência, não é? Já que a mediocridade de nossa era consiste num uso exaustivo da vontade (faculdade de decisão) em vez da inteligência (faculdade de apreensão). Ser inteligente, tornar-se mais inteligente é um movimento de abertura e não de decisão. Inteligência é abertura e expansão daquilo que se sabe, vontade é a decisão, porém a inteligência potencializa a vontade e a vontade dobrada ao aumento percepcional potencializa a inteligência. Essa distinção fundamental tornaria tudo aqui menos fetichista e bobo. O resultado mais completo disso é a criação de grupos com uma mentalidade coletiva-normativa que ficam imersos em si mesmos como uma seita autohipnotizada (redundância, não é?).


Aí você escolhe: estude feito um louco, trabalhe feito um louco, faça as duas coisas feito um louco. Tudo em São Paulo é hiper estimulado e tudo deve ser feito com desgaste. Para sentir que se tem vida, faça tudo que faz até a exaustão. Aparentemente, todo paulistano está desgastado em sua adesão desgastante a qualquer coisa que faça. Se for desocupado, será o desocupado que quer demonstrar a sua própria desocupação todos os dias. Se for trabalhador, trabalhará até exaustão todos os dias. Se for intelectualizado, forçará a sua suposta inteligência todos os dias. Todo paulistano é excessivo e caricato pela sua própria excessividade, já que ele não tem ligação real com a realidade mesma que se circunscreve e que lhe trariam gosto pela Terra em que está: apreço ao religioso, inserimento na realidade local, sentimento de regionalidade, conhecimento da própria história, afetividade construída com o próprio percurso vivencial dentro dos locais que frequenta, uma família estruturada no sentido de garantir a potencialização de seu ser com uma história envolvente por gerações que lhe dão um sentido singular de vivência. No final, você bebe, fuma ou usa drogas ilícitas para ter uma efusão momentânea de prazer que, adivinha, vão te levar ao suicídio, a internação ou no mínimo reduzirão o seu tempo de vida. Sua escolha é viver dez anos a mil, só que essa sempre foi a única opção. Você não é hedonista e niilista por escolha própria, é por essa ser a via existencial mais acessível no mercado horrível em que está, por infelicidade do destino ou por burrice, inserido espaço-temporalmente. E você nem precisa ser paulistano pra sofrer disso: toda arquitetura zoada, ausência de cultura própria, caráter desgastante de todas as coisas farão que você vire um legítimo aspirante ao suicídio. Já conheci gente que veio “completamente apaixonada” e iludida pra cá. Eram “totalmente alegres” na medida em que essa aplicação hiperbólica e poética da linguagem o permite, feliz como uma abelha pegando pólen duma flor. Adivinha o que aconteceu com elas após alguns anos ou meros meses de “paulicéia”? “Necessidade” cada vez maior de suicidarem-se. Fora que o padrão exaustivo da vida paulistana faz com que tudo piore… É, esse é o espírito paulistano: você tem tantas cabeças que uma anula a outra por necessidade lógica, só que o processo é de natureza inconsciente e você nem sabe que está passando por ele – e, adivinhe só, você está sofrendo também por causa dele e pela autoanulação contínua do seu ser diante de múltiplas alternativas escolhidas que destroem umas outras preparando a sua psiquê para o surto e o suicídio.


Não se esqueça nunca disso: tudo na cidade de São Paulo levá-lo-á ao suicídio. Tudo levá-lo-á ao desgaste. No fim, o esgotamento é tanto que é melhor viver no interior do que nessa merda de fábrica de suicidas. Uma casinha organizada é melhor do que uma mansão caótica com todo tipo de problemas com os quais você tem que se lidar todos os dias de sua vida, porém, esqueça o que falei, baby, escolha o tamanho da gula com a qual você viverá (e regulará) a sua vida.