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quarta-feira, 16 de março de 2022

Acabo de ler "Homens sem Mulheres" de Haruki Murakami



Ler Haruki Murakami é sempre uma tarefa grata. O autor, já indicado ao prêmio Nobel de literatura, é simplesmente um gênio inigualável que goza de um estilo potente, sobretudo no aspecto subjetivo.

O livro conta com uma série de contos de homens que não têm mulheres. Não no sentido que não possuam nenhuma relação social, sexual ou romântica com mulheres. É no sentido de que o relacionamento não entra num tom mais perpétuo, num "relacionamento mais sério" (não, não vou entrar na polêmica do relacionamento aberto ou poliamor). Se questiona sobre o casamento, casar ou não tem a ver com isso, só que não inteiramente. De qualquer modo, são homens que não possuem um relacionamento muito estável.

Talvez o livro vá de encontro com a vida pós-moderna ou líquida, já que o termo modernidade líquida não é o mesmo que "pós-moderno" (esse pressupõe superação da modernidade). Ele vai de encontro com as relações de hoje: sempre mutáveis, com poucos laços duradouros e condições de "fidelidade única". Não poderia ser diferente, é um retrato das relações contemporâneas, de nossa sociedade - aqui sem nenhum juízo de valor do relacionamento ideal ou normativo ou o que quer que seja.

É impossível ler sem sentir nada, já que tudo em Haruki Murakami é descrito com uma subjetividade. Essa subjetividade que nos assombra ou nos encanta é o principal aspecto desse grande autor. Eu não deixei de sentir em nenhum momento, Haruki Murakami me prendeu a cada conto e cada um entregou uma sensação diferente, mesmo que a experiência central (homens sem mulheres) permanecesse a mesma.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Zumbis

 


Quando criança, eu já sabia. Eles um dia estariam lá. Não só pelas ruas, estariam nos metrôs e nos trens que se conectam com toda uma rede de locais que são pórticos de esperança. Não tardaria para que eles vissem, para que eles me cobrassem a tarifa da existência. Ignorei-os pelo fato de que achava que nada podia macular a minha integridade. A infância é sempre ditada pela tolice duma esperança ingênua e logo soube meu lugar no mundo: ou a vida zumbi que dilacera a carne do próximo na esperança que ele se adeque na solidão de seu corpo ou o suicídio idealista que a alma elava, já que no corpo não mais a contém.

Eu sempre soube que eles estariam também estariam nas linhas de trem. Caminhavam em seu sofrimento eterno. Condenados a comer a carne humana, condenados a destruir seus iguais e igualá-los em sua maldição. Crianças, adolescentes, adultos e velhos - nem mais crianças e adolescentes podiam se livrar do jugo da existência cadavérica. Todos deveriam caminhar zumbificados por todos os lugares, sempre e em todo lugar. Logo, nada diferentes do usual, nada diferentes dos seres humanos normais. E nada mais normal que a escravidão. Humanos, demasiadamente humanos, imersos em lodaçais de normas sem fim. Buscando um emprego prum sustento precário. Buscando o básico, o imanente, o nauseante nauseabundado.

Inicialmente desejei sobreviver, eu acreditei que era natural que o Sol se fizesse presente num novo alvorecer. Triste ilusão. A verdade é que o ideal sempre esmaga o real. Às vezes a gente aprende, por outras não. Por vezes só queremos acreditar que o mundo é burlável e que a alma é imortal - crença antiga e reacionária, portanto revolucionária para os parâmetros de hoje.


A noite aqui é sempre fim. Ela é sem fim, mas a Lua é sempre sem gosto. A Lua aqui nunca é mística e não há boêmia no amanhacer. Agora a rotina era mais que a rotina, a rotina era sem transcendência. Agora a rotina era utilitária sem a divindade da inutilidade que encanta a vida e o que objetivo da vida encerra. Era uma noite apolínea sem a dialética dionisíaca. Agora só era só isso, matar ou morrer. Infelizmente, viver não era viver. Infelizmente, viver só era sobreviver. Humanos tornam-se cruéis sem a domesticação da tirania, tão logo que se perde a elevada civilização, perde-se de igual modo a sobriedade da ideação corretamente ordenada. Não são agora só os zumbis problemáticos, são os estupradores, ladrões e aqueles que se fanatizaram pelo gosto pelo sangue, pelo gosto pela morte. Num mundo assim, do que adianta ainda viver? Viver aqui é inatural, já que tirando o sobrenatural do natural, sobra-se tão somente o inatural.

Eu escolhi. Escolhi tristemente, mas escolhi. Escolhi que fugiria dos zumbis na espera do próximo trem. Nesse trem, arquétipo da salvação da alma, entregar-me-ei de corpo para que salve a minha alma. Eu tinha que fugir dos zumbis. Eu tinha que fugir até de mim mesmo. Tinha que sair da cela não tão monástica de meu corpo. A cada dia, eles andavam lentamente ao meu lado. A cada dia, imploravam para que com eles eu caminhasse. Eles andavam sempre vagarosamente, o que era mais detestável era o cheiro. Cheiro cadavérico e distante de todo sonho. Cheiro de zumbi, conquanto cheiro de mim. Cheiro que só sobrevive e não vive. Alguns sem olhos, outros com tripas de fora. De tanto ao lado deles caminhar, cheiro deles já era cheiro meu.

 Quem eu sou? Eu sou o Hipo Cristo justificado, já que fui também crucificado. Um falso cristo, um cristo sem santidade. Cristo esse que tinha sonhos tão proféticos quanto o verdadeiro Cristo. Cristo esse tão crucificado quanto o próprio Cristo. A brutal diferença era que eu não tinha deidade e nem minha morte remia o mal do mundo, mas por ele era condenado. Adequei-me a cada dor. Aprendi com cada qual em seu ódio sem ódio. Com cada qual o ódio mortal, com cada qual o pior tipo de ódio, com cada qual o ódio realizado que matou o realizador. Eu não quero ser um zumbi, eu quero ser o ser amado e o ser que ama. Não quero ser encerrado num corpo que já não tem alma ou espírito, não quero ser um zumbi ou, mais precisamente, não quero ser um cidadão líquido duma pós-modernidade. Não quero, como eles, ser encerrado em um corpo desalmado, como num dia triste sem fim.