domingo, 30 de junho de 2024

Acabo de ler "8chan, a Twitter-Fossil" de Susana Gómez Larrañaga (lido em inglês/Parte 2)

 


Nome completo do artigo: 8chan, a Twitter-Fossil: A post-digital genealogy of digital toxicity


Existe a possibilidade de traçar genealogia que explique o surgimento e a expansão da toxicidade da internet contemporânea. Essa tentativa de compreensão da causa é de importância vital para o funcionamento da sociedade, visto que a toxicidade virtual tem efeitos sócio-colaterais e impacta na vida de pessoas do mundo inteiro. Se, por exemplo, temos nas democracias a noção de que a informação assegura um voto "mais consciente" e a desinformação um voto "menos consciente" garantir a segurança da informação e achar meios de coibir a desinformação é uma pauta existencial para a perpetuidade da própria democracia. Grupos virtuais virulentos – além de grupos reais que se utilizam do espaço virtual – buscam alterar informações no objetivo de adquirirem alguma vantagem, muitas vezes empregando falsas narrativas que aumentam a possibilidade de uma conjuntura mais favorável aos seus anseios. A desinformação não é só criada por pessoas incultas, mas também por pessoas má-intencionadas que visam debilitar a funcionalidade dos organismos informacionais.


Hoje em dia, é fato notório que a desinformação promovida por certos grupos visa uma disrupção social deliberada. Essa disrupção social tem um impacto sócio-político considerável. Além disso, existe toda uma espécie de criação de um ambiente tóxico que se expande para fora do mundo virtual e vai de encontro a concretude do dia a dia. Os frequentes ataques terroristas, vindos de portadores de ideias de extrema-direita, levam a um questionamento constante acerca da liberdade. Até qual ponto existe legitimidade nas alegações de que devemos ter uma "liberdade de expressão absoluta"?  Até qual ponto existe legitimidade nas alegações de que estão "cerceando a multiplicidade dialógica para impor uma ideologia absoluta e totalitária"? O que são pontos de vista distintos e o que são visões perversas de mundo? Na democracia, quando uma visão deve ser possível dentro da estrutura de um debate democrático e quando ela deve ser abolida por ser prejudicial e perigosa para a própria existência da democracia? Aliás, qual a efetiva possibilidade desses grupos que visam uma maior segurança digital terem o velado objetivo de criminalizar seus adversários políticos mais tênues enquanto atacam os mais notórios? Em outras palavras, seria possível criminalizar Roger Scruton criminalizando Hitler? Além disso, qual a possibilidade de todo aparato construído nessas trincheiras de enfrentamento serem utilizadas pelo grupo que é estudado pelos acadêmicos e pesquisadores contra os próprios acadêmicos e pesquisadores? Existe a possibilidade do feitiço virar contra o feiticeiro. Todas essas questões são demasiadamente complexas e talvez levem centenas de anos para serem respondidas com clareza.


Para além das questões dos impactos sociais e políticos, deve-se questionar a influência psicológica na esfera individual dos frequentadores desses fóruns undergrounds. Eles estão habituados a algo fechado e a narrativização constante de tudo que está em sua volta. O psiquismo deles é muito semelhante ao psiquismo de um membro de seita. Se assim o é, deve-se pensar nos "espólios de guerra" e igualmente nas influências que o fizeram estar tão dispostos a frequentarem locais tão tóxicos. Ou seja, quais foram as experiências existenciais antecedentes a eles se tornarem partidários orgânicos dessas redes.

Acabo de ler "8chan, a Twitter-Fossil" de Susana Gómez Larrañaga (lido em inglês/Parte 1)

 


Nome completo do artigo: 8chan, a Twitter-Fossil: A post-digital genealogy of digital toxicity


É interessante observar que dentro desses "feudos virtuais" vemos um esforço narrativo de caráter sistemático de grupos socialmente excluídos e tóxicos. Quando distintos grupos sociais marginais se encontram, acham um meio de criar um sistematização de sua marginalidade. Essa marginalidade toma um aspecto de "sobrecamadização", adquirindo uma lógica mais estrutural e consistente. Essa "sobrecamadização marginal" vai gerando um sistema. Esse sistema cria um universo paralelo em que só a narrativa do grupo importa. Ou seja, o universo referencial está dentro do grupo e só o grupo se vê como portador da verdade. Uma lógica que remete a "organicidade" das seitas – visto que as seitas criam universos paralelos que possuem a sua própria universalidade. A mentalidade tóxica pode, por sua vez, adquirir o aspecto substancial de uma seita virtual.


Chamo os chans de "feudos virtuais" pois eles unificam uma série de pessoas que foram marginalizadas socialmente e encontraram no chan um universo alternativo longe do mainstream para viverem a sua vida social. É ali que está a unidade da sua formação. E é ali que encontram um meio de criar um rigor sistêmico que dê embasamento as suas crenças.  O fato de suas crenças serem tóxicas e socialmente prejudiciais somado a junção de sobrecamadas de teorias marginais leva, por conseguinte, a uma sofisticação de seu ataque ao organismo social mainstream – que é tido como corrupto – e o aumento do organismo social underground – que é tido como ideal. Esse desenvolvimento, pouco perceptível para a maioria, torna o chan o ponto de encontro estratégico para "intelectuais sombrios" que precisam de maior refinamento de suas teses.


Um grupo marginal precisa se precaver contra a maioria das pessoas. Enquanto a "sociedade mainstream" se organiza através de uma relativização de crenças – ou seja, evita um dogmatismo – para comportar um número de pessoas maior, a "sociedade underground" requer um número de pessoas menor. O princípio de associação majoritária requer um desenvolvimento de uma mentalidade de tolerância para que esses distintos grupos convivam harmonicamente entre si. O princípio de associação minoritária requer um desenvolvimento que vá no sentido oposto, desenvolvendo uma intolerância contra quem rejeita a sua identidade, visto que grupos pequenos que tentam sobreviver em meio a grandes grupos precisam estimular a própria sobrevivência por meio da rigidez – em chans, isso surge a nível identitário. Por outro lado, para fugir da maioria e não se tornar um alvo, se requer uma linguagem e um comportamento linguístico que fuja da maioria da população. É por isso que há um "esoterismo comportamental" nos membros: eles não dão de bom grado a informação necessária para a formação do novo membro, é quase como que se dissessem: "se quer saber de de nós, seja ou torne-se um de nós". Por sua vez, há um "esoterismo funcional", visto que dentro dos chans a informação é deletada de tempos em tempos por causa da estrutura dos fóruns (imageboards).


O fato é que muito dificilmente se poderia juntar todos os dados do mundo – os dados estão fragmentados pelo próprio mundo – sem um grupo de pessoas dedicadas a unificar esses dados. A junção desses dados é chamada de sistemática. O sistematismo é usualmente comum ao exercício filosófico, mas pode ser encontrado em qualquer escola de pensamento e é comum ao âmbito acadêmico. A diferença é que na estrutura universitária o desenvolvimento intelectual envolve uma leitura de mundo mais aberta. No contexto channer, essa formação sistemática não se dá pela assimilação de múltiplas escolas de pensamento através de um esforço dialógico, mas por um número reduzido de formadores – aqueles que foram enquadrados como úteis a causa. Se a universalidade é questionável pois é impossível adquirir todos os dados do universo para se ter uma noção do que verdadeiramente é universal – o universal é incognoscível pois nossa capacidade de adquirir dados e informações (além de compilá-las mentalmente) é contingencial –, o simulacro de universalidade é uma ilusão de que se adquiriu a universalidade. Ora, tal simulacro de universalidade é o jeito com que as seitas e os grupos fechados mantêm controle mental sobre seus partidários. Em seitas e em grupos fechados o que interessa não é o aprimoramento (acuracidade) dos múltiplos objetos e subjetividades de seu estudo, mas a narrativa da própria seita ou grupo fechado. Todavia para que não seja aparente esse desvio informacional deliberado se faz necessário que se creia que o grupo é portador da verdade e que toda verdade emana desse próprio grupo, logo a estrutura alternativa é encarada como a única via de acesso a própria verdade. Uma condição comum em sociedades gnósticas. Um breve adendo: mesmo que existam sociedades fechadas com propósitos psicológicos e psiquiátricos – também militares e religiosos –, estou me referindo a mentalidade de seita.


Não por acaso a cultura channer se tornou, para algumas pessoas, uma forma de escola cybercriminal em que os dados compilados adquirem a forma de uma organização sistêmica. Essa organização sistêmica possibilita uma série de táticas para o contínuo fortalecimento desses grupos marginalizados – excluídos da sociedade – em conjunto aos agrupamentos marginais – que tem uma postura ativamente contrária ao sistema vigente. É evidente que aqui o termo "marginal" tem a "aplicação amoral", podendo ser um grupo que tem objetivos que podem ser vistos como benignos ou malignos, mas o fato é que todo grupo marginalizado que se junta ativamente contra a sociedade é um grupo marginal. Peço encarecidamente que observem que o termo marginal está de forma genérica.

Acabo de ler "DICTADURAS MILITARES Y LAS VISIONES DE FUTURO" de Gabriela Gomes (lido em espanhol/Parte 3)

 


O desenvolvimento nacional é uma questão de segurança nacional. Seja pela instabilidade interna que um país sofre ao não conseguir suprir as demandas de sua população, seja própria instabilidade externa que é causada pelo assédio imperialista de nações mais desenvolvidas. Sendo assim, o desenvolvimento nacional deve ser tratado como matéria da segurança nacional. Os militares argentinos compreenderam essa questão e, a partir disso, traçaram um plano para "salvar a Argentina" e possibilitar um futuro mais tranquilo onde ela fosse uma nação sólida. Não estou afirmando que seguiram o caminho correto e/ou que seus planos deram certo. Além disso, a questão da "futurologia" é multifacetada e apresentada em diversas propostas distintas por diferentes grupos sociais.


Especulava-se que o subdesenvolvimento não só da Argentina, mas como da América Latina – como também em todos os países subdesenvolvidos – poderia servir como "base operacional" dos países mais desenvolvidos. Isto é, sendo a América Latina portadora de inúmeras riquezas naturais, ela seria um território bastante agradável para nações mais desenvolvidas que não possuem tantas riquezas naturais. A questão é que a América Latina não tinha uma segurança muito boa para discutir com igualdade com essas nações mais desenvolvidas. Logo caso essas nações quisessem tomar a força esses recursos, elas conseguiriam fazer isso. Além disso, o superpovoamento e a necessidade de distribuição de recursos levaria a humanidade a um conflito existencial em relação a esses próprios recursos. Perón, naquele período, idealizou que o desenvolvimento não só da Argentina, como do assim chamado "Terceiro Mundo" era uma pauta de segurança e uma geopolítica sensata. Conjunturalmente faz todo sentido.


O correto seria uma geopolítica latino-americana orientada para um desenvolvimento que desse autonomia para essa região resistir ao assédio europeu ou estadounidense. Não só isso, o desenvolvimento econômico deveria ser sustentável e, de modo semelhante, a distribuição dos recursos deveria ser saudável (igualdade). Ou seja, o desenvolvimento deveria ser ecologicamente sustentável e a distribuição de recursos deveria se basear nos preceitos da valorização da humanidade. Propósitos bastante ricos e nobres. Tanto Perón quanto Salvador Allende tinham visões de um desenvolvimento autônomo da América Latina e as questões acerca da duplicidade e do paralelo desenvolvimento-segurança.

Acabo de ler "4chan & 8chan embeddings" de Vários Autores (lido em inglês/Parte 2 Final)

 


O artigo analisado foi escrito por:

Pierre Voué ( pierre@textgain.com ) has a master’s degree in Artificial Intelligence and works as a data scientist at Textgain, studying Salafi-jihadism and right-wing extremism.

Tom De Smedt has a PhD in Arts and is CTO at Textgain, focusing on Natural Language Processing. He was awarded the Research Prize of the Auschwitz Foundation in 2019.

Guy De Pauw has a PhD in Linguistics and is CEO of Textgain. He has over 20 years of experience in Natural Language Processing and Machine Learning.

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Atualmente sei pouco sobre "hackearias", mas pelo que entendi: os criadores desse artigo criaram mecanismos para rastrear e mapear os usos linguísticos do "chanspeak". É evidente que com tal mecanismo é mais fácil de compreender e identificar os portadores do chanspeak. Logo os apitos de cachorro seriam mais facilmente identificados, possivelmente até pela Inteligência Artificial em um futuro próximo. Identificando a utilização de linguagem tóxica, podemos rastrear a movimentação desses grupos sociais e impedir que causem distúrbios. O que é uma utilização bastante inteligente para a tecnologia.


É notório que uma mecanismo de busca que identifica e classifica sistemas linguísticos de grupos sociais determinados pode parecer problemático. E de fato o é a depender da conjuntura. Se, por exemplo, esse mecanismo fosse utilizado para a repressão sistemática de socialistas ou liberais teríamos uma utilização negativa dessa técnica. É preciso delimitar o que é uma "diferença teórica" e o que é um desenvolvimento criminológico e propriamente tóxico. O uso da tecnologia, em mãos erradas, pode ter um lado bastante obscuro.

Acabo de ler "4chan & 8chan embeddings" de Vários Autores (lido em inglês/Parte 1)

 


O artigo analisado foi escrito por:

Pierre Voué ( pierre@textgain.com ) has a master’s degree in Artificial Intelligence and works as a data scientist at Textgain, studying Salafi-jihadism and right-wing extremism.

Tom De Smedt has a PhD in Arts and is CTO at Textgain, focusing on Natural Language Processing. He was awarded the Research Prize of the Auschwitz Foundation in 2019.

Guy De Pauw has a PhD in Linguistics and is CEO of Textgain. He has over 20 years of experience in Natural Language Processing and Machine Learning.

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4chan e 8chan são conhecidos por inúmeros aspectos socialmente relevantes – ou "negativamente relevantes" – e suscitam discussões acerca da regulamentação dos meios de comunicação virtuais e da internet em si mesma. O fato da internet ser um capítulo recente da humanidade envolve um questionamento sério acerca da própria natureza humana e, de modo semelhante, como ela atua em meios alternativos e menos regulamentados. 4chan e 8chan são publicamente notórios na defesa da supremacia branca, misoginia, perseguições, crimes de ódio, desinformação e ideias de extrema-direita.


É dito que antes de algumas ideias terem aparecidos em outros palcos virtuais (como o Reddit e Twitter, por exemplo), apareceram no 4chan e 8chan. Foi dentro da conjuntura, não só virtual, como social, que os manifestos foram disseminados, discutidos e idealizados. É dentro da mentalidade social channer que existe essa possibilidade efetiva. E é por isso que o Reddit e Twitter são espaços secundários e menores para aqueles que desejam e anseiam ser coparticipantes ou, no mínimo, espectadores desses processos sociais turbulentos.


A mentalidade tóxica é assimilável dentro desses fóruns, sendo retroalimentada pelos distintos grupos sociais de extremistas e excêntricos que adentram nesses recintos. Cada qual contribui para o imaginário social que é criado nesses respectivos fóruns e servem de formação marginal que, pouco a pouco, sistematiza-se numa mentalidade cybercriminológica. Esse letramento criminal que vai tomando uma complexidade estrutural conforme o tempo passa cria desafios cada vez maiores as autoridades. Atualmente se discute sobre maior segurança digital e liberdade individual dentro das redes. É evidente que o poder é suspeito por si mesmo e até boas causas podem servir para objetivos maléficos, mas como suportar essa liberdade virtual num momento em que os extremistas se tornam a cada dia mais perigosos?


O problema da toxicalidade virtual é que ela vai desumanizando a representação mental – o imaginário – de cada figura individual, social e até mesmo conceitual de quem frequenta esses fóruns. O que existe para a maioria dos "habitantes virtuais" dessas redes não é mais a realidade, mas uma redução memética que retira a complexidade que o mundo apresenta. O que deveria ser traduzido por uma abertura ao objeto de uma análise é previamente simplificado por uma simples gravura tóxica do que se apresenta. Por exemplo, em vez do questionamento acerca da liberdade sexual feminina e a estrutura do machismo, temos a simplificação negativa da feminilidade e os questionamentos que a ordem social traz sobre a mulher. No caso das raças, judeus são colocados como "conspiradores" e negros adentram numa "animalidade anticivilizada". É evidente que essa "redução memética tóxica" é bastante comum na humanidade, visto que nem todos querem "perdem tempo" aumentando os seus estudos para compreender os problemas da vida. Nesse cenário, optam por uma mensagem simples que traga a segurança de compreender o mundo, mesmo que essa segurança seja cega e, no fundo, demasiadamente simplista para dar uma chave de entendimento para o mundo.


O "meme" é mais facilmente reproduzível do que a busca epistemologizada. Existe mais facilidade em ter uma microleitura dentro de um meme do que ler toda uma bibliografia acadêmica e científica sobre um objeto determinado. Ora, os channers não se abrem a um estudo minucioso do objeto que tratam. E aqueles que se abrem a um estudo minucioso usualmente estão naquela mentalidade de "só quero o lulz (caos)". O que significa que seu estudo não servirá para uma humanização, mas para a prática de uma tática subversiva de manipulação e desinformação das hordas de cybercriminosos que atualmente se encontram unificados nesses "feudos virtuais".


Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 11 Final)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

É muito bom chegar até aqui. Castlevania foi um dos jogos que mais marcou a minha vida de jogador e eu sempre quis trazer algo de mais profundo acerca das reflexões que o jogo em si mesmo me causava. Escrever esse texto foi uma forma de me recordar de quando tinha onze anos de idade e jogava aquele glorioso clássico em meu PlayStation 1. Desde que o joguei, o gênero metroidvania se tornou um dos que eu particularmente mais gosto.


Escrever essa pequena saga de análises foi uma das formas de demonstrar o quão impactante, interessante e curiosa foi a minha experiência com o jogo. E também quis abri-los a uma percepção mais elevada das questões morais, psicológicas, literárias, filosóficas, sociológicas, mitológicas e até mesmo religiosas que rondam o jogo. Não sei se isso será de "grande utilização" para vocês, mas uma coisa é certa: Castlevania Symphony of the Night é um marco e será para sempre lembrado como um dos melhores jogos da história, mesmo que poucos deem o devido valor – inclusive valor intelectual – que ele merece.

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 10)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

No trecho anterior da análise citei que o Castelo de Drácula poderia ser uma representação do "inconsciente coletivo sombrio" da humanidade – existe também o inconsciente pessoal sombrio. Nesse trecho, ressalto esse ponto. Dois bons exemplos disso são Belzebu e Legião que aparecem como chefes dentro da estrutura do jogo. Esses dois seres aparecem na Bíblia, mas é evidente que outros monstros surgiram de outras referências literárias, mitológicas, religiosas e também do cinema.

Dentro do jogo, tudo aquilo que Alucard vivência é real na possibilidade do seu universo. Mas na vida real, o mundo no qual vivemos, podemos levantar o questionamento do que há por trás de toda essa narrativa. Todas as figuras excêntricas, sombrias e misteriosas concentradas naquele imponente castelo, representam um antagonismo notório ao que a humanidade espera e verdadeiramente quer. Isso apenas em sentido aparente. Drácula menciona que muitos homens esperam se tornar seus servos, logo esse antagonismo (humanidade vs monstruosidade) é meramente aparente. Por outro lado, o antagonismo na estrutura da análise psicológica não é tão evidente quanto se espera em uma análise rasa. Se a humanidade possui um inconsciente coletivo sombrio, esse pode facilmente um objeto de autonegação dessa mesma humanidade.

Quando escrevo sobre inconsciente coletivo sombrio e inconsciente pessoal sombrio, as referências que existem negativamente dentro de nós, o poder das nossas sombras, revelo algo que vai contra aquilo que a maioria das pessoas que conheço acredita: a hipótese de que o homem é essencialmente bom, mas está corrompido por algum fator de ordem social, econômica, algum distúrbio psíquico ou algo do tipo. O homem não aceita o Castelo de Drácula pois não aceita que em sua essência, em sua ação, em seu pensamento, exista algo de mal, algo de defeituoso, algo se ofensivo. O homem não quer olhar para o espelho e ver uma cicatriz em seu rosto. Ele quer se ver como "puro", porém essa mesma forçação de querer ser puro e se ver como puro o leva a ser incapaz de ver o mal que existe dentro de si. Quando algo é abolido do terreno do consciente, torna-se inconsciente. Logo o homem esconde o mal dentro de si e começa a praticá-lo sem perceber. Uma das razões pelas quais vivemos numa sociedade tão violenta talvez seja essa: esquecemos que existe em cada um de nós um mal que se esconde dentro de nossa interioridade e está presente inclusive em nossas melhores intenções.

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 9)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

Uma observação notável, e talvez pouco compreensível, para os amantes de Castlevania, é que o seu Castelo é uma forma de "inconsciente coletivo sombrio" dos mais profundos medos da humanidade. É no Castelo de Drácula que os medos da humanidade – e de quem particularmente entra ou entrou nele – se manifestam, são imanentizados, de forma sólida. Aliás, quando mais se avança dentro do Castelo, mais se depara com figuras grotescas e perigosas. Não seria o "passeio" dentro desse Castelo uma revelação do inferno que existe dentro da "alma" de cada homem?

Estamos acostumados a pensar a "alma" em uma esfera predominantemente judaico-cristã. Aqui utilizo a ideia de "alma" para dizer "psiquê". A "psiquê" não pode ser guiada por padrões bons ou maus, visto que o ser humano não é bom ou mau, ele pode estar momentaneamente em uma ação correta ou uma ação incorreta. Além disso, a moralidade se altera de acordo com o espaço-tempo, isso também afeta o julgamento da moralidade. Mas creio que o jogo vai um pouquinho mais longe: o inconsciente coletivo do ser humano não é um local inteiramente amigável, mas também reserva toda uma série de monstruosidades que para o bem do nosso egoísmo, preferimos não encarar.

Eu vejo o Castelo do Drácula, em Castlevania, não só como uma forma de demonstrar uma síntese de uma série de monstros reunidos por um brilhante senhor das trevas. Eu vejo que é a manifestação do inconsciente sombrio, a parte negativa da nossa alma que negamos e não queremos ver. Entrar no Castelo de Drácula também pode ser encarado com olhar para toda aquela série de demônios que guardamos inconscientemente dentro de nós. A perversidade, o mal, a monstruosidade: tudo isso está dentro de nossa própria natureza e, às vezes, oculto para nós mesmos em nossos atos  e práticas mais banais. O Castelo não é só assustador por ser cheio de monstros, o Castelo é assustador por revelar parte da natureza que queremos esquecer.

Outro ponto interessante: quanto mais o jogador adentra a esse castelo, mais ele vai tendo que se lidar com uma série de monstros e mais poderoso ele vai ficando. Os monstros, anteriormente elevados e ameaçadores, tornam-se mais fracos conforme o protagonista se fortalece. Se o Castelo é uma analogia ao campo do inconsciente pessoal sombrio e do inconsciente coletivo sombrio, temos aqui um desenvolvimento de raciocínio inesperado: o fato de que devemos adentrar ao abismo de nossa pessoalidade e humanidade para nos fortalecer em nosso autodomínio.

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 8)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

Simbolicamente temos a sobreposição do vampiro glamuroso ao vampiro satânico. A razão para isso? Creio que a imagem do lado oposto ganhando da humanidade representa um ataque ao orgulho da própria humanidade, mesmo em território ficcional. O vampiro satânico é uma negação da humanidade, ele representa também um vampiro que se entregou a sua vampiridade. Como escrito na parte anterior da análise: será que o ponto de vista do Drácula poderia ser considerado moralmente incorreto considerando que a sua visão não é a visão de um humano e sim a de um vampiro? Se tratarmos com o ponto de vista de Drácula, a história assume outro rumo narrativo, visto que se trata de uma moral humana contra uma moral vampírica, as duas se opondo uma a outra.

Sabe-se que o Drácula possuía, em seu universo, muito conhecimento das artes das trevas. No universo de Castlevania, arte das trevas envolvem conhecimento avançado. Drácula não é um sujeito inculto. Não poderíamos classificá-lo em qualquer sistema moral padrão e falta-nos uma "moral vampírica" para termos como base. Todavia se consideramos que a moralidade vampírica há se ser no mínimo diferente da moral humana, não temos o Drácula como um vilão, mas apenas uma espécie de antagonista existencial da humanidade. A razão é muito mais "essencial" e "crua" do que moralizada. Não se trata de pontos de vistas opostos, mas de existências opostas. A humanidade estaria correta em ser humana e Drácula correto em ser um vampiro. E estão lutando pois os dois não conseguem viver juntos no mesmo território por serem diferentes e sempre serão necessariamente diferentes por questões intrínsecas de suas próprias naturezas.

A vitória de Alucard, o vampiro glamuroso e humanizado, representa também uma vitória da normalidade e talvez uma inconsciente tentativa de normalização. Gostamos de Alucard por ele se aparentar e representar mais daquilo do que somos. E queremos que o mundo seja mais daquilo do que amamos e somos. Ora, há um egoísmo e intolerância nisso. Não estou querendo afirmar que a tolerância é boa por si mesma e que a intolerância é boa por si mesma, só estou deixando uma lacuna para levantar um questionamento: seria a complexidade dessa questão algo simplesmente solúvel? A dimensionalidade dela, pelo o que vejo, está acima do que era inicialmente esperado.

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 7)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

O que faz dum vampiro um vampiro? O arquétipo vampírico é extremamente interessante. Se, por um lado, ele é extremamente poderoso, ele também sofre com as condições da sua própria natureza. A dualidade vampírica está entre o que ele era (humano) e o que ele se tornou (vampiro). A sua antiga vida sempre lhe marca e lhe dá um forte tensionamento psíquico. Há uma moralidade e existem aqueles que preferem não abandonar a sua moralidade humana, negando assim a sua própria natureza vampírica. E existem aqueles que abandonam a sua humanidade, tornando-se ainda mais "vampíricos". Quando falamos que existem vampiros bons e maus, tratamos usualmente a partir de um ponto de vista humano. Se vampiros de fato existissem, deveríamos partir do ponto de que existe uma modalidade de moral vampírica e essa não estaria dentro dos parâmetros da humanidade.

Alucard representa um outro vampiro. Um menos entregue a escuridão e mais atrativo e palatável aos humanos. Ele representa uma reinvenção da imagem arquetípica do vampiro: a do vampiro glamuroso. Ele é forte, encantador e pode cuidar dos humanos. Ora, a imagem do vampiro glamuroso não é uma ameaça a humanidade, muito pelo contrário: ela traduz um anseio humano. Seja por se tornar algo além de humano (transcendência), seja pelo encanto estético que apresenta (algo mais romântico e sexual). De qualquer forma, a humanidade criou um outro vampiro baseada nos seus próprios gostos. Um vampiro é bom na medida em que serve e se adapta a sua mesma moralidade. E não só isso, ao gosto estético da humanidade. Os humanos, no geral, gostam de borboletas e odeiam baratas.

No geral, temos as seguintes linhas: um vampiro é bom pois serve a humanidade e um vampiro é ruim pois é inimigo da humanidade. Só que esse questionamento está circunscrito a própria humanidade. Se pensarmos numa vampiridade, a própria adesão restrita a estética humana já é, por si mesma, uma negação da vampiridade. Para os humanos, um vampiro deve negar a sua própria natureza e servir aos homens. O que parece bem alienante e, até mesmo, intolerante. Mesmo que um vampiro seja um inimigo da humanidade, tentar convencê-lo a ser humano não é uma forma de castração? Esse questionamento também deve ser levantado.

Quando pensamos em Alucard, ele representa mais do que um "vampiro glamuroso". Ele é um ser que é criado a partir da união de um vampiro com um ser humano. É por isso que existe uma contradição: ele é um ser de dupla natureza. E essa duplicidade carrega um aspecto pendular. Se não há uma plenitude desses dois lados – um reconhecimento identitário –, o próprio sentido existencial se perde e o personagem precisa escolher entre duas vias (a humana e a vampira). A existência de Alucard é, para si mesmo, uma incógnita. Ele é um eterno paradoxo e está numa posição limítrofe na qual deve se posicionar existencialmente sem ter um bom parâmetro comparativo e sem nunca ser totalmente uma coisa ou outra.

sábado, 29 de junho de 2024

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 6)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

Drácula é o começo e é o fim. A razão para isso? Talvez seja porquê a pergunta final revela a primeira pergunta. A questão central de Castlevania Symphony of the Night é a questão da moralidade. Richter Belmont, homem que derrotou Drácula, foi enganado pela magia e tornou-se um homem a serviço das trevas. Anteriormente era o próprio Richter que lutou contra o mal no mundo, agora ele mesmo é o mal no mundo. Em primeiro lugar, Richter é apresentado como um herói em seus dias de glória. Depois disso, ele é apresentado como vilão. Posteriormente, ele aparece como alguém que foi controlado pela magia, sendo por isso envergonhado. É interessante observar a lógica da inversão aparece constantemente nesse jogo, muito mencionada nas outras partes dessa análise.

No começo do jogo – que é o final do jogo anterior – temos uma imagem concreta do Drácula. Essa imagem aparece como a figura de um nobre – apesar disso ser uma inversão total de valores –, mas posteriormente revela a sua verdadeira natureza: a de um monstro. Creio que o jogo "brinca" com a imagem do Drácula. O Drácula aparece como uma figura bastante concreta e bem discernível, no final do jogo ele aparecerá como uma mescla de distintos tipos de "criaturas demoníacas". Nem o Drácula, nem o Castelo, apresentam uma solução a questão do mal: o mal pode ser inúmeras coisas, tendo inúmeras formas, podendo se realizar em múltiplas vias, de forma indefinida. Inclusive, o mal pode se realizar no mais nobre dos homens, tal como ocorreu com Richter Belmont.

A inversão que o jogo causa agora é essa: o mal não se apresenta como algo bem discernível e bem catalogável. Muito pelo contrário, o mal é algo que está dentro de cada um de nós e o custo da liberdade é a eterna vigilância, visto que o mal nos espreita a cada momento, a cada batida de nosso coração e, igualmente, em cada uma de nossas intencionalidades. É por isso que a classificação do mal de forma "preconceituosa" leva a ocultação do mal que pode residir dentro de nós. Classificar o mal é desenvolver interior e psicologicamente uma figura externa de mal que pode ser livrada ou estar em outro, mas saber que o mal pode estar em tudo nos revela algo sobre nós mesmos.

Tudo que existe pode ter a sua finalidade desviada e corrompida. Uma ação aparentemente boa pode ter um objetivo escuso. Por exemplo, o marketing moral dos tempos modernos revela uma sociedade narcisista e não uma sociedade caridosa. Estamos sempre sujeitos a sermos veículos do mal. É por isso que o jogo metodologicamente desconstrói a figura do Drácula, colocando-o como uma mescla de múltiplos demônios, como uma mescla de múltiplas intencionalidades sombrias. O mal.escapa a nossa própria compreensão e só pode ser melhor compreendido por um rigoroso exercício da consciência interior, analisando de forma confessional cada memória, num exercício catártico. Não por acaso, uma das principais obras de Agostinho de Hipona é "Confissões". Uma vida não analisada cai muito facilmente na externalização da figura do mal, o mal logo se torna inconsciente e a pessoa se torna má sem perceber. A ausência de autocrítica é uma questão séria.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 5)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

Drácula surge contextualmente numa Inglaterra em modernização. Nele temos a figura do estrangeiro, do estranho, do invasor. Ele representa o mundo que "vem aí", o mundo da modernidade burguesa, em que os velhos valores são pouco a pouco destruídos e a ciência e a racionalidade adentram em seu lugar. Todavia temos uma questão: como ficam os velhos valores, encarnados sobretudo pela doutrina cristã, que anteriormente vigoravam? O desapego a essa cosmovisão que representava a estabilidade, consistência e garantia da própria ordem até então instituída levam a uma perda da unidade interna da nação e, ao mesmo tempo, uma desintegração do "eu plural" e da harmonia daquela antiga unidade que até era indissolúvel.

A figura do vampiro aparece de forma parasitária, como uma figura corrompida e corruptora, que vive na noite, em estranhas festas luxuosas, sempre fugindo da vida habitual e dos valores comuns ao povo. Seus estranhos negócios não aparecem como as virtudes militares da nobreza ou o trabalho duro do artesão e do camponês. Suas festas e o fato dele dormir durante o dia são demonstrações de que ele não vive na labuta. O fato dele viver seduzindo mulheres casadas demonstra uma contradição a moralidade sexual monogâmico vigente. O Drácula é, em vários pontos, o oposto dos valores sociais, a negação sistemática que surge para se insurgir contra o sistema.

É evidente que com a modernização do mundo, não só no âmbito tecnológico e científico, mas também no social, com a sua laicização e a maior aceitação da classe burguesa/comercial, temos uma relativização dessa imagem do vampiro. E o vampiro moderno é apresentado mais como um marginalizado e até mesmo como uma vítima das circunstâncias do que um inimigo que faz contraponto a cosmovisão duma comunidade bem estabelecida. Entender essa troca acerca da imagem do vampiro é crucial para compreender o desenvolvimento do imaginário social e, igualmente, as relativas mudanças de valores que não são fixos e eternos, mas sujeitos a processos de construção e desconstrução.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 4)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

Em que se fundamenta a imagem do Drácula e a sua contraposição ao Alucard? A imagem do Drácula é a imagem de um vampiro que crê na superioridade da "raça" vampírica e menospreza a "raça" humana. Já a imagem de Alucard é a de um semi-vampiro (dampiro), que carrega contradições, sendo metade humano e metade vampiro, todavia a sua força reside no fato de que é filho do maior vampiro da história. Ao mesmo tempo em que vê uma bondade nos humanos e uma maldade nos vampiros, tal fato lhe encarrega duma autocontradição vinda duma autopercepção negativa. Alucard está ao lado dos humanos – em vez de estar com o seu pai – para condenar algo que também é parte da sua própria natureza. Algo que, inclusive, deve alimentar e fortalecer para condenar. Essa marca, embora não muito explorada, aparece latentemente.

O Drácula representa a figura de um vampiro clássico, vítima da circunstância da sua própria natureza corrompido. Quando Drácula aparece no começo que é contradictoriamente o fim, visto que o conflito com o Drácula é o fim, temos a alegação de que a humanidade sempre busca a dominação dos seus semelhantes por meio da geração de um conflito que geralmente leva a possível destruição da própria humanidade. Não só o vampiro, como igualmente o homem é vítima da própria natureza. O homem busca um poder que, no fim, será usado para a sua própria escravidão. Nesse ponto, o Drácula pode ser encontrado como uma analogia ao "inferno da história", isto é, tudo aquilo que é idealizado fortemente numa época (ideologia, religião, ciência, descentralização, centralização, liberdade, segurança) torna-se prontamente a escravidão em outra época.

Esse conflito existencial é a fonte do ataque de Drácula: não é o próprio Drácula que ressuscita, de tempos em tempos, sozinho. É a própria humanidade que não consegue viver sem acreditar no pleno domínio e no pleno poder. Para justificar o seu poder, cria de tempos em tempos "encarnações malignas do Drácula" – cada geração tem o Drácula da sua história e é vítima do seu próprio Drácula – para adquirir o que quer e, então, é condenada pelo próprio anseio que legitimou. Talvez se pode dizer que o Drácula é o próprio anseio perverso do homem pelo poder e é por isso que aparece e reaparece historicamente em cada período com uma nova face.

Alucard, por sua vez, representa a dualidade humana: ele tem algo de "muito bom" e algo de "muito mal". A sua natureza humana e a sua natureza vampírica. Ele precisa, nesse paradoxo existencial que é colocado contra a própria vontade, evoluir em sua natureza vampírica (maligna) ao mesmo tempo em que mantém a humanidade. Defender a humanidade é defender quem matou a sua mãe, visto que é revelado que ela foi crucificada. Essa experiência poderia muito bem colocá-lo na própria disposição de ajudar o seu pai ou se tornar ele mesmo o próprio Drácula. Tudo estava encaixado para isso, mas foi a sua retidão moral que o fez não ceder diante desse conflito. Todavia também é a retidão moral que faz reconhecer que existe um mal dentro de si e que os milagres que opera são realizados a partir da utilização desse próprio mal. Tal correlação é extremamente tensional e o "custo da liberdade é a eterna vigilância".

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 3)

 



Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

Qual seria a ambientação que o Castlevania tem? Em suas mecânicas, temos um excelente jogo de plataforma que lembra bastante o Mario, mas não é só isso. Se falarmos de sua estética, a produção lembra bastante a literatura e a cultura geral horror. A sua música, por sua vez, apresenta algo mais agitado, se furtando a típica ambientação sonora do horror. Por outro lado, o desenvolvimento do personagem que se dá gradualmente lembram as mecânicas de um jogo RPG. A forma em que o mapa se altera e depende de elementos predecessores lembra as mecânicas de Metroid.


Castlevania representa um universo que se furta a interpretação e inteligibilidade imediata. Ele é uma mescla de conjuntos que escapa ao simples controle e adentra a um território bastante indefinido. Visto que a mesclagem de elementos não é algo sintético, visto que encontra uma harmonia. Pode-se dizer que a síntese está acima do sintético pois a síntese é a perfeita união harmônica entre as partes. Logo, sendo uma síntese, Castlevania só poderia – no período em que foi lançado – ser pensando por si mesmo. Hoje em dia, temos a definição "metroidvania" – gênero criado sobretudo por Super Metroid e Castlevania Symphony of the Night.


Acabo de ler "DICTADURAS MILITARES Y LAS VISIONES DE FUTURO" de Gabriela Gomes (lido em espanhol/Parte 2)

 


O desenvolvimento da "guerra fria" trouxe várias utilizações daquilo que costumo chamar de "guerra secreta", isto é, um amplo espectro de ações tomadas com uma série de objetivos não declarados para a conquista de metas não expostas. Nesse fenômeno chamado "guerra fria", tivemos o enquadramento político de suas super potências que tentavam coordenar ações políticas para o favorecimento de sua visão de mundo e sistema econômico.


Um desses maravilhosos movimentos secretos veio diretamente dos EUA. Uma instituição que existe até hoje é a Hudson Institute. Ela trabalhou amplamente na América Latina e traçou com "governos amigáveis" políticas de desenvolvimento que livrassem a América Latina da esfera de influência soviética. A instabilidade na região se contrapunha aos interesses americanos pois eles sabiam que a instabilidade cria o caos social necessário para o desenvolvimento e ampliação da mentalidade revolucionária. Então asseguraram que a América Latina teria um "rumo adequado" e concordante com as intenções dos Estados Unidos.


É interessante observar que existe uma relutância, seja por parte da esquerda, seja por parte da direita, de reconhecer essas medidas políticas pouco amigáveis que tomaram forma (social-)imperialista nos governos da União Soviética e dos Estados Unidos. Essas interferências demonstravam um pouco apreço pela autodeterminação e soberania de cada povo.

Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 2)

 



Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night

A fórmula habitual dum Castlevania é: adentre no corpo de um humano, usualmente da família Belmont, pegue a sua "vampire killer" (chicote) e, posteriormente, saia na porrada com toda uma série de monstros inebriantes que ameaçam a existência humana. Symphony of the Night não é, entretanto, a história de um humano superando seus próprios limites para vencer o ser mais forte do universo. A história vai num caminho alternativo: é a de um vampiro utilizando dos poderes que ele mesmo crê como fundamentalmente questionáveis para derrotar o próprio pai. E, para concluir a sua missão, ele mesmo precisa evoluir os poderes vampíricos que ele crê questionáveis. Essa missão, autocontraditória psiquicamente, dá um bom tom ao game.

Não é, todavia, a primeira que Alucard se empenha em derrotar o seu próprio pai. Ele já ajudou nessa tarefa antes, durante o jogo "Castlevania 3". O motivo dele não ter aparecido em outros eventos, foi pelo fato de que ele queria adentrar num sono perpétuo para esquecer de si mesmo e também da sua própria natureza. A dualidade que o Castlevania Symphony of the Night apresentará também é essa: o protagonista fortalece o que mais odeia em si mesmo para derrotar o mal do qual faz parte. Há também o fato de que o protagonista do jogo anterior, Richter, está dentro do castelo e ele é um dos antagonistas do game.

O jogo também faz uma série de referências as inversões. O jogo começa na luta final de Richter contra Drácula, ou seja, começa no fim da fórmula do Castlevania padrão, em que o Drácula é sempre enfrentado por último. O jogo tem um vampiro como protagonista, o que é exatamente o contrário do que se espera, visto que os vampiros representam o maior mal possível em Castlevania. O jogo apresenta um final falso em que o vampiro (Alucard) pode matar um humano (Richter). É o humano Richter, embora manipulado, que controla o castelo do "rei vampiro". É um vampiro que odeia ser vampiro que fortalece seus poderes vampíricos para derrotar o vampirismo. Um castelo reverso aparace se você seguir a linha correta da história e explorar curiosamente os recursos – narrativos e de gameplay – ofertados pelo próprio jogo.


Acabo de ler "Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania" de Clara Fernandez-Vara (lido em inglês/Parte 1)

 


Nome completo do artigo: Dracula Defanged: Empowering the Player in Castlevania: Symphony of the Night


O que há de tão interessante em Castlevania? Talvez seja o fato de você lutar contra criaturas malignas e salvar a Terra. Talvez seja porquê é legal chicotear monstros num Castelo Metamorfo. Talvez seja simplesmente porquê violência simulada em um ambiente virtual fantasioso seja divertido. Talvez seja a própria ambientação louca do Castlevania, o fato do Castelo ser a imanentização dos medos da humanidade, do inconsciente de todos que passam e vivem lá, de como ele se altera e adapta conforme o psiquismo humano coletivo e pessoal. De qualquer modo, Castlevania fornece múltiplas possibilidades, não só narrativas, como estéticas, como de gameplay.


A autora estabelece que fará uma distinção: existem dois vampiros centrais dentro do jogo. Um é um semivampiro, o Alucard. O outro é um vampiro muito específico, visto que é o vampiro central e "pai" de todos os outros vampiros, o Drácula. A linha narrativa de cada um desses vampiros segue em linhas opostas. O que demonstra que não há um "modelo universal de vampiridade". Essa contradição já se observa no nome: Alucard é Drácula de trás pra frente. O que significa não só uma coincidência, como uma contradição entre visões de mundo e até mesmo um conflito existencial que se projeta em cada momento do jogo.


O mais interessante disso tudo é o fato de que Alucard tem os mesmos poderes básicos do Drácula. Até porquê ele é filho do próprio Drácula. A questão familiar é bastante interessante, visto que o mais natural seria que o Alucard fosse do "mal" e se aliasse ao próprio pai em sua luta contra a humanidade. Tal não é o caso observado. O que se observa é o conflito entre o rei dos vampiros e o princípe dos vampiros. O jogador encarna e aprende a ser um vampiro pouco a pouco. E essa linha contraditória leva ao próprio Alucard entrar num questionamento existencial: ele é o legado direto do rei dos vampiros e são os poderes vampíricos que ele usa para derrotar o rei dos vampiros. Isso fornece uma tensão que não escapa ao senso de observadores atentos.

Acabo de ler "A Tirania dos Especialistas" de Martim Vasques da Cunha (Parte 6)

 


Embora seja possível encontrar uma imaginação desmedida em setores da direita, usualmente tal tradição de pensamento é encontrada na esquerda. Lembrando do pensamento de Marx que os pensadores não deveriam entender o mundo, mas mudá-lo. O problema é que o mundo é complexo demais para ser "mudado" pura e simplesmente, sobretudo quando essa mudança se dá a nível estrutural por causa de uma conflagração revolucionária.


O que precisa ser compreendido é isso: as ideias da esquerda – acima de tudo, da extrema-esquerda – são experimentais. Se são experimentais é por demasiado arriscado aplicá-las em massa, visto que se trata duma aposta em um teste. Apostar todas as fichas da sociedade em um evento experimental pode ser traumático, já que tudo que foi construído anteriormente pode ser perdido. A questão é que o revolucionário se encontra imerso em sua própria linha de raciocínio, visto que o seu anseio é, antes de tudo, religioso. É evidente que o reacionário também segue essencialmente na mesma linha, todavia ele visa um passado mágico.


A capacidade de analisar a complexidade do real se dá por uma série de dados que escapam ao nosso próprio horizonte de consciência, visto que ele, sendo humano, é delimitado pela característica da contingência. O revolucionário – e também o reacionário – creem impiedosamente que encontraram a verdade (elemento gnóstico de fundo religioso) e, portanto, são iluminados e estão acima da própria capacidade de raciocínio do resto da humanidade, sendo capaz inclusive de julgá-la e conduzi-la para um rumo superior/melhor.


Os dados sempre nos escapam. Eles são como que infinitos. As variedades são inúmeras. As variações incalculáveis. A realidade não se curva ao nosso anseio idealístico. Nossa mente não acompanha os dados constituentes do mundo. A imaginação reacionária e revolucionária querem criar, através da imaginação, uma realidade totalmente curvada aos seus anseios fundamentalmente religiosos. Só que a imaginação que eles têm é vista como onipotente, detentoras de qualidades divinas, que escapa até mesmo a sua própria humanidade.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Acabo de ler "DICTADURAS MILITARES Y LAS VISIONES DE FUTURO" de Gabriela Gomes (lido em espanhol/Parte 1)

 


Chile e Argentina passaram por períodos turbulentos. Esses períodos foram propiciados pelo ambiente inóspito e radicalizado da "Guerra Fria". Para combater a possibilidade duma "revolução comunista", muitos países latino-americanos sofreram golpes militares que propunham uma visão oposta ao regime socialista em vigor na União Soviética. Esse também é o caso do Chile e da Argentina.


No Chile e na Argentina houve a criação da "Doutrina da Segurança Nacional", essa doutrina com tinha uma tentativa de criação de uma "futurologia". Essa "arte" criaria um ambiente propício para uma nação estável e não sujeita a instabilidades em períodos posteriores. Isto é, criaria um ambiente de uma nação que tem estabilidade contínua e não é ameaçada pelas forças do tempo. Essa ideia da criação de um "futuro melhor" norteou as políticas tomadas pelos regimes que então se instalaram e forneceram bases para a sua autolegitimidade.


A ideia de criar uma "nova legalidade" em que os regimes instalados conduziriam pedagogicamente o povo para que esse amadurecesse e pudesse tomar decisões por conta própria não é um capítulo recente da história. Projetos refundacionistas onde o poder é concentrado nas mãos de poucos e esse poucos conduzem o desenvolvimento nacional são capítulos recorrentes na história da humanidade. A questão está na "legitimidade" conquistada através dessa narrativa: a ideia central de que o poder pararia temporariamente nas mãos de tecnocratas iluminados que desenvolveriam o Estado, o povo e a própria infraestrutura em prol dum futuro em que o próprio povo fosse capaz de tomar essas decisões por conta própria.


É evidente que mesmo com isso em mente não havia uma precisão completa nesse arranjo. Os autores desses movimentos não tinham uma unidade doutrinal precisa. Alguns eram mais ligados a ideia de um Estado mais centralizado e dirigente, outros defendiam a iniciativa privada como principal motor da atividade econômica. É evidente que, sobre esse aspecto, existiram lutas internas antes do "programa" ser instalado nesses dois países.

Acabo de ler "Epic Win for Anonymous" de Cole Stryker (lido em inglês/Parte 3)

 


O desenvolvimento da cultura channer do 4chan é particularmente interessante. Provindo de um país historicamente determinado pela a sua herança liberal e protestante, ele logrou criar uma gigantesca Ágora em que se debate uma série de questões de forma livre. Apesar de isso ter desenvolvimentos que muitos poderiam considerar questionáveis, o fato é que se discute e se aprende muitas coisas dentro do 4chan. O 4chan é, para o mundo, um local de intercâmbio cultural colossal entre distintas pessoas do mundo inteiro.


Ninguém fala sobre, por exemplo, a aprendizagem sobre jogos, desenhos, arte, arquitetura, literatura, música, dentre outras tantas coisas que as pessoas estudam no 4chan. Usualmente, caímos numa retórica política que distorce todos os assuntos para promover única e exclusivamente a questão política dentro do 4chan. Ninguém fala do autodidatismo e a capacidade que os anônimos têm de revelar aos outros anônimos informações teóricas e desenvolvimento de práticas relevantes entre si. Essa ausência perceptual revela que temos uma cultura que mais se preocupa em delimitar o que é politicamente permitido do que pensar na relatividade das múltiplas condições culturais possíveis, não por acaso a politização leva a delimitação estereotipada do que é cultura, criando assim uma "cultura permitida" e uma "cultura proibida". Não raro, a politização leva a decadência da cultura, visto que essa passa por um freio mórbido que só permite o que convém ao grupo dominante e esse é usualmente mainstream e não permite outras formas culturais.


A tradição protestante levou a um aumento duma técnica chamada livre-exame, tal condição foi necessária para algo de maior abarcância: o livre-exame não só da Bíblia, como também de uma série de outras obras. É disso que surge o livre-pensamento e a maior possibilidade de uma investigação científica. O protestantismo também descentralizou o poder religioso e aumentou a separação entre religião e política. Descentralização e separação necessárias para o maior livre curso de ações. Além disso, as condições culturais da Inglaterra, diferentemente de países como Espanha e Portugal, eram mais modernas e adaptadas as necessidades do tempo. Enquanto a América Latina era colonizada com uma mentalidade mercantilista, os EUA já recebia protótipos da mentalidade liberal. Posteriormente, os EUA manifestar-se-iam mais adaptados a nova mentalidade do mundo. Uma mais funcional e menos determinada pelos rigores duma mentalidade que, naquele período, já apresentava sinais de decadência.


O 4chan tem discussões mais livres graças ao legado cultural do próprio EUA. Além disso, somasse o fator de que o inglês é a língua internacional e quase todo conteúdo internacional é veiculado em inglês. Essa segunda condição também é necessária para compreender a forma com que o 4chan se demonstrou adaptado para receber toneladas de pessoas de todos os lugares do mundo. Fora isso, o fórum é aberto aos estrangeiros, o que possibilita uma interação maior. Essa junção de fatores não deve ser desconsiderada.


Quanto ao 4chan, podemos gostar ou não gostar de certos aspectos. Mas não podemos desconsiderar o seu impacto e relevância em toda a cultura digital moderna, além da sua influência na propagação de uma série de ideias no mundo inteiro. Fora isso, o 4chan influencia também a política norte-americana, como revelou a eleição de Donald Trump. O fenômeno do 4chan não pode ser reduzido por mera retórica, desconsiderá-lo é desconsiderar a própria realidade. Estudá-lo é tornar inteligível a própria cultura digital tal como ela é e tal como parte de seus idealizadores pensam.

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Acabo de ler "Epic Win for Anonymous" de Cole Stryker (lido em inglês/Parte 2)

 


O que é a internet? Um local maravilhoso cheio de pornografia e um punhado de futilidade. Talvez um mundo aberto para a livre exploração. Ou talvez um desenvolvimento de uma potência que se fez morta. De qualquer modo, é possível ter acesso a muitos dados de qualidade ímpar. Todavia quem lerá o conteúdo qualificado com tanta coisa divertida que rapidamente se prende a nossa consciência como um macaco numa árvore para fugir dum predador feroz?


O que há na internet se não uma série de possibilidades que, na maioria das vezes, não se concretiza? O desejo inicial do criador do 4chan era um local para discutir a cultura otaku. Essa intenção primária foi sabotada pelo próprio fluxo natural do tempo. E acabou por se tornar algo muito maior: um fórum com uma potência gigantesca onde variados agrupamentos sociais postam anonimamente.


O criador do texto se perdeu tão logo quanto ganhou seu primeiro computador e começou a pesquisar conteúdos na internet. Sua vida se dividiu entre pornografia e games. É claro que houve um desenvolvimento intelectual nesses enormes tutoriais de jogos – na época de forma textual e não audiovisual – e muita, muita e muita pornografia. Não posso dizer, analisando-me biograficamente, que não sofri de processo semelhante.


De qualquer modo, o 4chan veio para instaurar uma condição bastante nova. Isto é, a condição dum faroeste virtual onde as suas visões importam mais que seu status virtual. É o anonimato que possibilita a livre circulação de ideias em um ambiente anárquico. Vaidades sociais pouco importam nesse processo.

domingo, 23 de junho de 2024

Acabo de ler "Epic Win for Anonymous" de Cole Stryker (lido em inglês/Parte 1)

 



O que é a cultura virtual? Quando pensamos em cultura virtual, pensamos nesse mundo em que as pessoas podem publicar o que pensam de forma menos centralizada. Isto é, a internet não demanda um alto custo para os cidadãos que usualmente entram nela. Isto leva a uma descentralização que, por sua vez, leva a uma Ágora Virtual. Essa descentralidade, embora furtada hoje pelas gigantescas empresas que dominam a maioria dos sites, é a forma pela qual grande parte de nós se comunica.


Marxistas desenvolveriam uma teoria sobre os "meios de produção cultural". Esses seriam centralizados nas mãos dos detentores usuais dos meios de produção. Hoje em dia, espera-se uma maior centralização da internet em prol duma maior regulamentação da própria internet. Ou seja, para alguns é benéfico que a internet seja mais centralizada e esteja nas mãos de alguns poucos grupos, visto que é mais fácil fiscalizar a ação social por esses meios. A defesa duma internet mais livre começa pela negação de uma internet centralizada, não por acaso eu deletei redes que centralizassem demasiadamente conteúdos e grupos sociais dentro de si – caso da recente exclusão do meu Facebook, Twitter/X, Trends e Instagram.


A razão pela qual o 4chan tem muita criatividade está pelo fato de seu anarconiilismo ou, até mesmo, aquilo que me acostumei a chamar de niililiberalismo. Mas não só isso. O país em que ele surge sempre foi bastante ligado a uma forte tradição liberal nas falas e nos costumes. Logo a liberdade de expressão, num nível não habitual ao brasileiro médio, é uma regra e o mundo inteiro vai até o 4chan para se beneficiar dessa prática e desse costume. Com o mundo inteiro indo até lá, existe o fator dum forte desenvolvimento cultural nascido desse mesmo intercâmbio cultural. O 4chan se tornou a Meca da Internet e todos o referenciam como portador desse modelo, seja diretamente através de uma participação ativa, seja indiretamente utilizando os seus memes, linguagens ou referências – de modo consciente ou não.


A existência do 4chan é uma incógnita para o mundo. A razão é bem clara: o 4chan é despido de muitas das regras que usualmente norteiam a maioria dos sites e, não só dos sites, como dos países e comunidades do mundo inteiro. Tal liberdade usualmente faz com que pessoas de comportamento atípico ou antissocial o frequentem como uma espécie de escape das comunidades mais regulamentadas ou simplesmente mais normais. O que pode ser positivo ou negativo a depender da variedade do contexto.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Acabo de ler "A Tirania dos Especialistas" de Martim Vasques da Cunha (Parte 5)

 


O que define a filosofia é o esforço trágico. A filosofia é a redenção do homem perante a tragédia e não qualquer outra coisa. Isto é, o desenvolvimento filosófico é propriamente a negação de uma vida envolta nos ritmos das paixões que surgem das formas móveis.


Na tragédia temos a questão da catarse. A catarse é, propriamente, a purificação ante os fenômenos trágicos da vida. É só na tragédia que reconhecemos a vida humana em sua contingencialidade, isto é, em seu aspecto delimitado. O esforço filosófico não é uma negação desse aspecto delimitado em sentido simples, mas uma negação dessa delimitação pela aceitação dele. O esforço filosófico surge da aceitação para a superação. Se perguntassem a um filósofo a razão dele filosofar a resposta seria: "sou filósofo pois morro".


Em vez de pensarmos em criar um mundo perfeito, temos que aceitar a imperfeição e incapacidade diante desse mesmo mundo. Um mundo que sempre escapa ao nosso controlo. O filósofo é quem está ajoelhado diante da angústia desse mesmo mundo. E ele reconhece esse mundo em sua tragédia, em sua agonia. É a partir disso que ele estuda e começa a compreender como viver nesse mesmo mundo tomado pelo aspecto contingencial.


O filósofo não busca soluções mágicas, mas viver sobriamente num mundo que – apesar de nosso esforço – nunca se atém perfeitamente ao que esperamos ou queremos que ele fundamentalmente seja. É por isso que a filosofia é importante, ela nos ensina a lidar com essas mudanças constantes que o mundo material apresenta.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Acabo de ler "Palavras para Desatar Nós" de Rubem Alves

 



Ler Rubem Alves é, para mim, algo terapêutico. Isto é, serve-me de auxílio nos momentos mais complicados de minha vida. Este homem tem uma escrita pacífica e bastante densa. Consegue, por meio de tons suaves, traduzir toda uma realidade complexa. Essa capacidade extraordinária é algo invejável.


Rubem Alves é um homem bastante interessante. Vindo do meio protestante, escreveu um livro falando sobre como o catolicismo teve mais protagonismo na cena progressista do que o protestantismo, natural detentor desse termo. O que chega até mesmo a soar uma incógnita: como uma hierarquia dita como altamente hierarquizada e não sujeita à mudanças poderia ser palco duma revolução? Talvez seja pelo inerente costume das massas de terem apego às tradições, mesmo quando elas não consigam sistematizá-las. Sou da tese que o catolicismo foi mais progressista pelo fato de que os sacerdotes, freis e monges têm maior formação acadêmica.


De qualquer modo, esse livro apresenta toda a característica de uma crônica: ele é suave e faz referência a vida cotidiana de Rubem Alves. Sem cair numa gigantesca abstração tipicamente acadêmica ou num vazio de futilidade tipicamente mundano ou corriqueiro.


Em Rubem Alves, simplicidade e academicidade aparecem lado a lado de forma harmônica, sem que uma acabe por ferir uma a outra. Sua erudição, que aparece de forma simples, continua a ser assustadora e encantadora. Um livro que qualquer um poderia ler, mas que também edificaria a vida de qualquer pessoa que lesse.

domingo, 16 de junho de 2024

Acabo de ler "A Tirania dos Especialistas" de Martim Vasques da Cunha (Parte 4)

 



Existe uma tendência propriamente humana de querer uma imanentização escatológica. Ou seja, o ímpeto de realizar na Terra o juízo final. O que supostamente aconteceria a esse evento seria o fim da história e provavelmente o paraíso terrestre. Nele, teríamos, por fim, todo o gozo que o mundo atual nos rejeita. Tal acontecimento seria possível pelo retorno ao passado glorioso (reacionarismo) ou ao futuro grandioso (revolucionarismo). Isto é, a ficção delirante a ser construída pela extrema-direita (via reacionária) ou pela extrema-esquerda (via revolucionária).


A complexidade da nossa experiência no mundo não pode – e nem deve – ser suprimida por uma panacéia criada por um intelectual. O intelectual, contudo, acredita na potencialidade irrestrita de sua capacidade. O que lhe dá um ar de onipotência divina. Para realizar seus planos, precisa do poder. Esse estranho hábito é chamado de pleonexia (desejo pelo poder). E se existe alguém contrário aos seus anseios grandiosos, o intelectual prontamente se converte sua pleonexia em filotirania (amor à tirania). É graças aos intelectuais que ditaduras pomposas e leis que usurpam o poder dos indivíduos surgem todos os dias.


O intelectual, crente em seu próprio poder, chega ao delírio de se propor como acima de todos os demais indivíduos de seu meio e, até mesmo, fora dele. Tal condição o predispõe amargamente ao gosto por uma tirania que, posta em prática, traz o Inferno para a Terra. É por isso que "o Inferno está recheado de boas intenções", visto que é o próprio anseio de trazer o Paraíso para Terra que faz com que o intelectual traga o Inferno em vez do paraíso. Lembrando analogicamente o Demiurgo que, ao criar o mundo material, trouxe toda a imperfeição junto a sua criação.


Quando descobrimos que "Os Demônios" nada mais são que os intelectuais e que os desejos intelectuais podem causar a ruína ou o desaparecimento trágico duma sociedade inteira, temos uma conscientização da responsabilidade da vida intelectual e das suas consequências. Lembrando o clássico livro conservador "As Ideias têm Consequências" de Richard M. Weaver.

Acabo de ler "A Tirania dos Especialistas" de Martim Vasques da Cunha (Parte 3)

 


A palavra IYI (abreviação de "intellectual yet idiot = intelectual, porém idiota") é bem exemplificada aqui. Existe uma estupidez inteligente e todas as inteligências, por maiores que sejam, estão sujeitas a terem traços de idiotia. É da natureza humana estar sujeita a imperfectude e por mais grandioso que um intelectual possa ser, ele sempre terá falhas. Não reconhecer a tendência a cometer erros é o que implica psicologicamente a alguém ser um intelectual estúpido ou um estúpido inteligente. Não saber que intelectuais podem ser estúpidos e ter pontos de vista deformados graças a uma adesão perniciosa a uma ideia é o que faz da modernidade um palco para os mais estúpidos intelectuais.


A tirania dos especialistas – título do livro, por sinal – surge da ideia de uma elite iluminada que guiará o mundo, através de muita modelagem e engenharia social, ao progresso. Essa tendência tecnocrática – consciente ou não – é amplamente observável no meio acadêmico. Os intelectuais, a elite técnica, teria a capacidade de se tornar uma espécie de "novo deus" e, em sua unidade de técnicos/especialistas, daria luz a um mundo perfeito onde todo mundo é feliz e não há opressão. É evidente que esses especialistas ao amontoarem o poder para si, tornam-se, pouco a pouco, detentores de poderes que estão acima do horizonte de possibilidades do cidadão comum. Ou seja, justificam a si mesmos como uma casta iluminada que pode alterar a vida de qualquer cidadão sem que nenhum cidadão possa fazer qualquer coisa.


A elite iluminada dos especialistas é irresponsável, ela não liga para as consequências do que intelectualmente afirma e é psicologicamente imune à capacidade de autocrítica – visto que não se vê como defeituosa e passível de erros. Em suas certezas dogmáticas, pegam prontamente o poder para si e remodelam a humanidade de acordo com os seus gostos. O poder dos especialistas aumenta prodigiosamente ao mesmo tempo em que a sua capacidade de tiranizar os outros se torna maior. Um dia, os especialistas se tornaram metodológicamente aptos para quebrar qualquer "direito humano" que anteriormente defendeu.

Acabo de ler "The Case Against Democracy" de Mencius Moldbug (lido em inglês)

  Nome: The Case Against Democracy: Ten Red Pills Autor: Mencius Moldbug Vendo o interesse contínuo na Nova Direita Cultural e no Iluminismo...