Mostrando postagens com marcador self. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador self. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Acabo de ler "Sacred Chaos" de Françoise O'Kane (lido em inglês/Parte 3)

 


Como o lado sombrio pode ser confrontado? O Self é a experiência mais imediata do divino. Todavia esse divino não é uma divino tomado de forma "absolutamente boa", o "divino" abriga uma espécie de substância caótica que é tão psicologicamente importante quanto a parte "sagrada". A má relação entre os dois polos (trevas e luzes) leva a um deslocamento psíquico. Se a má relação causa deslocamento, então a confrontação não é psicologicamente adequada. É preciso que exista uma estabilidade e uma integração.


Vivemos numa sociedade ainda cristianizada e faz parte da nossa cultura a repressão da parte considerada ruim. Essa repressão alimenta a nossa sombra, fortalecendo-a inconscientemente. Não estamos nos afastando do "mal", mas colocando-nos impotentemente ante a sua secreta influência. Dentro do psiquismo, bem e mal fazem paradoxalmente uma unidade. Dentro da cultura cristã, aparecem como irreconciliáveis. A ideia de apagamento do mal pode levar paradoxalmente a um desequilíbrio mental e na ausência da percepção do mal que causa. O mal pode ser, então, racionalizado numa estrutura argumentativa (atacar homossexuais por eles não se adaptarem a estrutura reprodutiva da sociedade, por exemplo) que torne palatável ao ego – tornando a prática do mal como inconsciente a própria pessoa.


Só que falar de "integração da sombra" é algo simples, embora socialmente inadequado – defender que existe um mal dentro de nós e que ele deve ser usado e até mesmo aceito chega a soar absurdo para os "ouvidos mais leigos". Quando pensamos nos mecanismos sociais, eles até agora não demonstraram uma solução satisfatória para a utilização da energia sombria que existe em cada um de nós de uma forma que não seja socialmente tóxica. A utilização da energia sombria pode ser perigosa, mas o seu acúmulo também leva a disrupções sociais. Como já escrito anteriormente, a ideia de que temos que ser bons o tempo todo leva a um acúmulo energético negativo que consequentemente nos leva a ser inevitavelmente maus – e, ressalto mais uma vez, muitas vezes de forma inconsciente.


A imagem do divino (Imagino Dei) e a imagem do Self estão intimamente correlacionadas. A inexistência do mal na doutrina cristã – principal influência teológica da sociedade ocidental – na imagem de Deus leva a uma percepção deturpada da própria estruturação do psiquismo. Essa falha tem um efeito colateral na nossa sociedade. Ainda mais quando temos em mente que a ideia acerca do caos é atrelada ao feminino e o feminino não aparece na trindade. A ideia de "ordem" e "positivo" aparecem de forma inconscientemente maniqueísta na estrutura de pensamento teológico de muitas igrejas cristãs. O cristianismo ao dizer que o mal não está em Deus, cria uma visão em que o mal só pode ser banido para se aproximar de Deus.


A verdadeira natureza do Self está na completude da integração dos elementos, não podendo ser confundida com a negação dos elementos em prol de outros. A capacidade de compreender os diferentes polos do Self e de aceitá-los é de natureza essencial para a maturação do psiquismo. A negação só fortalece inconscientemente o lado que se reprime.

domingo, 7 de julho de 2024

Acabo de ler "Sacred Chaos" de Françoise O'Kane (lido em inglês/Parte 2)

 


A pergunta sobre todas as séries de fatores que levam a funcionalidade ou disfuncionalidade de um organismo são essenciais para compreender como fazê-lo funcionar de modo razoável. A questão que o autor dirige em seu estudo é: como o aspecto da sombra dentro do "self" pode nos ajudar a entender como curar uma pessoa ou atenuar o seu sofrimento? Outra questão: como algumas pessoas são mais "determinadas" em aspectos negativos do que outras? Existe uma correlação entre criação familiar e genética, mas é necessário uma análise mais múltipla para ser menos reducionista e mais completa.


Teoricamente falando, não há suficiência teórica. Por mais que tenhamos uma capacidade maior de análise devido ao ampliamento dos estudos, ainda se é impossível determinar todos os fatores que contribuem na formação de uma insalubridade psíquica de modo perfeito e, assim, gerar uma "sanidade universal". Aliás, a própria existência de uma sanidade universal é questionável, visto que podemos nos enganar diante das nossas próprias inconsistências teóricas inconscientes. A ideia de universalidade já é perigosa, a ideia de a possuir completamente é espinhosa e apresenta períodos de alta crise humanitária (a eugenia nazista é um concreto exemplo disso). A hipótese de total controle sobre as informações que nos faltam levam, de tempos em tempos, a autoenganos trágicos e a paraísos teóricos que se tornam infernos práticos.


Em outras palavras, o que é curar o psiquismo de alguém? Descobrir a falta original? Reestruturar a personalidade com um modelo ideal? Acrescentar o que faltou no desenvolvimento do(a) paciente? Colocar as pessoas nas normas que a sociedade considera majoritariamente como adequadas? Não há um modelo de um herói que tenha superado todos os aspectos sombrios da vida. Se olharmos para todas as pessoas que conhecemos, elas não são um exemplo universal de virtude. Se o começo da argumentação parte de uma abstração que não é verificável dentro da própria estrutura da realidade, como poderíamos pô-lo em prática se sequer temos um modelo palpável? Se estamos no reino da contingencialidade e da impefectude, como poderíamos exigir um padrão altamente idealista se a própria realidade se furta a nossa pretensiosidade? Não há modelo de virtude universal na realidade cotidiana, exigi-lo é sobrecarregar nós mesmos e as pessoas da nossa volta com uma abstração.


Atualmente vivemos numa sociedade baseada no crescimento, no desenvolvimento técnico e tecnológico – além do avanço científico para impulsionar esses dois. Nos tempos modernos, somos avaliados de acordo com a possibilidade de enquadramento na escala produtiva da sociedade e também no aumento dessa mesma produtividade. O parâmetro de normalidade se dá pela funcionalidade atrelada a essa mesma produtividade – "valor" e "agregação de valor" são duas noções que regem a contemporaneidade. É evidente que, se olharmos para outras sociedades e outros períodos históricos, temos outros quadros de normalidade – não há e nem nunca existiu um parâmetro universal de normalidade. Outro ponto central nessa análise: o que é "curar" alguém no sentido psíquico? A psiquê está sujeita a uma dialética que vai se alterando de tempos em tempos. Não se pode assegurar uma "estabilidade contínua", isto é, uma "estabilidade" que se dê até o fim da vida ou do momento da "cura" até o final da vida. Ou seja, a ideia de "cura definitiva" é um pouco deslocada da natureza humana. Ademais, a ideia de "cura" carrega valores humanos de forma latente, onde há uma "normalização" focada em normas humanas contextuais – circunscritas em nosso próprio contexto cultural e histórico. Sendo assim, a noção de melhora é relativa e não poderia ser justificada de todos os modos. Se não, teríamos que dizer absurdos como: "você está curado por estar adequado(a) à conjuntura dos valores sociais vigentes".


Quanto a cura se deve ter em conta de que o "Dark Self" é altamente irracional e emocional. Ele não pode ser excluído e é inerente a nossa própria humanidade. Além disso, o "Self" em si mesmo não contém juízos de valor sobre o que reside em sua interioridade. No Self, não há uma distinção entre "bem" e "mal" como há entre o "consciente" e "inconsciente". Pode-se teorizar-se que a sombra é dividida entre a "sombra pessoal" e a "sombra coletiva", logo ela está no "inconsciente pessoal" e no "inconsciente coletivo". Temos lados ruins particularmente nossos e outros que são comuns a humanidade em si mesma – embora esse lado ruim seja considerado ruim pela moralidade social vigente. Para a "cura" há a necessidade de que o ser reconheça a completude de si mesmo, levando a um processo de integração. A possibilidade de repressão não é funcional, visto que se a sombra continuar sendo reprimida, existe a possibilidade de que a sua "energia" se acumule até que se torne uma espécie de grito da alma. Visto que o lado negativo acumulado pode ser "engatilhado" pelas situações existenciais do mundo e a sombra se manifestar sem a que a gente consiga reprimi-la – e quanto mais energia negativa for acumulada, pior será a explosão que será desencadeada. A questão é: como integrar a sombra a nossa personalidade se não podemos manifestá-la? A sombra é a sombra, em primeiro lugar e antes de tudo, pelo fato de ser socialmente inadequada.


A sociedade contemporânea apresenta um problema radical para com a sombra e o aspecto sombrio do Self. A própria noção de que as redes sociais ampliam demasiadamente a nossa imagem social – tornando-a mais conhecida – e isso faz com que nos tornemos mais sensibilizados ante ao julgamento social, além de uma postura mais energética a adaptabilidade normativa, nos dá um delineamento dessa questão que se torna cada vez mais problemática. A exposição excessiva leva a uma postura mais rígida e mais autorepressiva, aumentando o "condicionamento social" e aumentando o acúmulo energético sombrio. Ao deixar públicos os nossos pensamentos, sentimentos e momentos vitais, tornamo-nos figuras públicas que são julgadas conforme os padrões que regem a sociedade. Como não podemos nos manifestar de modo incongruente aos anseios sociais sem sofrer represálias, acabamos por criar um reforço da normatização e postagens que refletem uma postura social adequada. Se a vida social fosse menos pública, isto é, se fosse mais privada, não teríamos todo esse impacto sobrecarregando nosso psiquismo.


Uma das possíveis soluções é a do equilíbrio enérgico. Em cada ação negativa, colocar uma regra que delimite o peso dessa ação, tornando-a não tão negativa quanto usualmente poderia ser. Uma energia positiva deve ser inserida na energia negativa quando essa é utilizada, assim os efeitos tóxicos – para si mesmo e para o outro – são controlados. Deixar a energia negativa acumulando é fortalecer o polo sombrio do Self e esse fator cumulativo pode levar a uma explosão que obscurece a própria capacidade de funcionamento usual. O fenômeno da regressão pode ser mais ou menos impactante a depender de todo contexto precedente e da boa capacidade de autorregulação psíquica. É preciso utilizar a energia negativa de forma controlada, isso é melhor do que esperar que ela "exploda". Todavia isso requer uma aceitação de que o "mal" está dentro de nós o tempo todo e que precisamos de um bom convívio – além de um convívio cético – com esse mesmo mal.

sábado, 6 de julho de 2024

Acabo de ler "Sacred Chaos" de Françoise O'Kane (lido em inglês/Parte 1)

 


O Self não faz divisão de valores. Ele é a totalidade, isto é, sejam compostos considerados pelo próprio "Ego" como bons ou ruins. Quando nossos valores, moralidade e virtudes entram em choque com uma realidade que nos nega, existe uma tentativa de puxar "os conteúdos caóticos" de dentro de nosso ser e pô-los em prática. O lado irracional e sombrio é inerente ao psiquismo, ele pode ser custosamente reprimido, mas não pode ser retirado. Ou seja, ele estará conosco onde quer que estejamos e poderá despertar quando menos esperarmos.


O eterno conflito da natureza humana, ele aparece diversas vezes durante a história. As linhas mais avançadas do cristianismo defenderam que o mal está circunscrito na esfera da ação moral, mas não é uma existência por si mesma. Por outro lado, existe uma versão maniqueísta em que há um dualismo no mundo. Um "deus bom" e um "deus mal", opostos dialeticamente. Existe a gnose que separa duas deidades, a material e a espiritual. Os problemas do mundo teriam surgido através da criação do mundo físico.


Ora, o elemento do caos – a ausência de regularidade e estabilidade – gera sempre uma outra percepção acerca da humanidade. Por exemplo, existe dentro da mentalidade revolucionária uma ideia positiva. Do caos, surgirá uma ordem mais justa, socialmente mais equilibrado e em que os recursos são dispostos de forma a favorecer o bem comum. Logo o caos é percebido instrumentalmente, o caos serve para a criação de uma ordem. O revolucionário não defende o caos pelo caos, mas a geração de um caos para a destruição da ordem existente. Isso tendo em vista uma nova ordem. Esse fenômeno pode ser enquadrado como uma espécie de "sedução sombria".


É possível dizer que existe um mecanismo de regressão. Essa regressão é, particularmente, enquadrada como um mecanismo de retornar a passos anteriores – idades mentais anteriores – para resolver um conflito presente. Isso leva a uma perda do "quadro psicológico" em sua inteireza.  Isto é, se o psiquismo pode ser enquadrado como um quebra cabeças em que há graus maiores de consistência e inconsistência pelas partes que faltam ou estão devidamente integradas perante o aspecto momentâneo e dinâmico da vida. Quando entramos em crise, há um obscurecimento e perda quantitativa dos fragmentos que estavam integrados, o que leva uma perda qualitativa do autocontrole psíquico e da estabilidade mental. Usualmente levando a infantilização e imediatismo.