Mostrando postagens com marcador feminilidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador feminilidade. Mostrar todas as postagens

sábado, 4 de outubro de 2025

Memória Cadavérica #10 — Questões de Gênero

 


Memórias Cadávericas: um acervo de textos aleatórios que resolvi salvar (no blogspot) para que essas não se perdessem.


⁨Clarice, devo confessar que acho grande parte dessa questão de gênero uma abstração tremenda.


O modelo de masculinidade da Atenas Clássica, o modelo de masculinidade romana, o modelo de masculinidade cristã, o modelo de masculinidade islâmica, o modelo de masculinidade atual... tudo isso é altamente variável.


Li bastante teoria queer, confesso que aprendi bastante de Gramsci indiretamente por essa via. Leio com grande prazer o Journal of Bisexuality. Foi dali que fui aprendendo modelos contrahegemônicos de masculinidade. Também tenho lá as minhas múltiplas fontes conservadoras.


Posso lhe dizer que a teoria bissexual, isto é, a forma com que bissexuais encaram a produção epistêmica dentro da academia é extremamente interessante. Podendo até mesmo adquirir a rigorosidade de uma escola de pensamento se bem estruturada e sistematizada.


O que posso dizer é que tem muita gente pegando a anatomia masculina e a anatomia feminina e, a partir disso, concluir que mulheres usam saias e homens usam calças ou que meninos vestem azul e meninas vestem rosa. Isso é uma conclusão estapafúrdia. Ademais, há gente que não sabe sequer diferenciar gênero de sexo. Não sabendo o que é uma questão biológica e o que é uma questão sociológica.


Muito do que chamamos de masculinidade e de feminilidade é uma questão de construções sociais. Isto é, como foram construídas sociologicamente certos comportamentos e vestimentas que consideramos como masculinas ou femininas.


Se tudo fosse tão estático como se supõe, não existiriam tantas variações históricas e temporais no tratante a questão de gênero.


Quando namorava uma mulher que fazia teatro, era mais comum eu usar saia e ela usar calça, por exemplo. Muitas vezes, achavam que ela era lésbica e eu era gay, sobretudo quando cruzávamos o Centro de São Paulo.


Eu não costumo me importar muito com as condições de gênero. Não sei como os outros veem pessoalmente essa questão. Creio que as pessoas criam alardes e regras demais para manter padrões historicamente construídos, mas que diferença faz uma mulher usando terno e um homem usando saia? Num país em que o saneamento básico é precário e que as ferrovias são quase inexistentes, as preocupações deveriam ser de outra ordem.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Acabo de ler "Afeminação, hipermasculinidade e hierarquia" de Mozer e Helder (Parte 4 Final)

 


NOME:

Afeminação, hipermasculinidade e hierarquia


AUTORES:

Mozer de Miranda Ramos;

Elder Cerqueira-Santos.


Olhando bem, qual seria o problema de um homem ser "feminino"? Não é a mulher, junto a construção social da feminilidade, algo bom? Por qual razão a feminilidade seria algo ruim e deveria ser atacada ou inferiorizada? Quando a mulher se espelha em um homem ou nos modelos de masculinidade socialmente estabelecidos, ela não está demonstrando uma reverência a algo que admira em algum ponto? Quando um homem faz o mesmo, ele não está demonstrando a mesma reverência? Se não é algo admirável ou respeitável, ao menos faz parte de um ato de liberdade ou característica inata a uma subjetividade. Logo a repressão social quanto a isso não é uma repressão necessária, tampouco é desejável.


Feminilidade em um homem quer dizer uma negação a suposta superioridade do gênero masculino sobre o feminino. A sociedade estruturalmente hétero-patriarcal anseia: a superioridade do gênero masculino e a superioridade da heterossexualidade. O homem feminino tem uma negação: a da masculinidade. Mesmo que inconscientemente, mesmo que por uma "característica incorrigível", ele está negando os pontos que criam a estrutura do poder. A sociedade pode encarar isso por várias vias, mas mais particularmente duas: se é por escolha, o homem efeminado é subversivo; se é por natureza própria, é um desvio da natureza e deve ser patologizado.


Nos ambientes frequentados por homens bissexuais ou homossexuais, existe a prevalência de uma apreciação estética pelo modelo essencialista do homem heterossexual ultramasculino. Isso demonstra um ódio internalizado, seja para com a própria figura da mulher, seja com a própria sexualidade. Essa postura talvez seja fruto de um temor: o de ser martirizado por uma sociedade dominada pela hétero-matrix ou de ser confundido com a pessoa que tem relações ou até mesmo de ser tornada pública a imagem de homem efeminado. Até porquê as consequências sociais disso são enormes e incalculáveis, visto que há uma negação e marginalização sistêmica de todos aqueles que escapem daquilo que se considera como "normalidade".


Como diria o clássico conservador: "as ideias têm consequências". Quando um homem bissexual ou homossexual toma postura abertamente correlacionadas à hegemonia hétero-patriarcal, ele reforça as mesmas estruturas que sistematicamente o condenam, sendo artífice da própria destruição e estigmatização. Relegando-se a uma inferioridade que lhe foi imposta por homens heterossexuais. O que o torna socialmente mais fraco e mais vulnerável aos ataques diários de uma sociedade sexista e LGBTfóbica.

domingo, 25 de agosto de 2024

Acabo de ler "Afeminação, hipermasculinidade e hierarquia" de Mozer e Helder (Parte 3)

 


NOME:

Afeminação, hipermasculinidade e hierarquia

AUTORES:

Mozer de Miranda Ramos;

Elder Cerqueira-Santos.


O homem homossexual e bissexual para consumo é discreto para ser tolerável. Ele se aproxima repetidamente da heteronormatividade e se afasta da feminilidade. Se afasta de comportamentos que podem ser vistos como femininos e se aproxima da diluição completa de qualquer coisa que torne visível a sua homossexualidade ou bissexualidade. Em outras palavras, a homossexualidade e a bissexualidade masculina só são toleráveis quando são imperceptíveis. A cultura homonormativa, no âmbito masculino, é a negação contínua de aparecer ou se manifestar no espaço público. Ela também é uma afirmação do domínio da masculinidade e um ataque velado a feminilidade e a mulher. O que é bastante interessante, visto que é no espaço público em que o poder hegemônico se faz mais visceralmente presente e onde os grupos marginais mais são negados e estigmatizados por não estarem na hegemonia.

A conversão à hétero-norma é uma tentativa de adaptabilidade subordinada. Ela é uma postura que aceita uma realidade de domesticação. Uma postura que se demonstra dócil a um mundo dominado por heterossexuais e pela inebriante idolatria da masculinidade. Ela leva a uma autocrítica alienante e um ódio do ser por si mesmo – homofobia internalizada, bifobia internalizada, misoginia internalizada. Ela é uma amputação ontológica na medida em que homens bissexuais e homossexuais negam muitas características próprias, se autolimitando expressivamente, para se adequarem a um sistema corrupto que os marginaliza recorrentemente. Em outras palavras, ela é o compromisso com a derrota. Lembrando o velho ditado: "quando você aceita os termos do seu inimigo, você já perdeu faz tempo".

Como sempre, a densidade de camadas é tão sutil quanto o mais complexo esoterismo. Quando homens bissexuais ou homossexuais masculinos se ocultam numa cultura que sempre os invalidará, quem sofre é outro tipo de homem. Ao adentrarem no jogo da hétero-matrix, deixaram homossexuais e bissexuais efeminados caírem perante o martírio social e reforçaram os estereótipos de gênero. Nesse sentido, houve um rito sacrificial e um bode expiatório (o homem homossexual ou bissexual efeminado). Essa complexidade demonstra a própria perversidade da sociedade e os custos da idolatria da masculinidade.

A legitimização e deslegitimização nos jogos sociais apresenta uma tragédia: ela é feita com base num jogo interminável, sociológica e psicologicamente esgotante, em que a masculinidade deve ser provada o tempo todo e em todo momento. Quando um homem lhe acusa de não ser hétero ou macho o suficiente, você deve provar a sua masculinidade e heterossexualidade. O problema é que essa masculinidade o justifica existencialmente, anulando-o caso você não consiga cumprir os critérios das hétero-normas. Esse jogo social cria a cultura homonormativa em que a expressão cultural de homossexuais e bissexuais são uma paródia ou simulacro da cultura heterossexual. 

Acabo de ler "Afeminação, hipermasculinidade e hierarquia" de Mozer e Helder (Parte 2)

 



NOME:

Afeminação, hipermasculinidade e hierarquia

AUTORES:

Mozer de Miranda Ramos;

Elder Cerqueira-Santos.

No Brasil, existe uma hierarquização de performática de gênero. Essa hierarquização tem algumas camadas. Se em primeiro lugar se encontra o homem heterossexual e másculo, em lugares inferiores se encontrariam o homem heterossexual de índole mais tímida e o homem heterossexual menos encaixado nas definições de masculinidade exuberante. Logo viriam os bissexuais que esconderiam a bissexualidade e tomariam uma vida dupla, marcada pela contradição e ocultamento. Também haveria o binarismo do macho/bicha, onde os ativos estariam acima dos passivos, os efeminados estariam abaixo dos machos. Ser macho e ativo seria tudo.


A questão problemática que vemos aí não se revela logo de cara. Ser efeminado não é o mesmo que ser passivo. Ser passivo não é o mesmo que ser efeminado. Aliás, hoje em dia existem muitos heterossexuais que curtem inversão de papéis. Essa ligação entre passividade-feminilidade revela uma inconsciente construção social acerca dos papéis de gênero e, até mesmo, a ideia de que mulheres são inferiores aos homens, visto que são, quase em totalidade, "passivas". A ideia de passividade-feminilidade também traduz um importante conflito de gênero: quanto mais longe um homem estiver duma mulher, mais hierarquicamente bem posicionado ele está. Essa é uma misoginia oculta muito bem estudado pela militância feminista. O que vemos é a valorização de uma figura bem clássica em nosso imaginário social: heterossexual, ativo, masculino e macho.


Como podemos vislumbrar, muitas das vezes o imaginário do homem homossexual ou bissexual se confunde com o imaginário do homem heterossexual. A ideia de superioridade do homem másculo e ativo contraposta à inferioridade do homem efeminado e passivo representa uma reprodução, mesmo que inconsciente, do machismo hétero-patriarcal. Esse inconsciente é fundamentalmente misógino e é um ponto que serve para alienação e incapacitação não só dos homens bissexuais e homossexuais, como da comunidade LGBT como um todo. Ela é uma misoginia internalizada que servirá sempre para se curvar à heteronormatividade. Representa também uma estratificação social em que o macho bi/gay se encontra acima do efeminado, levando a choques internos – além de comportamentos tóxicos – no seio da comunidade.