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quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #20: Jusfilosofia Feminista




A jusfilosofia feminista é aquela que encara criticamente a forma com que a teoria jurídica historicamente contribuiu para a opressão e subordinação da mulher, além de como serviu para a perpetuação da desigualdade de gênero. É evidente que não existe uma única forma de jusfeminismo, logo leve isso em consideração. O foco aqui são as características gerais.

A crítica jusfeminista tem como foco a dita objetividade da lei, mas que historicamente serviu para perpetuação da opressão de grupos desfavorecidos e marginalizados. Logo a ideia de imparcialidade e de objetividade da lei são dois objetos de crítica do jusfeminismo.

Além disso, um dos objetivos do jusfeminismo é como a lei reproduz estruturas patriarcais que desfavorece mulheres. As jusfeministas buscam entender como as leis são designadas, interpretadas e aplicadas de uma maneira a refletir e sustentar as dinâmicas do patriarcado. O objetivo do jusfeminismo é procurar e identificar esses poderes e reformular os princípios e práticas jurídicas para promover a justiça de gênero.

— Rejeição da Objetividade da Lei:

A crítica central, ou uma das críticas centrais, está na suposta neutralidade e objetividade da lei. As feministas afirmam que os sistemas jurídicos, mesmo que clamem neutralidade, são construídos de uma forma a ter o homem como a sua centralidade, seja em experiências, seja em valores. O resultado disso é que as normas jurídicas e os concepções geralmente marginalizam as percepções das mulheres.

As leis que clamam neutralidade usualmente caem em formas específicas que são desvantajosas as mulheres.

— Universalidade:

Muitos princípios jurídicos alegam universalidade, aplicando equidade para todos, mas eles, na verdade, tendem a refletir e privilegiar certos grupos. Geralmente homens bancos heterossexuais de classe média ou classe alta. O que leva a uma exclusão da realidade de grupos como mulheres e outros grupos marginalizados. 

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #19: Max Weber e a Lei


 

Max Weber foi um sociólogo que também era jurista. É por causa disso que a lei tem uma posição central em sua teoria sociológica. Ele também sempre alertou sobre a necessidade de compreender a sociedade através das lentes do seu sistema.


Max Weber também trabalhou com os conceitos de formalidade e substancialidade. Vou começar por eles:


— Racionalidade Formal e Substantiva:


- Racionalidade Formal: é pautada por regras, leis e procedimentos. Tendo ou buscando a eficiência e a previsibilidade. Atua através de um método. Ela é mecânica e instrumental;

- Racionalidade Substantiva: é pautada em valores, ética e ideias. Tendo como meta a justiça, o bem-estar e a equidade. Trabalha procurando o valor final. É de natureza teleológica e orientanda por valores.


— Importância das Regras e Procedimentos:


Max Weber trabalha muito a respeito da importância das regras e procedimentos, visto que elas impactam no processo de decisão. Weber chega a comentar que o processo de racionalização do mundo, além da secularização do mundo, está vinculado ao processo de desenvolvimento capitalista. Ele chega a unificar o capitalismo e a lei moderna, visto que uma das pré-condições para a existência do capitalismo é existência de uma lei racional.


Para Weber, a lei racional traz necessidade, certeza e previsibilidade. Todos esses aspectos são necessários para o desenvolvimento do capitalismo, visto que a lei precisa ser um sistema previsível. Weber coloca lado a lado o desenvolvimento industrial com a formal racionalização da lei, visto que o capitalismo se interessava com uma lei formal e com procedimento legal.


— Obedecendo a lei:


Weber nos fala sobre três motivos para a dominação legal:

1. Dominação Tradicional: a legitimidade do poder é justificada com base na santidade das regras antigas e dos poderes;

2. Carismática: baseada na devoção para a excepcional santidade, heroísmo e exemplaridade de um caráter de um indivíduo;

3. Jurisdição Racional: justifica-se pela crença na legalidade das regras e também pelo direito elevado pela autoridade pautada em regras para seus comandos.

Philosophia Iuris #18: Durkheim e a Lei

 


Emile Durkheim foi um sociólogo que fez várias reflexões envolvendo o funcionamento das estruturas sociais. Podemos chamá-lo de funcionalista, visto que ele olhava para o funcionamento dos organismos sociais. Questões como "o que mantém a sociedade unida?" e "quais são as funções da sociedade" eram de sua preocupação.


— Uma Teoria Sociológica da Lei:


A lei tem uma importante função na manutenção da coesão social. Só que a abordagem de Durkheim sobre lei não é uma mera função de mantedora ou reforçadora. Ele traz uma reflexão comparativa sobre o desenvolvimento social, o aumento de número de pessoas dentro de uma mesma comunidade, a criminalidade, a laicização, a diversidade e consciência coletiva da moralidade.


Dukheim, em primeiro lugar, observa a transformação da sociedade religiosa na sociedade laica. Nessa observação, ele percebe que as leis de caráter religioso — lembre-se do direito canônico da Igreja Católica — foram pouco a pouco se transformando em leis de caráter mais laico. Quando a sociedade era religiosa, a concepção da lei era religiosa. Quando a sociedade se laicizou, a lei também se laicizou. Isso é uma reflexão da passagem do período medieval para o período pós-medieval.


Ele observa, a partir desse ponto, que a justificação para o punimento é uma justificação moral. Só que a moralidade não é em si mesma estática. Então o desenvolvimento da criminalização e da descriminalização estão sempre voltados conexualmente a moralidade que está em voga da sociedade, logo o punimento ou a ausência de punimento podem ser alterados de acordo com as mudanças que ocorrem no dinamismo social. Visto que a punição é a privação de uma liberdade e essa privação de uma liberdade está sempre correlacionada com uma justificação moral e se essa justificação não for socialmente aceita, ela é inválida.


Além disso, ele percebeu que quanto mais complexa era a sociedade, mais distintas visões e observações de toda a espécie surgiam. Enquanto que nas sociedades menos complexas, era observável que elas tinham uma quantidade menos expressiva de visões distintas.


Ele observou que o avanço da civilização existia lado a lado com a multiplicação da diversidade. O que criava um universo de distintas percepções. O que pode ser encarado como uma mais difícil coesão social. Porém se percebe que a sociedade se torna, mais e mais, apta para aceitar diferentes modos de vida. O que também significa que o caráter menos permissivo se perde gradualmente. Diversificação social significa que mais atos passam a ser tolerados. Essa é uma distinção que aparece em sociedades consideradas mais simples, onde a coesão e padronização é maior; e sociedades mais complexas onde há maior diversificação e individualização entre as pessoas. Além disso, como já explicado, quanto mais complexa a sociedade, maior será o grau de individualização, comportando maior número de tendências e pensamentos distintos entre os membros da sociedade.


Sobre o crime, Durkheim deixa claro que todo crime é inerente e integral a sociedade, visto que não há uma sociedade sem crime. Visto que há sempre alguém que ferirá a consciência moral da sociedade em algum momento. O crime é uma violação da consciência moral da sociedade e a punição é dada a quem viola essa consciência moral coletiva. Logo punição e consciência moral coletiva estão interconectados.



Philosophia Iuris #17: Karl Marx e a Lei


 

Aviso: aqui será uma explicação breve sobre uma teoria da lei em Marx, visto que caberá mais aos sucessores do seu pensamento definirem uma teoria legal marxista.


— Karl Marx:


Marx escreveu muito sobre teoria econômica, ele também focou no desenvolvimento de uma teoria política e de uma teoria histórica. Graças a isso, ele não chegou a desenvolver uma teoria sistemática a respeito da lei. Temos que compreender que o esforço de Marx, e também de Engels, está mais correlacionado com uma tentativa de compreender as relações econômicas dentro da sociedade. Para Marx e Engels, as condições materiais da sociedade adquirem uma importância maior no direcionamento do seu pensamento. Para Marx, a lei entraria dentro da superestrutura junto com outros fenômenos culturais e políticos.


Cabe lembrar que Marx tinha uma linha de raciocínio histórica. Ele acreditava que a evolução social poderia ser explicada em termos de forças históricas. Estudando Hegel, Marx e Engels desenvolveram a teoria do materialismo dialético. Marx e Engels compreendiam que exista uma relação dialética dentro da sociedade, onde havia uma oposição de classes. Eles compreendiam que os meios de produção, os meios de produção econômica, eram materialmente determinados. E as distintas classes sociais, em suas dinâmicas, tinham um inevitável conflito em relação a esses meios de produção. Havia, para Marx, uma oposição entre quem detém os meios de produção e quem não detém.


— Lei e Ideologia:


A lei tinha, para Marx, uma função ideológica. Vamos nos aprofundar um pouco mais nisso.


Dentro da sociedade, a classe trabalhadora desenvolverá uma consciência da sua condição. Essa consciência se desenvolverá a partir da análise da sua condição material. A classe trabalhora percebe que precisa vender a sua força de trabalho para sobreviver e viver. Enquanto a classe detentora dos meios de produção (burguesia), explora a força de trabalho da classe trabalhadora.


Para Marx, desenvolvemos a nossa consciência e conhecimento a partir das experiências sociais que temos.


O papel da lei, em Marx, existe apenas para manter o estado atual de ordem social:

1. Representa os interesses da classe dominante;

2. Serve para manter o status quo.


Desse modo, podemos compreender que para Marx e Engels a lei serve como veículo da classe dominante para manter o seu poder. Quando há uma transição para sociedade sem classes, o papel da lei se tornaria mais limitado. Em outras palavras, quando a ditadura burguesa (compreendendo como o monopólio do poder da burguesia) fosse substituída pela ditadura do proletariado (compreendido como a tomada do monopólio do poder), a existência do Estado e a necessidade da lei seriam gradualmente menores. 


— Questões da Lei em Marx:


Uma das maiores críticas com correlação a teoria de Marx a respeito da lei é que ela é bastante simplificada. Por exemplo, pode-se argumentar que muitas vezes houve um esforço governamental e legislativo para melhorar as condições de vida da classe trabalhadora. Logo a lei não seria, pura e simplesmente, uma forma de opressão da classe trabalhadora, o que contraria os escritos de Karl Marx. Todavia pode se argumentar, em defesa da tese de Marx, que essas leis apenas atenuam o sofrimento da classe trabalhadora sem, contudo, resolver a raiz do problema.


Do mesmo modo, Marx diz que o protagonismo da lei seria menor depois da revolução. Se analisarmos a União Soviética, por exemplo, a lei ainda existia. Existia com algumas funções diferentes, mas ainda assim existia. Além disso, mesmo em uma sociedade sem classes, seria necessário pensar a respeito da possibilidade de crimes e também de regulamentações de caráter econômico.

Philosophia Iuris #16: a Jusfilosofia de Dworkin

 


Ronald Dworkin (1931 a 2013) foi um jusfilósofo. Ele é conhecido por ter uma obra crítica ao pensamento de H. L. A. Hart. Trabalhou na Universidade de Oxford, na Universidade de Nova York e na University College London (UCL). 


Ronald Dworkin tem uma abordagem crítica ao juspositivismo, sendo mais próximo a uma posição não-juspositivista, o que o aproxima de Lon L. Fuller e John Finnis. Podemos chamá-lo de jusmoralista ou algo próximo ao jusnaturalismo contemporâneo.


Dworkin defende a moralidade como parte necessária e inseparável da identificação, interpretação e aplicação do Direito. Porém ele rejeita a interpretação clássica do jusnaturalismo em que uma lei injusta deixa de ser lei.


Como grande parte do texto se retirará ao trabalho de Hart, peço que o leitor ou a leitora leia os textos predecessores. Visto que a obra de Dworkin é uma crítica sistemática ao pensamento de Hart.


Grande parte do trabalho de Dworkin é o de ser uma resposta ao trabalho de Hart. Para desdobrar isso precisamos ter uma visão setorial. Em pririmeiro lugar, vou traçar um quadro sistemático de forma simplificada.


— Hart vs Dworkin:


- Questão Central: "O que a lei é?" (Hart) X "O que uma lei requer?" (Dworkin);

- Natureza da Lei: Sistema social de regras primárias e secundárias (Hart) X Regras, Princípios e Política (Dworkin);

- Regra de Reconhecimento: O último critério para a validação da lei é o fato social (Hart) X Nenhuma regra mestra pode captar a razão complexidade legal (Dworkin);

- Papel da Moralidade: Separável, uma lei pode ser válida e moral (Hart) X Necessária, o raciocínio moral é essencial para identificar uma lei (Dworkin);

- Julgamento em Casos Difíceis: exercer discrição e fazer uma nova lei (Hart) X usar princípios (Dworkin);

- Analogia: a lei é um fato social a ser observado, ciência (Hart) X a lei é uma narrativa a ser interpretada, literatura (Dworkin).


— Questão Central:


Dworkin começou seu trabalho crítico contra Hart começando a atacar a concepção positivista de que as leis poderiam ser descritas tão somente como se fossem só regras. Segundo Dworkin, as leis podem conter também dentro de si conteúdos que não são regras.


Esse conteúdo que não são regras podem ser chamados de princípios. Os princípios servem para preencher os requisitos da justiça quando ela estiver vaga e imprecisa, dando uma dimensão de moralidade.


Para ilustrar esse caso, Dworkin trabalha com o caso "Rigg v Palmer" de 1889. Nesse caso, um neto matou o seu avô. O assassino seria herdeiro. Todavia entrou o princípio de que "ninguém pode lucrar com o próprio crime". Logo o princípio (que vem com moralidade) completou a lacuna da regra. É por isso que Dworkin vê o trabalho de Hart como incompleto.


— Natureza da Lei:


Para Dworkin, os princípios são capazes de preencher as lacunas das regras estabelecidas. A diferença entre os princípios legais e as regras legais está no caráter. Ambos apontam para obrigações legais. Os princípios apontam para as dimensões morais da lei. Apontando para uma dimensão teleológica da lei (a finalidade a qual ela se inscreve), podendo esse ser socioeconômico ou político.


Enquanto Hart era um juspositivista, aderente da Tese da Separação, Dworkin vê na moralidade uma consubstancia necessária para aplicação da lei. Visto que os princípios são padrões de conduta que apontam para uma direção, mas não determinam uma posição única. Eles possuem peso e importância no balanceamento dos conflitos.


— Regra de Reconhecimento:


Dworkin rejeita a ideia de que exista um tipo de regra mestra que todo sistema jurídico apresenta. Isto é, não há uma chave mestra para ser utilizada para identificar regras válidas em todos os sistemas jurídicos existentes. Logo ele vê a ideia de Hart como uma espécie de simplificação da complexidade que o mundo apresenta.


Ele vê que as pessoas continuam tendo direitos válidos mesmo quando esses mesmos direitos estão em disputa. Ou seja, mesmo quando se disputa socialmente qual é a correta legalidade de um direito, mesmo situações bastante críticas onde há um questionamento profundo, as pessoas continuam a ter acesso a esses direitos.


— Papel da Moralidade:


Dworkin, ao contrário de Hart, acredita que a moralidade serve para dar uma interpretação construtiva da lei. E que a interpretação da lei já implica necessariamente em uma moralidade quando pensamos no que uma lei realmente é. Tal como foi o caso de "Rigg v Palmer" anteriormente citado. Quando o neto matou o vô para obter a sua herança, questionou-se qual era o fundamento da lei. Logo houve uma análise de natureza moral.


— Julgamento em Casos Difíceis:


Aqui, mais uma vez, destaca-se em Dworkin a ideia dos princípios. Isto é, enquanto que em Hart é possível criar uma nova lei, em Dworkin é necessário que o juiz se questione a respeito do Telos (finalidade da lei) e se oriente moralmente para cumprir essa finalidade. A questão é uma interpretação moral que se faz sobre os direitos e deveres presentes na sociedade.


— Analogia:


É por causa da correlação entre direito e moralidade que podemos vislumbrar em Dworkin uma ligação a uma chave interpretativa da lei. E essa chave interpretativa da lei é a busca dos princípios que a orienta. Isto é, ele lê a lei através da lente moral. E a lente moral completa a lei.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #15: o Juspositivismo de Hart

 


O juspositivismo de Hart é, como escrevi anteriormente, um dos mais influentes do mundo jurídico. Hart desenvolve um conceito de leis baseado em regras. E ele divide as regras em duas categorias:

- Regras Primárias;

- Regras Secundárias.


— As Regras Primárias:


As Regras Primárias servem para nos dizer o que podemos ou não podemos fazer. Elas informam aos membros de uma sociedade o que eles poderão ou não poderão fazer, como deverão agir em determinadas circunstâncias. Essas regras, as regras primárias, são regras que visam o funcionamento próprio da sociedade.


Podemos verificar esse tipo de regra nas leis de trânsito, por exemplo. Indo mais adiante, podemos ver as regras envolvendo o pagamento de imposto. Se, por exemplo, as pessoas quebrassem as regras de trânsito, cada qual indo com a velocidade que quer, consumindo álcool e dirigindo, passando no sinal vermelho, não conseguiríamos ter um bom andamento das nossas cidades e tudo se tornaria caótica, sem a possibilidade de ter uma segurança maior. Por outro lado, se as pessoas não pagassem impostos, as próprias garantias de direitos fundamentais como saúde, educação e segurança, seriam financeiramente impossíveis.


Como podemos ver, as regras primárias servem para o funcionamento básico da estrutura social. Podendo ser resumidas como regras de conduta que impõem obrigações, deveres e proibições.


— Regras Secundárias:


1. Regras de Mudança;

2. Regras de Adjudicação;

3. Regras de Reconhecimento.



1. Regras de Mudança:


Toda sociedade viva está em constante mudança. Logo é uma necessidade que a lei se transforme tal como a sociedade se transforma. Para Hart, a lei não pode ser estática (parada) visto que a sociedade não é estática (parada). A lei não é algo que se cria de modo fixado uma única vez e nunca muda. Conforme a sociedade vai se transformando, novas regras precisam surgem para acompanhar essa transformação social.


Essas regras são necessárias para criar, modificar ou extinguir regras primárias. 


2. Regras de Adjudicação:


Para que um sistema jurídico funcione, ele precisa de um mecanismo de contestação e interpretação da aplicação das regras primárias.


Isso ocorre quando existem situações de disputa em relação a aplicação das leis. Vemos isso em vários tribunais onde dois lados defendem estar no seu direito. A possibilidade de adjudicação faz com que casos particulares do dia-a-dia recebam o tratamento adequado.


O sistema de adjudicação possibilita a satisfação e a justificação do sistema judicial essencialmente permitindo que possamos ver que as regras do sistema primário estão sendo cumpridas corretamente. Se não existe a possibilidade de contestação das decisões, o sistema em si mesmo seria cego, visto que o fundamento da aplicação das regras não seria localizável e também poderia ser usado de forma injusta.


Servem para determinar autoritativamente se uma regra primária foi violada ou não e impor sanções (punições) caso tenham sido.


3. Regras de Reconhecimento:


Essas regras são mais o reconhecimento interno que um cidadão tem do ordenamento jurídico do país. É uma espécie de conhecimento que o cidadão tem sobre determinados ordenamentos jurídicos que existem dentro do país.


Hart está tentando nos dizer que quem possui internalizadamente a noção de que existem ordenamentos jurídicos há de reconhecer a existência das regras primárias que regulamentam a vida social. A habilidade de reconhecer as regras que regem o país é necessária para que as pessoas atuem dentro da esfera da legalidade. Se ninguém as reconhece ou poucas pessoas reconhecem a existência dessas regras, é muito pouco provável que as pessoas sigam essas regras.


Essa é a pedra angular do pensamento de Hart. Servindo como uma regra mestra que fornece critérios últimos para identificar quais outras regras são válidas e pertencem ao sistema jurídico. 


— Distinção de H. L. A. Hart e John Austin:


Hart e Austin são diferentes em múltiplos pontos, mas ambos são juspositivistas pois ambos defendem os fundamentos elementais do juspositivismo. Embora Hart não esteja próximo de Austin no que se refere ao Comando Soberano para a justificação ou legitimação da lei. O que se torna particularmente útil quando se trata do reconhecimento que se dá ao Direito Internacional — que na teoria de Austin, como vemos textos anteriores, era debilidade. Como Hart vem de um período mais próximo a nós, é evidente que o Direito Internacional já aparecia mais próximo ao seu horizonte de consciência. O mesmo não se sucedeu com Austin, visto que naquele período em que ele viveu, o Direito Internacional não era tão proeminente tal como era no período de Hart.


Austin trabalha com a Teoria do Comando e Hart trabalha com a Teoria das Regras. Para Austin (Teoria do Comando), a obrigação jurídica existe porque há o comando de um soberano acompanhado de uma sanção (punição). Para Hart (Teoria das Regras), a obrigação jurídica existe porque há uma regra social que é internalizada e aceita como um padrão de conduta válido. Enquanto Austin vê um padrão externo munido de força (o soberano), Hart vê um padrão interno (reconhecimento social) movido pela conformância ao ordenamento estabelecido que é tido como certo.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #14: Introdução a H. L. A. Hart

 


H. L. A. Hart é um dos juspositivistas mais influentes de todos os tempos. Escrever sobre ele é uma tarefa difícil. Sobretudo para um aluno de Direito inexperiente como eu. Espero que consiga, nesse texto e no próximo, dar uma compreensão mesmo que rasa sobre o assunto.


— Recaptulação:


Como todo juspositivista, H. L. A. Hart mantém a tese da separação. Isso significa que ele defende que a lei não precisa de fatores externos para a sua validação. Em outras palavras, a moralidade ou outros fatores transcendentes não invalidam a lei.


Quando estivermos pensando em juspositivistas, temos que ter em mente que existe um posicionamento em que por uma questão factual e sociológica, os sistemas jurídicos funcionam de forma autônoma — sem depender da moralidade. Isto é, se no jusnaturalismo a moralidade está acima da lei, no juspositivismo a lei existe por conta própria.  Isto é, a lei aparece em uma espécie de looping no qual o ponto de partida é ela em si mesma.


O que não significa, convém sempre lembrar, que juspositivistas não acreditam necessariamente que a moralidade não tem relevância na lei. A maioria dos juspositivistas não separam completamente ou inteiramente a moralidade da lei. Para maioria dos juspositivistas, a lei pode apresentar conteúdo moral, só que o conteúdo moral ou a moralidade e a lei não necessariamente requerem a existência uma da outra.


A lei é o que é. Uma lei imoral continua sendo uma lei. E essa é uma questão que se refere a ontologia da lei. Isto é, o que determina a existência, o ser, o significado existencial da lei:

- O que a lei é?

- Como determinar que algo é uma lei?

- Como determinar que uma lei é ou não uma lei?


Jusnaturalistas, para essas questões, argumentarão que se a lei é imoral ou é contraditória com a lei natural ela não é uma lei. Já um juspositivista, por sua vez, argumentará que isso não é verdade, que não há um conteúdo moral que determine o que é lei, que não podemos discutir a natureza da lei tal como discutimos a natureza da moralidade.


Para um juspositivista existem leis com conteúdo moral, porém o conteúdo moral não é por si mesmo necessário para existencia em si da lei. Debates sobre o conteúdo moral da norma jurídica são debates que ocorrem depois que você determinou qual é a natureza da legalidade. Em outras palavras, enquanto o jusnaturalista encontra a natureza da legalidade derivada da moralidade (moralidade > legalidade), o juspositivista busca primeiro a legalidade e depois a moralidade (legalidade > moralidade). O juspositivista vê o Comando Soberano (Hart desenvolverá a Regra de Reconhecimento), compreendendo a primazia do poder e da possibilidade de efetivar a lei. O jusnaturalista vê a moralidade e a capacidade da lei se adaptar a ela. Os dois buscam a ontologia da lei, o que justifica a sua existência, de modo diferente.


— A Jusfilosofia de Hart:


Para Hart, uma lei má continua sendo uma lei. É evidente que essa posição vai em oposição ao pensamento jusnaturalista, visto que um jusnaturalista precisa da moral justificar a lei. E essa é a razão do famoso debate de H. L. A. Hart (juspositivista) contra Lon L. Fuller (jusnaturalista), onde os dois debateram a respeito do nazismo.


Segundo jusnaturalistas, é por causa das leis nazistas serem imorais e do mal que elas não são leis, logo o ordenamento jurídico nazista não era um ordenamento jurídico per se. Hart, no sentido oposto, diz que uma lei do mal ainda continua sendo uma lei, visto que ela não necessita de uma referência à moralidade para justificar a sua existência. Isso, no pensamento de Hart, não exclui a possibilidade de crítica, mas que toda crítica será de natureza moral, filosófica ou política, não uma crítica a respeito da legalidade. Não é necessário uma conexão conceitual ou lógica entre Direito e Moral.


Para ele, como juspositivista, as leis nazistas eram leis. Independentemente se eram morais ou não. Visto que a existência das leis está nelas mesmas. Já para o seu opositor, as leis nazistas não eram leis por serem imorais e más. O ponto de vista de Hart é juspositivista, isto é, o que determina o que uma lei é ou não é, será a Regra de Reconhecimento do sistema, o que de fato é aceito como fato social pelos oficiais — o Estado que tem a capacidade de efetivar a lei. Em outras palavras, uma lei existe por si mesma. Mesmo que isso possa ser encarado como triste, o Direito e o ordenamento jurídico de um país, depende de uma correlação de forças e a força mais forte é aquela que impõe a lei. Ela pode ser filosoficamente questionável. Ela pode ser moralmente questionável. Ela pode ser politicamente questionável. Mas, em nenhum momento, ela deixa de ser lei.


Hart reconhece que a lei existiu. Ela existiu dentro do ordenamento jurídico nazista. O que ele defende é que se crie uma lei retroativa para punir os atos praticados. Assim ele vê uma possibilidade de não contaminar a legalidade com a moralidade, mas ainda assim fazendo justiça. Para Hart, é mais sólido reconhecer que uma lei imoral era uma lei e então mudá-la, do que distorcer o conceito de Direito.

Philosophia Iuris #13: a Definição Austiniana de Lei

 


Em primeiro lugar, separarei a teoria juspositivista de Austin em três principais pontos para entendermos como ele pensava. Depois disso, explicarei cada um delas.


1. Teoria do Comando Soberano;

2. Tese da Separação;

3. Sanção.


1. O que é a Teoria do Comando Soberano?


Essa teoria, no pensamento de Austin, se refere a ideia de que a lei deriva de uma autoridade soberana. Ela também informa, segundo o pensamento o pensamento austiniano, que a soberania que comanda a lei. Não há uma aceitação de uma autoridade externa que possa influenciar a lei, se não a soberania da autoridade constituída.


Se pode perceber que essa teoria constrata com o jusnaturalismo que depende da fonte externa da moral.


2. O que é a Tese da Separação?


Essa é a tese que distingue o juspositivismo do jusnaturalismo. Ela defende que a lei não depende de nada, de nenhuma fonte externa, que vá além do Comando Soberano. Em outras palavras, a moralidade, o conceito justiça, a igualdade, etc, não influenciam na lei.


Isso não sugere, como há de se pensar, que elementos como moralidade, justiça e igualdade não existem. Mas sim que eles não influenciam na lei. Visto que, de acordo com Austin, só o Comando Soberano pode influenciar na lei.


O que Austin está tentando nos dizer não é que as leis podem ser imorais ou não se aliarem com a moralidade. Ele está dizendo que lei e moralidade são distintas. Visto que apenas o Comando Soberano serve como pré-requisito, já que em última instância, só o poder de fazer a lei valer por meio da força que importa. Se a lei se alinha com a moralidade, com a igualdade, com a justiça, isso se deve pela natureza do Comando Soberano que rege a nação, não por conta da própria natureza da moralidade, da igualdade ou da justiça.


3. O que é a Sanção?


Como podemos ver, o primeiro elemento se refere a qual poder tem a capacidade de tornar a lei legítima — aqui entendida como força para a tornar real. O segundo elemento é o entendimento de que só a força torna o poder real. O terceiro elemento nos diz como esse poder torna a força real.


Quando entendemos que no pensamento de Austin só um Comando Soberano pode tornar a lei passível, também compreendemos a razão dele separar a lei de todos os outros fatores externos. Dito isso, precisamos entender o que o Comando Soberano faz para aplicar a lei, ou seja, fazer com que a lei saia do papel e se torne uma lei efetiva na realidade. Pensamos aqui como o Estado faz para punir quem desobedece a lei estabelecida.


Se adentrarmos em nossa realidade, vemos que existem vários mecanismos que o Estado pode se valer para impor a lei — punindo aqueles que as desobedecem. Por exemplo, podemos pensar nas forças policiais, no judiciário e também nos militares. Todos esses são mecanismos de poder que garantem com que o sistema, o ordenamento jurídico de um país, torne-se realidade prática.


Conclusão


O que podemos ver no pensamento de Austin é uma espécie de um realismo tremendo. Ele pensa a partir de um ponto muito preciso: é o poder que torna a lei efetiva (Tese do Comando Soberano). Todos os outros elementos caem no idealismo (Tese da Separação). E só o Comando Soberano (Tese da Separação e do Comando Soberano) pode ser capaz de aplicar a lei, punindo todos aqueles que a desafiam (a consequência lógica é a Sanção).


domingo, 24 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #12: Juspositivismo Tradicional

 


Espero que seja tão legal para vocês quanto é para mim adentrar nesse reino da jusfilosofia. Não sei se vocês são tão novos nesse terreno quanto eu sou, todavia espero que o conteúdo dessas análises seja tão proveitoso e útil quanto é para mim.


— Recaptulação:


No capítulo anterior dessa série de notas públicas do que venho estudado, escrevi sobre as condições que possibilitaram o surgimento do juspositivismo. Tal como escrevi anteriormente, naquele período houve uma intensa secularização social, o advento do Iluminismo, a separação entre a união intrínseca entre a lei e a moralidade. O juspositivismo essencialmente surge dessa separação (entre a lei e a moral). Os juspositivas creem que a lei não necessariamente é derivada da moral.


— Introduzindo a Revolução de John Austin:


- John Austin é um pensador revolucionário que desenvolveu uma teoria da lei em que separava a própria lei da moralidade;

- No pensamento de Austin, o juspositivismo austiniano, nós podemos ver que o conceito de lei, a própria forma que se dá a legalidade, é derivada não da moralidade, mas sim do conceito de soberania;

- O que John Austin essencialmente faz, e o que foi bastante revolucionário e controverso no seu tempo, é o de substituir a moralidade pela soberania;

- Isso quer dizer, como observado na nota pública anterior, que não haveria mais aquela transcendentalidade que era comum ao jusnaturalismo;

- John Austin cria o juspositivismo numa base que ele acreditava ser mais concreta. E essa base era exatamente a soberania;

- A soberania pode ser baseada numa pessoa ou uma instituição.


— Por qual razão John Austin fez isso?


O pensamento jusnaturalista se estabelece com um raciocínio a priori. O pensamento a priori é um modo epistemológico de se pensar. Em outras palavras, o jusnaturalismo deriva de uma posição em relação a como o conhecimento se dá. Ele tem uma correlação com a forma com que entendemos o conhecimento. Com a forma de como acreditamos que podemos tirar conclusões a partir desse conhecimento. E também de como podemos justificar nossos conhecimentos e ações no mundo e a respeito dele.


Um exemplo clássico de um pensamento a priori é o do triângulo. Quando dizemos que todos os triângulos possuem três lados, não precisamos sair medindo todos os triângulos do mundo para saber que todos os triângulos apresentam três lados.


O modo de raciocínio a priori deriva não de uma fonte direta, mas de uma fonte externa ao conhecimento. Quando pensamos no jusnaturalismo, a lei não existe por si própria, mas é derivada da moralidade e só por meio dela pode ser justificada. Como podemos ver, a batalha intelectual travada por John Austin também tem a ver com: (I). a forma com que os jusnaturalistas viam o conhecimento e o que poderiam derivar a partir dele; (II). a forma com que Austin e outros juspositivistas vão ver o conhecimento e o que podem agora derivar a partir dele. Nisso compreendemos que a batalha entre juspositivismo e jusnaturalismo também é uma batalha epistemológica.


O que é o oposto do a priori na esfera da epistemologia? É o a posteriori. Em outras palavras, a existência de um objeto em si não pode ser derivado de outro objeto. O pensamento a priori, para Austin e seus contemporâneos que também tinham um caráter mais secularizado, parecia muito abstrato e remetia muito ao mundo anterior — o mundo mais religioso, mais medieval, que remetia mais ao cristianismo. Para Austin, a característica mais importante para determinar a lei em sua condição de lei era a sua própria existência, não a existência de uma moralidade abstrata da qual deveria derivar a lei. Em outras palavras, a existência da lei não deveria depender, no pensamento de Austin, de fontes externas.


A questão que fica é: o que justifica a lei se não a moralidade? O que seria esse soberano? O comando soberano é um comando generalizado de um soberano (aqui entendido como uma autoridade com poder concreto de poder fazer valer a lei), apoiado pela ameaça de sanção (punição para quem não cumprir essas leis emandas pelo soberano). Aquela pessoa ou corpo que a maioria da sociedade obedece. A busca da lei passa a ser como a lei de fato é (o que foi positivado, ou seja, tido como legítimo pelo Estado) e não como a lei deveria ser (referência moral que os jusnaturalistas tinham). É por isso que um conjunto imoral de lei, segundo essa lógica juspositivista, não deixa de ser lei. Visto que, no fim de tudo, a questão é se essa lei foi emanada pelo soberano e não se ela é uma boa lei.


— Jusfilosofia Austiniana e o Direito Internacional:


Uma das maiores críticas a esse pensamento, que ainda vamos analisar mais, é o da sua relação com o Direito Internacional. Embora se possa afirmar, para a defesa de Austin, que o Direito Internacional não tinha tanta relevância em seu tempo quanto atualmente tem. Vamos entender um pouco mais.


Se a lei é derivada da soberania, o que é um ponto bastante concreto, como pode existir um Direito Internacional? A lei, segundo a linha juspositivista austiniana, só pode existir com base em uma autoridade concreta. O Direito Internacional, por sua vez, não deriva de uma autoridade soberana. Em outras palavras, não há um monarca, um parlamento, um Estado internacional, um indivíduo singular, um parlamento, uma dinastia ou algo semelhante. Para juspositivistas austinianos, o Direito Internacional não pode existir de um jeito semelhante tal como existe o Direito Nacional.


Isso é encarado como uma questão problemática a respeito do juspositivismo austiniano. Visto que o pensamento austiniano se constrói com base na existência de uma soberania, enquanto que o Direito Internacional não pode existir com base em uma soberania internacional com autoridade própria. Então de acordo com a teoria austiniana, como não há uma autoridade soberana internacional, não há uma soberania internacional, logo o Direito Internacional não existe da mesma forma ou do mesmo jeito que existe os direitos presentes em várias nações. Veja que há uma dificuldade de fazer com que as leis do Direito Internacional entrem em vigor, sobretudo pela disparidade de poderes entre as nações. Logo aplicar leis internacionais e garantir a sua vigorosidade é uma crítica não só do juspositivismo austiniano, mas também uma crítica geral que se faz ao Direito Internacional.

Philosophia Iuris #11: o Desenvolvimento do Juspositivismo

 


Quando pensamos em juspositivismo alguns nomes saltam em nossa mente: John Austin, H. L. A. Hart, Ronald Dworkin. 

O desenvolvimento do juspositivismo está correlacionado ao declínio do jusnaturalismo. O que contribuiu ao declínio do jusnaturalismo foi a secularização da sociedade, visto que com a secularização a influência religiosa também entrou em declínio. Historicamente, pelo menos naquele momento, o jusnaturalismo estava correlacionado a uma matriz de pensamento religiosa. Tal como podemos observar nos escritos de Santo Agostinho de Hipona e São Tomás de Aquino.

O jusnaturalismo também foi identificado como aquele que acreditava que o sistema legal derivava do sistema moral. Embora se possa afirmar que, para um jusnaturalista, o sistema legal deve derivar do sistema moral.

Podemos ver um afastamento mais amplo do jusnaturalismo e do juspositivismo em tempos mais historicamente recentes graças ao impacto que o sistema legal da Alemanha Nazista e o sistema legal da União Soviética tiveram no debate público. O juspositivismo foi encarado como aquele que separou a necessidade moral do sistema jurídico e o jusnaturalismo como aquele que entendia que todo sistema legal derivava da moralidade. As duas alegações podem ser tidas como falsas, visto que o juspositivista estuda a lei como lei, não necessariamente não observando a moralidade; e o jusnaturalista quer que a lei seja moral, mas sabe que existem leis imorais, que ele julga como falsas.

— O que havia antes do juspositivismo?

Os princípios da Common Law podiam ser vistos como transcendentes. Tal como os princípios de da justiça e da beleza em Platão. Quando uma "nova lei" surgia, era mais como uma descoberta e não uma invenção.

Analisemos mais cautelosamente. O sistema da Common Law era visto como um sistema que era desenvolvido pelos juízes, não pela criação de novas leis ou pela ideia de invenção de novas leis ou novos princípios de leis. Em vez da invenção, havia a descoberta de novos princípios. Os juízes eram encarados não como inventores, mas como aqueles que estavam descobrindo regras que já existiam antes das suas descobertas, mas que ainda não tinham sido percebidas pelos seres humanos.

Isso lembra a reminiscência de Sócrates e Platão, isto é, a ideia de que o conhecimento não é adquirido externamente, mas sim a recordação de algo que a alma já sabia antes de encarnar. Caso vocês se recordem bem das notas públicas anteriores dessa série, Platão acreditava que no Mundo das Ideias existiam formas perfeitas (arquétipos) e imutáveis das quais o mundo real derivava, mas de forma temporária e imperfeita. A forma que o Direito era encarado anteriormente, baseava-na a ideia de que estávamos entendendo e colhendo mais a fundo um Arquétipo Perfeito de Justiça. Logo era como se a gente estivesse tentando traduzir o intraduzível do Mundo das Ideias no Mundo Real, captando mais e mais da forma perfeita, sem nunca captá-la ao todo.

Essa perspectiva, como já devem ter percebido, lembra a perspectiva jusnaturalista. Se existem direitos de natureza imutável, que são assimilados pelo uso da razão, há um aspecto transcente nesse pensamento. E as modificações na lei não existem para instaurar novidades, mas para ampliar a compreensão do que se havia antes. Essa forma é tão parecida com o jusnaturalismo que, de fato, jusnaturalismo e Common Law eram tidos como quase o mesmo. Podíamos ver a ideia de objetividade, a ideia de moralidade, uma noção de uma idealidade que transcende, todos esses conceitos em correlação com as teorias da jurisprudência.


— Tudo mudou:

É evidente que tudo mudou. Se formos para o nosso tempo, isto é, no século XXI, podemos ver o avanço da Teoria Crítica, embora o juspositivismo ainda seja o predominante no ponto de vista acadêmico. Todavia cabe aqui compreender a linha histórica de raciocínios que levaram o juspositivismo a se tornar predominante.

No século XVII, vimos o desenvolvimento político da Revolução Inglesa. No século XVIII, vimos o desenvolvimento da revolução francesa e americana. As ideias dos direitos dos homens e das liberdades fundamentais.

Podemos olhar com o olhar afastado e crítico do Thomas Hobbes, de um ponto de vista antirrevolucionário, a partir do livro seu livro Leviatã para defender a necessidade de uma autoridade sólida. Todavia podemos olhar para pensamentos como o dos pensadores de natureza mais revolucionário para o seu tempo, como o John Locke e o Jean-Jacques Rousseau. É evidente que o desenvolvimento do pensamento liberal clássico impactou muito esse período. Ao mesmo tempo que eles tinham um pensamento próximo do jusnaturalismo, eles também poderiam ser encarados como bastante críticos do monarquismo.

— Origens do Juspositivismo: John Austin

É aqui que vamos compreender como se instala o pensamento revolucionário de John Austin. Ele começa a desenvolver, a delinear e a possibilitar uma teoria jusnaturalista que afastava a lei da moralidade. 

Ele vai contra a sabedoria convencional da jusfilosofia do seu tempo. Visto que essa acreditava na união entre lei e moralidade. Com a entrada do pensamento de John Austin, vemos a lei não mais derivada do conceito de moralidade, mas do conceito de soberania. Logo não haveria mais a ideia transcendental de normas legais como na jusfilosofia.

O que vamos começar a analisar, no próximo capítulo dessa série do notas públicas, é como John Austin quebrou com os jusnaturalistas e derivou a sua jusfilosofia a partir da ideia de autoridade soberana e não da moralidade — tal como faziam os jusnaturalistas.

Philosophia Iuris #10: Introdução ao Juspositivismo

 



O juspositivismo tem uma grande importância na jusfilosofia. Nos anos de 1800 e 1900, vimos muito da sua ascensão como a teoria jurídica mais importante. Agora que já construímos a base teórica do jusnaturalismo, é importante construirmos também uma base teórica do juspositivismo.

— O que é juspositivismo?

1. A palavra positivismo vem do latim "positum";
2. Ela se refere a ideia da lei que foi posta, isto é, positivada e colocada dentro do ordenamento jurídico do país;
3. O juspositivismo busca entender a validade da lei de acordo com a objetividade de uma fonte verificável;
4. Isso rejeita a tese jusnaturalista de que a validade e a existência da lei podem ser determinadas externamente pela natureza humana.

É válido lembrar que o jusnaturalismo, defensor do direito natural, busca uma lei objetiva dentro da natureza, às vezes procurando essa objetividade em um código moral, nas leis eternas de Deus, nas revelações bíblicas, etc.

— A Rejeição Juspositivista:

Uma das coisas que a maioria dos juspositivistas rejeitam é a ideia de que direito e moralidade estão necessariamente conectados. Isso não significa que juspositivistas não coloquem a moralidade em suas considerações, mas que a moralidade está na periferia do posicionamento positivista. Enquanto os jusnaturalistas colocam a moralidade e filosofia moral na frente e no centro das suas considerações para saber o que faz a lei justa.

Como já explicado anteriormente, no século XX se tornou extremamente difícil reconciliar a lei e a moralidade, tendo-se em vista o Terceiro Reich, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. O Terceiro Reich, é válido lembrar, tinha as suas próprias leis e um sistema jurídico.

É preciso dizer que os juspositivistas afastam a ideia de que não consideram a moralidade. Eles analisam a partir do ponto do que a lei é, não do que ela deveria ser. Esse ponto de partida, busca compreender a estrutura e o conteúdo da lei de forma prioritária e como ponto de partida. Também é preciso dizer que os jusnaturalistas não vinham a lei como necessariamente moral, mas sim que ela tinha que ser moral para ser justa como lei.

Voltando a centralidade do juspositivismo, os juspositivistas separam os conceitos de legalidade de interpretações sociológicas e históricas. Novamente, é preciso considerar que isso não quer dizer que um juspositivista não use sociologia e história, mas que isso também não é central em suas considerações.

Sim, eu sei que, no presente momento, tudo isso parece meio vago. É que precisaremos passar por um caminho para compreendermos mais a natureza do juspositivismo, tal como já percorremos os caminhos do jusnaturalismo.

Philosophia Iuris #9: Teoria dos Direitos Naturais de John Finnis

 


O jusnaturalismo de John Finnis se estabelece e se estrurura na busca do bem comum. O bem comum faz parte das condições necessárias que permite os membros de uma mesma comunidade a procurar e a realizar as suas condições humanas básicas. O conceito de bem comum é determinante para todas as instituições sociais, visto que elas devem criar a condição para que todo indivíduo floresça através da participação das condições básicas e bens básicos ao seu desenvolvimento.


— Condições Básicas ao desenvolvimento do indivíduo:

- Bens Básicos: vida, conhecimento, diversão, acesso à experiência artística, sociabilidade, raciocinar o que é melhor para si e agir de acordo com essas decisões, liberdade espiritualidade;

- Instrumenal e Possibilitação: todas as instituições (incluindo as leis e o governo), precisam possibilitar aos indivíduos a procura e a conquista desses bens básicos, dando condições que facilitam a conquista deles por todos os membros da comunidade. Uma sociedade bem ordenada dá condições para paz, a segurança e um sistema legal que ajuda todos os membros da sua sociedade;

- Coordenação e Liberdade de Consciência: o bem comum é o resultado dessa coordenação, permitindo todos os indivíduos seguirem com os seus planos de vida de um jeito que todos respeitem e suportem a habilidade todos os outros fazerem o mesmo;

- Lei como Instrumento do Bem Comum: o propósito primário da lei é o de servir ao bem comum. Um sistema legal bom é aquele que cria um estável e confiável ambiente no qual todas as pessoas são capazes de terem bens básicos. Isso cria nelas um senso de pertencimento e também uma noção de que obedecer a lei é a forma mais efetiva de assegurar a ordem social, e por extensão lógica, o bem comum.


Para Finnis, a lei nasceu e é derivada do conceito de moralidade. Ela ocupa o mesmo espaço da palavra moralidade, no sentido de que vai em direção da questão normativa: "qual tipo de pessoa eu gostaria de ser?". A questão da lei é: "em qual sistema eu gostaria de viver?" ou "qual sistema pode ser considerado justo para todos (o bem comum)?". O que Finnis busca é a base que leva a conformância com a moralidade.


Finnis busca uma ideia de Regra de Ouro, um princípio que a lei deve instigar como um todo, algo que promova, para todos os membros da sociedade, um bem moral básico. Ele está formando um jusnaturalismo eticamente motivado para os tempos modernos dentro de uma sociedade plural e de caráter secularizado. É válido sempre lembrar que o jusnaturalismo não é só um sistema filosófico-jurídico, mas que tem uma ligação profunda com a filosofia moral.


A lei, de acordo Finnis, deve ser aquela que facilita o bem comum. As leis devem buscar resolver os problemas de coordenação social para garantir a harmonia social. A harmonia social não pode ser garantida se não há a resolução de conflitos. Em verdade, quanto mais conflitos tem um corpo social, maior o nível de rupturas que dissolvem a coordenação (harmonia) do corpo social. A coordenação da comunidade é a essência que deve operar por trás de toda estrurura social e a condenação busca o princípio básico de resolver os problemas que entravam essa própria coordenação, não pela imposição de uma regra pura e simples, visto que o imposicionamento de uma regra injusta não resolve os problemas sociais, mas sim pela busca sensata do bem comum. Visto que o que garante a aceitação dos ordenamentos sociais nada mais é do que um sistema que é considerado e tido por todos como justo, logo o bem comum é a matriz da coordenação social e garanti-lo é garantir essa mesma matriz.

sábado, 23 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #8: Direito Natural Procedural

 



Essa é a teoria mais moderna do Direito Natural, ela foi desenvolvida pelo Lon. L. Fuller, conhecida como procedural-naturalismo. 


Fuller desenvolveu a sua teoria jusnaturalista com base na análise do que ele considerava uma fraqueza em relação de como a lei operava, especificamente observando o Terceiro Reich. Ele viu a ascensão do nazismo na Alemanha, que foi essencialmente por meios legais e também, por meio da mesma legalidade, instigou um genocídio que era justificado pelo próprio sistema. Fuller viu no sistema nazista, um sistema que pode violar a moralidade e a os direitos humanos. O que lhe trouxe um antagonismo contra o juspositivismo, visto que o juspositivistas colocavam a moralidade como uma questão periférica na construção de um sistema jurídico. Em outras palavras, o nazismo só conseguiu ser uma espécie de sistema que era justificado por si mesmo graças a uma mentalidade juspositivista.


Fuller levanta um questionamento a respeito da natureza da lei e, especificamente, do processo legal. As mesmas questões que inquietavam os antigos jusnaturalistas tornam a aparecer:

- O que a lei é?

- O que a lei não é?

- O que significa chamar algo de lei?


Além disso, a velha frase de Agostinho de Hipona também retornava: "uma lei injusta não é lei" (lex iniusta non est lex). O que fez Lon L. Fuller pensar na necessidade fundamental de uma conexão entre a lei e a moralidade. O que o leva a debater com H. L. A. Hart (defensor do juspositivismo e da separação entre Direito e Moral). Para Fuller, a fundação de um sistema legal precisa vir com certos princípios morais e valores. Ele chama isso de princípios da legalidade.


Apesar de Fuller acreditar que existe uma inter-conexão intrínseca entre moralidade e legalidade, ele rejeita a noção religiosa de lei natural provinda de pensadores clássicos do jusnaturalismo como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Em outras palavras, ele não acreditava que a ontologia da lei era derivada de uma autoridade superior como Deus. Logo ele traz uma modernização, de caráter secular, do jusnaturalismo.


A teoria procuderal da lei natural sugere que há um sistema moral com o qual se constrói a estrurura e a administração de uma lei. No entanto, não busca uma razão teológica para justificar o seu ponto, mas sim aponta para a necessidade de um padrão mínimo de moralidade que a lei precisa cumprir. Se a lei, por outro lado, for claramente considera má e/ou uma violação de alguns princípios morais, então certamente ela não é uma lei.


— O Critério Legislativo:


No seu livro "The Morality of Law", Fuller nos convida a imaginar um cenário hipotético onde há um monarca hereditário chamado Rex tentando governar. Rex é descrito como particularmente incompetente e também está numa monarquia que tem uma capacidade de recordação ruim quando está no processo de criação legislativa. Rex é incapaz de criar uma lei por causa que lhe faltam os pré-requisitos para isso.


Fuller apresenta oito pré-requisitos em ordem para que uma lei seja uma lei. Fuller mostra esses pré-requisitos de modo negativo para indicar a incapacidade:


1. Generalidade: falhar em estabelecer leis no geral;

2. Publicidade: falhar em tornar as leis públicas, tornando-as não avaliáveis para quem precisa segui-las;

3. Irretroatividade: falhar em tornar a lei possível;

4. Clareza: falhar em tornar a lei clara e compreensível;

5. Não-contradição: falhar em tornar essas leis livres de contradição;

6. Possibilidade de Cumprimento: Falhar em criar leis que sejam possíveis de concordar;

7. Constância no Tempo: falhar em estabelecer uma consistência nas leis que são criadas, para que não estejam em contradição umas as outras;

8. Congruência entre a Regra Declarada e a Ação Oficial: estabelecer uma descontinuidade entre as leis e a administração delas na prática.


Se qualquer uma dessas oito regras forem quebradas, o sistema em questão falha e não pode ser considerado um sistema legal, visto que falhará em conduzir o comportamento humano, sendo então meramente um conjunto de regras arbitrárias. Isso é, para Fuller, o coração da questão ontológica sobre o que de fato faz uma lei ser lei.

Philosophia Iuris #7: Teoria Moderna do Direito Natural


 


— Recaptulação:


Passamos por duas partes do desenvolvimento histórico do jusnaturalismo. A fase clássica, ou anciã, ligada a Platão e Aristóteles. E fase de transição cristã (Patrística e cristianização do mundo) e medieval, com Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino.


Aprendemos que a questão jusnaturalista da lei se conecta com uma ontologia que busca o ser da lei. Questões como:
- O que é a lei por si mesma?
- Por qual razão descrevemos algo como uma lei e outra coisa como algo que não é uma lei?

Essa preocupação procurava dar uma análise substantiva, uma análise crítica, um olhar jusfilosófico a respeito do processo da criação da lei, da administração da lei e como a lei se torna lei.

É evidente que os jusnaturalistas buscavam, graças a esses questionamentos, uma aderência a uma alta autoridade. Como já vimos uma aderência a um tipo de lei eterna, das leis criadas por Deus (por parte dos cristãos), uma busca por um alto padrão moral objetivo, uma moralidade bíblica ou um tipo de lei natural que antecede a própria lei do Estado (lei positiva). O que vemos é uma busca da essência da lei.


— Jusnaturalismo Moderno:


Os teóricos do Direito Natural, os jusnatualistas, por muito tempo ignoraram o surgimento e o crescimento do juspositivismo. O juspositivismo é uma escola que vai em contraposição aos jusnaturalismo, visto que preza pela primazia absoluta da lei positiva (a lei do Estado). É evidente que enquanto o juspositivismo crescia, existiam múltiplos motivos sociais, culturais e filosóficos que tornavam cada vez menos atrativa a inter-relação entre lei e moralidade.

O retorno do jusnaturalismo ao debate jusfilosódico se dá numa circunstância muito significativa. A sociedade tentou uma reconciliação face aos horrores cometidos nos anos de 1920 e de 1930, perpetrados pela União Soviética e Alemanha Nazista. Os horrores da guerra e do genocídio, além do final da Segunda Guerra Mundial, levam um ressurgimento do desenvolvimento da lei com referência na moralidade.

É preciso alertar que o juspositivismo não necessariamente se esquece ou evita a moralidade em sua tradição legal, mas desloca a moralidade do núcleo conceitual da sua jurisprudência. É por causa disso, a busca por uma moralidade, que o jusnaturalismo retornou fortemente.

Duas teorias modernas do Direito Natural:

1. Direito Natural Procedural, desenvolvido por Lon L. Fuller;
2. A Teoria dos Direitos Naturais, desenvolvida por John Finnis.

Philosophia Iuris #6: Tomás de Aquino e o Direito Natural

 



— Recaptulação:


Na nota pública anterior, escrevi sobre o fato de que Agostinho de Hipona situava a lex aeterna (lei eterna), provinda diretamente de Deus, como superior a lei positiva (que vem do Estado). A lei positiva deveria se subordinar a lex aeterna (lei eterna).


Hoje vamos entrar e entender um pouco do que pensava Tomás de Aquino no campo da filosofia do Direito.


— Uma contextualização a respeito de Tomás de Aquino:


- Foi um frade e um padre italiano, da ordem dominicana, conhecido por ser um influente filósofo e teólogo;

- Não se sabe ao certo se ele nasceu em 1225 ou 1227, mas a data da sua morte é 1274. Ele é o maior proponente de um movimento conhecido como Escolástica;

- Seu trabalho mais conhecido é a Suma Teológica, onde podemos encontrar escritos sobre a Teoria do Direito Natural, além de outros a respeito da teologia e da filosofia;

- A Teoria do Direito Natural em Tomás de Aquino vai diferir da Teoria do Direito Natural de Agostinho, visto que Tomás de Aquino foi influenciado pela redescoberta dos escritos de Aristóteles;

- Para Tomás de Aquino, lei positiva tem uma natural posição na vida política e social, mais do que Agostinho de Hipona acreditava, visto que a lei positiva poderia ser substituída pela adesão à lex aeterna.


— Direito Natural em Tomás de Aquino:


O Direito Natural apresenta quatro hierarquias no pensamento de Tomás de Aquino:

1. Lei Eterna: é a lei que ordena todas as coisas, está restrita ao conhecimento do próprio Deus;

2. Lei Divina: é a parte da lei eterna que foi revelada para a humanidade;

3. Lei Natural: é a capacidade inata da natureza humana de discernir o bem e o mal;

4. Lei Positiva: é a lei criada pelos legisladores humanos.


É válido mencionar que Aristóteles também tinha uma separação hierárquica das leis, para ele havia uma justiça natural, de caráter universal, e uma justiça convencional, que eram as leis específicas da cidade-Estado. O caráter universal, para Aristóteles, era o de uma lei imutável, que poderia ser descoberta pela razão humana. O propósito de uma lei, no pensamento de Aristóteles, era de promover a virtude e o bem comum da comunidade. Como Tomás de Aquino foi influenciado pelo pensamento de Aristóteles, adicionando-se o fator teológico cristão, Tomás via na lei humana uma possibilidade de guiar as pessoas para a felicidade suprema e a felicidade suprema era a união com Deus.


Para Tomás de Aquino, havia uma espécie de relação não convencional entre a lei e a moralidade. E era impossível entendê-la sem uma referência de moralidade. Além disso, todas as leis humanas deveriam ser julgadas em correlação com a lei natural.


É preciso compreender que a Teoria da Lei Natural não é só uma teoria de jusfilosofia, não é só uma teoria a respeito da lei, tampouco algo que é limitado aos estudantes de Direito. O Direito Natural é uma teoria ética. Por vezes adentrando a uma natureza mais teológica. O Direito Natural não se pergunta pura e simplesmente "o que é a lei?", mas vai mais adiante: "o que ontologicamente é a lei?", "o que é a existência da lei em si mesma?". O Direito Natural busca adentrar na questão última do significado da lei.


— A Lei Positiva:


Existem duas fundações que são necessárias para se chegar a razão última e para se fazer o correto curso de uma ação antes de se criar uma lei positiva:

1. A Lex Divina (Lei Divina);

2. A Lex Naturalis (Lei Natural).


A primeira representa a Lei Divina que foi revelada pelas Sagradas Escrituras (Bíblia) e a segunda é a Lei Natural que é acessível pela razão natural através da observação racional da natureza humana. A lex humana (lei humana, entendida como lei positiva), é boa se segue a fundação da lex divina (lei divina) e a lex naturalis (lei natural).


A lei positiva (lex humana) precisa facilitar e servir uma teleologia de um bom propósito. Se o propósito for teleologicamente bom, compatível com o bem comum e a harmonia social, as pessoas não vão sentir vontade de burlar a lex humana (lei positiva/humana) por medo da punição, mas sim por causa da racionalidade e da moralidade. Uma lei bem fundamentada, não é vista por alguém moralmente correto e racional como algo que pode ser burlado, visto que ele vê nessa lei algo natural, lógico e moral, e quebrar essa lei é ser inatural, ilógico e imoral. 


— Lei Injusta:


Tal como Agostinho e inspirado nele, Tomás de Aquino traça uma questão a respeito sobre o que faz uma lei ser lei. Visto que, tornemos a lembrar, uma lei precisa de um questionamento a respeito da sua natureza.


Para Tomás de Aquino, uma lei injusta é tão somente uma lei que tem a aparência de ser uma lei. Algo pode ser percebido como uma lei sem que esse algo seja de fato uma lei por si mesmo. Uma lei injusta não é uma lei por si mesma, visto que todas as leis precisam aderir a lei natural. Em outras palavras, Tomás de Aquino traça uma questão ontológica a respeito da lei, argumentando que algo, para ser lei, precisa ser em referência à lei natural. Se a lei positiva fere a lei natural, não é uma lei.


Se faz necessário recordar que o pensamento de Tomás de Aquino faz referência ao pensamento de Aristóteles. Aristóteles pensava no telos (finalidade) de todas as coisas. Ele se questionava sobre o propósito final, sobre o resultado de algo particular. Logo era preciso ter em mente a finalidade a que se destina dada lei. E as leis precisam estar em conformância com a natureza humana, que é um ser social e político. Contrariar essa natureza, levando a desarmonia social, é uma forma de burlar essa natureza a que se destina toda lei.


Existem formas de saber se algo fere a lei natural:

1. Contrária ao bem comum: quando essa lei é feita com o objetivo de um bem particular, furtando-se a necessidade de ser boa para todos os membros da sociedade;

2. Excede o campo de conhecimento do legislador: quando o legislador não apresenta o conhecimento necessário para produzir essa lei;

3. Fardo injusto: quando há uma desigualdade ou uma desproporcionalidade para certos membros da sociedade.


Para Tomás de Aquino, uma lei falsa não é uma lei, mas uma perversão da lei. É por isso que a lei feita por humanos precisa da referência e da conformidade com a lei natural. Também a lei não pode ser contrária lex divina (lei divina).