A leitura pode ser muito útil e pode servir como um exercício não só de tolerância, mas um exercício duma alteridade dialógica que faz o ser se abrir e, abrindo-se, cresce. A pessoa que lê deve tentar, durante a leitura, não apenas tolerar a ideia do outro, é preciso que a pessoa leitora vá além daquilo que é e tentar, por meio da leitura, tornar-se o outro. Se faz necessário um esvaizamento do espírito para que outro espírito adentre e relativize, não anulando, mas expandindo o horizonte de consciência. O problema de muitas leituras é a incapacidade de aceitação, já que a aceitação é amarga. No entanto, a aceitação é absolutamente necessária para o entendimento do outro. Isso dói principalmente no entendimento de obras que nos são opostas ou que tocam em pontos sensíveis, só que mesmo nesses momentos o entendimento precisa da aceitação provisória para fins de inteligibilidade.
É preciso que a gente leia, leia com atenção e mais do que isso: com recepção. É preciso que a gente se mortifique para nos abrirmos a leitura do próximo. Leitura que só será possível quando a gente se mortificar, quando sairmos de nós mesmos momentaneamente para que o outro ocupe nosso lugar e conduza-nos ao entendimento dele. Claro que não conseguiremos nos abrir em absoluto, mas é preciso que saiamos de nossa vontade para nos encontrarmos com o próximo. Já que não cabe a vontade inteligir, cabe a vontade decidir. Quando a vontade pega o lugar da inteligência, vemos o preconceito tomar forma. Já que a vontade serve para julgar, só que não se pode julgar verdadeiramente o que se desconhece. A inteligência é aquilo que recebe e a inteligência só é exercida quando se torna apta a receber. É preciso, então, que entremos numa apostasia temporária de nossas crenças.
Se para o entendimento se faz necessário um processo de abertura, é preciso que também se tenha um processo de negação de nossas próprias crenças. Nesse ponto, o agnosticismo pode ser a chave para a inteligência já que o agnosticismo declara que não sabe. O agnosticismo é um bom termo e uma boa metodologia no tocante a vida intelectual. É preciso se esquecer momentaneamente do que se sabe para que haja a apreensão do objeto ou do "subjetivo" estudado. O termo que se utiliza para a palavra que chamaríamos de "autoprivação", no âmbito religioso, é chamado de mortificação. A palavra mortificação, em meu entender, pode ser usada para o entendimento do "agnosticismo metodológico". A mortificação do próprio pensamento (da vontade) é necessária para o entendimento. Logo é preciso uma mortificação durante a leitura, mortificação que predisporá a pessoa ao estudo real e mais concreto, já que o estudo requer essa abertura. A "apostasia provisória" é a abertura para a alteridade sem a qual o conhecimento se torna impossível. Quando a vontade domina, tem-se não a epistemologia e nem a empatia, mas o oposto disso: a doxa (opinião) ou o preconceito.
Virou-se lugar-comum falar da "democracia", falar de "empatia", falar de "tolerância". Só que todas essas coisas não são coisas que são "essenciais", já que elas não surgem de algo natural e já dentro do sujeito. Nós não somos "democráticos", nós "estamos democráticos". De igual modo, nós não somos "empáticos", nós "estamos empáticos". Na tolerância, o mesmo se serve: não se "é" tolerante, se está "sendo" tolerante. E fundo isso na virtude negativa: uma virtude negativa é uma virtude que é exercida provisoriamente, uma virtude que envolve uma negativa do ser para consigo mesmo. Aceitar o outro ou outras ideias envolve virtude negativa. Aquele que se diz empático, tolerante e democrático já afirma como algo dentro de si mesmo, como algo natural, e se tem como algo natural, aquilo que fala já se perdeu. Se você acha que está aberto, você simplesmente não se abre. É por isso que vemos uma contradição: muitas pessoas que se julgam democráticas, tolerantes e empáticas não são nada disso. Só que a própria auto-intitulação gerou um "estado hipnótico" que a faz não perceber mais nada.
Muitas vezes vemos pessoas dizendo coisas preconceituosas e muitas vezes essas pessoas detêm algum conhecimento ou estudam ativamente algo. Só que o estudo delas é direcionado abertamente a um horizonte de assuntos e crenças bem delimitado. Quando a pessoa vê outra epistemologia, seja de qualquer grupo a qual ela não se vincula, ela sente um certo medo identitário que a coloca numa insegurança que ela fará tudo para evitar. É por isso que a leitura pode ser uma chave de encontro com o próximo, a gente pode ler algo de diferente e abrirmo-nos ao entendimento não do que a gente já crê e sim daquilo que a gente simplesmente não crê. Todo estudo normativo cria um discurso da naturalidade e um discurso da inaturalidade. O discurso da inaturalidade é um discurso racionalizante de uma pessoa que apagou a luz por não poder se lidar com o próprio medo. Aquilo que gera incerteza ameaça a onipotência do pensamento e tão logo que causa uma ameaça, essa mesma coisa é demonizada e exorcizada do campo teórico. Em outras palavras, cria-se uma ideia de natural (normal) e cria-se uma ideia de inatural (anormal) para se rejeitar algo da realidade. Só que quando isso ocorre, acontece aquilo que poderíamos chamar de inversão dogmática: esse fenômeno, "a inversão dogmática", ocorre quando a vontade (faculdade de julgamento) passa a ocupar o lugar da inteligência (faculdade de abertura).
Se a gente pudesse ilustrar um momento de "inversão dogmática", poderíamos ilustrar com a islamofobia da sociedade brasileira contemporânea. Muitas vezes vemos cristãos se lidando com o islamismo de forma desrespeitosa e, quiçá, penosamente duvidosa. Eu percebi que o islamismo traz um discurso sobre o divino que o cristianismo faz parte, mas não catalogou. Um dos fenômenos intelectuais que geram erros e mais erros é a ausência de autocrítica e a ilusão do pensamento para consigo mesmo. O estudante vê tudo com um olhar externo, onde a sua própria figura não faz parte da arquitetura de seu pensamento - isso cria uma ilusão narcísica-dogmática chamada: onipotência intelectual. Vendo tudo externamente, vê-se longe de qualquer erro e torna-se um típico "fariseu intelectual". Já que um dos fenômenos que levam ao defeito da razão é, por excelência, a onipotência do pensamento que vê todos os fenômenos que ocorrem como uma figura onisciente - essa é a ilusão central do pensamento que traz uma espécie de narcismo intelectual que se recusa a se ver como errada. O narcisista cristão não pode suportar o muçulmano dizendo que Jesus não é Deus, assim ele só pode fazer uma coisa: reprimir, seja o Islã, seja qualquer outra crença que ponha em dúvida a sua própria identidade intelectual e/ou religiosa.
No fundo, o islamismo faz crescer uma dúvida teológica. E toda teologia nasce, em primeiro lugar, duma dúvida que é respondida por algo/alguém que o homem considera como superior. Só que o islamismo faz voltar o cristão vulgar para a terra da incerteza e isso destrói o que o cristão ocultou de si mesmo: a dúvida quanto a sua religião. O islamismo faz a consciência perceber que o discurso teológico, até então predominante, não era de fato onipotente - não era imune de erros. A inteligência cristã, apercebe-se não de sua onipotência intelectual, mas sim de sua impotência intelectual: o cristão percebe que não abarcava a tudo, que seu pensamento não era tão perfeito e tão pleno. E é por isso que dizem: "isso é satanismo", só que tudo isso é gerado por uma "fé fraca" e uma "inteligência adormecida". Mas, é claro, isso não serve só ao cristão para com o Islã. A onipotência do pensamento é um mito que circunda todo pensamento e toda construção de pensamento. E toda vez que uma construção de pensamento se lida com algo estranho - que lida com uma identidade profunda - há esse choque.
Pensando um pouco mais longe, indo do terreno religioso para o terreno de gênero: esse caso serve também para o homem que vê, no efeminado, a dúvida quanto a sua própria identidade e valores. Toda desconstrução - seja no islamismo desconstruindo a teologia cristã ou no não-binárie desconstruindo o gênero - traz uma dúvida quanto a construção. A construção de gênero ressente a não-binariedade que a desconstrói. O cristianismo ressente o agnosticismo que não o aceita. O construído ressente-se com o desconstruído, já que todo construção envolve personalidade e algum grau de certeza. E quanto maior a certeza, maior o medo para com aquilo ou aquele (a) que desconstrói. Já que aquele que assume uma identidade também assume uma forma de vida (modus vivendi) e isso gera uma dúvida quanto a forma de vida que ele leva. Se toda ação que fazemos é marcada no tempo para não poder ser contornada, aquele que se privou de muitas coisas por causa de sua identidade acaba por perceber que, quiçá, tenha jogada a sua vida fora. Toda desconstrução, todo "outro", leva o questionamento do ser para consigo mesmo. A consciência-de-si necessariamente termina na dúvida-de-si e isso pode levar a um sofrimento.
Para lidar com esse sofrimento de dúvida quanto a nossa ação temporal que é irremediavelmente registrada na história sem possibilidade de mudança - não há como mudar o passado, ao menos não agora -, cabe um ceticismo para com nossas próprias crenças e também a aderência de pensamentos que relativizam nossa própria seriedade enquanto seres existenciais. É preciso que a dialogicidade adentre não para uma relativização que leve a anulação de duas coisas, mas uma relativização expansionista que leva a elevação das duas coisas num paradoxo harmônico - eis aí, meus amores, a chave do entendimento da dialética chestertoniana e a chave para o entendimento da sanidade em Chesterton. É por isso que, abrindo-me ao oposto, durante a leitura: se leio um autor islâmico sunita, tento convencer a mim mesmo a me tornar um islâmico sunita; se leio um ateu irreligioso, ou, até mesmo, antirreligioso, tento eu mesmo me tornar um ateu irreligioso ou antirreligioso. Esse processo de mortificação me abre ao entendimento do próximo e de sua obra, já que a inteligência só é exercida quando se cala. Voltando a uma das frases iniciais: "é preciso que você convença a si mesmo que o oposto está certo". Só aceitando o próximo, mesmo que com desgosto da vontade, podemos ter uma maior compreensão dele. Assim fica mais fácil: aderir um agnosticismo metodológico que faça uma mortificação para com nós mesmos e nossas crenças nos abre à verdadeira leitura.
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