quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Agnosticismo Metodológico - ou: da Mortificação Literária como Predisposição da Inteligência




    
Muitas vezes eu me pegava me perguntando sobre a chave da interpretação teológica. Acabei notando que o pensamento teológico envolve aquilo que chamo de "virtude negativa", ou seja, uma virtude que vem a partir da mortificação que leva a abertura do ser ao outro (ou Outro). Essa mortificação que fecha o espírito para si mesmo e o predispõe a outro espírito é aquela que torna o ser apto a recepção do divino - só que não serve só para a recepção do divino, serve para receber qualquer outra pessoa ou qualquer outro pensamento ou coisa. Lembrava-me ocasionalmente de frases - que vou reproduzir incorretamente - como: "você deve convencer a si mesmo daquilo que Deus quer de você" e "a inteligência só é exercida quando se cala". Foi pensando nessas frases que melhorei meu método de estudo, não só no estudo da teologia, mas no estudo geral, já que todo estudo envolve uma liberalidade, uma tolerância que se entrega e torna-se aceitação.

    A leitura pode ser muito útil e pode servir como um exercício não só de tolerância, mas um exercício duma alteridade dialógica que faz o ser se abrir e, abrindo-se, cresce. A pessoa que lê deve tentar, durante a leitura, não apenas tolerar a ideia do outro, é preciso que a pessoa leitora vá além daquilo que é e tentar, por meio da leitura, tornar-se o outro. Se faz necessário um esvaizamento do espírito para que outro espírito adentre e relativize, não anulando, mas expandindo o horizonte de consciência. O problema de muitas leituras é a incapacidade de aceitação, já que a aceitação é amarga. No entanto, a aceitação é absolutamente necessária para o entendimento do outro. Isso dói principalmente no entendimento de obras que nos são opostas ou que tocam em pontos sensíveis, só que mesmo nesses momentos o entendimento precisa da aceitação provisória para fins de inteligibilidade.

    É preciso que a gente leia, leia com atenção e mais do que isso: com recepção. É preciso que a gente se mortifique para nos abrirmos a leitura do próximo. Leitura que só será possível quando a gente se mortificar, quando sairmos de nós mesmos momentaneamente para que o outro ocupe nosso lugar e conduza-nos ao entendimento dele. Claro que não conseguiremos nos abrir em absoluto, mas é preciso que saiamos de nossa vontade para nos encontrarmos com o próximo. Já que não cabe a vontade inteligir, cabe a vontade decidir. Quando a vontade pega o lugar da inteligência, vemos o preconceito tomar forma. Já que a vontade serve para julgar, só que não se pode julgar verdadeiramente o que se desconhece. A inteligência é aquilo que recebe e a inteligência só é exercida quando se torna apta a receber. É preciso, então, que entremos numa apostasia temporária de nossas crenças.

    Se para o entendimento se faz necessário um processo de abertura, é preciso que também se tenha um processo de negação de nossas próprias crenças. Nesse ponto, o agnosticismo pode ser a chave para a inteligência já que o agnosticismo declara que não sabe. O agnosticismo é um bom termo e uma boa metodologia no tocante a vida intelectual. É preciso se esquecer momentaneamente do que se sabe para que haja a apreensão do objeto ou do "subjetivo" estudado. O termo que se utiliza para a palavra que chamaríamos de "autoprivação", no âmbito religioso, é chamado de mortificação. A palavra mortificação, em meu entender, pode ser usada para o entendimento do "agnosticismo metodológico". A mortificação do próprio pensamento (da vontade) é necessária para o entendimento. Logo é preciso uma mortificação durante a leitura, mortificação que predisporá a pessoa ao estudo real e mais concreto, já que o estudo requer essa abertura. A "apostasia provisória" é a abertura para a alteridade sem a qual o conhecimento se torna impossível. Quando a vontade domina, tem-se não a epistemologia e nem a empatia, mas o oposto disso: a doxa (opinião) ou o preconceito.

    Virou-se lugar-comum falar da "democracia", falar de "empatia", falar de "tolerância". Só que todas essas coisas não são coisas que são "essenciais", já que elas não surgem de algo natural e já dentro do sujeito. Nós não somos "democráticos", nós "estamos democráticos". De igual modo, nós não somos "empáticos", nós "estamos empáticos". Na tolerância, o mesmo se serve: não se "é" tolerante, se está "sendo" tolerante. E fundo isso na virtude negativa: uma virtude negativa é uma virtude que é exercida provisoriamente, uma virtude que envolve uma negativa do ser para consigo mesmo. Aceitar o outro ou outras ideias envolve virtude negativa. Aquele que se diz empático, tolerante e democrático já afirma como algo dentro de si mesmo, como algo natural, e se tem como algo natural, aquilo que fala já se perdeu. Se você acha que está aberto, você simplesmente não se abre. É por isso que vemos uma contradição: muitas pessoas que se julgam democráticas, tolerantes e empáticas não são nada disso. Só que a própria auto-intitulação gerou um "estado hipnótico" que a faz não perceber mais nada. 

    Muitas vezes vemos pessoas dizendo coisas preconceituosas e muitas vezes essas pessoas detêm algum conhecimento ou estudam ativamente algo. Só que o estudo delas é direcionado abertamente a um horizonte de assuntos e crenças bem delimitado. Quando a pessoa vê outra epistemologia, seja de qualquer grupo a qual ela não se vincula, ela sente um certo medo identitário que a coloca numa insegurança que ela fará tudo para evitar. É por isso que a leitura pode ser uma chave de encontro com o próximo, a gente pode ler algo de diferente e abrirmo-nos ao entendimento não do que a gente já crê e sim daquilo que a gente simplesmente não crê. Todo estudo normativo cria um discurso da naturalidade e um discurso da inaturalidade. O discurso da inaturalidade é um discurso racionalizante de uma pessoa que apagou a luz por não poder se lidar com o próprio medo. Aquilo que gera incerteza ameaça a onipotência do pensamento e tão logo que causa uma ameaça, essa mesma coisa é demonizada e exorcizada do campo teórico. Em outras palavras, cria-se uma ideia de natural (normal) e cria-se uma ideia de inatural (anormal) para se rejeitar algo da realidade. Só que quando isso ocorre, acontece aquilo que poderíamos chamar de inversão dogmática: esse fenômeno, "a inversão dogmática", ocorre quando a vontade (faculdade de julgamento) passa a ocupar o lugar da inteligência (faculdade de abertura).

    Se a gente pudesse ilustrar um momento de "inversão dogmática", poderíamos ilustrar com a islamofobia da sociedade brasileira contemporânea. Muitas vezes vemos cristãos se lidando com o islamismo de forma desrespeitosa e, quiçá, penosamente duvidosa. Eu percebi que o islamismo traz um discurso sobre o divino que o cristianismo faz parte, mas não catalogou. Um dos fenômenos intelectuais que geram erros e mais erros é a ausência de autocrítica e a ilusão do pensamento para consigo mesmo. O estudante vê tudo com um olhar externo, onde a sua própria figura não faz parte da arquitetura de seu pensamento - isso cria uma ilusão narcísica-dogmática chamada: onipotência intelectual. Vendo tudo externamente, vê-se longe de qualquer erro e torna-se um típico "fariseu intelectual". Já que um dos fenômenos que levam ao defeito da razão é, por excelência, a onipotência do pensamento que vê todos os fenômenos que ocorrem como uma figura onisciente - essa é a ilusão central do pensamento que traz uma espécie de narcismo intelectual que se recusa a se ver como errada. O narcisista cristão não pode suportar o muçulmano dizendo que Jesus não é Deus, assim ele só pode fazer uma coisa: reprimir, seja o Islã, seja qualquer outra crença que ponha em dúvida a sua própria identidade intelectual e/ou religiosa.

    No fundo, o islamismo faz crescer uma dúvida teológica. E toda teologia nasce, em primeiro lugar, duma dúvida que é respondida por algo/alguém que o homem considera como superior. Só que o islamismo faz voltar o cristão vulgar para a terra da incerteza e isso destrói o que o cristão ocultou de si mesmo: a dúvida quanto a sua religião. O islamismo faz a consciência perceber que o discurso teológico, até então predominante, não era de fato onipotente - não era imune de erros. A inteligência cristã, apercebe-se não de sua onipotência intelectual, mas sim de sua impotência intelectual: o cristão percebe que não abarcava a tudo, que seu pensamento não era tão perfeito e tão pleno. E é por isso que dizem: "isso é satanismo", só que tudo isso é gerado por uma "fé fraca" e uma "inteligência adormecida". Mas, é claro, isso não serve só ao cristão para com o Islã. A onipotência do pensamento é um mito que circunda todo pensamento e toda construção de pensamento. E toda vez que uma construção de pensamento se lida com algo estranho - que lida com uma identidade profunda - há esse choque.


    Pensando um pouco mais longe, indo do terreno religioso para o terreno de gênero: esse caso serve também para o homem que vê, no efeminado, a dúvida quanto a sua própria identidade e valores. Toda desconstrução - seja no islamismo desconstruindo a teologia cristã ou no não-binárie desconstruindo o gênero - traz uma dúvida quanto a construção. A construção de gênero ressente a não-binariedade que a desconstrói. O cristianismo ressente o agnosticismo que não o aceita. O construído ressente-se com o desconstruído, já que todo construção envolve personalidade e algum grau de certeza. E quanto maior a certeza, maior o medo para com aquilo ou aquele (a) que desconstrói. Já que aquele que assume uma identidade também assume uma forma de vida (modus vivendi) e isso gera uma dúvida quanto a forma de vida que ele leva. Se toda ação que fazemos é marcada no tempo para não poder ser contornada, aquele que se privou de muitas coisas por causa de sua identidade acaba por perceber que, quiçá, tenha jogada a sua vida fora. Toda desconstrução, todo "outro", leva o questionamento do ser para consigo mesmo. A consciência-de-si necessariamente termina na dúvida-de-si e isso pode levar a um sofrimento.

    Para lidar com esse sofrimento de dúvida quanto a nossa ação temporal que é irremediavelmente registrada na história sem possibilidade de mudança - não há como mudar o passado, ao menos não agora -, cabe um ceticismo para com nossas próprias crenças e também a aderência de pensamentos que relativizam nossa própria seriedade enquanto seres existenciais. É preciso que a dialogicidade adentre não para uma relativização que leve a anulação de duas coisas, mas uma relativização expansionista que leva a elevação das duas coisas num paradoxo harmônico - eis aí, meus amores, a chave do entendimento da dialética chestertoniana e a chave para o entendimento da sanidade em Chesterton. É por isso que, abrindo-me ao oposto, durante a leitura: se leio um autor islâmico sunita, tento convencer a mim mesmo a me tornar um islâmico sunita; se leio um ateu irreligioso, ou, até mesmo, antirreligioso, tento eu mesmo me tornar um ateu irreligioso ou antirreligioso. Esse processo de mortificação me abre ao entendimento do próximo e de sua obra, já que a inteligência só é exercida quando se cala. Voltando a uma das frases iniciais: "é preciso que você convença a si mesmo que o oposto está certo". Só aceitando o próximo, mesmo que com desgosto da vontade, podemos ter uma maior compreensão dele. Assim fica mais fácil: aderir um agnosticismo metodológico que faça uma mortificação para com nós mesmos e nossas crenças nos abre à verdadeira leitura.

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