terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Esse pobre burocrata...




Enquanto olho pra minha roupa social e meus olhos semicerrados - que, por rotina, estão sempre cansados e quase dormentes -, penso nos dias de outrora em que a primaveril aurora ainda em meu peito estava. Quando cada batucar de meu coração era doce e tinha o som tenro e terno duma vida adocicada, eu era uma criança feliz. Agora não mais, agora tudo leva prazo, tudo se cumpre com através de metas de produtividade. Talvez houvesse, em tempos passados, uma simplicidade que coadunasse com a felicidade. Hoje em dia tudo é tão formal que me enoja.


Em alguma forma de delírio, não consigo tirar a imagem de um homem redundantemente burocrático. A imagem de estar preso num paletó e formando par com o governo mundano é o que de há de mais nítido e desprazeroso em minha cabeça. A ausência de transcendência que dê uma coloração, textos que se formam em formas deformadas sem vida, quase nada com um ar de inspirado. É como se não mais houvesse ligação espiritual e afetiva alguma em meus projetos. Embora eles estejam brotando com mais frequência do que nunca. Saindo por aí, como uma série de monstros desalmados, trazendo a feiúra que lhes marca e a desgraça que se encontra em minha alma.


Teve um dia que eu acreditei, antes de virar um pobre burocrata, que eu poderia algum dia ser grande. Vão otimismo adolescente, otimismo criado entre livros e jogos, único contato afetivo real que eu tinha, já que não cheguei a ter um único verdadeiro amigo nessa fase. Pelo contrário, minha vida era ditada por uma solidão quase cruel, uma solidão impenetrável graças o mais retumbante fracasso social. Em meu período de estudante de jornalismo, tive alguns amigos rasos, mais para colegas do que amigos. Na faculdade de filosofia, enquanto suportava uma tensão antiafrodisíaca e esmagadoramente depressiva, tive amigos mais palpáveis do que tive em todo restante de minha vida. O que me sobrou depois de tudo isso? A solidão logo voltou a me acompanhar, como que num casamento intermitente em que há uma separação só para descobrir que, por triste acaso, a pessoa que mais nos cabe é aquela que mais desprezamos - e espero que a solidão não me despreze de volta, já que só tenho a ela. Também tenho um bom bocado de arrependimento. Todos se foram, alguns até mesmo passando por graves transtornos, outros chegando ao suicídio, outros indo para tão longe quanto deploravelmente longe. Até nos momentos de brilho, o brilho foi sempre lunar. O Sol nunca abrilhantou minha vida em nada. Toda glória que tive, ao menos até estes momentos reflexivos e meditabundos, foi a de um fracasso. 


Após uma longa vida, que não é tão longa assim, frequentando os mais diversos meios. Indo da extrema-direita para a extrema-esquerda e depois da extrema-esquerda para a extrema-direita. Passando pelos confins do anarquismo, da social-democracia, do socialismo democrático, do nacionalismo conservador, da quarta teoria política, por uma espécie de getulismo sem Getúlio, creio-me hoje inteiramente órfão de ideologias. E, não, não me venha com essa baboseira de "ideologia é visão de mundo". Existem várias formas de se analisar o que são ideologias. Os conservadores veem como uma espécie de religião política, de caráter imanentista e que busca trazer o paraíso pra Terra (imanentização escatológica). E os comunistas veriam mais como uma espécie de discurso gerado pelas classes dominantes para alienação das classes subalternas - o que não deixa de ter a parcela da verdade que lhe cabe. Particularmente acredito nas duas hipóteses e não dou a mínima para nenhuma delas. Sou fraco demais para crenças que mexem com uma mudança radical de modus vivendi. 


Quando criança, via que no mundo havia uma união simbólica que tornava tudo fácil. Lembrando que simbólico é, na verdade, tudo aquilo que une. Hoje não saberia apontar o quanto esse simbolismo era realidade concreta ou mero simplismo mental duma criança inexperiente e incapaz de adentrar nas sutilezas da vida enquanto tal. A vida até a quarta-série é um carnaval gratuito e open bar (que, para efeito poético, também será gratuito). Ao menos foi assim até aquele estágio no inferno chamado de quinta série. É lá que todos os problemas humanos prefaciam. (Sim, preciso fingir que meu discurso pequeno burguês, típico de uma pessoa que pertenceu a uma espécie de classe média baixa, e pseudouniversalista tenha proporção de universalidade ao menos para gerar uma boa impressão no leitor  - a não ser que esse seja um cavaleiro branco da justiça social e que ficou com olhos esbugalhados ao pensar na absurdidade que é considerar tamanhas vanidades infantis-infames como conflitos existenciais de proporcionalidade cósmica). Aqui tudo se encaixa, mesmo que debilmente, como efeito cascata (mesmo que dentro duma lógica falha e ginasiana - mentalidade essa que eu, homem-criança, nunca consegui fugir ou superar de fato -):

1. O halls é a porta de entrada para o cigarro ou para maconha (quiçá os dois);

2. As discussões sobre heróis da Marvel e da DC te tornarão apto para as discussões de esquerda e direita (discussões bem idiotas e pouco sintéticas, tão idiotas quanto discussões sobre heróis, como quase tudo nesse país de bárbaros);

3. O Nescau, com sua imagem radical e jovem, preparou-lhe para integrar o quadro da Juventude do Partido Comunista do Brasil (ou do Partido Comunista Brasileiro, caso você queira pagar de underground do underground e viver dentro duma panelinha que está dentro de outra panelinha);

4. A pornografia fez morada em sua casa como uma penetra persistente graças aos conselhos de seus "amiguinhos" - que, no geral, você sequer lembra o nome - pré-adolescentes (conselhos de merda, porém ainda conselhos);

5. Todo o restante da sua vida social rodará no discurso básico de ser "radical", "cool", "maneiro", " popular", pouco importando o quão pedante, acadêmico ou intelectual seja o seu discurso - e disso surge a postura revolucionária vista no ambiente acadêmico (e a onda reacionária, imersa também na radicalidade discursiva, é subproduto igual - porém de substância diferente - e deuteragonista).

 

Fui um adolescente deslocado que fracassou em ser descolado. Um drama tão genérico que, bem ou mal, poderia servir de plano de fundo para um típico besteirol americano - como quase tudo nessa vida de pessoa medíocre. Por algum momento tentei colocar adornos para fingir que eu não era tão mesquinho e vazio quanto parecia, uma forma de blindagem que ao menos mentalmente significava que eu estava fora do resto do gado, que eu era exclusivo, singular, importante e desmerecidamente irreconhecido, quase que inteiramente ininteligível. Nessa jornada de "autodescoberta" - melhor termo seria "autoilusão" -, busquei na internet as raízes conteudísticas em que a minha personalidade se basearia. O que não é o mesmo que ter uma personalidade, já que isso é só uma máscara para disfarçar a vacuidade existencial em que me encontrava e ainda me encontro. Naquele tempo, estava na moda um reacionarismo aristocrático de ralé (ou de "baixo clero"). Pensamentos como: "eu tenho cultura pois ouço rock" ou "eu leio livros enquanto você vê BBB" permearam a minha adolescência, fizeram morada em minha cabeça que, não admitindo a própria impopularidade, criou a imagem da suposta pertença a uma elite como forma de compensação - uma racionalização que, no mais íntimo, era profundo ressentimento carcomido pelas trevas do alternativismo. Graças a isso, li livros centrais da literatura nacional, ainda bem moço, e sem a intenção de estudar para o ENEM - que, para ser franco, nunca dei a mínima foda. Li também todo tipo de assunto que, em minha cabeça de jovem introvertido revoltado e pseudoelitista - depois me tornei pseudoantielitista -, parecia maneiro: Marx, pensadores iluministas, autores liberais (que na época chamava de burguesia revolucionária - eu era um protoleninista inconsciente -), livros jornalísticos, literatura internacional, autores anarquistas, livros de história, livros de geopolítica, livros sobre ler livros, sociologia, ateísmo militante, filosofia, livros sobre videogame, etc. Por algum motivo, acreditei que eu era radical por ler esse tipo de coisa - uma das questões base da vida é "ser maneiro para ser aceito" (e, novamente, meu caro amiguinho: pouco importa o que você elabore em sua cabecinha oca pra provar o contrário). Essa minha tentativa frustrada de radicalismo, ainda que inserida num contexto pequeno-burguês de intelectualismo academicista, era tão exitosa quanto jovens maneiros andando de skate e tomando Nescau: só um imbecil ter-me-ia com uma figura contestatória e permeada por uma conflitualidade real com o mundo. Uma jornada de um jovem cuja a única função era racionalização do real desejo de ser aceito. Hoje sei que eu era apenas chato e entrava em tópicos que ninguém na Terra tinha saco pra ouvir além de um dos piores tipos de humano da face da Terra: um palestrinha - que é o povoado geral das academias, sobretudo as públicas ou das melhores academias privadas. Tão logo percebi que, na realidade, estava tão apenas imerso naquela eterna roda idiota de pessoas que masturbam umas outras, num estranho narcisismo coletivo, enquanto repetem nomes consagrados tautologicamente como se fossem conseguir incorporar a inteligência e originalidade dos que são citados copiosamente. Um processo que talvez remeta uma certa espécie de sessão espírita. Mesmo que, na verdade, as pessoas saíam tão genéricas, improdutivas, sem originalidade artística tanto quanto entraram.


De qualquer forma, hoje percebo que não preciso estar preso na ferocidade ou forçar a minha singularidade como se ela fosse mais esplêndida do que de fato é. Além de que, mesmo que tardiamente, percebi que meu radicalismo era típico de (pequeno-)burguês. Sempre circunscrito a um espaço passível de falsa radicalidade. Sempre direcionado no espaço discursivo acadêmico. Não quis mais fingir até a exaustão mais completa que estava fazendo algo que mudava realmente o mundo. Despi-me, com as punhaladas do tempo, de meu revolucionarismo ou reacionarismo. A academia virou um lugar onde todas as teorias nunca se confrontam com a realidade da vida. Parte do discurso revolucionário e reacionário é, em muito, ditado pela pseudouniversalidade da diversidade marginal: um grupo reduzido de pessoas pensa ter encontrado um padrão universal - que logo se torna para elas um padrão coletivo-normativo - e ficam presas nas mazelas de suas bolhas.


No fim, enquanto me encontrava nas angústias faraônicas do radicalismo burguês, acabei por me tornar um imbecil hedofarisaico: "sou automaticamente bom, inteligente e livre por manifestar alguma crença que me justifique em alguma estrutura social nessa estranha Torre de Babel". Termo esse que cunhei na única arte que conheço bem: aporrinhação de saco - embora eu não tenha elevado isso na condição de maestria. Parece até mesmo um processo gnóstico que segue o seguinte esquema básico:

1. Adquire a crença X;

2. Ao adquiri-la, você magicamente saiu do ilusionismo da caverna platônica (termo esse tão mencionado e tão pouco compreendido, já que quando você sai da caverna você entra imediatamente em outra e a saída da caverna é um processo acumulativo em que você assume a própria prepotência e busca sempre sair do seu novo círculo escravizatório ["só sei que nada sei"]);

3. Todos que não compactuam com nosso coletivismo-normativismo são literais animais que não encontraram a verdade, puros alienados presos num sistema de opressão, incapazes de ver a obviedade mais ululante;

4. Agora entre em nossa roda, pegue no pau ou na boceta do amiguinho ou da amiguinha, masturbe-o(a) eternamente enquanto repete: "eu sou livre", "eu sou bom", "eu conheço a verdade", "todos os outros estão presos num sistema de engodo".


O que é trágico e, ao mesmo tempo, engraçado. A ideia de que dadas ideias suplantam outras de forma obrigatoriamente necessária cria um mito que costumo chamar de "imperativo histórico categórico". Dessa, por sua vez, instala-se na psiquê do indivíduo uma presunção em que ele se sente automaticamente superior, sobretudo com quem ele discorda. Que pode muito bem ser compreendida nesse esquema:

1. O ateísmo/marxismo/liberalismo/tradicionalimo é uma fase superior da humanidade;

2. Eu sou ateu/marxista/liberal/tradicionalista;

3. Logo sou superior a Tomás de Aquino/Adam Smith/Karl Marx/Sartre.


Graças a esse simplérrimo truque de bunda-moles, qualquer um pode ser superior a qualquer pessoa do passado, do presente e até mesmo do futuro bastando aderir um determinado tipo de pensamento. É uma (auto)consagração automática, uma promoção altíssima  um acirrado curto-prazismo. Um processo muito similar a de seitas gnósticas, não muito similar: é o mesmo processo traduzido em forma política - já que os imbecis de ontem acreditavam numa religião espiritual supersticiosa e hoje acreditam numa religião política supersticiosa. É desse tipo de gente que falo quando escrevo o termo "hedofariseu" - mesmo que esse seja apenas uma desconstrução niilidionisíaca do discurso (vulgarmente é utilizar o academicismo para caçoar de academicistas) em que dadas palavras são usadas apenas para tirar o sarro. E, caso o leitor ou a leitura se pergunte se sou cristão e/ou tomista (ou ateu militante, ou liberal ou marxista), digo-lhes logo que sou tão cético quanto o homem líquido de nosso século é cético - só que estou mais para um cético global e não um cético parcial, cético o suficiente para questionar a mim mesmo. A diferença precisa está na dose de ironia e ausência de doses cavalares de arrogância combinada com um esquematismo de autoengodo - como um tão bom, embora eu já não beba, gin com tônica.


Da presunção gnóstica moderna, mesmo que essa se proclame na maioria das vezes atéia, vemos um teologismo inconsciente. Quando um intelectual moderno se dispõe a analisar a algo, narra todos os acontecimentos como um narrador onisciente. É como se ele fosse onipresente na história, gozasse de todos os dados do mundo e pudesse alterar o curso da humanidade de forma onipotente devido a sua (auto)glória. Em meio a esse teologismo às avessas, em um processo inconsciente e antropoteísta, prefiro ficar a me autocriticar do que a me pôr no pódio das pessoas bem pensantes e julgar a humanidade toda com a minha miséria. Sei-me miserável. Não tenho contribuição alguma a acrescentar, todos os meus escritos cairão inevitavelmente na "lixeira da história" e, se alguém perder tempo lendo-os, rirá de minha cara - e eu lhe agradeço. Talvez eu vá soar, para os mais distintos leitores, um subversivo, um reacionário, um revolucionário, um homem perdido ou qualquer coisa que seja. O fato de eu puder ser identificado com os quadros mais distintos só demonstra que, no fundo - quiçá talvez em substância -, eu não pertenço a quadro algum. E, não, não sou melhor e nem pior por causa disso. Nem acho que se houver alguma originalidade nisso, a originalidade seja boa por ser originalidade. Não sou superior a ninguém, pior que isso: sou inferior por vocação (quase suicida).


Minha vida sexual nesse período - torno a falar da adolescência -, e no restante de minha vida, se deveu mais a minha imoralidade do que a minha capacidade de ser atraente ou interessante. Nunca fui atraente e nunca fui interessante, também nunca fui inteligente e nunca joguei bem - mesmo que eu seja um acadêmico e um gamer (e sou um acadêmico medíocre e um gamer medíocre). Aprendi desde cedo que ser acessível era a melhor forma de conseguir sexo. Estratégia essa usada a rodo por fracassados impopulares e pseudoantissociais - pessoas que viraram antissociais não por escolha, mas por chatice (e que usualmente adquirem pensamentos chaves de visões políticas extremadas como forma compensatória para a própria impopularidade: "vocês não gostam de mim por eu ser superior intelectualmente, há há há há"). A obscenidade luxuriosa é um caminho alternativo para quem não consegue ser popular, mas ainda preserva o gosto de querer comer/dar para alguém. É graças a isso que literais batatas sociais e feiosos, nas quais evidentemente estou incluído, conseguem foder - e, sim, eu sei que sou feio e falho. Embora que, atualmente, eu não chamo mais meus hábitos (ou seriam vícios) de "experiências de alteridade", "desconstrução da ditadura monogâmica" ou "orientação romântico-sexual pós-cristã, libertária e antiburguesa". Usualmente eu penso numa lógica mais amoral quanto a minha posicionalidade sexual: "transei porquê quis transar". É simples, é em boa parte consciente de sua própria primatividade, é um tanto animalesco e bestialógico, porém não falhei na minha autotribuna.


Meus contemporâneos adoram dizer: "o padrão de beleza é uma enganação". Eu concordo, uma onerosa enganação que, por tempo demasiado, condenou qualquer beleza que estivesse de fora do padrão eurocêntrico. Só que há um grande problema aí: considerando os novos padrões, eu continuo sendo um homem execrável. Só posso esperar virar um modelo no mundo em que haja como padrão um antimodelo - o que me é sedutor sexualmente, pois tornar-me-ia um predador em potencial como bom corrupto e mau-caráter que sou; conquanto que ser-me-ia atípico demais viver numa sociedade com tamanha inversão de valores. Sou um parasita, vivo de sugar os sulcos da sociedade, da cultura - ou o que restou dela -, então creio que deve haver um ordenamento mínimo e um padrão aristocrático básico; porém não alicerçado nos parâmetros tradicionalistas. A minha prepotência sempre me levou a perceber instintivamente quando uma pessoa era demais para meu caminhãozinho. Tão logo percebi que só sou bom em lugares ocupados por fracassados. A ideia de que eu só pego gente feia e maluca tem um quê de veracidade: não sou bom o suficiente para um cardápio melhor. Não luto batalhas que estou condenado a perder, só boto fogo no parquinho e não me atrevo a acender sequer um fósforo no STF. O contentamento com uma vida mediana, de pequenos sucessos, é melhor do que partir para grandes ataques, isto é sobrevivência básica. Não sou um gavião, sou um urubu e minha essência é comer lixo.


As pessoas costumam ler meu blog ou minhas postagens no perfil do Facebook e pensar: "vejam só que homem estudioso". Faço três faculdades, participo de um podcast sobre saúde mental, tenho um canal de narrações de textos intelectuais, escrevo análises de livros e jogos, trabalho com pesquisa. Uma rotina intelectual elevada, bastante diversificada e com capacidade de aumentar continuamente o parâmetro técnico. Só que parou por aí. Se me comparar com qualquer pessoa que tenha inteligência de fato, como Aristóteles, é impossível presumir que eu não seja mais do que medíocre.


O nome de meu blog, por nenhum acaso, é "Cadáver Minimal". Há uma simbologia, bem medíocre - como quase tudo em mim -, nisso: declaro-me morto e mínimo. O significado do blog é exatamente esse: um homem que se sente morto fazendo o mínimo para ter um nexo conexual com ambiente dos vivos. Se você lê esse blog há muito tempo, o que é bastante improvável, verá que nos momentos em que "eu sou mais eu" se verificará um perpétuo pessimismo, ceticismo e autodesgosto. Não estou dando o melhor de mim, nunca dou. Sempre aumentei meu nível intelectual e, em todos os estados (também medíocres) que ele teve, nunca ousei usar toda a sua potência. Exigiria demais e eu gosto de coisas exigem pouco. É por isso que, como escritor preguiçoso e vazio, prefiro escrever pequenas análises e nunca uma exposição sistemática, metódica e cabal. A única coisa que me alegra medianamente é o fato que fiz o mínimo. Não posso alegar - e nenhuma outra pessoa também - que não fiz o mínimo. Embora eu mesmo possa dizer que com meu miúdo talento há grande desperdício no pouco que se tem.


Outro fato redentor nisso é que não poupo palavras para dizer o quão insatisfatório e fraco eu sou:

- Não sou cristão e nem marxista por ser fraco e covarde.

Não tenho a capacidade de morrer por Cristo. Não tenho a capacidade de morrer por uma revolução. Eu não abandonei as crenças por não achá-las boas o suficiente e nem por não serem razoáveis ou credíveis. Abandonei-as por ser um fracassado. É uma situação desgostosa, é uma situação até temível pelo grau de sua decadência; porém é uma sensação melhor do que a mentira. Eu prefiro dizer que não tenho força para crer nos grandes ideias da humanidade do que fingir que tenho só para pagar de boa pessoa ou simplesmente para enganar as outras pessoas. Seria muito cruel de minha parte, e eu não tenho energia o suficiente nem para ser cruel.


Também é o fator energético que é crucial para o desempenho desse papel que se assume. Poderia eu me importar realmente com outras pessoas e correr o risco de sofrer por causa disso? A resposta é, novamente e sem surpresa, um sonoro e bem audível não. Como minha energia mental é a de um fracassado, perdê-la-ia bem rápido numa situação de real perigo. Logo aderi a economia da poupança mental - que é um reducionismo charlatânico para indiferença e mau-caratismo - e investemento mental em objetos de prazer mais imediato, individuais e de menor risco. Pra mim é infinitamente mais prazeroso ler sobre os infinitos problemas sociais - da humanidade em geral - do que lutar ativamente para resolvê-los. O que é uma postura melhor assumir a indiferença do que fingir-se de bom moço, de consciente ou simplesmente mascarar o mau-caratismo com a chamada consciência crítica. Não creio em salvação pela fé e tampouco obrarei para ser salvo. Minha condenação é ao inferno ou à lata de lixo da história. Acredito que o direito à indiferença é crucial, já que sou um fracassado, mas não um mentiroso.


Quando foi que tudo deu errado? Quando eu me tornei esse Cadáver Minimal? Tenho mais de mil livros arquivados e disponíveis em minhas reminiscências - planos de leitura que, traçados, levam a entender que sei alguma da vida; porém que trazem uma receita segura para a mais plena incapacidade artística e fraqueza experimental e criativa. Nenhum desses livros explica a mediocridade que carrego. Talvez eles só existissem para me dar mais minuciosamente a agônica sensação de que, pelo menos, eu tenho uma cultura privilegiada. Mesmo que tal cultura, capaz de pormenorizar uma série se esquemas civilizacionais e abarcar altos vôos abstrativos, não enriqueçam tanto a minha vida. Creio que tudo que me sobra é de forma estética e estilisticamente pedante colorir minha infelicidade com referências sem fim que dão a aparência duma unidade e sistematicidade. O pedantismo confere uma condecoração a toda essa fragilidade que chamo de eu. Há um esteticismo, que dá beleza ao decadente, nisso tudo. Um outro homem, despido de tal (van)glória, não poderia ser encontrado por acaso por algum rato de academia que preferirá que seu "objeto de análise" tenha lido Nietzsche e Dostoiévski - o que é francamente desumano, desumanizador, extremamente elitista, abstrato-utilitarista, mas muito e essencialmente acadêmico (arrisco a dizer que o academicismo é pequeno-burguês ou muito burguês). Um homem que tenha sido alcoólatra é uma coisa, um homem que tenha sido alcoólatra e escreve "êle" como se ignorasse as mais novas regras da ortografia é outra coisa - mesmo que, no fim, a pesquisa se dê nos meandros da alcoolicidade. O costume acadêmico é ignorar as grandes massas que, por um acaso bem hipócrita,  maioria dos acadêmicos diz defender e representar - e talvez um dia representasse, se saísse de sua bolha, é claro. Tenho uma série de vivências que poderiam ser psicodelicamente classificadas como atípicas e, de estranho modo, interessantes. Interessantes para pessoas que amam coisas tediosas, nauseabundas e deformadas. Hoje em dia, a tragédia e a ausência de ordem servem como um bom enredo para os meus conterrâneos. E minha vida é cheia de tragédia e ausência de ordem. Só que, ao final, tudo isso se mistura no caldo comum da infelicidade - para o homem que Karl Marx ou para aquele que nem sabe o que vem a ser o "proletariado".


Não consigo compreender como que uma mera adição leva a uma investigação interessada de algo que, no fundo, nada tem além do costumaz banal. É fruto, evidentemente, dum diletantismo abstrato-utilitarista: alguém só é analisável e objeto de academicistas, e intelectuais no geral, quando essa pessoa tem cultura acadêmica ou intelectual. Um acadêmico que pega a sua metralhadora verbal para condenar o utilitarismo é sempre vítima de sua própria percepção isolacionista. Posição atutidinal essa que só descrevo e não condeno, já que igualmente sou assim. O enredo é mais ou menos o mesmo:

- Conheço a história dum homem que se matou jogando-se do décimo nono andar dum prédio - digo esperando uma reação receptiva do meu ouvinte.

- Ah, legal... - diz ele embaraçado, cansado de tantos suicídios que preenchem em seu cérebro uma nauseabunda estatística.

- Ele era leitor assíduo de Blas Roca - revelo minha carta na manga. 

- O secretário geral do Partido Comunista de Cuba? 

- Exato!

- Conte-me mais agora mesmo.


Há um livro que diz que a maioria dos latino-americanos só são radicais dentro da academia - prova de sua radicalidade burguesa. Também é normal isso: ser radical dentro dum parquinho é uma coisa, no mundo real é outra. O que demonstra que eu sou um decadente até no meio da atividade acadêmica, já que estou na vasta maioria daqueles que preferiu se calar. O que, para ser franco, não é meu caso também, eu não me calei: eu sou indiferente. Não vou escrever textos fingindo que realmente me importo com o estado do capitalismo, da humanidade ou do planeta. Torno-me cada dia mais misantropo para não me importar, porém também acho que o capitalismo falhou. Não importa, no final eu também sou como o capitalismo: eu sou um fracassado.


Se não me engano, há um livro de Chesterton que fala dum funcionário público ascendente. Um burocrata típico, genialmente típico, cuja o excelente intelecto flamejante ascende vôo de repartição a repartição - um alpinista social consagrado. Um homem cuja capacidade transcende os seus conterrâneos e, por um engano, sua sabedoria destacada nunca alcança o coração de um único homem que seja. É uma ironia tipicamente encontrada no paradoxo da vida: existem uma série de intelectuais, a absoluta maioria deles, incapazes de se traduzirem em algo de apaixonado. Com o caminho atual de minha vida, torno-me a cada dia mais parecido com eles - e se inconscientemente me importo com isso, conscientemente sou falho e sem vontade demais para mudar isso. Há gente que nasceu para mediocridade, podem-se encher de títulos sem nunca terem levado uma única pessoa a refletir profundamente sobre si. Isso nos desanima até percebermos que estamos no lado da maioria absoluta de esquecidos e futuros esquecidos, quando aceitamos o fato de que nenhuma marca nossa permanecerá, assumimos a mediocridade com um orgulho meio avergonhado, porém ainda satisfatório. Quando olho para uma série de artigos acadêmicos que leio, todos eles me remetem genericamente ao tédio. Poder-se-ia criar um novo slogan que trocasse a frase "todos os caminhos levam à Roma" para "todos os caminhos (acadêmicos) caem no tédio". Nenhum nome me encanta e mais me parecem com a prática da fossilização como esporte, mesmo que os esportistas do tédio não saibam que são bons em produzir tédio e lixo descartável. Se eu escrever qualquer coisa que possa cair dum burocrata tipicamente acadêmico, sairá como genuinamente chato e acadêmico (e espero que não cite um artigo existente por mero acaso):

- O machismo como invenção neoliberal;

- A infelicidade como criação fascista;

- Homossexualidade e Arte no Grajaú;

- A gestão psdbista e suas consequências;

- Progressismo e Esperança no governo Dilma;

- Neogolpismo e democracia;

- O valor do amor em tempos reacionários;

- Pela normalização do poliamor;

- Por uma esquerda autenticamente revolucionária;

- Revolução e Reação nas Boates LGBTQIA+ Paulistanas;

- Por uma política radicalmente ambientalista;

- Neomarxismo e Revolução;

- Feminismo e Cyberpunk.


Foda-se, cansei - canso-me rápido, eu sei. Os acadêmicos se diferem do povo, mas quase não se diferem entre si. Sua diferença está para com a maioria do povo, não para a maioria dos outros acadêmicos. O que não é bom, só que também não é ruim: o destino do homem - ou, se preferir numa linguagem menos machista, "a humanidade" - é a mediocridade perante seus pares. Eu já aceitei a mediocridade que me cabe. 


Não sei a razão que leva a tantos acadêmicos optarem por títulos que já indicam o grande sonífero em forma prosa que certamente virá quando o leitor - que na maioria das vezes sequer existe por causa da gigantesca produção burocrática que é a produção acadêmico - terá que dar conta. Quase ninguém lê conteúdo acadêmico, eu leio para ter alguma base na minha produção acadêmica. E minha base também é medíocre e genérica. Sou o exemplo do antiexemplo que se tornou padrão. Se bem que, sendo sincero, sei que a média de pessoas que se interessará pelo que escrevo é equitativamente a mesma média de neandertais cantores de pagode vivos nesse exato momento: nenhuma, absolutamente ninguém, zero à esquerda de zero à esquerda. Só que não me iludo com isso: este meu blog existe apenas para eu dizer a mim mesmo que existe (precariamente, minimamente, porcamente).


Muitas vezes olho ao espelho, para me deparar com uma horripilante imagem de uma triste figura e pergunto: "quem eu estou tentando enganar?" Usualmente chego a fase posterior: "se é a mim mesmo, falho miseravelmente". Meu caderno se enche de notas, minhas leituras se acumulam e em minha mente mofam. Algum dia sonhei a hipotecar que a rotina cria deuses ou escravos. Também cheguei a achar credível que, sendo produtivo, poderia ser alguém vivo. Os compromissos acadêmicos e a sucessão de análises só existem para disfarçar o abismo em que me encontro. Além do fato de que cada análise, sucedendo a outra, não trazem uma vida pujante: representam sempre, nada mais nada menos, que uma maquinalidade formalesca. De certo não venho me sentido feliz com o rumo que a minha vida tomou: não consigo ver um grande salto qualitativo entre a fase anterior e a fase atual, mesmo que o nível técnico tenha aumentando: a escrita atual parece carecer de alma. Queria cuspir na imagem desse pobre burocrata toda vez que o olho no espelho. Eu odeio esse pobre burocrata. Esse pobre burocrata... que me tornei.

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