Espero que seja tão legal para vocês quanto é para mim adentrar nesse reino da jusfilosofia. Não sei se vocês são tão novos nesse terreno quanto eu sou, todavia espero que o conteúdo dessas análises seja tão proveitoso e útil quanto é para mim.
— Recaptulação:
No capítulo anterior dessa série de notas públicas do que venho estudado, escrevi sobre as condições que possibilitaram o surgimento do juspositivismo. Tal como escrevi anteriormente, naquele período houve uma intensa secularização social, o advento do Iluminismo, a separação entre a união intrínseca entre a lei e a moralidade. O juspositivismo essencialmente surge dessa separação (entre a lei e a moral). Os juspositivas creem que a lei não necessariamente é derivada da moral.
— Introduzindo a Revolução de John Austin:
- John Austin é um pensador revolucionário que desenvolveu uma teoria da lei em que separava a própria lei da moralidade;
- No pensamento de Austin, o juspositivismo austiniano, nós podemos ver que o conceito de lei, a própria forma que se dá a legalidade, é derivada não da moralidade, mas sim do conceito de soberania;
- O que John Austin essencialmente faz, e o que foi bastante revolucionário e controverso no seu tempo, é o de substituir a moralidade pela soberania;
- Isso quer dizer, como observado na nota pública anterior, que não haveria mais aquela transcendentalidade que era comum ao jusnaturalismo;
- John Austin cria o juspositivismo numa base que ele acreditava ser mais concreta. E essa base era exatamente a soberania;
- A soberania pode ser baseada numa pessoa ou uma instituição.
— Por qual razão John Austin fez isso?
O pensamento jusnaturalista se estabelece com um raciocínio a priori. O pensamento a priori é um modo epistemológico de se pensar. Em outras palavras, o jusnaturalismo deriva de uma posição em relação a como o conhecimento se dá. Ele tem uma correlação com a forma com que entendemos o conhecimento. Com a forma de como acreditamos que podemos tirar conclusões a partir desse conhecimento. E também de como podemos justificar nossos conhecimentos e ações no mundo e a respeito dele.
Um exemplo clássico de um pensamento a priori é o do triângulo. Quando dizemos que todos os triângulos possuem três lados, não precisamos sair medindo todos os triângulos do mundo para saber que todos os triângulos apresentam três lados.
O modo de raciocínio a priori deriva não de uma fonte direta, mas de uma fonte externa ao conhecimento. Quando pensamos no jusnaturalismo, a lei não existe por si própria, mas é derivada da moralidade e só por meio dela pode ser justificada. Como podemos ver, a batalha intelectual travada por John Austin também tem a ver com: (I). a forma com que os jusnaturalistas viam o conhecimento e o que poderiam derivar a partir dele; (II). a forma com que Austin e outros juspositivistas vão ver o conhecimento e o que podem agora derivar a partir dele. Nisso compreendemos que a batalha entre juspositivismo e jusnaturalismo também é uma batalha epistemológica.
O que é o oposto do a priori na esfera da epistemologia? É o a posteriori. Em outras palavras, a existência de um objeto em si não pode ser derivado de outro objeto. O pensamento a priori, para Austin e seus contemporâneos que também tinham um caráter mais secularizado, parecia muito abstrato e remetia muito ao mundo anterior — o mundo mais religioso, mais medieval, que remetia mais ao cristianismo. Para Austin, a característica mais importante para determinar a lei em sua condição de lei era a sua própria existência, não a existência de uma moralidade abstrata da qual deveria derivar a lei. Em outras palavras, a existência da lei não deveria depender, no pensamento de Austin, de fontes externas.
A questão que fica é: o que justifica a lei se não a moralidade? O que seria esse soberano? O comando soberano é um comando generalizado de um soberano (aqui entendido como uma autoridade com poder concreto de poder fazer valer a lei), apoiado pela ameaça de sanção (punição para quem não cumprir essas leis emandas pelo soberano). Aquela pessoa ou corpo que a maioria da sociedade obedece. A busca da lei passa a ser como a lei de fato é (o que foi positivado, ou seja, tido como legítimo pelo Estado) e não como a lei deveria ser (referência moral que os jusnaturalistas tinham). É por isso que um conjunto imoral de lei, segundo essa lógica juspositivista, não deixa de ser lei. Visto que, no fim de tudo, a questão é se essa lei foi emanada pelo soberano e não se ela é uma boa lei.
— Jusfilosofia Austiniana e o Direito Internacional:
Uma das maiores críticas a esse pensamento, que ainda vamos analisar mais, é o da sua relação com o Direito Internacional. Embora se possa afirmar, para a defesa de Austin, que o Direito Internacional não tinha tanta relevância em seu tempo quanto atualmente tem. Vamos entender um pouco mais.
Se a lei é derivada da soberania, o que é um ponto bastante concreto, como pode existir um Direito Internacional? A lei, segundo a linha juspositivista austiniana, só pode existir com base em uma autoridade concreta. O Direito Internacional, por sua vez, não deriva de uma autoridade soberana. Em outras palavras, não há um monarca, um parlamento, um Estado internacional, um indivíduo singular, um parlamento, uma dinastia ou algo semelhante. Para juspositivistas austinianos, o Direito Internacional não pode existir de um jeito semelhante tal como existe o Direito Nacional.
Isso é encarado como uma questão problemática a respeito do juspositivismo austiniano. Visto que o pensamento austiniano se constrói com base na existência de uma soberania, enquanto que o Direito Internacional não pode existir com base em uma soberania internacional com autoridade própria. Então de acordo com a teoria austiniana, como não há uma autoridade soberana internacional, não há uma soberania internacional, logo o Direito Internacional não existe da mesma forma ou do mesmo jeito que existe os direitos presentes em várias nações. Veja que há uma dificuldade de fazer com que as leis do Direito Internacional entrem em vigor, sobretudo pela disparidade de poderes entre as nações. Logo aplicar leis internacionais e garantir a sua vigorosidade é uma crítica não só do juspositivismo austiniano, mas também uma crítica geral que se faz ao Direito Internacional.