domingo, 24 de outubro de 2021

A Ilusão Conservadora - ou: da Inversão Ritualística como Obra de Confusão Mental

 

"Se é verdade que o socialismo ataca a família na teoria, é muito mais verdade que o capitalismo ataca na prática"

Chesterton


    Existe um fenômeno a qual eu denomino de "inversão ritualística". Aquilo que chamamos de ritual é a manifestação no espaço-tempo de uma ideia. O ritual não é a ideia em si, o ritual é tão apenas a manifestação da ideia num determinado espaço-tempo. Só que há gente que confunda ritual com ideia. O fenômeno da inversão ritualística ocorre quando um ritual adquire a forma de ideia na cabeça daquele que é confundido. Um bom exemplo: o calvinismo não é o cristianismo em si e sim uma forma de se manifestar o cristianismo, tal como o cristianismo não é a religião por si mesma e sim uma forma de se viver a religiosidade. Indo um pouco mais longe, a União Soviética não é o socialismo e sim uma forma que se manifestou o socialismo. Só que a pessoa que confunde o ritual com a ideia não é capaz de saber que a ideia não se manifesta puramente na realidade e, quando se manifesta, manifesta-se de uma forma imperfeita. 


    Qualquer coisa, pessoa ou ideia pode se tornar vítima da inversão ritualística. E a confusão mental que enfrentamos é tão grande que se pensa que o ritual está acima da ideia que ele tenta reproduzir. Vê-se nisso quando se fala a palavra "teologia" que quer dizer: "discurso sobre o divino". Só que a palavra "teologia" é tão má empregada e tão má entendida que, para muitos, ela quer dizer: "discurso sobre o cristianismo". Na verdade, até mesmo a mitologia grega é teologia. Para ser sincero, até mesmo aqueles que chamamos de "umbandistas" praticam a sua teologia - mesmo que, muitas vezes, sem o aval dessas pessoas ilustres a qual chamamos de cristãos. Até mesmo a "bruxaria", vista como algo horrível para pessoas tão ilustres quanto cristãs, é uma forma de teologia. Só que a inversão ritualística leva a crer que teologia é cristianismo tal como leva a crer que socialismo é marxismo ou que socialismo é stalinismo.


    O legal da história é que ela prova quase sempre o contrário do que se espera. Pegue todas as maiores figuras da Idade Média e verificar-se-á um punhado de desajustados hereges que só depois de muito tempo foram tidos como bons, já que a maior parte do tempo em que viveram ou até depois do tempo de sua morte, foram tidos como maus. Se o que define alguém como parte de seu tempo é estar contra o seu tempo, tal regra se aplica até mesmo aquela idade espaço-temporal tida como conservadora chamada Idade Média. E falo isso sem a menor vergonha. Qualquer grande figura, da Idade Média, foi uma figura desajustada: seja Dante, Tomás de Aquino, Boaventura, Francisco de Assis, Domingos. Podemos pegar até mesmo o ilustre Agostinho de Hipona, o nosso santo que disse: "Deus, dai-me continência e castidade, mas não agora". Agostinho de Hipona foi tido como um gigantesco devasso hipócrita a qual todo mundo atribuía luxúria sem fim - e, quiçá, sem retorno. Só que hoje, todas essas figuras de desordem, são tidas como figuras de ordem por defensores da ordem. O que é engraçado, já que nenhuma dessas figuras representou ordem alguma. Sabem o que isso demonstra? Demonstra que nada compreendemos sobre história.


    O maior problema de tudo: tudo foi invertido para que desajustados ululantes parecessem ajustados ululantes para aqueles que não o conheciam de fato. Assim a ordem engoliu a desordem como Saturno engolia seus filhos. Assim a ordem gerou ordem matando a desordem. Assim a desordem desonrada e deslegitimada foi feita ordem por um revisionismo reacionário. O sistema é tão alienantemente denso e hipócrita que não se negará a mentir a cada capítulo da história, colocando figuras desajustadas como ajustadas até que todos se ajustem ao sistema como que por efeito cascata.


    Dante foi um poeta popular, que escreveu sua maior obra não em latim, mas numa língua vulgar para que não só a elite o lesse, mas sim para que todos pudessem ler. Dante defendeu a separação entre o Estado e a Igreja, já que a autoridade chamada de temporal precede à Igreja e não é causa necessária da Igreja - Dante era, meus senhores, um teólogo diferente: ele era o teólogo do laicismo. Tomás de Aquino foi um cara duma ordem considerada herege (Dominicanos) por muitos e ainda defendeu Aristóteles, sua tarefa era, estranhamente, conciliar razão e fé - coisa absurdamente progressista que almejava diminuir a penúria de uma vida puramente condicionada aos ditames do canôn bíblico. A fé de Tomás de Aquino era tão grande que em sua Bíblia não cabia só Paulo de Tarso e Isaías, mas também Aristóteles. Já que para ele, haviam-se modos de se descobrir a obra de Deus: e a sagrada escritura não era a única, visto que Deus, meus amores, é extrabíblico. Francisco de Assis era um daqueles vagabundos que andavam feito mendigos pregando o Evangelho. Já que os monges viviam encastelados em seus mosteiros longe do povo pecaminoso, Francisco, em sua estranha humildade, preferia viver entre os mendigos do que viver feito um elitista em um mosteiro. Domingos literalmente defendeu uma ordem em que todo mundo pudesse pregar, coisa que era compromisso só de bispos e até mesmo aos padres isso era dificultado. O compromisso de Domingos era com a democratização do discurso cristão, numa clara revolta hierárquica. Boaventura foi um místico duma ordem de vagabundos (franciscanos) que teve que sofrer as pressões que queriam a dissolução de sua ordem por causa de arautos do conservadorismo católico. Boaventura era um descendente espiritual de Francisco de Assis e toda a sua teologia mística é baseada nesse modus vivendi herético o qual se chama franciscanismo. Agostinho de Hipona teve uma das maiores obras no campo da teologia, da psicologia e da moral. Nessa obra, ele não analisa uma série de erros cometidos por outra pessoa e sim uma série de erros cometidos por ele mesmo.


    Todas essas figuras são utilizadas de modo errôneo. Tomás de Aquino, defensor da liberdade de estudo, da liberdade de investigação é utilizado por pessoas que são contra essa mesma liberdade. Dante Alighieri é utilizado por elitistas, só que Dante era o contrário de um elitista. Domingos, defensor da pregação como meio efetivo de conversão, é hoje utilizado por aqueles que querem, pura e simplesmente, a imposição da fé por vias não dialogais. Agostinho de Hipona, homem sincero para aquilo que ele próprio acreditava como sendo parte de seus erros, é utilizado por pessoas que se veem imunes de qualquer erro e no direito pleno de culpar o mundo inteiro. Francisco de Assis, homem que decidiu viver em meio ao povo pobre e converter as pessoas através de atos e não de palavras, é hoje utilizado por pessoas que odeiam a população em geral e que amam mais suas riquezas do que qualquer outra coisa. O resultado da obra mística de Boaventura não está naquilo que ele mais disse, mas no silêncio: ele entendia que Deus só se manifestava para aqueles que se calavam, pois aquele que se cala, se abre. Só que os seguidores de Boaventura nunca calam a própria boca, já que só suportam a própria voz e não a voz do outro, seja o outro o próximo, seja o outro a Deus. Se todas essas pessoas ilustres pudessem conjecturar como seus nomes seriam usados por nós, perdem-se-iam de vergonha.


    Sobre todas essas pessoas ilustres, só posso dizer uma coisa sobre nós pensando neles: nós não somos dignos deles, nós os arrastamos para as nossas conclusões errôneas e manchamos os seus legados em nossos fetiches mentais. O que temos deles, não são eles, mas aquilo que foi dito sobre eles e mais precisamente naquilo que se tornou "conventual" sobre eles. Nessa série de mentiras assimiladas, reduzimos suas pessoas ao pó e suas ambições mais puras viram alvo de nossa zombaria preconceituosa. O que vemos é uma série de pensamentos ritualizados que não conseguem trazer as coisas ou as pessoas em si, mas só a deformidade daquilo que se tem das coisas e das pessoas. Na sociedade perfeita de Thomas More, descrita no livro "Utopia", o catolicismo não é a religião oficial, mas quase toda santa vez que se fala dele, lembramo-nos mais de sua religiosidade católica do que qualquer outra coisa. Assim é com quase todas as coisas, tem-se mais o ritual do que aquilo que há em si.


    A inversão ritualística nos faz pensar em Tomás de Aquino como um exemplo de padronicidade, só que Tomás de Aquino era um destruidor de rituais, sobretudo o ritual platonista que virou o cristianismo. Tomás de Aquino foi perseguido por defender as heresias de Aristóteles e hoje queremos usar Tomás de Aquino para expurgar a academia das heresias modernas sendo que Tomás de Aquino era modernamente um herege. Colocamos tanta santidade em Francisco de Assis que o afastamos do "povo pecador" com que ele viveu. Queremos adornar com tantas palavras a mística de Boaventura que esquecemos que a mística se encontra mais na abertura total da percepção do que no julgamento desenfreado. Falamos de alta cultura e colocamos Dante Alighieri como o portador máximo da alta cultura, só que Dante defendia a cultura popular e por causa dela, virou mártir. Utilizamos Agostinho para condenar a sociedade, mas o que mais Agostinho condenou era a si mesmo. Falamos de Domingos para calar a sociedade, mas o método dominicano era dialógico. Tem-se sempre o ritual, mas nunca se tem a ideia.


    Heterossexuais viveram o amor, então criaram preceitos sobre como ordenar o amor. Sem perceber, transformaram o amor em heterossexualidade. O preceito heterossexual de amor é o preconceito contra qualquer outro tipo de amor. Já, em gênero, conventuou-se que cada peça cabia a determinado gênero e, desde então, tudo virou uma normativa em que o gênero em si mesmo se perdeu. Em jogos, diz-se que o melhor videogame é o que possui mais gráficos, mas o videogame que venceu a sétima geração não foi o PlayStation 3 com a sua arquitetura arrogantemente sofisticada e sim o Nintendo Wii que era o console mais fraco. Na música, disseram que a única música que importava era a clássica e que todo restante era uma falsidade ou uma espécie de música antimúsica. Todo preceito vira preconceito, já que a realidade não é normativa, mas descritiva. Aquele que dá preceitos a todas as coisas, cria preconceito sobre todas as coisas. A norma pode ser tudo, mas se tem uma coisa que define toda norma não é a sua naturalidade, mas sim a sua inaturalidade. O problema da normatividade é nunca ser normal, o problema da normatividade é ser antinatural.


    Se buscarmos nacionalmente, no Brasil, fala-se de Nelson Rodrigues. E o "maior reacionário" não era um santinho e sim um cara que mostrava sistematicamente os erros dos paladinos da moral. Só que o que mais se vê são paladinos da moral defendendo Nelson como se o Nelson fosse um deles. Na verdade, Nelson Rodrigues era contra eles. Nelson Rodrigues dizia: "atrás de todo paladino da moral, vive um canalha". Até quando vamos errar tanto? Até quando nosso juízo será o ritual e não o ideal? Até quando teremos aquilo que nos disseram, mas não aquilo que era aquilo ou a pessoa que era a pessoa? Acho que se eu pudesse definir tudo isso que escrevi numa única frase, sintetizando toda essa série de convenientes contradições que pega cada desordenado e transforma num ordenado, essa única frase seria: 

- A ilusão conservadora é crer que houve conservadorismo.

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