quinta-feira, 29 de julho de 2021

Sim, Saturno ainda devora seus filhos!


    

    Saturno devorou seu filho. Uma cena brutal, uma cena até mesmo "demoníaca". Poder-se-ia dizer que uma coisa tão má não aconteceria no tempo presente, em que a humanidade evoluiu ao seu ponto culminante. Só que isso seria um ledo engano: Saturno ainda devora seus filhos. Existem atos que são tal como Saturno: eles nos engolem com o tempo. Aquilo que nos dedicamos erradamente, acaba por nos engolir. Há até mesmo vezes em que aquilo que nos dedicamos nos mastiga furiosamente, destruindo-nos por dentro e por fora. E, se você tem um vício, você sabe do que falo. O vício vicia. O vício vicia a ponto de matar o seu usuário para qualquer outra coisa. E se ele mata o usuário para qualquer outra coisa, impede-lhe de ser pleno. E sem plenitude não há vida real. O usuário virou um cadáver ambulante, um homem que manca na ilusão de que anda.

    Por muito tempo o termo simbólico e satânico dominou meu pensamento como uma flor de obsessão. Numa aula, meu professor contou o real significado de simbólico e de satânico. Simbólico é aquilo que une. Satânico é o que separa. Certo dia, porém, eu tive uma ideia: certas ideias são como saltos de fé satânicos. E esses seriam a aceitação da parcialidade como o todo e a negação de tudo que fuja dessa parcialidade. Conversando com um amigo mais laico, ele achou o termo "salto de fé satânico" muito teológico e pouco filosófico. A partir de agora chamarei o "salto de fé satânico" de "salto de fé satúrnico" paralelamente para evitar uma leitura puramente teológica. Assim evito restringir e ofender dado público a qual quero prosear. E também dou uma girada macroecumênica a nível discursivo.    

    Bem, esse texto fala de pornografia. E você deve pensar: "pornografia? Os textos anteriores também eram sobre isso". E, de fato, você tem razão. Só que eu preciso falar de pornografia. Eu fui e creio que ainda sou um viciado em pornografia, só que não acesso e nem consumo mais. Quem era eu? De certa forma, eu era. De outra forma, eu não era. Vaguei muito tempo como um viciado, buscando no vício a plenitude que me faltava. E aquilo que me era uma parte, tornou-se todas as partes. Eu não amei de fato. Eu não estudei de fato. Eu estava lá, mas lá não estava: minha mente vagueava nas ilusões pornográficas. E da ilusão tirei meu triste salário: eu era a privação de mim mesmo. E na medida que eu era a privação de mim mesmo, eu era também eu e minha falta. A pornografia era meu grande Saturno. O Saturno que me devorava.

    No geral, o Saturno é para nós um pai. Um pai que temos natural devoção. Um pai que queremos por afeição. Só que Saturno não é um bom pai. E todos os seus abraços visam não abraçar, mas nos devorar. O nosso Saturno é nosso vício. Esse vício pode se encontrar em qualquer âmbito: no pensamento, na prática, na crença, no subconsciente. De qualquer forma, Saturno é o vício que nos devora. E nós estamos apaixonados por ele: somos um gigantesco cardume indo felizmente em direção da morte. E se você não está literalmente morto e acha tudo isso uma besteira por ainda não estar morto, permita-me dizer-lhe que: o homem vive enquanto morto. É possível estar vivo e apenas sobreviver. É possível estar num cadáver com a aparência de um ser vivo. Talvez você esteja interiormente morto e não o saiba.

    O que somos nós? Somos em parte o que queremos ser e em outra o que não queremos ser. O ideal é a transcendência. A imanência é o real. A união do real (imanente) com o ideal (transcendente) dá luz ao transparente. Essa transparência é o objetivo da vida: é a união da idealidade com a realidade. Ela se dá de forma mais ou menos harmônica. Posso ser mais pleno ou menos pleno. A luta pela transparência por atos e pensamentos é aquilo que deveríamos buscar. Não quero teologar muito, mas preciso para ser mais didático: como cristão, por exemplo, a transparência seria a vivência diária da fé. E quantas vezes eu deixei de ser sincero? Quantas vezes deixei de ser um confessor? Confessar é ser sincero, ser sincero é ter transparência. E o que é ter transparência? É ser autêntico. Ser autêntico é ser verdadeiro. Muitas vezes sou menos verdadeira do que eu gostaria de ser. Se a vida é um esforço comunicacional, aquele que mente se nega a viver.

    No período em que escrevo esse texto, o papa emérito Bento XVI se posicionou contra a pureza doutrinal. Fica claro que nem para o "conservador", se é possível viver tendo como base uma transcendência esmagadora que se mostra inflexível para com o real. E essa ideia de pureza doutrinal foi atribuída erroneamente a ele depois dele falar sobre o mundanismo. Sem querer me alongar muito nessa questão, mas utilizando esse trecho para clarificar uma coisa: a vida é um esforço comunicacional, em que nem sempre somos a plenitude do que poderíamos ser. Só que esse esforço comunicacional é precisamente um esforço: a gente tenta ser transparente. Muitas vezes não conseguimos. Só que a vida reside precisamente nesse esforço de comunicar com autenticidade quem somos e no que acreditamos. É disso que vem a verdadeira doutrina: do esforço vivencial de ser. Buscamos ser o tempo todo, só que por vezes buscamos ser de forma errada. Tentar comunicar é tentar ser. Só que às vezes o ser é esmagado na sua tentativa de ser. O ser é, mas tudo na vida leva a crer que não pode sê-lo. E tentando ser, tentando transparecer, é que vivemos. É assim que eu encaro a vida.   

    Admito que fui aluno de filosofia e ainda o sou: filosofar não me é só um dever acadêmico, mas um dever vivencial. A filosofia é a análise do pensamento pelo próprio pensamento. A isso costumo chamar de metapensamento, que é para mim a mesma coisa que filosofia. Dessa forma estabeleço democraticamente a filosofia: ela não é restrita a um círculo fechado de acadêmicos iluminados, ela é comum a todos os homens. Todo homem filosofa. Pode-se filosofar com maior ou menor qualidade. Só que a filosofia não depende inteiramente de uma organização do discurso, ela depende da organização da vida. Se a filosofia for meramente discursiva, ela é apenas algo atrofiado. A filosofia é expressão da vida. Se ela se perde unicamente no discurso, torna-se um mero clichê argumentativo. Quando passamos a pensar só na análise do discurso, tornamo-nos abstratistas que pouco se importam com a vida. E pouco se importar com a vida é se tornar um alienado. Eu quero me alienar, mas me alienar sem me tornar continuamente alienado. Quero me abrir, mas preciso me fechar para abraçar em meu coração aquilo para que me abri. E, se eu não abraçar, se eu não acolher, serei um fariseu com um fetiche do parecer ou com um diploma esteticamente belo em meu quarto. Eu não quero analisar um discurso oco, eu não quero ter uma vida falsa, eu não quero proferir um falso discurso.

    Sim, eu usei pornografia. Usei como qualquer pessoa normal em nossa sociedade hipergâmica e hiperssexualizada. Na quinta-série, pediram-me para usar. Essa era a inovação fatal a qual tudo deveria se curvar. Eu vi e me encantei com corpos. Corpos que me eram fascinantes. Tinha apenas onze anos e, na época, aquilo me foi uma porta até outro mundo até então desconhecido. Eu conhecia jogos, eu conhecia brinquedos, eu conhecia doces e salgados. Minha mente era de um menino, um menino pobre, mas não amargo. Só que tudo isso era o prenunciar de uma tragédia: aprendi sobre sexo, todavia não aprendi a amar. Eu não abri meu coração para ninguém, eu fui tão solitário quanto eu era pornográfico. Se fiquei com alguém, mal amei. Mal amando, fui também mal amado. O termo "reciprocidade" me era equidistante: a cada passo dado, aquilo que almejava se afastava simetricamente. Equidistância é um caminhar desejante, mas um caminhar que nunca alcança o objeto ou o sujeito de sua busca. Toda equidistância termina em dor.

    Tenho vinte e quatro anos agora. Não sou mais criança. Não sou mais pré-adolescente. Não sou nem mais adolescente. Escrevo como um adulto. Um adulto que quer ser responsável. Só que eu não acumulei em parte de minha juventude a sabedoria. Pois o amor é uma sabedoria: é o encontro de pessoas que de repente se abrem umas as outras, que de repente vivem umas com as outras e de repente elas não são mais só elas mesmas, elas também são parte de alguém. E eu sou parte de poucas pessoas, eu não me expresso em muitas pessoas. E essa ausência de expressão significativa me torna pequeno, muitissimamente pequeno: nem algo e nem alguém são grandes por serem grandes, são grandes por terem sido amados. Com relação ao amor: sou um moleque. Não amadureci como eu deveria, não amadureci por conta de meu vício.

    E quantas coisas eu poderia ter amado? E quantas pessoas poderia ter conhecido? Minha obsessão tinha um nome claro: pornografia. Acumulavam-se as tags, mas não se tinha a fidedigna expressão genuína do eros. Eu acumulava vazios em meu peito. Meu coração tinha tantas trevas ao seu redor que entrou em desespero. Às vezes o velho poema ressoava em meu peito aquele bom poema Carlos Drummond de Andrade: "Meu Deus, por que me abandonaste?/ Se sabias que eu não era Deus/ Se sabias que eu era fraco". Só que minha consciência sabe hoje que isso é uma mentira: não foi Deus que me abandonou, eu que o abandonei. Eu me entreguei à ilusão pornográfica: ela me era como tudo, mas não sabia que ela me era só uma parte. Aquilo que deveria ser parte do todo, agora era o todo. Se Deus está em todas as coisas criadas, aquele que se dedica exclusivamente a alguma coisa criada o nega. E é nesse preciso sentido parcializador que eu neguei a Deus: aquilo que eu julgava tudo, era aquilo que me parcializava, aquilo que me parcializava me negava a plenitude.

    Como grande parte das pessoas, eu sou e eu fui um grande entusiasta da cultura japonesa. Sou um fã confesso do autor Haruki Murakami. Sou também um leitor de mangás. E igualmente vejo animes. Mas confesso que li mais mangás pornográficos do que mangás de qualquer outra coisa. E isso demonstra o velho erro: aquilo que me parcializava, me impedia também de ser pleno. Fui um leitor assíduo de muitas obras e de muitos assuntos, mas fui um mau leitor: a pornografia comia minha consciência. Se fiz sexo nesse percurso, foi com pouco sabor. Eu não apreciava e não era apreciado. Tudo era estéril. O sexo estéril não é um sexo que falha em reproduzir, é um sexo que falha em se conectar. O sexo pode até não reproduzir fisicamente outro ser humano, mas o sexo não pode falhar em se conectar com outro ser humano. E aprendi da forma mais dura que a não conexão no ato sexual é uma das coisas mais dolorosas da vida. E se eu morresse agora, se eu me visse numa sala vazia, se eu tivesse que dar uma frase que resumisse a minha vida, essa frase seria: eu não amei e nem fui amado.

    A pornografia é grátis, mas sem gratidão. Ela não lhe dá uma experiência feliz que se integra a ti, uma experiência que no final você diz: eu sou grato verdadeiramente pelo que tive. Aquilo que você momentaneamente tem, é aquilo que momentaneamente foge de você. O final da pornografia é o vazio. A pornografia pode até mesmo ter sexo, mas é o oposto do sexo. Sexo tem consubstanciação: o ser que era, junta-se a outro ser que era e agora os dois são um só. Na pornografia, eu fui solitariamente eu. E muitas vezes chorei amargamente em minha solidão. Caminhei exilado. Minha condição de exilado era tão densa que até o mar de gente se abria, se abria para que eu passasse solitariamente. Era um milagre infernal. 

    Hoje eu sei que a pornografia era como um pai para mim, um pai que me abraçava, um pai que me abraçava para me devorar e destruir. Quando eu precisei de amigos, a pornografia esteve lá para impossibilitar qualquer hipótese de amizade. Quando eu precisei de estudo, a pornografia esteve lá para deter qualquer pretensão de vida intelectual. Quando precisei estar ao lado da garota que amei, a pornografia me afastou dela. De tudo Saturno me separou. De tudo Saturno me privou. Saturno era um pai possessivo. Sim, Saturno ainda devora seus filhos. Eu sei, eu fui deles.

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