segunda-feira, 19 de julho de 2021

Pseudotranscendência e Pornografia

Pornografia e Pseudotranscendência




    Nelson Rodrigues disse uma vez: “todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”. Sempre achei essa frase meio estranha. Sempre discordei dela. Hoje creio que ela é tão real quanto o chão sob meus pés: aquilo que amamos, torna-se parte de nós e aquilo que é parte de nós nunca nos deixa. Posso até mesmo não ver mais uma pessoa que esteve comigo, posso até mesmo odiar o seu presente estado, todavia se a amei, ela é parte de mim e sendo parte de mim não me abandona e não acaba.

    Em primeiro lugar, esclareço o que é alienação: alienação é sair de si mesmo. Muitas coisas nos levam a sair de nós mesmos, tal é o efeito dos filmes, dos desenhos, dos livros, até mesmo da religião. Alienar-se é, em certo sentido, natural e necessário. Até mesmo quando olhamos a situação de uma pessoa marginalizada, se formos empáticos, alienamo-nos para compreendermos a essa pessoa marginalizada. O problema não é a alienação, é ser alienado – o alienado está continuamente fora de si. Ser alienado é diferente de alienar-se, pois aí se encontra não mais alguém que se aliena através de uma experiência de saída do ser – algo que pode ser enriquecedor –, mas alguém que permanece saído de si mesmo. E quando permanece fora de si, acaba por deixar de viver.
 
    Pseudotranscendência é um contínuo estado de alienação. O estado do alienado é o de pseudotranscendência. A verdadeira transcendência leva o ser a ser-mais-ser, ela está precisamento no ser que acresce, no ser que cresce com a saída e com o retorno a si mesmo. O fim da transcendência é o sublime: é aquele momento em que não somos mais nós mesmos, somos mais do que nós mesmos. É o momento em que a realização vem e nos torna melhores do que já éramos. O sublime é quando ultrapassamos a nós mesmos e tornamo-nos maiores. Aquilo que lhe momentaneamente alienou, agora é aquilo que lhe dá real um retorno ao seu ser, um conhecimento de si ainda mais íntimo e uma capacidade maior de se realizar. O fim mesmo da alienação – a saído do ser de si mesmo – é a volta do ser a si mesmo com o acréscimo.
 
    Toda transcendência é saudável, visto que a transcendência é o desenvolvimento contínuo do ser. Ela é a perfectibilização do ser: ela torna o ser-mais-ser. A humanidade não é perfeita, ela é perfectível. Na medida em que é perfectível, é capaz de se tornar mais feliz. E felicidade é a realização mesma do ser. Só que o ser só se realiza na medida em que se torna mais ser. É no momento em que se quer superar, que se quer progredir, que se quer avançar. Esse contínuo avançar, esse progresso, esse instinto espiritual, essa vocação de toda mulher e de todo homem é o que há de mais belo e o que tem de dever – e isso é um dever na medida em que cumpre a vocação da humanidade: a de ser feliz. Os outros animais conhecidos na natureza, são causas inequívocas: eles seguem uma ordenação instintual. O homem é uma causa equívoca – não equívoca por ser errada, mas equívoca por ser livre –, ou seja: ele não é delimitado por seu instinto, mas livre para percorrer o seu caminho. E, na medida em que prossegue em seu caminho, tem que arcar o peso da liberdade. Todo animal é, quase que naturalmente, realizado em sua mesma natureza. Mas a humanidade não é quase que naturalmente realizada, ela pode escolher ser realizada ou não. E essa capacidade de se realizar ou não é o que define a humanidade.

O problema da pseudotranscendência

    A transcendência naturalmente acopla-se ao ser. Na medida em que se acopla, atualiza esse ser. O ser que anteriormente existia em potência, agora é plenificado – ele não é mais só que era, mas mais do que isso. Ele se torna um ser melhor, tornar-se até “maior”. Ou seja, a transcendência é natural, ela entra e se integra ao ser enquanto ser. E a pseudotranscendência é falsa, pois ela só existe no momento mesmo que o ser se aliena. Logo a pseudotranscendência é como uma alienação-pela-alienação: ela não existe para complementar, ela não existe para atualizar o ser numa versão superior de si mesmo, ela existe para alienar pura e simplesmente. Logo ela é artificial. O ser, para seguir a pseudotranscendência, deve como que se mutilar: deve haver algo de específico, algo de especificado, algo que foge da integralidade de sua vida.

    É nessa diferença transcendental e pseudotranscendental que reside o problema: uma torna o ser melhor, outra o priva de ser. Como a pseudotranscendência é uma alienação pela alienação, é evidente que o ser não volta para si mesmo e se torna uma pessoa maior. E o hábito da alienação-pela-alienação torna o ser incompatível. Um setor de sua vida é pura fantasia, mas não uma fantasia que leva ele a caminhar por ideal melhor, que o torne uma pessoa melhor e sim uma fantasia que existe tão somente para a fuga da realidade. O hábito pseudotranscendental nega o real e é nisso que reside o pseudotranscendental: a alienação-pela-alienação e não a alienação-pela-realização. O alienar só é frutífero na medida em que existe para um realizamento.
 
“O problema da droga não é a viagem, é a volta da viagem, quando então não se suporta mais o cotidiano. O cotidiano que é a imanência, que é a rotina chata, a obrigação diuturna de trabalhar, de levantar, de seguir horários, de pagar contas, tudo isso é estafante e enervante. Então, é muito melhor viajar, saltar para fora dessas limitações, artificialmente, a preço de destruir a liberdade e a vida” (Leonardo Boff, Tempo de Transcendência, pág. 21).

    A característica do alienado não é a recusa do ser, mas a egolatria. E o problema na egolatria não é o ser, mas o ser fechado em si mesmo. Ao mesmo tempo em que o ególatra vive em si mesmo, ele desconhece a si mesmo: a verdadeira alienação lhe é desconhecida, já que a verdadeira alienação é a abertura do ser para o outro, para o conhecimento e a acolhida do outro em si e acolhida do conhecimento em si no fechamento. A pessoa adulta se abre para fechar e na medida em que se fecha, cresce, já que agora ela não é mais só ela mesma, mas mais do que si mesma – o outro, o conhecimento, a completou.
 
Pornografia é pseudotranscendência

    Nem tudo que é “bom para você” é “bom para você”. Um dos efeitos do reboot é a procura por pessoas reais e relacionamentos reais. A pornografia lhe deixa satisfeito demais para a busca por relações concretas e com o tempo isso lhe torna uma pessoa menos madura. Tal característica de satisfação imediatizada se torna alienante: você se desabitua a buscar metas de longo prazo e sempre busca satisfação imediata. Para a consecução de obras de longo prazo se faz necessário o desvio do prazer imediato para um agir contínuo de uma obra que leva mais tempo e só dará satisfação posteriormente.

    Temos uma tendência natural de buscar o mais fácil, mas nem todo relaxamento é bom. É, melhor, por exemplo: caminhar cinco minutos por dia do que ficar o dia todo deitado numa cama. A busca por satisfação imediata pode e deve ocorrer, mas quando ela vira a peça central de uma vida, ela corrói e mata a própria vida. Já que a vida é uma questão de longo prazo. Em questão do uso temporal: uma pessoa que busca tão simplesmente passar no ensino médio e outra pessoa que pretende ser intelectual farão de seu tempo algo determinante. O tempo do intelectual será sempre ligado a estudar todos os dias. E isso pressuporá certos sacrifícios e privações de prazeres imediatos. Só que essa privação é algo bom: a vida intelectual lhe dará uma contínua expansão do horizonte de consciência que com o tempo lhe dará uma vida mais proveitosa. Se a vida é determinada por escolhas, aquele que escolhe conscientemente aproveita mais a vida. E é por esse motivo que estudar é curtir a vida: quem estuda mais, curte mais a vida na medida em que escolhe melhor como se deve viver.

    Os teóricos do relaxamento sempre se esquecem que a vida não é só uma contínua satisfação, mas também é um deserto árido. E se esquecem que se uma pessoa busca uma satisfação maior, deve buscar essa satisfação maior congruentemente. E buscar satisfação maior congruentemente exige tempo e esforço. Tempo e esforço que será dificilmente alcançado por alguém que não consegue sair do prazer imediato. A não satisfação imediata é o pressuposto para a consecução de metas de longo prazo. Tal como poupar dinheiro para comprar uma casa. Na vida, se faz necessário um ordenamento até mesmo para o prazer: se você quer comprar um videogame de última geração, terá que, provavelmente, poupar dinheiro.

Ser-no-outro e ser-com-o-outro

    Há uma diferença entre o ser que é com o outro e o ser que é no outro. O senhor é no seu escravo. O estuprador é na sua vítima. O assassino é no seu assassinado. É a diferença entre aquele que está junto e aquele que se sobrepõe. Ou seja, ser-com-o-outro é buscar ser em igualdade. É buscar a satisfação. É buscar o mútuo acordo, a reciprocidade, a alteridade. E ser-no-outro é impor-se. A plena realização do ser-no-outro é aquilo que chamamos de escravidão. A plena realização daquilo que chamamos de ser-com-o-outro é aquilo que chamamos de igualdade – ou, quiçá, aquilo que chamamos de amor.

    Sabemos que o vício em pornografia torna as pessoas menos empáticas. O viciado vê no outro não um outro ser, mas sim um instrumento para sua “realização”. E tal instrumentação do ser humano reduz a sua dignidade. Já que não há mais igualdade entre humanidades, mas servidão. O outro é reduzido a um mero instrumento e perde a sua capacidade de ser equívoco – ou, como já dito, ser livre. Isso é, de fato, um dos frutos da insatisfação sexual moderna: ela não é fundada na igualdade e na alteridade, mas na busca ególatra de autossatisfação. Logo ela não é o ser-com-o-outro e sim o ser-no-outro, é uma relação de dominação e subordinação.

Pseudotranscendentalidade pornográfica

    Sabemos que a pornografia leva a satisfação imediata e que a satisfação imediata se torna o fim do viciado. Sendo a pornografia autossatisfatória, se há uma diminuição da capacidade do ser de se realizar em longo prazo. Logo qualquer meta mais séria da vida se torna impossível. Visto que o ser está continuamente buscando só a satisfação mais imediata. E isso lhe torna imaturo: ele não conseguirá fazer coisas que levem grande tempo, estará sempre buscando os prazeres mais imediatos. Logo ele será incapaz de manter uma verdadeira vida intelectual, uma verdadeira saúde econômica, uma verdadeira vida amorosa. Até para amar alguém, há tempo para isso: é um processo longo de conhecimento, autoconhecimento, alteridade, desenvolvimento.

    Um exemplo pessoal: eu era incapaz de ter uma leitura ordenada. A leitura ordenada pressupunha um grande tempo de dedicação. Se eu quisesse, por exemplo, ler na ordem correta todos os livros do Paul Tillich ou do Haruki Murakami para uma maior assimilação do seu pensamento ou da sua obra, ser-me-ia impossível. Se você quer ser um intelectual melhor, um intelectual mais capaz de estudar, largue a pornografia. A pornografia lhe mata por dentro na medida em que te torna incapaz de realizar metas de longo prazo. Tudo deve ser reduzido para se encaixar no plano pornográfico. Como, por exemplo, um viciado em pornografia escreveria um TCC? Isso envolveria um planejamento, dedicação, tempo e esforço fenomenal. E tal necessidade de satisfação imediata destruiria a própria possibilidade de uma realização ordenada de longo esforço.

Não tenhais medo

“Portanto, não os temais; porque nada há encoberto que não haja de revelar-se, nem oculto que não haja de saber-se.
O que vos digo em trevas dizei-o em luz; e o que escutais ao ouvido pregai-o sobre os telhados” (Mt 10:26,27)

    Se alguém lhe disser que você não vive, argumente acerca da vida a partir da sabedoria que se expande para melhor viver.
- Você não vive, pois não bebe!
- Se beber é viver, o certo seria conhecer as melhores bebidas e aprender a degustá-las. Para tal, há um estudo.
- Você não vive, pois não vê pornografia!
- Se a pornografia é boa, quem dirá a experiência real. Logo é melhor buscar uma pessoa real e, nisso, crescer em vivências sexuais reais com pessoas concretas.
- Você não vive, pois não pega ninguém!
- Se pegar alguém é bom, imagine vivenciar toda densidade humana. Imagina integrar-se com alguém e viver uma relação de pleno desenvolvimento em alteridade, em que essa pessoa e eu vivemos numa crescente relação em que a cada dia nos tornamos mais íntimos.
- Você não vive, pois não joga!
- Se jogar videogame é bom, quem dirá jogar os melhores jogos e quem dirá compreendê-los: imagine jogar um videogame sabendo de seu hardware, sabendo da sua arte, sabendo de sua arte.
- Mas conhecer não é viver, viver é fazer!
- Mas aquele que mais faz é aquele que faz com sabedoria, o teórico não se destrói na prática, pelo contrário, aperfeiçoa. A práxis não é destruída pela teoresis, a práxis é íntima da teoresis. E aquele que não tem teoria, não vivencia a prática. 
- Isso é coisa de velho!
- E seus argumentos são superficiais, tal como a sua pessoa. Você pode até pegar alguém, mas não consegue chegar no mais íntimo contato com essa pessoa. Você pode até jogar videogame, mas não sabe nada de como ele é feito e logo também não sabe como verdadeiramente apreciá-lo. Você pode até beber, mas não sabe o que há de melhor para beber. Tudo que você faz é superficial, tudo que você faz é morno, logo a realidade total nunca é conseguida: sua experiência é tão oca quanto a sua inteligência!

    Não se enganem. Quando você pega um livro, quando você lê um artigo, quando você conversa com aquela pessoa que você ama e descobre mais sobre ela: isso é tão real quanto o real. Nem se enganem por essas pessoas superficiais, pois tudo que elas fazem não é real. O real é profundo, o real é íntimo, portanto todo real exige dedicação, tempo e conhecimento. Não é você que não vive, não é você que é careta: são essas pessoas que são superficiais. Na chuva, não se molham; no calor, não se esquentam; no amor, não são íntimas; no sexo, não dão satisfação.

Conclusão
 
    A pornografia não é só alienadora, é continuamente alienadora. E essa contínua alienação que lhe marca faz com que o ser seja incapaz de se abrir para a realidade. Já que vida é experiência e experiência é se projetar para fora – mesmo que após isso haja uma introspecção de algo ou alguém que se assimila junto ao ser que experiencia. Tornar-se autossatisfeito é se incapacitar: visto que toda vida é um grande projeto de convivência. A vida é um esforço comunicacional. Quem se recusa a se comunicar, recusar-se-á também a crescer. Uma pessoa autossatisfeita é imatura, visto que a experiência nasce de uma insatisfação que quer se satisfazer. E quando melhor e mais sensatamente se satisfaz, mais se torna integralmente satisfeita. Como a pornografia é um mundo a parte e o fechamento nesse mundo a parte que não se integra na totalidade do sujeito – tal como toda alienação – ela é incapaz de propulsionar a realização do ser. Eu não sei se você está satisfeito com o que falei, mas se eu pudesse lhe dizer uma última coisa, essa coisa seria: se você quer ser feliz, largue a pornografia. A pornografia mata o amor e a ausência de amor mata a felicidade.

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