domingo, 14 de agosto de 2022

Quando ela caiu...

 



Passei a maior parte da vida pensando que minha morte não causaria problema algum. Joguei-me numa série de situações de risco relativizando a importância de minha vida e, igualmente, o amor que as pessoas que me acompanhavam tinham por mim. Desde meus 17 anos sofro com episódios de depressão recorrente, quiçá pela minha bipolaridade que se acentua pela vida desregrada que levo. Nesses últimos tempos, só posso pensar em aumentar a qualidade de minha vida, retirando velhos vícios e conquistando o poder da vontade.

Recentemente uma mulher que amei se jogou no meio de vários carros. Só consigo conjecturar que ela se encontra desfigurada. E toda vez que penso nisso só consigo ter vontade de a tudo quebrar. Como não percebi a vocação suicida de minha amada? A forma enfadada com que falava, a sua boca a sempre demonstrar cansaço contínuo, a imagem autodepreciativa que nutria de si, a ideia constante de que estava no final de sua vida e que tudo nela gerava desinteresse global. Eu deveria ter juntado as peças desse estranho enigma, todavia estava ocupado em só prestar atenção em mim mesmo. Sou condenado pelo egocentrismo autocircular que carreguei.

Nos últimos tempos, conheci três pessoas que se mataram. Até hoje há um pingo de esperança meio tresloucada que as verei participando das atividades desse mundo. Eu até agora não pude aceitar a morte delas. A morte é a maior das certezas, porém é psicologicamente inaceitável. Meu antigo psiquiatra também faleceu, uma mulher que se perdia em suas deliberações e indecisões que conheci durante anos também bateu as botas. O trágico era a minha noção infantil de que todos eram imortais. A noção de que as pessoas poderiam morrer me era inconcebível e quanto mais as mortes são engendradas nesse roteiro paranoico, mais me causam suspeita e incredulidade em vez do contrário. A morte é a única certeza da vida, conquanto que uma certeza inaceitável. Quanto mais o tempo passa, mais percebo que a realidade é inevitável para todos.

Ainda vivamente me lembro de meu pescoço na barra de ferro do metrô. Lembro-me de quanto eu tive que meditar para aceitar a minha morte e o quanto eu recuei temerosamente com a aproximação do veículo. Depois disso, mais uma internação que gerou outra e mais outra. Por isso, afastei-me das drogas, das bebidas, das antigas amizades, ideias e sites. A luta pela sanidade se configura apaticamente: ela requer que se afaste daquilo que tensiona e o espírito corrói. Por muito tempo, fui completamente agnóstico e hoje creio em Deus - de tal modo que nunca acreditei. Toda essa monumental tragédia que se repetia circularmente numa roda gigante aproximou-me Dele.

Uma amiga que se afasta, um amigo que vai morar longe, um casal que concebe um filho. Uma pessoa pela qual se enamora e depois se afasta. Tudo isso impacta no eixo vivencial e na debilidade a qual se encontra o meu pensamento. Eu não estou preparado para isso, só que não estar preparado não é o mesmo que impedir que isso ocorra. A dor simplesmente virá e não poderei impedi-la. Talvez isso signifique crescer. Eu posso sentir da densidade da crueza do real.

Quando ela caiu, precisamente eu pude sentir. Eu também cai. Eu senti todo meu ser quebrar-se. Todas as antigas convicções e amizades espatifaram-se como vidro caindo no chão. O mundo de cristal, imaculado pela sua infantilidade, quebrou-se pela pedra da realidade que lhe acertou. Os cacos de vidro cortaram a minha pele. Agora só me resta sangrar, tirar os cacos fragmentários de ilusões e ver todas essas feridas cicatrizarem-se com o tempo. Andarei, daqui pra frente, com o corpo maculado de cortes. Nunca poderei esconder a armagura que meu coração partido lega. 

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