quinta-feira, 21 de julho de 2022

Uma defesa peculiar do livre-exame!

Penso no livre-exame da seguinte forma. Há três formas de se propor uma leitura de forma geral e essas três formas são: 

1- Leitura dogmática ou coletivo-normativa; 

2- Leitura livre-exame; 

3- Leitura livre-interpretação. 


A leitura dogmática não é por mim aplicada tão somente ao domínio das religiões, mas igualmente a qualquer método que leve a compreensão dogmática ou delimitada do pensamento. Creio que, cabe aqui, um adendo: há uma espécie de objetivismo-coletivista na leitura dogmática. Um objetivismo-coletivista está sempre assentado numa tradição de pensamento de determinado grupo, seja esse grupo religioso, ideológico ou filosófico. Assim sendo, toda leitura presumidamente dogmática segue alicerçada por uma mentalidade objetivista-coletivista. Aquele que está inserido formal (conscientemente) ou informalmente (inconscientemente) numa tradição sempre acaba por ter o resultado da leitura pré-modelado pela doutrina em que fixou e delimitou seu pensamento. Existe então uma “inteligibilidade plausível” de interpretação geral sobre todas as coisas sempre correlacionada e subordinada pelo mecanismo de interpretação dado por um grupo determinado. A leitura dogmática é viciada pois seu leitor é viciado numa escola de pensamento, doutrina e ideologia.


Podemos dizer que mesmo no campo ideológico político há uma leitura delimitada que produz resultados delimitados, tal leitura é, para mim, dogmática, pois sempre gira em torno de resultados já predefinidos pela chave de interpretação do texto. O dogmatismo pode estar ligado a algo que não é “uma verdade religiosa”, mas sim a uma “verdade coletiva” de determinado agrupamento social. Tal “verdade coletiva” filtra o pensar através de suas crenças e propõe sempre um resultado enviesado por um vício de pensar.


Leitura livre-interpretação é uma leitura descomprometida com o debate, é uma leitura inteiramente livre de qualquer debate sobre a natureza interpretativa do texto. E nquanto o leitor dogmático quer chegar a uma interpretação predefinida por uma linha de pensamento, o leitor livre-interpretacionista quer chegar a uma conclusão sem qualquer intermediação de ninguém e indo para um caráter individual-subjetivo de interpretação. Podemos ver que daí surge um subjetivismo tacanho que coloca o sujeito leitor como autoridade absoluta. Em vez de subordinar-se a um grupo predeterminado, subordina-se sempre ao próprio leitor e faz surgir uma leitura desinteressada pelo próprio debate acadêmico e impossibilitada de ir além do próprio leitor. 


Leitura livre-exame é uma leitura cuja o fim real é um debate intermediado. Ele não se prende ao subjetivismo-individualista e nem ao objetivismo-coletivista. Em vez disso, ele quer um debate franco que se atenha num número de interpretações razoavelmente possíveis. Diferentemente da leitura dogmatizada, não há um grupo de pensamento que subordina a leitura num resultado ideologicamente presumível. Diferentemente da leitura subjetivista, há uma atenção aos grupos de pensamento e as suas possíveis interpretações. É uma leitura intermediada por não se filiar a nenhuma tradição de pensamento e de interpretação. É uma leitura intermediada por não querer ser uma leitura egoísta, subjetivada por estar subordinada ao sujeito leitor como intérprete absoluto.

Farisaísmo e Sofismo

Farisaísmo e sofismo referem-se a uma mesma atitude vivencial. Referem-se a alguém que confunde o ideal com o próprio ser. Essa é a diferença principal entre o filósofo e o sofista. O filósofo nunca vem a se tornar a sabedoria, mas o sofista acredita que é a própria imanentização da sabedoria. Tanto que sofista quer dizer sábio e filósofo quer dizer amigo da sabedoria. O fariseu já pensa que é a própria imanentização da justiça e quem se crê justo já perdeu a justiça faz tempo. É por isso que quando alguém assume que a esquerda é boa e se diz de esquerda, assume-se como bom. Quando ocorre o contrário, também é verdadeiro. É dessa confusão que surge a própria impossibilidade dos dois amadurecerem plenamente: eles não obedecem à lei da douta ignorância e da santa pecadora. O santo só é santo por ver o pecado em si mesmo e o douto ignorante vê a ignorância em si mesmo. Assim cada qual é capaz de evoluir tendo como base um esforço negativo. É negando-se que o homem pode se tornar melhor.


O ideal é, por excelência, aquilo que não se cumpre, mas sim aquilo que se busca. A ideia de que cumprimos o ideal faz com que o ideal se afaste de nós e que a vida morra dentro de nós. Nesse sentido, o cristão que se acha tal como Cristo, já morreu em matéria de fé. Aquele que ama puramente a Deus, sabe que todo passo é um afastamento. O amor de Deus se encontra nessa tensão de ausência. De igual modo, o filósofo que acredita ser a imanentização da sabedoria já não é mais filósofo, é sofista. O ideal é uma busca pois é espiritual: ele é uma perfeição que gera perfectbilização. A perfeição não é cumprível, mas se expressa na perfectibilização. O melhor ideal é, por excelência, aquele que não pode ser cumprido; e isso ocorre do fato dele ser perfeito. Um ideal perfeito é tão pesado e cruciante quanto é a própria realidade. O peso do ideal igualado ao peso da realidade é a pura harmonia. É por isso que alguém que não me lembro o nome disse uma vez: “somente religiões vulgares prometem o paraíso na Terra”.


Compreender que o homem é perfectível e não perfeito é uma forma de proporcionar-lhe uma capacidade de perfectibilizar-se. Propor que o homem pode, em vida, alcançar a perfeição é mais do que uma heresia: é um assassinato espiritual. O homem só vive em virtude da imanentização processual e incompleta: ele busca trazer nele um alto ideal que nunca irá se realizar, mas quando ele imanentiza esse ideal e compreende que ele nunca irá imanentizá-lo em toda a sua vida, ele compreende que está vivendo. A imanentização falha quando há uma confusão na compreensão de perfeição, a imanentização falha quando o sujeito acredita que de fato imanentizou a perfeição em sua plenitude. Quando o homem acha que a obra findou, ele finda a sua própria vida. Isso decorre do fato de que a perfeição do homem é buscar perfectibilizar-se. O homem espiritualmente realiza-se na perfectibilização e acaba por não se realizar na crença de perfeição. Aquele que crê que o homem é perfeito e pode ter uma obra perfeita só pode ser um demiurgador. O fenômeno que se encontrou na crença da ciência é um fenômeno de uma mentalidade demiurgica.


Creio que podemos ter em vista dois ideais de imanentizações: a imanentização perfeita e a imanentização perfectível. A imanentização perfeita é uma imanentização que se crê como a realização do ideal de forma plena, ela é uma imanentização que não aceita ser questionada e que acredita que todos estão errados frente a ela, pois ela é perfeita. A imanentização perfectível é aquilo que chamamos de transparência, ou seja, uma tentativa de unir o transcendental com o imanente; nessa configuração de pensamento encontra-se uma chave para a realização da consubstanciação entre o real e o ideal: a vida é uma luta para unir os dois mundos, transcendental e imanente, sem se confundir o mundo numa visão fechada de imanência ou de transcendência. Os dois polos tentam se unem num homem que quer conciliar os dois mundos. Se bem que imanentização perfectível me soa completamente idiota, mas não estou com saco de corrigir isso. Então chamar-lhe-ei meramente de transparência ou expressão.


Há também o hedofarisaísmo. Essa configuração de farisaísmo dá-se da união entre uma satisfação primária ou rasa e superficial de algo conjuntamente a uma ideia de que essa satisfação precária é a própria realização do objeto em si sem qualquer diferenciação de escala qualitativa – ou seja, o grandioso favelado mental, que confunde o seu pensar periférico com uma grande forma de pensamento. O hedofariseu é alguém medíocre que pensa ser o auge de algo na plenitude de sua mediocridade. O hedofarisaísmo é, propriamente, a condição de uma grande parte da esquerda nacional que se acha além da mediocridade: eles nunca ultrapassaram a barreira do medíocre. O ataque a vocação aristocrática só pode gerar no Brasil uma mentalidade hedofarisaica, sobretudo naqueles que creem piamente no ideal.


Poderia também falar da esquerda que confunde a própria complexidade teórica de seu pensamento com o objeto analisado. O fato de alguém conseguir utilizar Karl Marx para interpretar a Valesca Popozuda não a torna tão complexa quanto Marx, só que para uma esquerda que já perdeu o senso comum há anos, essa simples constatação ululante não é observável.

A Solidão de uma Consciência Precária

Sou pobre, mas não tenho que trabalhar. No futuro que vivo, a automatização industrial a tudo abarcou e toda produção é feita pelo maquinário em sua precisa precisão. Não há possibilidade de inconveniência de erro humano. Até mesmo o antigo telemarketing, bastião da antiga liberdade e inimigo da nova liberdade, é feito por um robô inteligente que aprende a cada ligação – sua erudição é melhor que a minha porca educação. Vivo num futuro tão distante que nenhum olhar pode olhar, não pode olhar nem para mim e nem para o que se há. Deus? Aqui não há. Nada pode olhar, nada pode salvar, nada pode olhar e me salvar.


Minha casa é um cubículo, só que posso comer toda comida que quero – tudo é entregue, tudo é dado, tudo é público, gratuito e de qualidade – e posso ficar dias e dias a me masturbar pra o computador que transmite toda pornografia que necessito para preencher o buraco do vazio afetivo que quero fechar. Se a pornografia se mostra ou se demonstra insuficiente, posso apelar para um robô sexual que a tudo que é sexualmente conveniente me dá. Claro que tudo é transmitido informacionalmente para uma série de registros globais.


O futuro dá o necessário e o supérfluo, o futuro dá o necessário e o essencial, o futuro dá o transcendental e a revolução – toda grande conquista que demorava e era tardia pode ser simulada com retidão de perfeição. Quando entro na internet, tenho que apenas dar a minha digital e toda informação que vejo, é logo alicerçada a minha pessoa. Se faço mal, recebo algum guia educativo que sou obrigado a engolir e estudar. Se persisto, vou para um centro educacional no qual aprendo todas as verdades necessários nesse novo tempo vital e sem vida. O mundo é tão bom que corrigiu a própria natureza humana, impediu todo tipo de opressão e negatividade. Ninguém mais sofre pelo ideal e nem mais busca o paraíso – já que esse é mais real do que a realidade. É o perfeito comunismo, mas é também o paraíso liberal e a anarquia simulada. No passado, tinham-se pais e países, hoje a educação é feita e controlada por instituições que nos criam. Não fui concebido e nem amado, fui criado em um laboratório geral e ensinado numa língua universal.


Quando aboliram as diferenças das línguas por um tradutor universal, logo em seguida sugeriram uma linguagem universal. Depois da linguagem universal, veio-se a verdade universal. Só que, nesse ponto, tudo podia ser interpretado por todos e todos viraram fiscais de todos. Se todo pensamento era publicável, todo pensamento era fiscalizável e tudo acabaria num gigantesco processo crítico de grupos de pressão que revisavam inquisitorialmente a humanidade para que ela se tornasse mais perfeita e plena. Com o tempo, toda informação foi sendo filtrada por efetivos meios de localização que localizam todo aquele que falava, condicionando tudo o que podia e o que não podia. Tudo tornou-se tão universal que foi necessário câmeras em todos os lugares, que todos os dados fossem públicos e acessíveis, até mesmo dentro de casa – a intimidade do lar foi parte dum reacionarismo tardio que precisou ser corrigido com o mais novo progresso humano.


A internet, como dizem as fontes antigas, destruiu a diferença da informação e possibilitou que toda informação ao mundo rondasse. O espaço-tempo tornou-se relativizado pelas fronteiras informacionais sendo sistematicamente quebradas. A realidade virtual substituiu a realidade e logo vimos que a realidade virtual poderia ser despida de toda inconveniência humana – como o racismo, a desigualdade e aquela coisa que chamavam de religião. Tão logo se percebeu que poderíamos ter um mundo inimaginável já que condicionado ao imaginável e a sua perfeição idealística. Logo, pelo maior amparo da ciência, ligou-se a realidade virtual com uma efusão de sentimentos virtuais criados por máquinas e que dão felicidade de forma rápida e eficiente. Quando esse ponto chegou, a tecnologia já tinha feito do trabalho físico como uma idiotice do passado, algo completamente desnecessário e a realidade virtual superou a realidade real em perfectude – ao menos na emulação de conquistas humanas.


Num mundo onde não há trabalho, num mundo onde a realidade virtual se tornou o melhor amparo emocional, num mundo onde toda emoção pode ser simulada pela mais perfeita máquina, num mundo onde toda conquista pode ser reproduzida e simulada dando um sentimento transcendental, qual seria o problema? Não há mais problema, tudo é perfeito. Às vezes tão perfeito que me enoja. Só que toda perfeição tem um preço! Para abolir os problemas de sexo e de gênero, criaram-se hermafroditas perfeitos e todas as roupas não possuem mais sexo ou gênero. Ninguém é mais homem, mulher ou variação. Tirou-se também a menstruação e o velho esforço patriarcal masculino. Para garantir a liberdade humana, humanos não mais podiam engravidar, já que a gravidez gerava uma série de consequências e imprevistos. Para impedir o preconceito dos pais, agora todos os novos humanos são gerados em laboratórios e criados por sólidas instituições universalmente aceitas. Para impedir todas as divergências religiosas, criou- se uma única religião – que é vaga, abstrata e a tudo convém. Destruiu-se toda linguagem para que todos se entendessem, só que isso gerou o fim da identidade de pessoas e tribos. Não existem mais dialetos. Todas as cores humanas foram sincretizadas num ser único que não poderia mais se revoltar em sua raça – já que não havia qualquer diferença plausível, seja estética, seja intelectual, seja identitária. Toda expressão nacional foi abolida, já que as barreiras nacionais eram absurdas para um mundo tão englobalizado pela globalização. “Imagine” não é mais ideação, é fato.


Se você pensa sobre a situação de jornais nesse estado atual da humanidade, saiba que agora temos checagens internacionais e tudo passa por um padrão global que não permita qualquer divergência com esse mesmo padrão global. As instituições emissoras de informação formam um grande monopólio universal de padrão universal e não há diferença no que notificam, já que estão em perfeita harmonia universal e universalizante. Se toda revolução informativa no passado gerou uma descentralização informacional, tal descentralidade foi resolvida com centralização universalizante e isso foi possível graças a natureza da era digital que podia entrar em contato com todos. 


Toda vez que uso banheiro, vejo a câmera a me olhar. Toda vez que entro no computador, sei que meus dados são compartilhados em tempo real e são fiscalizados pelos mais fantásticos agentes que só querem o meu bem. Toda vez que transo virtualmente, meus dados são compartilhados e serão reunidos em novas soluções científicas que darão mais e mais felicidade simulada. Toda revolta pode ser superada por um remédio e até a tristeza poética se consegue com um simples remédio ou uma realidade virtual que nos transborda de grandes amores. 


A linguagem antiga foi sendo resolvida com uma revisão universalista. Até livros nocivos como a Bíblia, a Torá e o Alcorão foram sendo revisados e reescritos conformes o padrão universalista. Naquele tempo, a linguagem se tornou neutra e o a pretensão universal de cada religião foi sendo localizada numa grande religião global. Alguns se assustaram quando uma série de intelectuais ilustres e progressistas lançaram um novo livro religioso. Alguns disseram que a religião deveria ser abolida. Outros disseram que a religião tinha acabado numa mensagem revelada em dada época. Tolos, simplesmente tolos: se o abraamismo foi criado em épocas específicas e com mensagens específicas, uma nova religião global tinha que chegar algum dia e essa religião seria mais do que definitiva, superando todas as carências religiosas anteriores. O novo livro religioso reunia a nova humanidade religiosa.


A única coisa que me preocupa é o fato de que surgiu mais uma nova tecnologia. Não que eu queira ser reacionário para com tanta igualdade e felicidade. Não que eu queira atacar a liberdade da realidade simulada. Longe de mim ser contra tal progresso. É que agora eles podem também alterar os estados de minha consciência, incluindo mentalidades e ideias, substituindo mentalidades “defeituosas” por novas mentalidades progressas. Querem até mesmo abolir a separação entre as diferentes consciências. Eles anunciaram: a mente humana é o último entrave ao progresso, a individualidade é um erro e a consciência individual deve ser abolida. Se a mente era, até agora, o único ponto de divergência num mundo igualitário e perfeito – agora até mesmo a consciência pode ser cientificamente condicionada para mais felicidade humana. Enquanto eles colocam o maquinário na minha cabeça e meus pensamentos são registrados nesse relatório que vocês leem, eu tenho muito medo e… Na verdade, essa foi a melhor coisa que me ocorreu, para que serviria essa bobagem de consciência individual? Agora a humanidade é toda um único ser acoplado entre si, nem a solidão mais existe e tudo é um. Fui liberto de mim. Fui salvo de mim mesmo. Não há mais sofrimento e solidão. Obrigado, agradeço- lhes por terem abolido a solidão de minha consciência precária.

Branco

Eu amo a minha vida. Sério, eu realmente amo a minha vida. Sempre acordo de manhã, tomo meu cafézinho e dou uma corridinha para ter aquela vidinha mais saudável. Vejo meus vizinhos brancos, que me tratam com alguma diferença que não sei de onde vem. Só que como a manhã é cinzenta e bela, já que lembra a cor branca, então está tudo bem. E ser branco é tudo o que importa.


Depois que dou uma corridinha, tomo meu banho em meu banheiro branquinho. Uso a minha escovinha branca, pego a minha pasta de dente branca. Logo depois, dirijo-me ao meu trabalho com meu carro branco. Saio de minha residência branca, da companhia de meus vizinhos brancos e vou para o bairro branco, rico, sofisticado e de pessoas brancas em que trabalho. É tão bom viver de dia, já que a noite é escura e isso eu não aprecio.


As pessoas de meu trabalho são ilustres, inteligentes e brancas. Todas vieram de boas famílias brancas e vivem uma vida branca, bela e moral. Classe média baixa para cima. As pessoas de meu trabalho? Elas são ilustres e progressas, tal como eu sou ilustre e progresso. Não há incivilidade e muito menos fuga desse padrão de beleza tão bom quanto necessário. Não temos “mal dialeto”, não temos “dialeto marginal”. Falamos um português tão hegemônico quanto certo, tão hegemônico quanto deve ser a norma clara. Embora eu veja, em meus colegas brancos e ilustres, um certo afastamento de minha pessoa – tal como se a eles eu não pertencesse.


De noite chego em casa. Chego em casa meio cansado, mas feliz que sou um trabalhador honesto e uma pessoa de respeito. Uma pessoa entre pessoas brancas, trabalhadoras e corretas. Tomo outro banho, olho para meu espelho e vejo que a minha cor é preta. Minha cor é tão preta que me dá nojo. Como pode uma cor de pele ser tão escura? Tão escura quanto corrupta. Tão escura quanto preta e tão preta quanto desnecessariamente preta? Não me conformo com tamanha escuridão. Cuspo no espelho, tal como se cuspisse em mim mesmo. Eu não suporto o peso preto de minha imagem preta. Soco-o por não aguentar tamanha ousadia. Quebro o espelho, mas queria mesmo era quebrar a mim mesmo. Minha mão sangra, o sangue sai de minha mão negra. Meu soco é um soco simbólico para e contra a coloração duvidosa de minha própria pele. Para me lidar com o sofrimento, para me lidar com essa diferença grosseira, pego uma faca e enfio-a em minha garganta para que toda essa coisa cesse.


Ah, espero que o céu, seus habitantes, Deus, o Menino Jesus sejam todos brancos tal como meu desejo é branco, tal como a minha felicidade é branca. Só que não tenho certeza se vou mesmo para lá, já que creio que o lugar apropriado para mim é um local tão escuro quanto a minha pele defeituosamente escura.

Procurando a Casa dentro de Casa

Eu estive procurando uma casa. Não uma casa qualquer, mas a minha casa. Andei pelas escadas de minha casa, para achar a minha casa e não achei a minha casa. Procurei afagos de meus animais em minha casa, achando que dar-me-iam o sentimento do retorno a minha casa. Procurei no rosto de meu pai a minha casa, mas nele não encontrei. Procurei deitar na cama de meu quarto assim poderia lembrar do velho aconchego de minha casa, infelizmente não senti nada parecido como estar em casa.


Equidistância brutal, intimidade sem objeto, memória sem doçura. Procurei no beijo duma doce mulher o retorno a minha casa. Só que em teus lábios minha casa não estava. Procurei, então, correr pelo quintal de minha casa até chegar a minha casa. Só que ao correr pelo quintal de minha casa, senti-me cansado sem nunca chegar a minha casa. Duvidei de mim mesmo, duvidei de minha pessoa, duvidei de meu ser. Se o ser é, por que tudo na vida leva a crer que não pode sê-lo? Viajei por aí, tentando toda hipótese. Procurei me encontrar no beijo não de uma mulher, mas de um homem. Seus lábios não eram macios, eram ásperos. Senti algo diferente, senti um bater de coração, mas não senti a minha casa. Seu beijo era para mim, meu beijo era para ele, mas meu beijo encontrava-o sem que o beijo dele me encontrasse. Equidistância que gera distância em proximidade.


Não me leve a mal, só busquei a minha casa. Pouco importando se era hétero ou homossexual. Só queria buscar a minha casa. Afaguei-me em travestis e prostitutas, para nelas tentar encontrar a minha casa. Frequentei puteiros procurando a minha casa, mas em cada puteiro não me encontrei em minha casa. Amei uma garota, amei fortemente uma garota, acho que ainda a amo. Ela hoje é mulher, eu hoje sou homem. Só que a minha casa estava nela, mas a casa dela não estava em mim. Como resultado, namora outro homem.


Eu peguei livros. Livros que poderiam formar um edifício em meu quarto. Procurei em cada livro do meu quarto a minha casa. Nem em meu quarto acho mais a minha casa. Nem em teu beijo acho a minha morada. Procurei trazer bebidas, trouxe vodka, cerveja e vinho. A bebida que trazia para minha casa não me lavava para minha casa. Procurei na bebida o esquecimento de minha casa para não sentir saudade de minha casa. Embriaguei-me na constância para me esquecer de minha casa. A minha casa fazia-me um tamanho mal, não por ser minha casa, mas pelo fato de eu não poder voltar a minha casa. Eu queria somente a minha casa, mas minha casa não encontrava. A minha dor era buscar a minha casa, a minha felicidade seria achar a minha casa, só que não a encontrando, só podia sentir dor por não achar a minha casa.


Usei de tudo. Maconha, pó e lança-perfume. Camisa de time, terno e lingerie. Procurei o rúgbi, o Mario Kart e a espada samurai. Nada de casa, nem em jogo, nem em esporte e nem na luta mortal. Onde estava a minha casa? A maconha que fumava era para não me sentir distante de minha casa. O pó que cheirava era para estar perto de minha casa. O lança-perfume era para chegar em casa. A torcida com que gritei ao lado, a torcida com que xinguei o juiz, não me levou para casa. O terno que utilizei com esmero para o subemprego não me levou para casa. A lingerie, num ato de loucura e disforma de identidade, que utilizei pensando que chegaria em casa não me levou para casa, mas para caminhos tortos de gozo barato.


Procurei ler em cada livro minha casa no exílio de meu quarto. Procurei em cada falso amor um retorno ao verdadeiro amor de minha casa. Aceitei a prostituta como a única mulher que poderia ter em minha falsa casa. Aceitei o sexo banal da madrugada. Fiz casamentos forjados para ver se chegaria em casa. Só que nada me levou para minha casa. Logo nada disso me valeu. 


Perdoe-me, Deus. Eu nunca quis fugir de casa. Na verdade, eu não sabia que minha casa era minha casa. E por não saber que minha casa era minha casa, por outras casas andei em perene exílio. Andava então de casa em casa, cada casa era um aperto e uma prostituição. Nesse tempo estive na solidão da solidão. Perdoe-me, Deus.

A Caveira e a Borboleta



Havia uma caveira que estava numa antiga caverna. Essa caveira não via a luz do dia e nem menos se alegrava com o passar do tempo – talvez essa caveira nem mais sentisse o passar do tempo ou, melhor, não quisesse sentir que o tempo passava, já que o tempo carrega sempre sofrimento. A caveira era tão branca quanto a mais ausente coloração. Graças a isso, tudo lhe era indiferente e a coloração era sempre incolor. O Sol era-lhe tão cinza quanto a própria vida lhe era cinza.




Perto dessa caverna, havia uma borboleta preta. Borboleta preta pelo preto ser a união de todas as cores. Por ser a união de todas as cores, todas as sensações, tal como todas as cores, se sintetizavam numa única e a sua percepção era tão densa que muitas vezes lhe fazia sofrer ou tão grande que muitas vezes percebia sem perceber, já que percebia tão imensamente que era até mesmo incapaz de perceber o que percebia – tanta coisa gera um Big Bang dentro dessa borboleta, a qual ela deve “guardar” para simplesmente não explodir, mesmo que isso seja impossível.




Certo dia, essa borboleta estava imersa em um constante sofrimento. Essa borboleta era um paradoxo: por sentir demais, não mais sentia; por sentir tudo, a tudo se unia indiferentemente; por perceber longamente, o longo era tão longo que parecia nem existir. Como, então, poderia criatura tão singular existir? Alguém dirá que a borboleta era Buda, digo-lhes que ela era “mais do que Buda”. Essa borboleta então voou sem perceber, mas percebendo: sua vida é uma sucessão de emoções que passam com tantos estímulos que a própria percepção de estímulo se perde. Consciente e inconsciente não são distinguíveis em tal borboleta e o místico é-lhe condição eterna.




A caveira estava em sua caverna. Essa caveira era tal como o Mito da Caverna ou tal como Matrix: um ser que se libertou do sistema. Só que, mesmo liberta do sistema, nada poderia fazer: a sociedade, como um todo, manifestava-se contrária a ela e, portanto, toda expressão lhe era calada de forma imediata e como toda expressão dela fosse abjeta. A caveira, então, cansando-se do mundo, fechou-se em si mesma. Já que foi morta espiritualmente dentro da caverna pelos tolos que não quiseram ouvir a verdade, na caverna ficou em obediência ao sofrimento causado pelos tolos. Não mais andava, não mais ria, queria fugir de todo sentimento. Por tal condição, foi pouco a pouco tendo seus músculos reduzidos e, depois, tornou-se mais e mais cadavérica, até tornar-se plenamente caveira.




A borboleta sentia tudo. A caveira não mais sentia. Seres opostos, seres de natureza dialética e dialógica, seres que juntos são contraditórios. Se na vida há um fato observável: é que usualmente os opostos se anulam, mas também a sorte – ou seria a providência divina? – que os opostos possam se complementar. Só que isso só ocorre por milagre, já que em nossa sociedade – seja hoje, ontem ou amanhã – é feita numa luta de contrários que pela eternidade se eterniza.




A borboleta voava no escuro da caverna. Essa caverna era tão escura quanto a união de todas as cores da borboleta. A borboleta voou por horas e horas nessa caverna, então decidiu repousar. Pousou, então, na caveira. E a caveira não falou nada, mesmo que quisesse falar, já que havia desistido de sentir por ter sentido em demasia. Estranhamente, a caveira e a borboleta ficaram juntas, por vários e vários dias. Era uma companhia real, em perpétuo silêncio sentimental. Um diálogo mais íntimo se construía na intimidade do silêncio, já que existem diálogos que só o silêncio pode construir na intimidade de cada coração.




Em um dia, a borboleta começou uma metamorfose e essa metamorfose atingia a caveira calada em sua solitude. Parecia que se havia um casulo que ia cobrindo cada parte da caveira e, em cada parte, uma nova pele ia surgindo. Era o milagre da ressurreição, tão forte quanto o milagre sofrido por Cristo na cruz. Os músculos logo iam se criando, conectando-se aos ossos da caveira. Com o tempo, de forma mística e misteriosa, a caveira e a borboleta se tornaram um só. Agora, aquele que via a borboleta, também via a caveira. Agora, aquele que via a caveira, também via a borboleta. Um revelava o outro dentro de si, no entanto, um também escondia o outro dentro de si. Só resta perguntar: “como isso é possível?”. Com isso só há uma resposta: há coisas que nunca conseguiremos expressar, por maior que seja a nossa inteligência.




Finalmente algo místico ocorreu, aquele novo ser, meio caveira meio borboleta, meio yin e meio yang, saiu da caverna sorrindo num riso que poderia abarcar mais do que infinitos universos inteiros. Aquele ser se pôs a dançar por aí, de forma infinita, seja na amargura da chuva ou no clarão estonteante do Sol. Não importava mais se fazia Lua ou se fazia Sol ou qual era a estação do ano, em todo lugar se via aquele ser misterioso dançando para lá e para cá, contrariando todos aqueles que achavam aquele ser-milagre impossível.




Como não poderia deixar de ser, esse ser dançante levou a uma série de juízos imperfeitos que não abarcavam a sua concretude poética. Uns diziam que esse ser era diabólico e que gozava da cara de todos ao ficar dançando por aí. Outros, também ingênuos, disseram que esse ser dançante e místico dançava já que não sentia o sofrer e quando o peso do real se fizesse mais presente, esse ser deixaria de dançar e até mesmo deixaria de ser – ledo engano, mas o ressentimento humano é sempre compreensível. Alguns, de natureza científica, acharam que o melhor seria separar a borboleta da caveira e trazer os dois a sua devida natureza, já que a união de seres tão diferentes era de natureza inatural – engano eterno: o amor é sempre eterno e quando une, não se pode mais desunir, já que o ser que ama não mais é a parte, mas o todo que é novo e o todo que é o ser.




Engana-se aquele que crê que o ser dançarino dança sem sofrer e engana-se aquele que pensa que o ser dançarino só sofre e por isso dança. Não, não, não é nada disso. É tudo isso, mas, ao mesmo tempo, é mais do que tudo isso e está acima de tudo isso. Não era um ser qualquer, não era qualquer coisa, não era nem um ser e muito menos eram dois seres e nem deixava de ser um ser – se já é difícil expressar o possível, é mais impossível expressar o impossível. Poder-se-ia falar-se em trindade? Não, não era uma santíssima trindade, mas uma santíssima dualidade que acoplava duas personalidades sem contradizer: não havia critério hierárquico e nem alternância contraditória em dualidade de ser. Eram dois seres, mas não eram dois seres. Era cada um, mas cada um desse um era apenas um.




Só que neles havia uma música em sintonia, uma música que só os mais puros ouviriam – já que os mais puros seriam capazes de sentir. Essa música sintônica, essa música sintética, essa música que gerava ressonância de alma a ponto de fazer que duas almas fossem uma e/ou única, essa música que lhes fazia dançar para sempre “os tornavam loucos” ou “o tornava louco”: já que aqueles que não ouvem a música, sempre chamam de louco aquele que dança – engano de compreensão? Não, a compreensão é fraca, mas o que falta é o engano de convivência empática, o que falta é sentir e não compreender, já que o sentir supera a compreensão tal como o amor transcende a razão. Tal como já dizia: a palavra é menos que o pensamento e o pensamento é menos que a experiência.

sábado, 16 de julho de 2022

Acabo de ler "Monster (Vol. 1)" de Naoki Urasawa



Há mais de dez anos atrás, pensei em assistir Monster devido a recomendação de um colega virtual. Eu era jovem e imaturo, logo não consegui absorver a densidade da obra e tão logo desisti de assisti-la. Anos depois, deparo-me com seu mangá dando sopa no Centro Cultural Vergueiro e, finalmente, adentro na experiência que até agora tinha me neguei a ter.

O drama das relações humanas em Monster é complexo. Tudo aqui é explorado de forma meticulosa e bem adulta. Lemos o mangá com uma grande preocupação do que virá - somos sempre bem recompensados pela carga dramática do enredo. A leitura é sempre tensa e cheia de suspense. Se você espera uma leitura mais adulta, esse é certamente o mangá que você deve ler.

Nunca pensei que seria encantando por esse mangá. Optei por ler o mangá em vez de ver o anime por gostar mais de ler do que assistir. Fora que já estou ficando cansado de ver animes. De qualquer forma, não me arrependi. Gostei bastante da estética do mangá e a forma com que ele aborda a tensionalidade da vida em si. Sinto até um certo arrependimento por não ter compreendido a grandiosidade dessa obra quando era mais novo.

A impressão final que tenho é: quão mesquinha é a estruturação da vida em si e quão vaidosa é a nossa alma que se perde em vaidades. Lendo o mangá, tornei-me mais pessimista e mais do que isso: reconheci a realidade corrupta ao qual me encontro e que o autor descreve bem. Ler "Monster" é reconhecer a nossa própria miséria e a miséria do mundo em si.