sábado, 11 de novembro de 2023

Acabo de ler "Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária" de Nelson Rodrigues

 



Sabe aquelas obras em que você demora pra sentir o gosto real e fica de perguntando quando é que as terminará ou deixará de ler, mas repentinamente a sua relação com elas melhora vertiginosamente e, de repente, você se sente tão atado à leitura quanto está preso no chão pela força gravitacional?


De progressão lenta, essa não é uma obra para quem está começando ao estudo de Nelson Rodrigues. Recomendo que se leia Nelson com calma, numa escala progressiva e enquadrando-o numa série de leituras complementares que deem um delineamento de compreensão mais cabal de sua complexa obra. Nelson Rodrigues se estuda com calma, com paciência, tal como se amadurece na vida mesma.


Nesta obra, tal como todas as obras rodrigueanas, há um questionamento acerca da moral. É muito fácil enquadrar o problema da moralidade humana em fórmulas abstratas, porém a realidade psíquica é o substrato que sempre nos falta e nos devora em nossas parcas análises. Na vida real, as questões sempre se complexificam numa teia relacional que escapa a qualquer desafio de inteligibilidade. 


A tensão esmagadora do real é poderosa demais para simplismos. E é tentando demonstrar o esmagamento do ideal que Nelson Rodrigues tece sua brilhante obra, detalhando minuciosamente o drama da alma humana e a razão de muitos males. Uma obra que busca a perfeição demonstrando as falhas humanas é, em si mesma, uma contradição tão doce e curiosa quanto a própria existência de nossa consciência.


Esta é uma obra que termina com tragédia e ternura. Em Nelson Rodrigues, até a doçura tem tragédia e os atos mais amorosos surgem dos suspiros de agônicas angústias. Certamente valeu-me a pena a leitura.

domingo, 5 de novembro de 2023

Acabo de ler "Toda Nudez Será Castigada" de Nelson Rodrigues

 



"O ser humano é louco! E ninguém vê isso, porque só os profetas enxergam o óbvio!"

Patrício (personagem de Nelson Rodrigues)


Enquanto que uma pessoa normal é vista como aquele que é a réplica da média social da sociedade em que se inscreve, a pessoa neurótica é uma em que o próprio desejo, e não a adequação social, é o impulso ordenador e dirigente da vida em si mesma. Logo o neurótico dá voltas em torno de si mesmo, de forma mais ou menos obsessiva.


A obra de Nelson Rodrigues é uma galeria de neuróticos. Neuróticos compulsivos. Pessoas portadoras dos desejos mais viscerais e mais sombrios. Capazes dos atos mais ensandecidos, das ações mais sanguinárias, dos amores mais mortais. A atrelação ao próprio desejo cumpre uma função trágica: essa guia a uma série de desentendimentos que, pouco a pouco, carregam as personagens da trama numa série de complexidades e complexos que posteriormente lhes esmagarão. Em Nelson Rodrigues, o desejo é triste pois (seu desfecho) é trágico.


Pode-se questionar a cultura em que Nelson Rodrigues estava imerso: a repressão social nas ações de indivíduos levava a quadros de extremização de conflitos. O corpo social atuava tiranamente - mais do que nos tempos modernos -, e a singularidade do ser era enfraquecida diante da própria impotência perante uma sociedade marcada por impulsos normatizadores. O desejo daqueles que são anormais são vistos como passíveis de ódio e logo passam pelo tribunal inquisitorial da sociedade.


O ser deseja e, na medida em que deseja, se vê diante da impossibilidade de desejar sem ser punido. Se o desejo vem de sua essência e ser a si mesmo é o mesmo que ser punido, a vida em si mesma é intolerável e deste conflito surge uma grande pulsão destrutiva. E é disto que a obra de Nelson Rodrigues retrata dramaticamente bem: a pessoa em sua mais triste singularidade a ser punida pelos desejos que não desejou ter. O pior tipo de punição é a punição sem escolha, essa mata o ser pouco a pouco.


A obra de Nelson Rodrigues nos faz repensar a nós mesmos e a nossa sociedade em conjunto. E também se somos o que somos ou a negação do que somos.

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Análise de "O Enigma da Religião" de Rubem Alves - Parte 1

 



A ideia de que possamos ter uma vida intelectual neutra é uma ideia que não possui cabimento. O ser humano sempre encara a realidade sentimentalmente, visto que viver implica em sobrevivência e sobreviver carrega emoção. Não há como permanecer neutro para com a vida, logo não há como ser intelectualmente neutro.


A religiosidade é busca pela transformação simbólica do mundo. A religiosidade é o alicerce que tenta sintetizar desejo e ambiente. Tanto que a manifestação máxima da religião é o paraíso: neste momento, desejo e realidade são o mesmo. Toda busca por transformar o mundo caótico numa "ordo amoris" é uma busca religiosa. O homem está, neste sentido, condenado à religião - mesmo que não saiba disso de maneira consciente.


No entanto, o mundo atualmente está situado numa situação cruel. Quando vamos crescendo, influências do mundo externo adentram em nosso psiquismo e formam nossa visão. Essa visão é um "acordo silencioso": enxergamos a realidade por meio desses olhos e não questionamos os nossos olhos. A vida intelectual autêntica é um questionamento constante de nossos próprios olhos. Não se trata tão somente de questionar o que se vê, visto que isto é só um julgamento ou simplesmente arrogância, trata-se de questionar os próprios olhos e, com isto, abrir a percepção para que a capacidade de ver aumente.


Um ser que queira se libertar precisa constantemente se abrir através da autocrítica, este movimento aumentará a sua capacidade de perceber e, por fim, será melhor na arte de julgar. Porém a abertura deve preceder à crítica. O aumento do horizonte de consciência é mais importante que o julgamento, visto que o aumento da inteligência possibilita uma maior capacidade de julgamento.


O homem, ao ser um ser contingencial, não tem o direito de ser sério. Já que o homem é limitado e só pode fugir de suas limitações ao rir de si mesmo, questionando e relativizando suas crenças passadas em uma síntese com a cultura presente de forma a se locupletar e tornar-se mais sábio. A sabedoria é um paradoxo: questionar fortemente a si mesmo e acreditar que possa superar infinitamente a si mesmo.

Acabo de ler "O Beijo no Asfalto" de Nelson Rodrigues

 



"Eu não beijaria na boca um homem que não estivesse morrendo"

Arandir


Toda obra de Nelson Rodrigues traz uma complexidade astronômica, mas essa é de longe uma das mais complexas. Iniciando-se com um estranho caso: um homem é atropelado, fica entre a vida e a morte, outro homem aparece e, antes que o primeiro homem morra, beija-o na boca. Uma obra que fala sobre um beijo homoafetivo em pleno 1961 não poderia deixar de ser polêmica.


Antes de tudo, o drama não se trata de homossexualidade e sim de bissexualidade. O personagem central é chamado de "gilete" (homem que corta pros dois lados) em um momento da trama. Mas isto não tira o fato de que a relação da sociedade com pessoas identitariamente distintas do padrão é bem esmiuçada na obra, servindo também para localizar e entender padrões culturais da época no trato de homens bissexuais e homossexuais - embora a trama se centre na bissexualidade masculina.


Falar em bissexualidade masculina é mais incômodo do que falar em bissexualidade feminina, visto que a última é mais bem aceita socialmente. E é nisso que Nelson Rodrigues se destaca neste empreendimento: esmiuçar a tragédia do martírio social do homem bissexual. Abordando toda uma exposição desnecessária, inquisição tribal e tentativas radicais de marginalização e exclusão.


O padrão social é definido pela sua repetição. Normalidade é, em sentido sociocultural, repetir a estrutura cultural na qual se está inserido. Pessoas que fogem do padrão são consideradas como anormais. O organismo social, que é uma soma de indivíduos que não conseguem fazer autocrítica dos padrões que foram condicionados a seguir, marginaliza todos aqueles que fogem as regras estruturalmente impostas.


Temos aqui uma luta: a de um homem bissexual sendo perseguido socialmente, tendo o seu direito a individualidade negado e a de uma sociedade "bifóbica" que age em forma de seita inquisitorial tentando persegui-lo por fugir dum padrão. O leitor provavelmente se deleitará ainda mais com a leitura se tiver algum grau de conhecimento nos âmbitos da psicologia e da sociologia.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Acabo de ler "La rebelión de las masas" de José Ortega y Gasset (lido em espanhol)

 



Quem já não se deparou com um clássico de valor incomensurável que tardou anos para ler? Esta é a minha relação com este livro. Porém tive o prazer de lê-lo diretamente em seu idioma nativo, o que tornou tudo infinitamente mais agradável e recompensador.


O que seria o homem massa em Ortega y Gasset? O homem massa seria um ser que espera ser sempre recompensado com mais e mais direitos, sem nunca se esforçar para conseguir nada. Ele é incapaz de manter o legado civilizacional e usufrui dos bens civilizados acreditando que eles simplesmente brotam do chão. Tal incapacidade crítica põe a civilização em crise e em perigo constante: tomada como natural, sua manutenção não é vista como necessária e a capacidade de mantê-la é ignorada.


O homem massa surge num momento em que a natureza já não antagoniza e nem divide espaço com o homem. Nascendo numa estrutura inteiramente moldada pela ação e construção humana, natureza e humanidade se confundem e geram a sensação de que o natural e o humano são o mesmo. Tal sensação leva ao esquecimento dos perigos que estamos sujeitos e tal esquecimento ao relaxamento constante dos padrões.


O nobre, em contrapartida, é aquele que busca estar sempre se superando. Não de modo definido, mas indefinido. A sua luta é uma luta constante pelo autodesenvolvimento. O nobre, por não se ver como superior aos demais e acreditando-se sempre fraco, busca uma caminhada de progressão contínua para se tornar a cada dia melhor, sem nunca parar de se esforçar para tal. Isto cria nele uma superioridade, só que essa superioridade só existe por ele se ver psicologicamente como inferior e buscar ascender sem nunca deixar de assim [como inferior] se ver.


O nobre tem uma crença negativa a respeito de si mesmo, afirmando que é mau/fraco e que precisa melhorar. O homem massa tem uma graça positiva sobre si mesmo, afirmando que é bom/forte e que é autossuficiente. A humildade faz o nobre ascender, a arrogância faz o homem massa decair.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Acabo de ler "A Serpente" de Nelson Rodrigues

 



As peças que começo a analisar a partir de agora são do segundo volume das Tragédias Cariocas. Isto é, aquelas que Nelson Rodrigues fez no final de sua vida. Como esta é a segunda parte, ela traz as últimas obras escritas pelo genial mestre.


A escrita de Nelson Rodrigues é simples de se compreender, todavia carrega algo além duma objetividade e simplicidade que se façam inteligíveis ao homem médio: carregam uma beleza poética assustadora. Isto é, é uma linguagem que tem uma duplicidade sintética: é de fácil assimilação e, todavia, tem em si uma substancialidade que transcende em muito o universo de banalidades do "homem massa".


Outro paradoxo rodrigueano é: suas obras poderiam se passar com qualquer um. Não é necessário ser uma pessoa de tipo excepcional na maioria delas. Porém é aí que se encontra, mais uma vez, uma maestria notável: Nelson traduz a psiquê humana com um grau de técnica que deixaria até Freud espantado.


Nesta peça temos unicamente um capítulo. O princípio imperante é o caos e este conduz todos os personagens até levá-los ao abismo. O esgotamento contínuo da sanidade até o desmoronamento cruel. Essa particularidade, a da destruição sistemática, faz dessa obra um caso singular na obra de Nelson. Visto que, em obras anteriores, a tragédia era mais focada em alguns personagens da trama e não em todos.


Caso o leitor venha a se interessar pela obra teatral de Nelson Rodrigues, recomendo que comece a leitura pelas peças psicológicas, depois indo para as peças míticas e só depois para as tragédias cariocas.

sábado, 28 de outubro de 2023

Acabo de ler "Napoleão" de Leslie McGuire

 



O ser humano se realiza na medida em que seus desejos se externalizam na conjuntura do real. Quanto mais externaliza seus desejos, mais o universo é carregado de simbolicidade. A simbolicidade no espaço nada mais é do que a alma do homem tomando forma física no tempo-espaço.


Quando falamos de grandes homens, falamos de homens que dalguma maneira foram capazes de, além de suportar a multiplicidade anulante do mundo, contornar o mundo a seu favor e retocá-lo com a tinta de sua alma. O mundo é, nas mãos de um grande homem, a escultura que os gigantes deixaram.


Napoleão tinha dupla qualidade: o fogo solar duma gigantesca paixão e a monumental capacidade técnica. Quando estas se alinhavam, nada poderia impedi-lo. Ele era como um deus em meio a mortais.


Evidentemente aqui há mais uma reflexão da vida e dos sonhos do que uma endossamento das ações de Napoleão. Porém não consigo, na situação atual, pensar em fazer uma análise da mesma forma: analiso por meio da minha subjetividade circunstante e não por um método geral bem delineado.


Creio que este é um livro bom para quem queira refletir a própria vida, a história e, igualmente, compreender mais sobre um dos homens mais geniais - não no sentido moral e sim na capacidade estratégica - que a humanidade gerou.