quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Acabo de ler "O Beijo no Asfalto" de Nelson Rodrigues

 



"Eu não beijaria na boca um homem que não estivesse morrendo"

Arandir


Toda obra de Nelson Rodrigues traz uma complexidade astronômica, mas essa é de longe uma das mais complexas. Iniciando-se com um estranho caso: um homem é atropelado, fica entre a vida e a morte, outro homem aparece e, antes que o primeiro homem morra, beija-o na boca. Uma obra que fala sobre um beijo homoafetivo em pleno 1961 não poderia deixar de ser polêmica.


Antes de tudo, o drama não se trata de homossexualidade e sim de bissexualidade. O personagem central é chamado de "gilete" (homem que corta pros dois lados) em um momento da trama. Mas isto não tira o fato de que a relação da sociedade com pessoas identitariamente distintas do padrão é bem esmiuçada na obra, servindo também para localizar e entender padrões culturais da época no trato de homens bissexuais e homossexuais - embora a trama se centre na bissexualidade masculina.


Falar em bissexualidade masculina é mais incômodo do que falar em bissexualidade feminina, visto que a última é mais bem aceita socialmente. E é nisso que Nelson Rodrigues se destaca neste empreendimento: esmiuçar a tragédia do martírio social do homem bissexual. Abordando toda uma exposição desnecessária, inquisição tribal e tentativas radicais de marginalização e exclusão.


O padrão social é definido pela sua repetição. Normalidade é, em sentido sociocultural, repetir a estrutura cultural na qual se está inserido. Pessoas que fogem do padrão são consideradas como anormais. O organismo social, que é uma soma de indivíduos que não conseguem fazer autocrítica dos padrões que foram condicionados a seguir, marginaliza todos aqueles que fogem as regras estruturalmente impostas.


Temos aqui uma luta: a de um homem bissexual sendo perseguido socialmente, tendo o seu direito a individualidade negado e a de uma sociedade "bifóbica" que age em forma de seita inquisitorial tentando persegui-lo por fugir dum padrão. O leitor provavelmente se deleitará ainda mais com a leitura se tiver algum grau de conhecimento nos âmbitos da psicologia e da sociologia.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Acabo de ler "La rebelión de las masas" de José Ortega y Gasset (lido em espanhol)

 



Quem já não se deparou com um clássico de valor incomensurável que tardou anos para ler? Esta é a minha relação com este livro. Porém tive o prazer de lê-lo diretamente em seu idioma nativo, o que tornou tudo infinitamente mais agradável e recompensador.


O que seria o homem massa em Ortega y Gasset? O homem massa seria um ser que espera ser sempre recompensado com mais e mais direitos, sem nunca se esforçar para conseguir nada. Ele é incapaz de manter o legado civilizacional e usufrui dos bens civilizados acreditando que eles simplesmente brotam do chão. Tal incapacidade crítica põe a civilização em crise e em perigo constante: tomada como natural, sua manutenção não é vista como necessária e a capacidade de mantê-la é ignorada.


O homem massa surge num momento em que a natureza já não antagoniza e nem divide espaço com o homem. Nascendo numa estrutura inteiramente moldada pela ação e construção humana, natureza e humanidade se confundem e geram a sensação de que o natural e o humano são o mesmo. Tal sensação leva ao esquecimento dos perigos que estamos sujeitos e tal esquecimento ao relaxamento constante dos padrões.


O nobre, em contrapartida, é aquele que busca estar sempre se superando. Não de modo definido, mas indefinido. A sua luta é uma luta constante pelo autodesenvolvimento. O nobre, por não se ver como superior aos demais e acreditando-se sempre fraco, busca uma caminhada de progressão contínua para se tornar a cada dia melhor, sem nunca parar de se esforçar para tal. Isto cria nele uma superioridade, só que essa superioridade só existe por ele se ver psicologicamente como inferior e buscar ascender sem nunca deixar de assim [como inferior] se ver.


O nobre tem uma crença negativa a respeito de si mesmo, afirmando que é mau/fraco e que precisa melhorar. O homem massa tem uma graça positiva sobre si mesmo, afirmando que é bom/forte e que é autossuficiente. A humildade faz o nobre ascender, a arrogância faz o homem massa decair.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Acabo de ler "A Serpente" de Nelson Rodrigues

 



As peças que começo a analisar a partir de agora são do segundo volume das Tragédias Cariocas. Isto é, aquelas que Nelson Rodrigues fez no final de sua vida. Como esta é a segunda parte, ela traz as últimas obras escritas pelo genial mestre.


A escrita de Nelson Rodrigues é simples de se compreender, todavia carrega algo além duma objetividade e simplicidade que se façam inteligíveis ao homem médio: carregam uma beleza poética assustadora. Isto é, é uma linguagem que tem uma duplicidade sintética: é de fácil assimilação e, todavia, tem em si uma substancialidade que transcende em muito o universo de banalidades do "homem massa".


Outro paradoxo rodrigueano é: suas obras poderiam se passar com qualquer um. Não é necessário ser uma pessoa de tipo excepcional na maioria delas. Porém é aí que se encontra, mais uma vez, uma maestria notável: Nelson traduz a psiquê humana com um grau de técnica que deixaria até Freud espantado.


Nesta peça temos unicamente um capítulo. O princípio imperante é o caos e este conduz todos os personagens até levá-los ao abismo. O esgotamento contínuo da sanidade até o desmoronamento cruel. Essa particularidade, a da destruição sistemática, faz dessa obra um caso singular na obra de Nelson. Visto que, em obras anteriores, a tragédia era mais focada em alguns personagens da trama e não em todos.


Caso o leitor venha a se interessar pela obra teatral de Nelson Rodrigues, recomendo que comece a leitura pelas peças psicológicas, depois indo para as peças míticas e só depois para as tragédias cariocas.

sábado, 28 de outubro de 2023

Acabo de ler "Napoleão" de Leslie McGuire

 



O ser humano se realiza na medida em que seus desejos se externalizam na conjuntura do real. Quanto mais externaliza seus desejos, mais o universo é carregado de simbolicidade. A simbolicidade no espaço nada mais é do que a alma do homem tomando forma física no tempo-espaço.


Quando falamos de grandes homens, falamos de homens que dalguma maneira foram capazes de, além de suportar a multiplicidade anulante do mundo, contornar o mundo a seu favor e retocá-lo com a tinta de sua alma. O mundo é, nas mãos de um grande homem, a escultura que os gigantes deixaram.


Napoleão tinha dupla qualidade: o fogo solar duma gigantesca paixão e a monumental capacidade técnica. Quando estas se alinhavam, nada poderia impedi-lo. Ele era como um deus em meio a mortais.


Evidentemente aqui há mais uma reflexão da vida e dos sonhos do que uma endossamento das ações de Napoleão. Porém não consigo, na situação atual, pensar em fazer uma análise da mesma forma: analiso por meio da minha subjetividade circunstante e não por um método geral bem delineado.


Creio que este é um livro bom para quem queira refletir a própria vida, a história e, igualmente, compreender mais sobre um dos homens mais geniais - não no sentido moral e sim na capacidade estratégica - que a humanidade gerou.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Acabo de ler "Teatro Completo: Tragédias Cariocas I" de Nelson Rodrigues

 



A leitura dessa análise pode ser precedida pelas análises anteriores, visto que essa só é análise final do conteúdo que vem sido exposto por aqui já a algum tempo.


Empenho-me em analisar toda a obra teatral de Nelson Rodrigues e disponibilizar uma análise que seja sucinta, porém que tenha algo de minuciosidade e subjetividade. O que não é algo fácil, porém que me disponho a fazer com certa satisfação, visto que Nelson é um dos meus autores prediletos.


Resolvi adentrar na análise das tragédias cariocas, última fase do autor, em vez de ir por aquilo que lhe seria mais "inicial" por assim dizer. Espero que o formato não desagrade aos leitores que esperavam algo mais metódico em ordem de leitura.


Essa série de textos que venho feito é, antes de tudo, um convite para aqueles que me seguem: leiam a obra de Nelson Rodrigues. Ela pode ser uma forma de se libertar e de amadurecer, encarando o mundo de forma mais sóbria e adulta.


Ler Nelson, nestes tempos de solidão, tem sido um pouco de alívio nessa escala de terrores contínuos, de preocupações inenarráveis, na qual se alinha a presente fase de minha vida. E creio que pode lhes ser útil lê-lo também.

domingo, 22 de outubro de 2023

Acabo de ler "Boca de Ouro" de Nelson Rodrigues

 



Nos segredos da impotência, se encontram os segredos da alma. Só o homem frente a realidade avassaladora que é a morte que ele se encontra com si mesmo em sua mais pura e plena face: a vontade de ontologizar-se e dar cabo a última pergunta que lhe conduz a vida que quer viver. Isto é, se não nos perguntarmos sobre a morte, não nos perguntaremos sobre a vida e adentraremos num círculo de vaidades que diluem a autenticidade de nossa existência num jogo de multiplicidades que se alternam.


Nelson é o mestre de ensinar a vida como ela é. Em vez de personagens plenipotenciários que alteram o mundo com o seu poder onipotente, onipresente e onisciente, temos o ser humano em sua condição mais primária e natural: a impotência. E é nessa impotência que se encontra a raiz das ações de nossos personagens, que lutam para ter alguma significação num mundo que, não estruturado para lhes satisfazer, atua antagônica e estruturalmente contra eles.


Quem, em sua humanidade, não se depara com os afetos transviados que se conduzem não a realização do desejo, mas a negação triunfal de suas expectativas mais tenras? Aqui temos personagens que são movidos pelas vísceras, sentindo-se traídos pelas dinâmicas psicossociais que sempre geram conflitos. O desejo de ser desejado é um dos aspectos mais determinantes da obra.


Boca de Ouro, personagem mitologizado ao limite, traz consigo uma mensagem: a pessoa que se marca para ser afetivamente marcada, seja no sentido bom ou mau. E é nisso que suas desventuras levam: a tragicidade do ser humano em seu ofício de ser querido. Já foi dito que o âmbito da cultura é o espetáculo do homem para o homem, visto que o homem quer mais do que um objeto, ele tem por objetivo ser amado.


Se tudo isso só leva a uma série de ações que visam demonstrar potência, temos uma série de fios que enforcam o personagem central da mitologização no momento em que ele se julgava mais poderoso. Tal lição, demonstrando a penosa realidade da vida, é uma verdadeira odisseia para quem se aventura na vida como ela é: um vaivém da potência e da impotência.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Acabo de ler "Os Sete Gatinhos" de Nelson Rodrigues

 



Nelson Rodrigues é um autor difícil de digerir. É como se tivéssemos uma doença mortal e, de repente, a cura fosse anunciada com um custo: um remédio tão desgostoso que nos fizesse chorar tamanha amargura. Um remédio tão amargo quanto a nossa própria enfermidade.  Mas um remédio que cura nossa doença mortal. E essa doença mortal é nossa vida de mentiras.


Com uma brutal hostilidade, Nelson Rodrgues é o profeta do óbvio ululante. É o reacionário que reage contra tudo que não presta. É o libertário libertino. É aquele que, no auge de sua padecida humanidade, resolveu revelar aquilo que há de mais misterioso, oculto e mentiroso em nós: nossa alma em sua essência.


Adão e Eva, na tragédia cristã, ao comerem o fruto proibido colocaram roupas. A roupa não é uma roupa física, mas a própria moralidade. A moralidade nada mais é que uma ilusão, uma mentira, um acobertamento de nossas vaidades. Ela é o fenômeno da racionalização: a justificação triunfal de nosso autoengano. Colocar-se nu perante Deus é dizer o que pensamos, tal como de fato pensamos, não a partir duma justificação social, dum enquadramento performático, mas da realidade nua e crua de nossa miserável e pusilânime subjetividade.


Quando a humanidade se defrontará perante Deus em si mesmo, face a face, revelando não a sua filosofia, porém a teologicidade de sua esperança? Este é o sentido profundamente cristão e moralista da obra de Nelson Rodrgues: a revelação da alma humana, a vida como ela é. Nelson não era tarado, a humanidade o é; Nelson não era louco, a humanidade o é; Nelson era um ex-covarde, a humanidade não.


Enquanto não ouvirmos a crueza da sinceridade confessional rodrigueana, seremos como uma gigantesca Israel: matando profetas para matarmos a própria possibilidade de nossos erros serem revelados. Pois há, em cada abismo humano - e todo homem carrega um abismo do tamanho de Deus -, um inconsciente que se esconde e um pecado que não quer se revelar. Neste sentido, tão podre quanto nossa própria essência incorruptível, Nelson era profundamente cristão.