domingo, 24 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #12: Juspositivismo Tradicional

 


Espero que seja tão legal para vocês quanto é para mim adentrar nesse reino da jusfilosofia. Não sei se vocês são tão novos nesse terreno quanto eu sou, todavia espero que o conteúdo dessas análises seja tão proveitoso e útil quanto é para mim.


— Recaptulação:


No capítulo anterior dessa série de notas públicas do que venho estudado, escrevi sobre as condições que possibilitaram o surgimento do juspositivismo. Tal como escrevi anteriormente, naquele período houve uma intensa secularização social, o advento do Iluminismo, a separação entre a união intrínseca entre a lei e a moralidade. O juspositivismo essencialmente surge dessa separação (entre a lei e a moral). Os juspositivas creem que a lei não necessariamente é derivada da moral.


— Introduzindo a Revolução de John Austin:


- John Austin é um pensador revolucionário que desenvolveu uma teoria da lei em que separava a própria lei da moralidade;

- No pensamento de Austin, o juspositivismo austiniano, nós podemos ver que o conceito de lei, a própria forma que se dá a legalidade, é derivada não da moralidade, mas sim do conceito de soberania;

- O que John Austin essencialmente faz, e o que foi bastante revolucionário e controverso no seu tempo, é o de substituir a moralidade pela soberania;

- Isso quer dizer, como observado na nota pública anterior, que não haveria mais aquela transcendentalidade que era comum ao jusnaturalismo;

- John Austin cria o juspositivismo numa base que ele acreditava ser mais concreta. E essa base era exatamente a soberania;

- A soberania pode ser baseada numa pessoa ou uma instituição.


— Por qual razão John Austin fez isso?


O pensamento jusnaturalista se estabelece com um raciocínio a priori. O pensamento a priori é um modo epistemológico de se pensar. Em outras palavras, o jusnaturalismo deriva de uma posição em relação a como o conhecimento se dá. Ele tem uma correlação com a forma com que entendemos o conhecimento. Com a forma de como acreditamos que podemos tirar conclusões a partir desse conhecimento. E também de como podemos justificar nossos conhecimentos e ações no mundo e a respeito dele.


Um exemplo clássico de um pensamento a priori é o do triângulo. Quando dizemos que todos os triângulos possuem três lados, não precisamos sair medindo todos os triângulos do mundo para saber que todos os triângulos apresentam três lados.


O modo de raciocínio a priori deriva não de uma fonte direta, mas de uma fonte externa ao conhecimento. Quando pensamos no jusnaturalismo, a lei não existe por si própria, mas é derivada da moralidade e só por meio dela pode ser justificada. Como podemos ver, a batalha intelectual travada por John Austin também tem a ver com: (I). a forma com que os jusnaturalistas viam o conhecimento e o que poderiam derivar a partir dele; (II). a forma com que Austin e outros juspositivistas vão ver o conhecimento e o que podem agora derivar a partir dele. Nisso compreendemos que a batalha entre juspositivismo e jusnaturalismo também é uma batalha epistemológica.


O que é o oposto do a priori na esfera da epistemologia? É o a posteriori. Em outras palavras, a existência de um objeto em si não pode ser derivado de outro objeto. O pensamento a priori, para Austin e seus contemporâneos que também tinham um caráter mais secularizado, parecia muito abstrato e remetia muito ao mundo anterior — o mundo mais religioso, mais medieval, que remetia mais ao cristianismo. Para Austin, a característica mais importante para determinar a lei em sua condição de lei era a sua própria existência, não a existência de uma moralidade abstrata da qual deveria derivar a lei. Em outras palavras, a existência da lei não deveria depender, no pensamento de Austin, de fontes externas.


A questão que fica é: o que justifica a lei se não a moralidade? O que seria esse soberano? O comando soberano é um comando generalizado de um soberano (aqui entendido como uma autoridade com poder concreto de poder fazer valer a lei), apoiado pela ameaça de sanção (punição para quem não cumprir essas leis emandas pelo soberano). Aquela pessoa ou corpo que a maioria da sociedade obedece. A busca da lei passa a ser como a lei de fato é (o que foi positivado, ou seja, tido como legítimo pelo Estado) e não como a lei deveria ser (referência moral que os jusnaturalistas tinham). É por isso que um conjunto imoral de lei, segundo essa lógica juspositivista, não deixa de ser lei. Visto que, no fim de tudo, a questão é se essa lei foi emanada pelo soberano e não se ela é uma boa lei.


— Jusfilosofia Austiniana e o Direito Internacional:


Uma das maiores críticas a esse pensamento, que ainda vamos analisar mais, é o da sua relação com o Direito Internacional. Embora se possa afirmar, para a defesa de Austin, que o Direito Internacional não tinha tanta relevância em seu tempo quanto atualmente tem. Vamos entender um pouco mais.


Se a lei é derivada da soberania, o que é um ponto bastante concreto, como pode existir um Direito Internacional? A lei, segundo a linha juspositivista austiniana, só pode existir com base em uma autoridade concreta. O Direito Internacional, por sua vez, não deriva de uma autoridade soberana. Em outras palavras, não há um monarca, um parlamento, um Estado internacional, um indivíduo singular, um parlamento, uma dinastia ou algo semelhante. Para juspositivistas austinianos, o Direito Internacional não pode existir de um jeito semelhante tal como existe o Direito Nacional.


Isso é encarado como uma questão problemática a respeito do juspositivismo austiniano. Visto que o pensamento austiniano se constrói com base na existência de uma soberania, enquanto que o Direito Internacional não pode existir com base em uma soberania internacional com autoridade própria. Então de acordo com a teoria austiniana, como não há uma autoridade soberana internacional, não há uma soberania internacional, logo o Direito Internacional não existe da mesma forma ou do mesmo jeito que existe os direitos presentes em várias nações. Veja que há uma dificuldade de fazer com que as leis do Direito Internacional entrem em vigor, sobretudo pela disparidade de poderes entre as nações. Logo aplicar leis internacionais e garantir a sua vigorosidade é uma crítica não só do juspositivismo austiniano, mas também uma crítica geral que se faz ao Direito Internacional.

Philosophia Iuris #11: o Desenvolvimento do Juspositivismo

 


Quando pensamos em juspositivismo alguns nomes saltam em nossa mente: John Austin, H. L. A. Hart, Ronald Dworkin. 

O desenvolvimento do juspositivismo está correlacionado ao declínio do jusnaturalismo. O que contribuiu ao declínio do jusnaturalismo foi a secularização da sociedade, visto que com a secularização a influência religiosa também entrou em declínio. Historicamente, pelo menos naquele momento, o jusnaturalismo estava correlacionado a uma matriz de pensamento religiosa. Tal como podemos observar nos escritos de Santo Agostinho de Hipona e São Tomás de Aquino.

O jusnaturalismo também foi identificado como aquele que acreditava que o sistema legal derivava do sistema moral. Embora se possa afirmar que, para um jusnaturalista, o sistema legal deve derivar do sistema moral.

Podemos ver um afastamento mais amplo do jusnaturalismo e do juspositivismo em tempos mais historicamente recentes graças ao impacto que o sistema legal da Alemanha Nazista e o sistema legal da União Soviética tiveram no debate público. O juspositivismo foi encarado como aquele que separou a necessidade moral do sistema jurídico e o jusnaturalismo como aquele que entendia que todo sistema legal derivava da moralidade. As duas alegações podem ser tidas como falsas, visto que o juspositivista estuda a lei como lei, não necessariamente não observando a moralidade; e o jusnaturalista quer que a lei seja moral, mas sabe que existem leis imorais, que ele julga como falsas.

— O que havia antes do juspositivismo?

Os princípios da Common Law podiam ser vistos como transcendentes. Tal como os princípios de da justiça e da beleza em Platão. Quando uma "nova lei" surgia, era mais como uma descoberta e não uma invenção.

Analisemos mais cautelosamente. O sistema da Common Law era visto como um sistema que era desenvolvido pelos juízes, não pela criação de novas leis ou pela ideia de invenção de novas leis ou novos princípios de leis. Em vez da invenção, havia a descoberta de novos princípios. Os juízes eram encarados não como inventores, mas como aqueles que estavam descobrindo regras que já existiam antes das suas descobertas, mas que ainda não tinham sido percebidas pelos seres humanos.

Isso lembra a reminiscência de Sócrates e Platão, isto é, a ideia de que o conhecimento não é adquirido externamente, mas sim a recordação de algo que a alma já sabia antes de encarnar. Caso vocês se recordem bem das notas públicas anteriores dessa série, Platão acreditava que no Mundo das Ideias existiam formas perfeitas (arquétipos) e imutáveis das quais o mundo real derivava, mas de forma temporária e imperfeita. A forma que o Direito era encarado anteriormente, baseava-na a ideia de que estávamos entendendo e colhendo mais a fundo um Arquétipo Perfeito de Justiça. Logo era como se a gente estivesse tentando traduzir o intraduzível do Mundo das Ideias no Mundo Real, captando mais e mais da forma perfeita, sem nunca captá-la ao todo.

Essa perspectiva, como já devem ter percebido, lembra a perspectiva jusnaturalista. Se existem direitos de natureza imutável, que são assimilados pelo uso da razão, há um aspecto transcente nesse pensamento. E as modificações na lei não existem para instaurar novidades, mas para ampliar a compreensão do que se havia antes. Essa forma é tão parecida com o jusnaturalismo que, de fato, jusnaturalismo e Common Law eram tidos como quase o mesmo. Podíamos ver a ideia de objetividade, a ideia de moralidade, uma noção de uma idealidade que transcende, todos esses conceitos em correlação com as teorias da jurisprudência.


— Tudo mudou:

É evidente que tudo mudou. Se formos para o nosso tempo, isto é, no século XXI, podemos ver o avanço da Teoria Crítica, embora o juspositivismo ainda seja o predominante no ponto de vista acadêmico. Todavia cabe aqui compreender a linha histórica de raciocínios que levaram o juspositivismo a se tornar predominante.

No século XVII, vimos o desenvolvimento político da Revolução Inglesa. No século XVIII, vimos o desenvolvimento da revolução francesa e americana. As ideias dos direitos dos homens e das liberdades fundamentais.

Podemos olhar com o olhar afastado e crítico do Thomas Hobbes, de um ponto de vista antirrevolucionário, a partir do livro seu livro Leviatã para defender a necessidade de uma autoridade sólida. Todavia podemos olhar para pensamentos como o dos pensadores de natureza mais revolucionário para o seu tempo, como o John Locke e o Jean-Jacques Rousseau. É evidente que o desenvolvimento do pensamento liberal clássico impactou muito esse período. Ao mesmo tempo que eles tinham um pensamento próximo do jusnaturalismo, eles também poderiam ser encarados como bastante críticos do monarquismo.

— Origens do Juspositivismo: John Austin

É aqui que vamos compreender como se instala o pensamento revolucionário de John Austin. Ele começa a desenvolver, a delinear e a possibilitar uma teoria jusnaturalista que afastava a lei da moralidade. 

Ele vai contra a sabedoria convencional da jusfilosofia do seu tempo. Visto que essa acreditava na união entre lei e moralidade. Com a entrada do pensamento de John Austin, vemos a lei não mais derivada do conceito de moralidade, mas do conceito de soberania. Logo não haveria mais a ideia transcendental de normas legais como na jusfilosofia.

O que vamos começar a analisar, no próximo capítulo dessa série do notas públicas, é como John Austin quebrou com os jusnaturalistas e derivou a sua jusfilosofia a partir da ideia de autoridade soberana e não da moralidade — tal como faziam os jusnaturalistas.

Philosophia Iuris #10: Introdução ao Juspositivismo

 



O juspositivismo tem uma grande importância na jusfilosofia. Nos anos de 1800 e 1900, vimos muito da sua ascensão como a teoria jurídica mais importante. Agora que já construímos a base teórica do jusnaturalismo, é importante construirmos também uma base teórica do juspositivismo.

— O que é juspositivismo?

1. A palavra positivismo vem do latim "positum";
2. Ela se refere a ideia da lei que foi posta, isto é, positivada e colocada dentro do ordenamento jurídico do país;
3. O juspositivismo busca entender a validade da lei de acordo com a objetividade de uma fonte verificável;
4. Isso rejeita a tese jusnaturalista de que a validade e a existência da lei podem ser determinadas externamente pela natureza humana.

É válido lembrar que o jusnaturalismo, defensor do direito natural, busca uma lei objetiva dentro da natureza, às vezes procurando essa objetividade em um código moral, nas leis eternas de Deus, nas revelações bíblicas, etc.

— A Rejeição Juspositivista:

Uma das coisas que a maioria dos juspositivistas rejeitam é a ideia de que direito e moralidade estão necessariamente conectados. Isso não significa que juspositivistas não coloquem a moralidade em suas considerações, mas que a moralidade está na periferia do posicionamento positivista. Enquanto os jusnaturalistas colocam a moralidade e filosofia moral na frente e no centro das suas considerações para saber o que faz a lei justa.

Como já explicado anteriormente, no século XX se tornou extremamente difícil reconciliar a lei e a moralidade, tendo-se em vista o Terceiro Reich, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. O Terceiro Reich, é válido lembrar, tinha as suas próprias leis e um sistema jurídico.

É preciso dizer que os juspositivistas afastam a ideia de que não consideram a moralidade. Eles analisam a partir do ponto do que a lei é, não do que ela deveria ser. Esse ponto de partida, busca compreender a estrutura e o conteúdo da lei de forma prioritária e como ponto de partida. Também é preciso dizer que os jusnaturalistas não vinham a lei como necessariamente moral, mas sim que ela tinha que ser moral para ser justa como lei.

Voltando a centralidade do juspositivismo, os juspositivistas separam os conceitos de legalidade de interpretações sociológicas e históricas. Novamente, é preciso considerar que isso não quer dizer que um juspositivista não use sociologia e história, mas que isso também não é central em suas considerações.

Sim, eu sei que, no presente momento, tudo isso parece meio vago. É que precisaremos passar por um caminho para compreendermos mais a natureza do juspositivismo, tal como já percorremos os caminhos do jusnaturalismo.

Philosophia Iuris #9: Teoria dos Direitos Naturais de John Finnis

 


O jusnaturalismo de John Finnis se estabelece e se estrurura na busca do bem comum. O bem comum faz parte das condições necessárias que permite os membros de uma mesma comunidade a procurar e a realizar as suas condições humanas básicas. O conceito de bem comum é determinante para todas as instituições sociais, visto que elas devem criar a condição para que todo indivíduo floresça através da participação das condições básicas e bens básicos ao seu desenvolvimento.


— Condições Básicas ao desenvolvimento do indivíduo:

- Bens Básicos: vida, conhecimento, diversão, acesso à experiência artística, sociabilidade, raciocinar o que é melhor para si e agir de acordo com essas decisões, liberdade espiritualidade;

- Instrumenal e Possibilitação: todas as instituições (incluindo as leis e o governo), precisam possibilitar aos indivíduos a procura e a conquista desses bens básicos, dando condições que facilitam a conquista deles por todos os membros da comunidade. Uma sociedade bem ordenada dá condições para paz, a segurança e um sistema legal que ajuda todos os membros da sua sociedade;

- Coordenação e Liberdade de Consciência: o bem comum é o resultado dessa coordenação, permitindo todos os indivíduos seguirem com os seus planos de vida de um jeito que todos respeitem e suportem a habilidade todos os outros fazerem o mesmo;

- Lei como Instrumento do Bem Comum: o propósito primário da lei é o de servir ao bem comum. Um sistema legal bom é aquele que cria um estável e confiável ambiente no qual todas as pessoas são capazes de terem bens básicos. Isso cria nelas um senso de pertencimento e também uma noção de que obedecer a lei é a forma mais efetiva de assegurar a ordem social, e por extensão lógica, o bem comum.


Para Finnis, a lei nasceu e é derivada do conceito de moralidade. Ela ocupa o mesmo espaço da palavra moralidade, no sentido de que vai em direção da questão normativa: "qual tipo de pessoa eu gostaria de ser?". A questão da lei é: "em qual sistema eu gostaria de viver?" ou "qual sistema pode ser considerado justo para todos (o bem comum)?". O que Finnis busca é a base que leva a conformância com a moralidade.


Finnis busca uma ideia de Regra de Ouro, um princípio que a lei deve instigar como um todo, algo que promova, para todos os membros da sociedade, um bem moral básico. Ele está formando um jusnaturalismo eticamente motivado para os tempos modernos dentro de uma sociedade plural e de caráter secularizado. É válido sempre lembrar que o jusnaturalismo não é só um sistema filosófico-jurídico, mas que tem uma ligação profunda com a filosofia moral.


A lei, de acordo Finnis, deve ser aquela que facilita o bem comum. As leis devem buscar resolver os problemas de coordenação social para garantir a harmonia social. A harmonia social não pode ser garantida se não há a resolução de conflitos. Em verdade, quanto mais conflitos tem um corpo social, maior o nível de rupturas que dissolvem a coordenação (harmonia) do corpo social. A coordenação da comunidade é a essência que deve operar por trás de toda estrurura social e a condenação busca o princípio básico de resolver os problemas que entravam essa própria coordenação, não pela imposição de uma regra pura e simples, visto que o imposicionamento de uma regra injusta não resolve os problemas sociais, mas sim pela busca sensata do bem comum. Visto que o que garante a aceitação dos ordenamentos sociais nada mais é do que um sistema que é considerado e tido por todos como justo, logo o bem comum é a matriz da coordenação social e garanti-lo é garantir essa mesma matriz.

sábado, 23 de agosto de 2025

Philosophia Iuris #8: Direito Natural Procedural

 



Essa é a teoria mais moderna do Direito Natural, ela foi desenvolvida pelo Lon. L. Fuller, conhecida como procedural-naturalismo. 


Fuller desenvolveu a sua teoria jusnaturalista com base na análise do que ele considerava uma fraqueza em relação de como a lei operava, especificamente observando o Terceiro Reich. Ele viu a ascensão do nazismo na Alemanha, que foi essencialmente por meios legais e também, por meio da mesma legalidade, instigou um genocídio que era justificado pelo próprio sistema. Fuller viu no sistema nazista, um sistema que pode violar a moralidade e a os direitos humanos. O que lhe trouxe um antagonismo contra o juspositivismo, visto que o juspositivistas colocavam a moralidade como uma questão periférica na construção de um sistema jurídico. Em outras palavras, o nazismo só conseguiu ser uma espécie de sistema que era justificado por si mesmo graças a uma mentalidade juspositivista.


Fuller levanta um questionamento a respeito da natureza da lei e, especificamente, do processo legal. As mesmas questões que inquietavam os antigos jusnaturalistas tornam a aparecer:

- O que a lei é?

- O que a lei não é?

- O que significa chamar algo de lei?


Além disso, a velha frase de Agostinho de Hipona também retornava: "uma lei injusta não é lei" (lex iniusta non est lex). O que fez Lon L. Fuller pensar na necessidade fundamental de uma conexão entre a lei e a moralidade. O que o leva a debater com H. L. A. Hart (defensor do juspositivismo e da separação entre Direito e Moral). Para Fuller, a fundação de um sistema legal precisa vir com certos princípios morais e valores. Ele chama isso de princípios da legalidade.


Apesar de Fuller acreditar que existe uma inter-conexão intrínseca entre moralidade e legalidade, ele rejeita a noção religiosa de lei natural provinda de pensadores clássicos do jusnaturalismo como Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Em outras palavras, ele não acreditava que a ontologia da lei era derivada de uma autoridade superior como Deus. Logo ele traz uma modernização, de caráter secular, do jusnaturalismo.


A teoria procuderal da lei natural sugere que há um sistema moral com o qual se constrói a estrurura e a administração de uma lei. No entanto, não busca uma razão teológica para justificar o seu ponto, mas sim aponta para a necessidade de um padrão mínimo de moralidade que a lei precisa cumprir. Se a lei, por outro lado, for claramente considera má e/ou uma violação de alguns princípios morais, então certamente ela não é uma lei.


— O Critério Legislativo:


No seu livro "The Morality of Law", Fuller nos convida a imaginar um cenário hipotético onde há um monarca hereditário chamado Rex tentando governar. Rex é descrito como particularmente incompetente e também está numa monarquia que tem uma capacidade de recordação ruim quando está no processo de criação legislativa. Rex é incapaz de criar uma lei por causa que lhe faltam os pré-requisitos para isso.


Fuller apresenta oito pré-requisitos em ordem para que uma lei seja uma lei. Fuller mostra esses pré-requisitos de modo negativo para indicar a incapacidade:


1. Generalidade: falhar em estabelecer leis no geral;

2. Publicidade: falhar em tornar as leis públicas, tornando-as não avaliáveis para quem precisa segui-las;

3. Irretroatividade: falhar em tornar a lei possível;

4. Clareza: falhar em tornar a lei clara e compreensível;

5. Não-contradição: falhar em tornar essas leis livres de contradição;

6. Possibilidade de Cumprimento: Falhar em criar leis que sejam possíveis de concordar;

7. Constância no Tempo: falhar em estabelecer uma consistência nas leis que são criadas, para que não estejam em contradição umas as outras;

8. Congruência entre a Regra Declarada e a Ação Oficial: estabelecer uma descontinuidade entre as leis e a administração delas na prática.


Se qualquer uma dessas oito regras forem quebradas, o sistema em questão falha e não pode ser considerado um sistema legal, visto que falhará em conduzir o comportamento humano, sendo então meramente um conjunto de regras arbitrárias. Isso é, para Fuller, o coração da questão ontológica sobre o que de fato faz uma lei ser lei.

Philosophia Iuris #7: Teoria Moderna do Direito Natural


 


— Recaptulação:


Passamos por duas partes do desenvolvimento histórico do jusnaturalismo. A fase clássica, ou anciã, ligada a Platão e Aristóteles. E fase de transição cristã (Patrística e cristianização do mundo) e medieval, com Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino.


Aprendemos que a questão jusnaturalista da lei se conecta com uma ontologia que busca o ser da lei. Questões como:
- O que é a lei por si mesma?
- Por qual razão descrevemos algo como uma lei e outra coisa como algo que não é uma lei?

Essa preocupação procurava dar uma análise substantiva, uma análise crítica, um olhar jusfilosófico a respeito do processo da criação da lei, da administração da lei e como a lei se torna lei.

É evidente que os jusnaturalistas buscavam, graças a esses questionamentos, uma aderência a uma alta autoridade. Como já vimos uma aderência a um tipo de lei eterna, das leis criadas por Deus (por parte dos cristãos), uma busca por um alto padrão moral objetivo, uma moralidade bíblica ou um tipo de lei natural que antecede a própria lei do Estado (lei positiva). O que vemos é uma busca da essência da lei.


— Jusnaturalismo Moderno:


Os teóricos do Direito Natural, os jusnatualistas, por muito tempo ignoraram o surgimento e o crescimento do juspositivismo. O juspositivismo é uma escola que vai em contraposição aos jusnaturalismo, visto que preza pela primazia absoluta da lei positiva (a lei do Estado). É evidente que enquanto o juspositivismo crescia, existiam múltiplos motivos sociais, culturais e filosóficos que tornavam cada vez menos atrativa a inter-relação entre lei e moralidade.

O retorno do jusnaturalismo ao debate jusfilosódico se dá numa circunstância muito significativa. A sociedade tentou uma reconciliação face aos horrores cometidos nos anos de 1920 e de 1930, perpetrados pela União Soviética e Alemanha Nazista. Os horrores da guerra e do genocídio, além do final da Segunda Guerra Mundial, levam um ressurgimento do desenvolvimento da lei com referência na moralidade.

É preciso alertar que o juspositivismo não necessariamente se esquece ou evita a moralidade em sua tradição legal, mas desloca a moralidade do núcleo conceitual da sua jurisprudência. É por causa disso, a busca por uma moralidade, que o jusnaturalismo retornou fortemente.

Duas teorias modernas do Direito Natural:

1. Direito Natural Procedural, desenvolvido por Lon L. Fuller;
2. A Teoria dos Direitos Naturais, desenvolvida por John Finnis.

Philosophia Iuris #6: Tomás de Aquino e o Direito Natural

 



— Recaptulação:


Na nota pública anterior, escrevi sobre o fato de que Agostinho de Hipona situava a lex aeterna (lei eterna), provinda diretamente de Deus, como superior a lei positiva (que vem do Estado). A lei positiva deveria se subordinar a lex aeterna (lei eterna).


Hoje vamos entrar e entender um pouco do que pensava Tomás de Aquino no campo da filosofia do Direito.


— Uma contextualização a respeito de Tomás de Aquino:


- Foi um frade e um padre italiano, da ordem dominicana, conhecido por ser um influente filósofo e teólogo;

- Não se sabe ao certo se ele nasceu em 1225 ou 1227, mas a data da sua morte é 1274. Ele é o maior proponente de um movimento conhecido como Escolástica;

- Seu trabalho mais conhecido é a Suma Teológica, onde podemos encontrar escritos sobre a Teoria do Direito Natural, além de outros a respeito da teologia e da filosofia;

- A Teoria do Direito Natural em Tomás de Aquino vai diferir da Teoria do Direito Natural de Agostinho, visto que Tomás de Aquino foi influenciado pela redescoberta dos escritos de Aristóteles;

- Para Tomás de Aquino, lei positiva tem uma natural posição na vida política e social, mais do que Agostinho de Hipona acreditava, visto que a lei positiva poderia ser substituída pela adesão à lex aeterna.


— Direito Natural em Tomás de Aquino:


O Direito Natural apresenta quatro hierarquias no pensamento de Tomás de Aquino:

1. Lei Eterna: é a lei que ordena todas as coisas, está restrita ao conhecimento do próprio Deus;

2. Lei Divina: é a parte da lei eterna que foi revelada para a humanidade;

3. Lei Natural: é a capacidade inata da natureza humana de discernir o bem e o mal;

4. Lei Positiva: é a lei criada pelos legisladores humanos.


É válido mencionar que Aristóteles também tinha uma separação hierárquica das leis, para ele havia uma justiça natural, de caráter universal, e uma justiça convencional, que eram as leis específicas da cidade-Estado. O caráter universal, para Aristóteles, era o de uma lei imutável, que poderia ser descoberta pela razão humana. O propósito de uma lei, no pensamento de Aristóteles, era de promover a virtude e o bem comum da comunidade. Como Tomás de Aquino foi influenciado pelo pensamento de Aristóteles, adicionando-se o fator teológico cristão, Tomás via na lei humana uma possibilidade de guiar as pessoas para a felicidade suprema e a felicidade suprema era a união com Deus.


Para Tomás de Aquino, havia uma espécie de relação não convencional entre a lei e a moralidade. E era impossível entendê-la sem uma referência de moralidade. Além disso, todas as leis humanas deveriam ser julgadas em correlação com a lei natural.


É preciso compreender que a Teoria da Lei Natural não é só uma teoria de jusfilosofia, não é só uma teoria a respeito da lei, tampouco algo que é limitado aos estudantes de Direito. O Direito Natural é uma teoria ética. Por vezes adentrando a uma natureza mais teológica. O Direito Natural não se pergunta pura e simplesmente "o que é a lei?", mas vai mais adiante: "o que ontologicamente é a lei?", "o que é a existência da lei em si mesma?". O Direito Natural busca adentrar na questão última do significado da lei.


— A Lei Positiva:


Existem duas fundações que são necessárias para se chegar a razão última e para se fazer o correto curso de uma ação antes de se criar uma lei positiva:

1. A Lex Divina (Lei Divina);

2. A Lex Naturalis (Lei Natural).


A primeira representa a Lei Divina que foi revelada pelas Sagradas Escrituras (Bíblia) e a segunda é a Lei Natural que é acessível pela razão natural através da observação racional da natureza humana. A lex humana (lei humana, entendida como lei positiva), é boa se segue a fundação da lex divina (lei divina) e a lex naturalis (lei natural).


A lei positiva (lex humana) precisa facilitar e servir uma teleologia de um bom propósito. Se o propósito for teleologicamente bom, compatível com o bem comum e a harmonia social, as pessoas não vão sentir vontade de burlar a lex humana (lei positiva/humana) por medo da punição, mas sim por causa da racionalidade e da moralidade. Uma lei bem fundamentada, não é vista por alguém moralmente correto e racional como algo que pode ser burlado, visto que ele vê nessa lei algo natural, lógico e moral, e quebrar essa lei é ser inatural, ilógico e imoral. 


— Lei Injusta:


Tal como Agostinho e inspirado nele, Tomás de Aquino traça uma questão a respeito sobre o que faz uma lei ser lei. Visto que, tornemos a lembrar, uma lei precisa de um questionamento a respeito da sua natureza.


Para Tomás de Aquino, uma lei injusta é tão somente uma lei que tem a aparência de ser uma lei. Algo pode ser percebido como uma lei sem que esse algo seja de fato uma lei por si mesmo. Uma lei injusta não é uma lei por si mesma, visto que todas as leis precisam aderir a lei natural. Em outras palavras, Tomás de Aquino traça uma questão ontológica a respeito da lei, argumentando que algo, para ser lei, precisa ser em referência à lei natural. Se a lei positiva fere a lei natural, não é uma lei.


Se faz necessário recordar que o pensamento de Tomás de Aquino faz referência ao pensamento de Aristóteles. Aristóteles pensava no telos (finalidade) de todas as coisas. Ele se questionava sobre o propósito final, sobre o resultado de algo particular. Logo era preciso ter em mente a finalidade a que se destina dada lei. E as leis precisam estar em conformância com a natureza humana, que é um ser social e político. Contrariar essa natureza, levando a desarmonia social, é uma forma de burlar essa natureza a que se destina toda lei.


Existem formas de saber se algo fere a lei natural:

1. Contrária ao bem comum: quando essa lei é feita com o objetivo de um bem particular, furtando-se a necessidade de ser boa para todos os membros da sociedade;

2. Excede o campo de conhecimento do legislador: quando o legislador não apresenta o conhecimento necessário para produzir essa lei;

3. Fardo injusto: quando há uma desigualdade ou uma desproporcionalidade para certos membros da sociedade.


Para Tomás de Aquino, uma lei falsa não é uma lei, mas uma perversão da lei. É por isso que a lei feita por humanos precisa da referência e da conformidade com a lei natural. Também a lei não pode ser contrária lex divina (lei divina).