domingo, 16 de junho de 2024

Acabo de ler "A Tirania dos Especialistas" de Martim Vasques da Cunha (Parte 2)

 



Existe um aspecto antivilanesco estruturado na sociedade contemporânea. O antivilão é alguém que se justifica num dado parâmetro aceito socialmente para realizar seus objetivos obscuros – vulgarmente chamado de "levar vantagem". É claro que essa antivilania, baseada numa moralidade, é de aplicação determinada pelo grupo social ao qual esse estrategista social faz parte ou é supostamente aderente. Esse processo, na maioria das vezes, se dá inconscientemente. Visto que aqueles que praticam não são tão conscienciosos de sua própria moralidade.


O antivilão – pessoa que utiliza de uma moralidade para ganhar vantagem e apoio social na concretização de seus objetivos – é uma figura variável e complexa. Temos desde "cristãos, cidadãos de bem e honrados" até "progressistas combatentes da desigualdade social e dos problemas da humanidade". Onde houver uma moralidade e um grupo, existe alguém que justifique a sua perversidade por meio da moralidade e desse grupo. Aqui,  mais uma vez, pouco importa se essa pessoa é de esquerda, de direita, cristã ou até mesmo atéia. Conseguir justificação social por meio de um grupo e do esquema moral desse grupo sempre será uma estratégia social bastante comum.


A ideia da vítima perfeita – representada simbolicamente pela figura de Jesus Cristo crucificado – é o que permeia profundamente a mentalidade social ocidental e também a mentalidade daqueles que tiveram essa influência cultural. É graças a ela que as pessoas buscam sempre criar um esquematismo narrativo em que se desvinculam da própria humanidade falha e assumem o papel de vítimas perfeitas que caíram nas armadilhas mortais de circunstâncias diabólicas. Essa "distorção da realidade" cria, na pessoa, a ideia de ser "ilibada e incorruptível". Ou seja, ela está numa espécie de estranha suprahumanidade, numa espécie de sublimidade onde todos os seus erros morais não acontecem ou simplesmente são engendrados pelas circunstâncias. Daí para frente, tudo o que fizer – por mais absurdo que seja – será justificado pela narrativa da vítima perfeita.

Acabo de ler "A Tirania dos Especialistas" de Martim Vasques da Cunha (Parte 1)

 


Qual a contraposição à mentalidade progressista? Seria um conservadorismo que se opõe, pura e simplesmente, às mudanças? Em primeiro lugar, é discutível que exista, no entendimento do brasileiro médio e até mesmo no entendimento do intelectual brasileiro médio, a capacidade de compreender a mentalidade conservadora. Hoje em dia existe uma maior capacidade intelectual de compreender a mentalidade conservadora, todavia até hoje estamos imersos numa confusão mental do que é verdadeiramente o conservadorismo.


O conservador não é um homem que quer paralisar as mudanças, muito menos é apegado às tradições. O tradicionalista acredita nas tradições. Para o conservador, a tradição tem valor instrumental e não essencial. Ou seja, não se escolhe a tradição por ela ser um valor essencial ou ser impossível de ser mudada, prefere-se a tradição por ela ter sido testada. Se há algo que a substitua e tenho passado pelos testes do tempo, esse algo é aderido. A questão do conservadorismo é a reforma gradualista da sociedade, isto é, o desenvolvimento da sociedade a partir duma sobriedade cética que deve mediar entre as políticas de fé (notoriamente experimentais) e as políticas de prudência (que já passaram pelo teste do tempo).


A questão da política conservadora é a questão duma política pautada pelo ceticismo e pessimismo político. O conservador seria aquele que compreende que existem limites naturais à capacidade humana de inteligir. Ou seja, existe um mundo complexo demais para ser moldado pelos intelectuais e suas ideias que são, no fundo, experimentais. Se uma ideia é experimental, um radicalismo experimentalista não pode ser levado a sério. A troca inconsequente de uma série de políticas experimentadas pelo tempo por políticas ainda não testadas pode ser catastrófica e levar ao declínio de toda uma série de construções humanas.


A verdadeira questão do conservadorismo é um ceticismo quanto à capacidade de reestruturar o mundo tal como queremos que ele seja. O conservador se opõe dialeticamente ao revolucionário e ao reacionário por eles serem radicais. Seja para o futuro, seja para o passado.

Acabo de ler "Em Defesa de Stalin" de Vários Autores (Parte 30 - Final)

 


Termino aqui uma grandiosa jornada serializada de ler e comentar cada capítulo do livro "Em Defesa de Stalin". Um livro que começa a chamar a atenção pelo título – e não só pelo título, como igualmente pelo seu conteúdo. A perspectiva do livro, a sua apologia a Stalin, é brilhante. Sobretudo num país, o Brasil, em que o trotskismo é amplamente majoritário. Sempre me interessei muito mais por Stalin do que por Trotsky, embora não tenha uma firme posição para com nenhum dos lados. De qualquer modo, a obra – não só intelectual, mas também política – de Stalin sempre me interessou muito mais do que as ações de Trotsky e os seus livros. Não me recuso, entretanto, a fazer estudo do trotskismo e do Trotsky.


Ler esse livro foi de fundamental importância para que eu compreendesse mais profundamente quem foi Stalin e o que ele fez. Por uma infelicidade, no Brasil temos uma grande bibliografia trotskista e uma igualmente grande bibliografia antistalinista. No fim, o que temos são dois grandes polos antistalinistas que, mesmo não sendo propriamente amigáveis entre si, atuam conjuntamente para fortalecer uma única visão de mundo: a antistalinista. Ora, é necessário compreender que uma visão puramente apologética ou antiapologética é dogmática e está muito longe daquilo que se poderia considerar propriamente filosófico. A filosofia não é a aceitação duma unidade de crenças e nem a negação de unidades de crenças. A filosofia, o debate filosófico, é a parcialidade que aceita algum ou alguns aspectos e rejeita um ou outro aspecto ou conjunto de aspectos. A negação sistemática ou aceitação sistemática não é filosófica, é teológica. E um estudo dominado por essa mentalidade não é um estudo livre, é um estudo doutrinador.


Creio que falta ao brasileiro uma capacidade de estudar além das fronteiras que os grupos coletivo-normatizantes apresentam em suas crenças cegas e fechadas. Falta ao brasileiro um livre-exame e um desapego para com as coletividades. Visto que a vida intelectual e as lutas no seio da vida intelectual só podem ser comprovadas intelectualmente. A adesão tribal proíbe isso.

Acabo de ler "Em Defesa de Stalin" de Vários Autores (Parte 29)

 


Essa parte foi escrita por MI Ulyanova, vai da página 381 à 382. Qual era a relação de Stalin com Lênin? Seria estranho sugerir uma espécie de piada nerd nesse campo? Poder-se-ia dizer-se que era a de um aprendiz para com um mestre. Ou dum Robin para com um Batman. De qualquer modo, pode-se mencionar-se que Stalin tinha uma devoção inigualável para com o mentor intelectual da Revolução Russa. Logo Lênin representava um mestre para o qual Stalin dedicou a sua obra política.


Lênin também demonstrava um apego a Stalin. Pedindo para que esse cuidasse de seus negócios pessoais. Quando estava em seus últimos anos, pensou carinhosamente em Trotsky e Stalin, sabendo que eram dois filhos da revolução e tinham estados de espírito bastante opostos. Trotsky era explosivo e tinha uma tendência mais abstrata, Stalin era quieto e tinha uma tendência mais prática. Trotsky era um poeta e tinha uma linguagem mais adornada por arroubos artísticos. Stalin era mais seco e objetivo. Tudo neles era contraposto, o único laço de semelhança era a adesão à luta socialista pela teoria marxista.


Até hoje temos brigas entre esses dois lados. E os dois lados apresentam discussões muito boas. Embora sempre exista uma espécie de negação entre o estudo comparado de apolegetas de Stalin e de Trotsky. Como sempre, é muito mais proveitoso estar de fora do que estar de dentro e poder apreciar graciosamente essa discussão brilhante que os dois lados têm a oferecer.

Acabo de ler "Em Defesa de Stalin" de Vários Autores (Parte 28)

 


Essa parte foi escrita por W.E.B Du Bois, vai da página 377 à 380. Creio que a perspectiva de W.E.B é bastante interessante. Você veja, a biografia é composta por vários capítulos. E ela não se furta à extrabiografia. Ou seja, a vida dum homem não termina quando ela acaba. As suas ações se movem na história. O que foi desencadeado por ele, continuará ressonando em outras ações de outras pessoas, mesmo que essas pessoas sejam inconscientes desse processo. Você não precisa necessariamente conhecer Napoleão Bonaparte, Stalin ou Hitler para ser Influenciado por pessoas que foram influenciadas por eles. Nem pelas políticas que surgiram a partir deles ou contra as ações deles.


Mesmo que Stalin tenha morrido há muitíssimo tempo, suas ações são até hoje relembradas ou, se não relembradas, ainda possuem um impacto na formação do mundo em que vivemos ou no mundo em que nossos sucessores viverão. O estudo na história, seja qual ela for, ajuda-nos a compreender a formação da história na qual estamos inseridos ou nas quais podemos nos inserir. É o próprio estudo comparado de distintas civilizações que possibilita a capacidade de alterar o ritmo de nossa própria civilização. É por isso que, por exemplo, sugere-se que uma pessoa estude, no mínimo, a história de três civilizações distintas para se livrar do domínio alienante da sua própria civilização. Essa condição, esse estudo, possibilita relativizar uma postura dogmática e rígida ao mesmo tempo que nos torna senhores de nossa própria história e vida. E isso não só como indivíduos concretos, mas como "eu plural" – como sociedade, como nação, como grupo político.


Estudar a União Soviética e a sua forma política não é o mesmo que querer reproduzi-la. Pode até mesmo levar a um impulso contrário. Como é o caso de Jordan Peterson, que se afasta dos regimes socialistas que estudou. Ou o caso de Carlos Taibo que pensa num socialismo libertário e uma posição que é dialógica, mas não concordante com o antigo regime soviético. De qualquer modo, a ampliação da visão é de suma importância para a capacidade de enxergar novas possibilidades.

Acabo de ler "Em Defesa de Stalin" de Vários Autores (Parte 27)

 



Essa parte foi escrita por Dolores Ibárruri, vai da página 365 à 376. O que dizer da condução política de Stalin? Ele foi um fervoroso combatente revolucionário, seja pelo uso intelectual do discurso, seja pela força das armas. Ele queria uma revolução e não uma "condução pacífica e reformista" ao socialismo. O gradualismo social-democrata não lhe agradava e ele acreditava que isso tiraria o rumo e a própria possibilidade de construir uma pátria socialista.


Stalin acreditava que muitos partidários da revolução temiam as massas e não acreditavam no potencial revolucionário delas. Isto é, as massas precisariam ser domesticadas e caladas no momento necessário. Stalin, por sua vez, ia na posição contrária: o exercício de crítica e autocrítica dependeria das massas e das informações que elas possibilitavam a condução política revolucionária. A posição paternalista de alguns revolucionários era a reconstituição dum ímpeto aristocrático que se colocava acima das massas. A verdadeira postura revolucionária seria, então, a de colocar-se pelas massas e para as massas, de forma dialógica e responsável.


O exercício de Stalin seria uma escuta atenta às necessidades que as massas apresentavam. Elas eram aquilo que poderia ser chamado de "sistema de feedback". Sem elas, a própria capacidade da construção socialista seria furtada, visto que teríamos uma elite dirigente e não uma "classe dirigente". A construção do socialismo se dá pela classe trabalhadora, seja rural ou urbana. É evidente que um grupo de burocratas, posto acima da classe, torna-se automaticamente acima da classe que delegou esse poder a essa elite. Ou seja, há a reconstrução dum sistema hierárquico que é propriamente antirrevolucionário e reconstituidor daquilo que foi anteriormente abolido.

sábado, 15 de junho de 2024

Acabo de ler "En Corea del Norte" de Florencia Grieco (lido em espanhol)

 



O que dizer da Coreia do Norte? Usualmente chamada de "Melhor Coreia", é a queridinha dupla. Isto é, desde a ascensão da Nova Direita Cultural, ela se tornou admirada pelos setores tradicionalistas da QTP e, ao mesmo tempo, ainda é admirada por comunistas de todos os países. Existe até mesmo a noção de que a Coreia do Norte tem valores mais apegados à tradição, à hierarquia e aquilo que usualmente predomina na direita tradicionalista ao mesmo tempo que promove ideias de índole esquerdista. De qualquer modo, isso é assunto para outro texto.


A jornalista escolheu um caminho turvo. Suas noções intelectuais rimam bem com a retórica ocidental moderna, muito mais liberal do que comunista. Graças a isso, vemos o livro com um ar atmosférico duma psicologização que atinge arroubos meteóricos de thriller. Até mesmo quando a jornalista fala sobre a limpeza, organização e ausência de crimes na Coreia do Norte, sente-se no compromisso vital de criticar os aspectos totalitários do país. O país é muitas vezes descrito como "reino ermitão" pelo seu absoluto isolamento. O que o torna de difícil compreensão teórica.


De qualquer modo, a experiência que nossa escritora passou lá é bastante pendente a uma noção bem negativa. Sobretudo quando essa negação se deu previamente através duma linha de pensamento. Não a condeno, visto que também tenho um ar dialético que afasta a maioria das pessoas pelas nuances que minhas análises possuem. A autora fala bastante sobre a hierarquização social e os privilégios da elite, além da separação da sociedade que é fragmentada pela dedicação e apoio que dá ao regime. Como se fosse uma espécie de França pré-revolucionária de três estados, só que agora atipicamente estruturada numa sociedade declaradamente socialista.


A existência de elementos pré-capitalistas em "sociedades comunistas" – encaradas como fechadas – e até mesmo a recriação de fenômenos sociais anteriores às revoluções liberais é amplamente estudada por conservadores e liberais do século XX. Se você juntar os estudos de Eric Voegelin, de Vladimir Tismaneanu e teóricos da Quarta Teoria Política, saberá disso.