sábado, 17 de setembro de 2022

Acabo de ler "Evolução Política do Brasil" de Caio Prado Jr.

 



A história do Brasil é impressionante por suas mazelas e eterna incapacidade de modernizar o país as necessidades do tempo. Não raro, caímos em reformas que seguem tão apenas parcialmente. Essa eterna condição sempre marcou nosso país em seu gradualismo e lenta marcha.

De dimensões continentais, o Brasil tem tudo para ser uma das maiores nações do mundo. Entretanto, perdemo-nos no meio do caminho e não conseguimos assumir o protagonismo da história. Ficamos relegados a ser o "país do futuro". Futuro esse, convém lembrar, que nunca chega. Estamos adiando nossa capacidade sempre, nunca ousando tanto quanto deveríamos.

O caráter social do Brasil se desenvolveu por uma elite que considereva apenas o seu interesse, nunca procurando um entendimento nacional para a condução dum projeto político unitário e verdadeiramente nacional. Quando a Coroa Portuguesa para cá veio, o rompimento entre Brasil e Portugal que poderia ser mais virulento, foi bastante calmo - embora não sem lutas. De qualquer forma, tudo no Brasil se faz com parcimônia e passos de tartaruga. Toda revolução é, em verdade, apenas um golpe de uns poucos gatos pingados.

Tendo em mente as mazelas de nossa história, um país focado no patrimonialismo e incapaz de planejamento de Estado, como poderíamos ser otimistas? Talvez a resposta seja por mais amor a pátria e desejo sincero de vê-la melhor em todos os âmbitos, não só para uns, mas para todos.

domingo, 11 de setembro de 2022

A Torta


 

 

   É estranho, mas também não é nada engraçado. Se você olhasse para mim, nesse momento, talvez tivesse um daqueles pensamentos de humor sombrio. A cena que veria gozaria de qualquer falta de senso com a realidade comum. Um palhaço com uma arma enfiada na boca. Sim, sim, encontro-me vestido de palhaço. Com uma calibre 12. Sou um autêntico palhaço, na verdade. Quando isso tudo terminar, já não serei palhaço. Tenho um nariz desproporcionalmente vermelho, que tem um irritante som de buzina ao ser apertado. Minha face é tingida de branco, embora a cor da maquiagem esteja um pouco borrada pelo meu choro. Uso uma peruca grande e vermelha e um chapéu curtíssimo. Um sorriso está desenhado em minha boca, embora eu não sorria - não me lembro sequer da última vez que ri de verdade. Minha roupa é extremamente colorida, ela bate em contraste com a minha vida acinzentada e infeliz que levo. Também uso dois sapatos gigantescos, extremamente prosaicos para a alegria da moçada.


    Alguém cuja a função é fazer os outros rirem não pode se matar, certo? Talvez, em sua visão preconcebida, eu seja uma espécie de ser mirabolante de variadas ideias, com uma complexidade além da curva e que consegue satirizar a crueza do real. Alguns gênios dirão que os bobos da corte, ancestrais espirituais dos palhaços, faziam piadas até mesmo do rei. O palhaço é aquele que ri de tudo. A vida é dura, então o palhaço é aquela espécie de intelectual contrário ao intelectual meditabundo, uma espécie de "intelectual gozabundo" ou qualquer outra palavra de sentido semelhante. Minhas piadas deveriam ser, então, uma espécie de relativização da densidade que a todos esmaga. Um alívio cômico ao tão comum sofrimento humano. As pessoas olham para mim e tiram mil e uma conclusões. Tudo em mim é gritantemente desproporcional e a assimetria causa nojo e comicidade. A indumentária dum palhaço foi feita para ser rapidamente identificável, o palhaço acima de tudo é um alvo. Convenhamos que o destoante chama a atenção e é por isso que o palhaço assim se veste.


    Tudo bem, meus caros. Olhar para um palhaço chorando com uma arma enfiada na boca não é a melhor cena que se vê. Talvez você pense que isso é engraçado, lhe digo que não é. Por favor, vamos estender um pouco mais a cena. Vários corpos sangrentos no chão e uma pequena chama a circundar o espaço circular daquilo que foi um dia um circo. Vamos dar um passeio descritivo por essa região. No meio, encontramos um mago, uma espécie de ilusionista bonitão que era famoso não só pelos seus truques, o era também por ser um garanhão. O mais famoso está no meio! A sua satisfação narcísica realiza-se até mesmo na morte! Se soubessem o quanto de homens vieram para espancá-lo, o motivo era sempre o mesmo: por ele ter pego as namoradas, as noivas e as esposas. Ouvia-lhe sempre dizer: "a melhor coisa do sexo é gozar na aliança de mulher casada". Há, há, há! Como ele era engraçado, não é? Porém ele não é tão bonito agora que seus miolos estão para fora e a estética proporcional de seu rosto se encontra tão feia e desproporcional quanto o meu rosto desproporcional e feio de palhaço, não é mesmo? Agora acho que ele "pegará" tantas mulheres quanto eu. Ele sempre dizia: "Astolfo, sabe o que dia eu ganharei na loteria? No mesmo dia que você perder a virgindade". Sempre quis saber o que as mulheres viam nele, só que a experiência de transar com o seu cadáver nem foi tão boa assim. Talvez existam coisas no mundo que sejam mais propaganda do que realização em si.

 

    Se dermos uma boa olhada na cena, veremos dois trapezistas musculosos. Encontram-se na extremidade esquerda. Coloquei-os lá pois eram esquerdistas, quase que comunistas - embora que não praticantes. Irmãos gêmeos. Carinha de um, focinho de outro. Tão bonitos e tão brilhantes. Eram capazes de todas as proezas físicas mais fantásticas. Eram ambos casados, casadíssimos com duas mulheres lindas. Elas tinham medo de serem traídas, e eles sempre que recebiam as ligações de suas esposas, sempre repetiam: "estou só treinando com meu irmão". Como eram assíduos em seus treinamentos, sempre na eterna companhia do irmão. Quem não quereria tão íntima amizade familiar? Eles morreram por envenenamento antes mesmo de poderem morrer por hemorragia. Sabe, eu cortei o pênis de cada um deles e coloquei na boca do outro. Quem poderia imaginar que os gêmeos trapezistas transavam um com o outro escondidos? Ah, de todos os números esse fica em incesto lugar. Outro escândalo sexual que nosso circo omitiu com bastante esmero. Eles também sempre riam de mim, diziam que meu número não valia meia moeda de um centavo. Agora estão ocupados em seu cadavérico número de boquete horripilante.

 

    Ao meu lado, há a mulher barbuda. Peituda, graciosa, bunduda. Ela era uma mulher fantástica. Dormia com uma porrada de homens. Eu era um deles. Tão ninfomaníaca quanto rejeitada. Nunca assumimos o namoro, ou seja lá o que tenhamos tido, tudo ficou a se enredar no sigilo. Hoje em dia, é-se comum relacionar-se com travestis. Aqueles que calculam bem, optam pelo sigilo. Só que, bem, ela nunca quis assumir, nas palavras dela, "um fracassado". E quando fazíamos aquilo que não posso chamar de amor, ela fechava os olhos e imaginava que estava com outro homem. Sempre me dizia para ficar quieto, tinha nojo até de minha voz. Apagava a luz para não ver minha cara. Só me beijava raramente, e quando me beijava para calar minha boca. Para ela, qualquer discurso meu era um asco. Propriamente nauseabundo. Sempre dizia que sentia mais prazer ao transar com qualquer um de nosso público do que comigo. O sonho dela era pegar o mágico, tal como de todas as mulheres e, também, dos trapezistas. Depois de anos, eu finalmente tive o seu coração. É, eu arranquei o coração dela e comi. O que ela me negou é finalmente meu. Não é questão de canibalismo, é questão de reciprocidade, ora essa. Qual é, sorriam um pouco, amigos, senso de humor não faz mal a ninguém.


    Na entrada principal, há o apresentador. Quando eu o conheci, eu estava a me formar em gastronomia. Eu queria abrir a minha doceria. Naquele tempo, saia pela rua para ofertar pequenos doces para transeuntes. Meu pai e minha mãe tinham morrido num acidente de carro, tinha agora que sustentar a mensalidade da faculdade e todas as séries de contas. A vida é feita dessas tragédias que pipocam do acaso, faz o quê? Lembro-me bem, ofereci-lhe uma torta por um valor módico, sabem? Inicialmente ficou pensativo. Achei que não pegaria. No fim, ele comeu, apreciou o gosto de minha pequena torta. Ele tinha dúbias intenções. Na mesma hora, perguntou-me se valia a pena sair pela rua vendendo pedaços de comida. Disse-lhe que era difícil pagar as contas, só que fazia isso na intenção de um dia realizar meu sonho. Ele achava a forma com que eu verbaliza e movia meu corpo estranha. Naquele momento, eu não sabia disso. Parece que não conhecemos as pessoas, nunca chegamos a conhecê-las. O coração humano não é translúcido, está sempre submerso no lodaçal da falsidade. Disse-me que eu tinha potencial, eu acreditei nele. No fim, convenceu-me treinar para ser palhaço. Aceitei pois precisava de dinheiro. A vida comum de nada de desassocia da prostituição ou da negação. Não fazemos o que queremos, fazemos o que é circunstancialmente necessário e o reino da necessidade está sempre aquém do reino da vontade. Aprendam essa importante lição.


    Meu sonho nunca foi ser palhaço. Não sei se algum dia alguém sonhou em ser palhaço. Nunca me pareceu um sonho desejável, ao menos não para mim. Eu queria ser cozinheiro, tal como já devem ter percebido pelo correr dessa louca história. Quando entrei no circo, havia mais gente. Uma série de gente talentosíssima. Gente que tinha talento real, talentos muito maiores e melhores que os meus - supondo, é claro, que tenho algum talento. Só que o negócio foi esfriando aos poucos, sabem? Parece que o mundo se interessa menos por circos hoje em dia. De qualquer forma, a renda apertou e o povo que comigo trabalhava se dispersou. Para eles conseguirem manter o público interessado, tudo ficou com um sadismo bizarro. Humilhações passaram a se tornar frequentes e o público adorava rir disso. Sobretudo comigo, o palhaço. Eu já não tinha lhes falado que o palhaço é sempre o alvo? Sabem quantas tortas eu preparei para serem jogadas em minha cara? Todos os dias, meu talento gastronômico era humilhado e ninguém comia nada do que eu preparava. Meu número, com o tempo, tornou-se um preparar uma comida e oferecer aos meus colegas. Eles sempre faziam cara de nojo, zombavam de mim e batiam as iguarias que preparava na minha cara. Minha vida parecia um enredo infantil e circular em que eu sempre preparava alguma comida e os espectadores olhavam esperando quando e como eu seria recusado e humilhado. Eu circulava num circo numa circularidade trágica.


    Claro que com a digitalização de tudo e a busca por maior público levou isso para internet. Milhares de pessoas passaram a ver em vídeos como as tortas, bolos e doces que eu preparava eram recusados, como eu era humilhado, como meu sonho de ser cozinheiro ia parar diretamente na minha cara. Meu sonho converteu-se em pesadelo. Eu era um cozinheiro e, ao mesmo tempo, não o era. Um cozinheiro cuja a comida ninguém come e, ainda por cima, é jogada com desprezo em sua cara. Sabem o quanto isso pode machucar um coração? Fiquei conhecido por muita gente, as pessoas sempre me diziam como adoravam a forma caricatural que eu atuava e como eu sempre me dava mal. Minha humilhação ficou acessível a milhões de pessoas. A um click, todos poderiam rir de mim, rir de meu fracasso, rir de minha existência patética, rir de minha comida. Familiares, parentes, colegas e amigos passaram a rir muito de mim. Riam não só pela frente, mas também pelas costas. Tornei-me uma vergonha para todos. Tornei-me uma vergonha para mim mesmo. Tudo desmoronou quando até a minha avó, minha própria vó, gente boníssima, contou-me que tinha vergonha de mim e que meus pais não me criaram para aquilo que vim a me tornar. Disse-me que eles se remoíam no túmulo e que era sorte deles terem morrido antes de verem a vergonha que me tornei.


    Certo dia, um dia não tão longe desse, eu tentei pedir demissão. Todos riram de mim, é óbvio. Eles sempre me viram como uma piada. Não era agora que eles poderiam ver a grande pessoa que eu era? O apresentador, após rir descontroladamente, pôs-se a falar com uma voz de desprezo, de zombaria:

- Olha, meu amiguinho, todo mundo sabe que você é um fracassado - ele sempre me tratou no diminutivo, mesmo eu sendo adulto.

- Quando me contratou, disse que acreditava em meu potencial - disse fremendo.

- E de fato acredito. Acredito no potencial que tu tens de ser objeto de piada - disse ele com um sorriso sardônico no rosto.

- Você nunca acreditou em mim? - falei com minha voz irritada, chorosa e tipicamente autopiedosa.

- Quem é você longe do que faz? Sua existência é ser esmagado e humilhado por gente superior a você. Contratei você pois vi em ti um palhaço completo. Feio, desproporcional, com trejeitos tresloucados, incapacidade de até andar como uma pessoa normal. Vi em você um palhaço, tudo que fazia parecia uma piada.

- Mesmo assim, eu quero pedir demissão.

- Você é, sempre foi e sempre será uma decepção, Astolfo. Bote isso na sua cabeça. Todos reconhecem o fracasso que você é.

- Eu continuo querendo me demitir - disse chorando, apertando os dentes e controlando minha raiva.

- Ora, tudo bem, não vou ser mal com alguém que é meu empregado há tanto tempo. Mas façamos um show de despedida para transmitir na internet.

- Posso fazer um pedido pra participar desse show?

- Sim, o que quiser.

- Quero que finalmente comam minha comida.

- É um pedido bem simples, acho que você merece isso depois de tanto tempo. Aceitado.


    Daquele dia em diante, planejei minuciosamente a minha vingança. Envenená-los-ia. Daria a eles o último show. O show em que eu não seria a piada. O show que agora, meu caro telespectador, você vê. O show em que eles são a piada. O show em que eu confesso os crimes que eles mesmo não confessaram. E, agora, finalmente poderia pegar o lugar do mágico. Far-lhes-ei um ato mágico. O que é, o que é: o saber que mais se sabe e o saber que mais não se sabe? O que é, o que é: quanto mais evidente, menos evidente é? Digam-me, meus queridos telespectadores, a verdade mais brutal e brutalmente negada! Estão preparados para descobrir o que a humanidade mais sabe e não sabe? O que a humanidade mais tem por evidente e por menos evidente? Querem saber o que é mais brutal e o que é mais brutalmente negado? Ok, 1, 2 e 3. (O palhaço dá um tiro na sua própria cabeça).

Acabo de ler "Mistérios Divinos" de Neil Gaiman e P. Craig Russell

 



Faz algum tempo que ando me aproximando do mundo das revistas em quadrinhos. Esse mundo, até agora, nunca me deixou de fascinar. Entre meus autores prediletos, encontra-se Neil Gaiman, uma pessoa capaz de proporcionar fantásticos enredos que sempre movem o leitor para uma leitura curiosa e apaixonada.

Como não poderia deixar de ser, "Mistérios Divinos" é outra excelente HQ de Neil Gaiman. A história se passa antes da criação de nosso mundo, quando os anjos viviam produzindo tudo que será utilizado no mundo que vivemos. Embora hajam alguns personagens que vivam no mundo em que nós vivemos.

Se a pergunta é: "como era o mundo antes de Adão e Eva", essa revista em quadrinhos traça um cenário para essa pergunta teológica. Claro que ela goza duma visão pouco ortodoxa no âmbito da teologia, porém isso só impacta gente meio fanatizada que não consegue se entregar numa experiência cultural sólida. Convido o leitor a esquecer-se por um momento de suas crenças teológicas e gozar dessa ótima experiência literária e artística.

A HQ seguirá dois personagens, um anjo e um homem. O caminho dos dois será encontrado na narrativa. E, interessantemente, pode-se ter um roteiro que deixará o leitor cada vez mais expectativo com a consumação dessa história que sempre deixa um gosto de quero mais. Um processo investigativo é traçado e questionamo-nos a função dos anjos e o desempenho de cada um deles no pré-criação.

Em relação a comentários sobre a história total, prefiro deixar-lhes mais com a experiência em si do que um comentário que estabelece previamente todos os eixos. Digo-lhes, tão apenas, que a experiência vale muitíssimo a pena e que a história tem bastantes reviravoltas.

sábado, 10 de setembro de 2022

Acabo de ler "Resident Evil Vol III" de S. D. Perry

 



Esse é o terceiro livro, todavia é o quarto que analiso. E estou gostando da experiência de ler todos os livros disponíveis da melhor franquia sobre armas biológicas do mundo. Preferi ler os livros do que perder meu precioso tempo com filmes e séries questionáveis que são excepcionais em fugir do enredo central dos jogos.

Nesse livro, acompanhamos o mais fantástico personagem da franquia, Leon S. Kennedy. Além da irmã de Chris, Claire Redfield. Os dois, como já devem adivinhar, sem muita sorte. Leon embarca em Raccoon City como seu primeiro dia de policial - e que primeiro dia, minha gente - e Claire busca seu irmão. Como consequência, os dois se deparam com uma série de problemáticas geradas pela empresa queridinha da galera (Umbrella).

A trama se passa num estado muito mais avançado de degradação de Raccoon. O cenário de catástrofe é cada vez mais presente e a destruição da cidade toma contornos de nível apocalíptico. Numa cidade cheia de zumbis, abandonada por aqueles que foram suficientemente espertos de ir embora cedo, Leon e Claire serão testados por todo tipo de abominação que por lá anda. O inferno na Terra torna-se ainda maior quando Birkin cria algo pior que o T-vírus - provando que nada é tão ruim que não possa piorar -, o famoso G-vírus. Birkin injetará o vírus em si mesmo e viverá uma arma biológica ambulante e mortal.

O livro também conta com a participação de Ada Wong, uma espiã que está incumbida da tarefa de roubar o G-vírus. A filha e a esposa do gênio do mal, senhorita e senhora Birkin. O leitor é convidado a entrar nessa deliciante e horrorosa viagem cheia de monstros, tragédias e condições abomináveis de todos os tipos.

Como fã de terror desde a minha tenra idade, ao ponto de ouvir creepypastas antes de dormir, sou suspeito ao falar. Gostei bastante do livro e, ao terminar essa análise, já parto para o próximo. Vale muito a pena se dedicar à horripilante e dantescamente fantástica de Resident Evil.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Transformei "A Palavra de Deus, Nossa Única Regra" de João Calvino em Audiolivro!




Olá, meus caros amigos. Estive a transformar mais um pequeno livro em audiolivro. Com a intensão de expandir a playlist cristã do canal, peguei um pequeno livreto de João Calvino. Como o outro livro cristão era de um autor católico (Raimundo Lulio), optei dessa vez por um autor protestante consagrado. Mais uma importante "produção" do projeto Latir contra os Grandes.

No livro em questão, Calvino fala sobre a Palavra de Deus em contraste com as tradições humanas. Há críticas direcionadas aos chamados judaizantes (cristãos que assumem tradições judaicas) e aos católicos (também chamados de papistas). O livro também aborda a questão da pureza de coração, que torna tudo puro.

Veja em fragmentos no YouTube:

Ou veja num único áudio no Spotify:

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Acabo de ler "Trinta Anos esta Noite" de Paulo Francis

 



Nada mais memorável do que aprender com um mestre morto. A memória dos contemporâneos é fantástica, mas não chega a ter o grau e estatura de inteligibilidade de alguém que viveu, de fato, o período histórico analisado. Embora que se deva recordar: a vivência não condiciona um modo de se ver o mundo de forma uniforme.

No livro, Paulo Francis conta-nos de suas ilusões. Como a sua mentalidade foi mudando, da esquerda para direita, conforme ia envelhecendo e vendo os efeitos da iniciativa privada nos países desenvolvidos. Fora as suas ilusões com o socialismo, sistema esse carregado de mortes que pipocavam junto com as suas mazelas totalitárias - no final, implodiu-se devido a própria fragilidade de sua economia e baixa adesão do povo ao sistema. Não só isso: vemos como Paulo Francis acompanhou as mudanças do país, sentindo-as na pele.

Quem não se apaixonou pela situação política? Quem não se encantou por ideologias? Ah, o eterno amor por essa religião civil, temporal e que sempre nos encanta com a possibilidade dum paraíso terrenal via imanentização escatológica. Coisa bem diagnosticada por aquele que foi um dos maiores conservadores de todos os tempos (Eric Voegelin). Francis nos demonstra, apaixonadamente, como se sentiu em cada momento e como reagiu ou agiu em cada condição.

Francis vai nos falando de sua simpatia por Brizola, que logo descambou em desapoio conforme mudava a sua visão de mundo. O nacionalismo foi algo que perdeu com o tempo também. Reclama da forma estatista que o regime militar adquiriu e como o voto obrigatório mata a democracia brasileira - gente completamente desinteressada pela política nacional vota sem o menor preparo teórico simplesmente por ser obrigada a votar.

Francis fala como é difícil ser brasileiro. Usualmente somos provincianos demais e incapazes de ver o rumo internacional. Além do fator constante de estarmos com ideias abandonadas pelo mundo, sempre pegando o que já foi usado e descartado como referência máxima. Diz-nos que é difícil ser brasileiro sem virar alcoólatra, doido ou acreditar em devaneios. O gosto final da leitura é um enriquecido pessimismo.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

A Panaceia do Espaço


 

 

     Quando uma tia minha morreu, fiquei a chorar sem ao menos conhecê-la direito. O dia era acinzentado e trazia a sensação dum mau agouro. Era a primeira vez, a morte fez-se morada em meu imaginário sem permissão ou pedido algum de concessão, ela simplesmente arrombou a porta e adentrou como nada se fosse. A mim só coube suportar a noção de que as pessoas não eram imortais, que eu um dia sumiria para sempre e que houve um mundo que não foi marcado pela minha presença e haverá um mundo em que minha presença já não será marcada. A ideia de que toda minha existencialidade era um grão de areia insignificante que se juntava a outros infinitos grãos de areia não me foram reconfortante. Só percebi a banalidade do valor superestimado que damos a todas as coisas.

 

    Se eu pudesse conceber uma imagem fidedigna ao tempo, teria que criar uma mitologia pra explicá-lo. Decidi fazer essa tarefa por não ter nada melhor para fazer e por ter a consciência de que já estive em dias melhores. Como sou um pessimista nato, não esperem de mim nada que fuja duma concepção injuriosamente sofrível. Quiçá tirem algo de bom, útil ou aproveitável desse pequeno conto. Eu mesmo, quando o criei em minha cabeça esquiva e atordoada, pude tirar dele uma importante lição.

 

    Quando um bebê nasce, ele se depara com um homem velho e barbudo a olhar-lhe. Ele não tem noção de quem esse homem é ou o que faz lá. Esse estranho homem tem vários pregos guardados numa caixa e carrega consigo um estranho martelo. O homem pega o martelo e coloca um dos pregos na boca. Vê o bebê e olha compadecido, conquanto que também frio. Ele pega o pequeno bracinho do bebê, segura-o fortemente para que não fuja e martela o prego no braço da pobre criatura. A criança chora compulsivamente, sem entender nada e sentindo a dor sem poder defini-la. Do mesmo modo, o velho também chora, tal como se ferisse a si mesmo nesse processo. Do momento em que nasce, até o momento que ela morrerá, esse estranho homem marcá-la-á com pregos a cada tempo.


    Cada prego representa uma ação dada no espaço-tempo. Esses pregos nunca saem ou cicatrizam. Eles doem eternamente, atordoando cada homem por sua ação. No começo, damo-nos por insatisfeitos e continuamos a agir com a dor acumulada. Só que desde logo sabemos que cada prego será fincado a cada ação e conosco ficará a afligir nossa consciência a cada passo. O bebê tão logo tornar-se-á menino, olhará ao velho aflitivamente e estenderá a sua mãozinha para que ele coloque outro prego. Esse processo se repetirá até que chegue à adolescência. Rebelar-se-á tentando fugir de todo esse processo repetidamente doloroso, tentando correr para todos os lados do infeliz idoso. Todo esse vaivém negacionista não poderá salvar o jovem, tornar-se-á adulto e com mais pregos ardentes em seu corpo.


    Um dia, mais adulto e consciente de si, o jovem que se torna homem perguntará ao idoso, pela primeira vez, a razão de tanto sofrimento. Mais uma vez, o homem pensará que o estranho torturador não dirá nada. Só que, dessa vez, ele lhe responde.

- Por que me faz isso? Que te fiz?

- Não sou eu que lhe faz isso, é você quem faz - diz o idoso com lágrimas nos olhos, numa voz débil e com as mãos frementes.

- Quem é você?

- Eu sou você. Você é a consciência da consciência. Eu sou a consciência da consciência da consciência.

- É impossível que eu me cause tanto sofrimento, está mentindo - dirá o homem hesitante perante si mesmo.

- Não, todo prego que lhe coloco é duma ação tua. Cada ação tua é marcada no tempo peremptoriamente, sendo irretornável. Todo passo é marcado pela eternidade, nessa eternidade do espaço-tempo em que se é impossível mudar. Tudo que faz é marcado, nada é retirado. Se viveres cem anos, terás tua história a repetir-se nesse espaço de cem anos pela eternidade.

- Eu não entendo.

- Pois um dia entenderá.

- Por que é a primeira vez que fala comigo?

- Não é a primeira, na primeira era muito novo para se lembrar. Só que um dia, lembrar-se-á.


    O homem tentará variadamente entrar em contato com o velho. O velho recursar-se-á a tornar a prosa. Com o tempo, o homem verificará que o velho se tornará tão apenas uma caveira. Caveira essa que omite a maior parte de seu corpo com um manto preto. Uma caveira de mesma função: colocar pregos em seu corpo, numa tortura sem fim. Um dia, essa caveira olhará para ele, não haverá mais nenhum prego para ser pregado. Ela simplesmente se despirá e dirá:

- Conte o número de pregos.

    

    Contando os pregos, o homem verá uma determinada quantia. Ainda não compreendendo, pedirá ajuda para a caveira que outrora era homem:

- Não consigo compreender.

- Conte, então, todos os pregos que tem em seu corpo. 

 

    O homem contará e verá que é o número exato de pregos que tem na caveira. Então se dará conta de que era ele mesmo o tempo todo pregando pregos em si mesmo. Olhará para a caveira e ela estará segurando um espelho, o homem olhar-se-á e verá que é o mesmo velho que viu quando era apenas um bebê.

 

- A vida se inicia com um bebê sem mácula. Logo nele serão pregados pregos, estes terão quantidade diferente a cada indivíduo. Alguns, mais assustados, negar-se-ão a mudar com mais frequência e, então, terão menos pregos. Outros, mais ferozes e imperturbáveis, terão muitos pregos. Se bem que a quantidade de pregos pouco importa, mas o valor que cada prego teve.

- Por que me diz isso só agora?

- Eu partirei, minha missão se findou. Mas a tua começará.

- Qual será a minha missão?

- Lembra-se que a eternidade é só um espaço-tempo determinado a repetir-se infinitamente pela própria natureza do tempo-espaço marcar-se na eternidade?

- Lembro-me.

- Então já sabe sua missão.

- Qual ela é?

- É a experiência.

- O que é experiência? Como define isso?

- Ora, a palavra é menos que o pensamento e o pensamento menos que a experiência. A experiência é aquilo que chamamos em parte de incognoscível. Sua natureza mesma é perdida com o pensamento que não pode traduzi-la ao todo e na palavra que é incapaz de traduzir o todo do pensamento que é menos que a experiência. Uma hora você perceberá que há verdades que escapam a própria possibilidade de inteligibilidade com a razão.


    Um choro torna-se audível. O bebê que tornou-se homem velho olha para si mesmo bebê e, de súbito, toma consciência de sua missão. Uma quantidade de pregos, a mesma que tem em teu corpo, está dentro duma caixa. Ele tenta olhar para a figura cadavérica, a própria morte, para lhe clamar por misericórdia nessa torturante tarefa. Ela não está mais lá. Só há, na sala, "ele e ele". O homem velho pegará o martelo, olhará para o pobre bebê que lhe chora e dirá:

- Por muito tempo, acreditei na panaceia do espaço. Poderia tomar qualquer ação ou ação alguma, só que os pregos continuaram a vir. Então vi que o sofrimento era inevitável e que cada escolha arderia eternamente em meu corpo. Poderia dar-me conta disso e tomar escolhas mais prudentes, só que só percebi o valor do tempo que marcava na eternidade após grande tempo. Agora que o tempo passou, sei que na vida adulta tudo é erudição e que cada experiência é marcada pela experiência de outrora. Não há, na vida adulta, escolha sem marca de memória, memória sem marca de sensação, sensação sem marca de sentimento. Eu sinto muito, pobre pequeno. Terei que marcá-lo com os erros e acertos que cometi. Esses serão os mesmos erros e acertos que tu cometerás.


    O homem pegará o braço do pobre bebê, colocará o parafuso na boca e pegará o martelo. Chorará e martelará a criancinha. Então perceberá que sentirá dor intensificada na mesma parte que martelou o bebê. Chorará enquanto faz isso, relutará, só que continuará a sua missão. Sua mente tornar-se-á tão anuviada pelo sofrimento que causa a si mesmo que não conseguirá se expressar muito. A única coisa que ele sabe é que essa é a sua maldição eterna: não ter percebido que deveria ter vivido cada momento tal como se o vivesse pela eternidade, já que só assim aproveitá-lo-ia por completo.