segunda-feira, 1 de abril de 2024

Acabo de ler "Jogos de Improvisação" de Flávio Desgranges

 



Muitas vezes olhamos as ciências humanas como uma educação baseada na subjetividade, todavia essas exigem uma alta carga de abstração que, apesar de aumentar a objetividade, também tornam o estudante abstraído da própria questão em que se coloca. O teatro, entretanto, age de forma distinta.


Nos jogos teatrais adentramos numa outra forma de colocação, num outro modus operandi, em que o objeto investigado e a vida vivenciada se demonstram complementares. Realidade e imaginação, vida e criação, abstração e real, empirismo e epistemologismo. Tudo se dá de forma conjunta.


No jogo teatral a investigação é a forma com que imaginativamente nos colocamos em cenários, recriando substancialmente, corporificando como se tudo fosse, não um mero jogo, mas a vida que de fato vivemos e os sentimentos que de fato sentimos. O objetivo da investigação teatral é abrir, por meio de um jogo, a percepção daquele que analisa. Só que nessa investigação não há separação entre ser-epistemologizante e objeto-epistemologizado. Ser e objeto não estão separados, estão na mesma condição de subjetividade.


O acadêmico de humanas costuma, em sua prática, separar a sua realidade psíquica para depurar a sua análise da realidade. Assim ele garante a sua objetividade. Já o estudante de teatro faz de outra forma: ele investiga por meio de um contato íntimo com o objeto de sua análise, confundindo a noção entre realidade e ficção, tornando até mesmo ficção em realidade.


Estudar de forma teatral não é apenas ler um livro, ler um artigo. Não é escrever sobre algo que está distante. Estudar teatro é viver o livro, viver o artigo, escrever sobre o que está no próprio coração. É por isso que o estudo do teatro é tão maravilhoso e rico, visto que promove alteridade a cada momento.

sábado, 30 de março de 2024

Acabo de ler "Dramaturgia Coletiva no Teatro para Crianças: comunicação em processo" de André Ferraz Sitônio de Assis

 



Muitas vezes concebemos o teatro para crianças como um produto menor, o objetivo é meramente um entretenimento que deixe as crianças temporariamente quietas e, quiçá, alienadas. Outra forma de concebermos o teatro para crianças é a do espectador-receptáculo que absorve o conteúdo didático de que lhe passamos doutoralmente.


Há algo estranho nessa relação, e aí adentram três questões: 

1- Queremos que o teatro infantil seja apenas uma distração para nos dar um descanso a nossa responsabilidade para com as crianças?

2- Vemos as crianças como seres fora da complexidade do mundo em que vivemos e que, por isso, são incapazes de compreenderem os dramas humanos?

3- Queremos gerar pessoas subordinadas às nossas cosmovisões, meros seres-receptáculos que, na medida em que crescem, tornam-se nossa imagem e semelhança no âmbito das ideias?


Indo na contramão dessa tendência, há uma outra opção que no fundo é uma opção política: o teatro para crianças como veículo transmissor dum processo dialógico entre a criança e o adulto. Onde os anseios humanos são tratados como universais e a própria criança está envolta neles. E o processo de construção cênica se dá numa relação de liberdade e construção coletiva em vez de uma programação pregada antecipadamente por um adulto visto como ser superior e condutor do processo.


Se queremos uma sociedade mais libertária e autônoma, onde padrões não são previamente estabelecidos como superiores aos outros, temos que retirar esse "aspecto subordinativo" que sempre aparece: adulto X criança, hétero X LGBT, saudável X doente, branco X negro, são X louco.


Quando criamos um "modelo" ou aceitamos esse "modelo" como critério normalizador, pressupomos uma relação subordinada em que tudo deve copiar exemplarmente esse modelo. A criança se torna melhor quando se torna mais adulta, a pessoa LGBT quanto mais se aparenta com os critérios de heteronormatividade, o negro quanto mais se branquifica, o "louco" quanto mais se aparenta com o "são". Essa relação modelar é uma relação de submissão que deve ser quebrada pela liberdade.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Acabo de ler "A Criança e o Teatro na Escola" de Claudia Damasio

 


A arte teatral pode ser uma das formas centrais de aprendizagem. E há uma razão para tal: ela correlaciona o sentimento na sua forma de educar, o que demonstra um desenvolvimento distinto e mais integral em sua abordagem pedagógica.


Um dos grandes problemas da educação atual é o fato de que ela vai por uma via muito objetiva. A objetividade em si mesma é louvável, mas há um questionamento inserido nela: como algo que se apresenta tão distante pode ser sentimentalmente atraente? Dependemos sempre de que algo nos impulsione. Para estudar é preciso gostar.


Quando adentramos no seio da educação infantil a problemática é apresentada de forma maniqueísta num dualismo estéril: lúdico x didático. O terreno acadêmico é, por sua vez, enquadrado como que numa soberania científica em que a frieza e o calculismo - altamente idealizados e criados pela própria imaginação, visto que inexistentes no mundo real - são valores absolutos e devem reinar universalmente. Só que o conhecimento deve ser atraente, se não o seu estudo é ignorado ou, até mesmo, torna-se incompreensível.


O drama do teatro nas instituições de ensino é exatamente isso: a imagem duma educação séria contra a imagem duma educação lúdica, além da ausência duma aproximação entre as duas. A escola não é local para o sentimento. Todavia essa crença gera um estado inversamente proporcional ao que almeja: em vez de aumentar a eficácia da educação, diminui.


Para amadurecermos nas metas na educação do Brasil temos que alterar não só a forma com que ensinamos, temos que mudar a forma com que pensamos a educação. E também a forma com que lidamos com nossos sentimentos e nossa imaginação. Não mais criminalizando ou oprimindo cada qual que imagine e sinta, mas criando uma síntese entre o racional e o emocional. Nisso o teatro, como arte, tem muito a contribuir.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Acabo de ler "O Teatro Infantil na Década de 1980: Um olhar para o universo infanto-juvenil" de Carolina Castenheda Moura

 



É preciso criar uma apologética da baderna. Construir uma grossa bandalheira que, num passe iconoclasta, sirva para um desenvolvimento do tônus muscular da mentalidade democrática. O questionamento dos valores, a afirmação da identidade dos excluídos, o grito poético dos atormentados: é nisso que deve estar a arte teatral.


O teatro pós-ditadura se ampliou nas gamas de assuntos: adentrou nos debates da política, em prol da democracia; no campo da sexualidade, para combater os estereótipos de gênero; dialogou amplamente com a cultura circense, em prol da abertura para o questionamento dos valores enraizados. O fazer teatral não é, nem poderia ser, uma aceitação dos valores estabelecidos e tidos como referência. Ele é, antes de tudo, um questionamento e a tentativa de gerar uma possibilidade: a de um novo mundo.


O teatro para a criança tem uma necessidade, tem uma especificidade. Nela se encontra um problema de monumental importância: que tipo de ser queremos formar? Uma síntese entre o campo da educação e da psicologia se faz necessário. E a mera repetição de fórmulas não adianta. É virtuoso que o teatro gere uma postura de inquietação e de questionamento para os problemas sociais e individuais, mesmo que essa virtude consista na quebra do que é padrão.


O teatro para a criança traz sempre dualidade: ludicidade X didatismo; questionamento dos valores vigentes X passagem de valores. É preciso que se brinque ao educar. É preciso que se questione ao mesmo tempo em que se busque algo mais desejável. É preciso caminhar com fé nas próprias dúvidas e rejeitar o conforto dos rituais que a sociedade nos apresenta.


Creio que o artigo apresenta, acima de tudo, uma importante questão: de que o teatro é um caminhar contínuo em corda bamba. E de que os seus defensores são, antes de qualquer colocação de ordem social, questionadores confessos que podem estar sempre na mira dos cultuadores de vaidades.

Acabo de ler "Teatro Infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança" de Sandra Márcia Campos Pereira

 



O teatro é a arte da expressão. A sua importância está em ensinar as pessoas a se expressarem. Isto é, num mundo que constantemente nos afronta, é necessário uma posicionalidade. A capacidade de agir dentro do mundo, de chegar onde quer chegar, de ter até uma resistência para com o apagamento da própria identidade em um mundo que constantemente busca uma normalização esvaizadora da potencialidade ontológica de cada alma humana.


Por meio do teatro temos a possibilidade de expressar uma mensagem e, ao mesmo tempo, de entrar em contato com essa própria mensagem que é parte de nós. O processo de construção da teatralidade é o processo de vivência da própria mensagem que se encontra dentro do texto. É dar vida, é dar voz, é dar palpabilidade ao que representamos. Encontrando sempre um nexo de conexão ao que está dentro do texto, visto que o que está ontologicamente escrito também se encontra dentro de cada um de nós.


E é a partir dessa linha que podemos compreender a importância do teatro para cada criança, não só no Brasil, como também no mundo: a capacidade de uma vivência simulada e aproximativa dos grandes dramas da vida humana. E, por meio dessa, o desenvolvimento de sua personalidade para agir em meio ao jogo de conflitos em que está imersa a própria realidade de nossa existência.


É por meio do teatro que somos sensibilizados e podemos novamente ter um reassombramento: é onde há uma construção do mundo não como uma realidade que devemos nos curvar, mas como algo que podemos nos emancipar e reconstruir. Quando ensinamos teatro, nas escolas ou faculdades, queremos que o aluno possa aprender pela alteridade e pela criatividade.


A criança ao estudar e ao praticar o teatro adentra num campo artístico em que o aspecto do diálogo com o outro é salutar, visto que a maior beleza do teatro é dar voz ao outro por meio de si e, com isso, descobrir que também somos parte do outro. O teatro é perigoso pois humaniza e pela humanização faz a sua crítica.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Acabo de ler "Teatro para crianças: dramaturgia e encenação" de Raimundo Matos de Leão

 



Qual seria o posicionamento quanto a produção teatral voltada ao público infanto-juvenil? Um ar adocicado, distante das questões da vida em si mesma, para fazer rir e promover um encantamento pelo esvaziamento da criticidade ante a angústia do mundo em si mesmo? Talvez não.


Nesse artigo há um conflito: muitas vezes se visa dar às crianças ares doces, de modo a não conectar a vida delas a construção usual - e, por vezes, deplorável - da vida no geral. Elas cresceram protegidas e frágeis para um mundo que posteriormente as esmagará. Essa condução não é só estranha, como se revela sempre ingênua.


A questão teatral é um mergulho do ser na conflitualidade. Seja esse conflito de ordem pessoal, de ordem social, de ordem política. Não há qualidade em obras que se esgueiram sorrateiramente num esvaziamento do próprio mundo, do ser e dos conflitos. O teatro é uma arte que agoniza, é uma arte que sangra pois o humano mesmo sangra.


É necessário municiar a pessoa de sua humanidade: ensiná-la sobre a vida e sobre a morte. Mesmo que por uma obra dedicada ao público infanto-juvenil. Um trabalho crítico, no âmbito teatral, é infinitamente mais proveitoso a longo prazo. Ensina, desde cedo, um desenvolvimento do raciocínio e da capacidade de compreender o mundo e a si mesmo.


Esse artigo nos demonstra exemplos fantásticos de como fazer isso. E a sua leitura é de natureza salutar para quem busca bons artigos para melhor entender a dramática processual do teatro infanto-juvenil em sua devida especificidade e proporcionalidade.

Acabo de ler "Uno y el Universo" de Ernesto Sabato (lido em espanhol)

 



A leitura de Ernesto Sabato vem sido duma grande preciosidade em minha vida. Ernesto, junto a Ortega, apresentou-me a língua hispânica na potencialidade de sua beleza imortal. Os dois, Ortega e Ernesto, apresentam um espanhol estilisticamente rico e bastante poetizado. Engana-se quem crê que suas colocações intelectuais não sejam equivalentes: os livros deles são belos e conceitualmente ricos.


Ernesto trabalha numa via bastante difícil: precisa passar toda uma densidade conceitual, algo intelectualmente difícil, ao mesmo tempo que precisa desenvolver a beleza artística de quem usa a língua em si mesma como arte, algo artisticamente difícil. Sua obra, ao mesclar as duas, traduz-se num equilíbrio formidável que poucos intelectuais poderiam levar cabo.


Essa é uma obra bastante diversa. Sua abordagem traz uma série de assuntos que são tratados em textos que variam de tamanho e não há uma unidade estrutural plena e sistematizada. Ainda assim, a leitura e a compreensão não são minimamente prejudicadas pela natureza conjuntiva da obra. O que demonstra, mais uma vez, a grandeza desse gigante argentino.


A obra mesclará diversos assuntos: epistemologia, filosofia, história, surrealismo, política, teologia, poesia, crítica literária, etc. E o formato, absolutamente variável, traz um quê de humor refinado, de apologética, de polemismo, de prosa. Uma variação densa que dificilmente passaria despercebida.


Mesmo que exista, nessa versão, uma nota introdutória do autor dizendo que ele mudou de crença, não se pode negar que esse pequeno livro é bastante bem escrito e bem pensado. Revela já o estilo de um autor que se revelou a cada dia mais fantástico e de estatura universal.