terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Teatro Completo: Peças Psicológicas" de Nelson Rodrigues

 



"E se, todavia, quereis saber, ainda, o que quer dizer 'Viúva, porém honesta', eu vos direi: sua mensagem é demoníaca. Por 'demoníaco' entendo eu esse impulso que vem de dentro, das profundezas, esse grito irredutível contra tudo e contra todos que falsificam os valores da vida. É essa negação da ordem social, política, familiar ou religiosa que já apodreceu ou que representa verdades esgotadas"

Nelson


Já terminei de ler mais e de analisar mais da metade das peças teatrais de Nelson Rodrigues. Não dum tradicional, visto que o faço de "modo abstrato" para evitar dar spoilers ao possível futuro leitor e pelo fato de que o objetivo das análises postadas no Instagram é o de serem curtas, breves e rápidas de serem lidas.


Ler Nelson Rodrigues em sua forma teatral vem mudando toda minha percepção da realidade. Sempre fui muito próximo de sua obra jornalística e a sua obra literária mais voltada ao romance, mas como não fui muito próximo ao teatro, nunca tive muito interesse em ler a sua expressão teatral. Em minha vida, tinha lido poucos textos teatrais. A leitura dessas obras é fruto dum gosto muito recente. Juntei o útil (ler um gênero literário que eu tinha pouco contato) ao agradável (ler a obra de Nelson Rodrigues).


Pretendo, todavia, só terminar a leitura da obra teatral de Nelson Rodrigues ano que vem. Atualmente tenho que terminar uma série de outros estudos e para adiantá-los preciso largar um pouco de minhas chamadas "leituras livres" - que não deixam nem por um momento de serem intelectualmente proveitosas.


Creio que se pudesse dar uma recomendação aos estudiosos, recomendaria a leitura mais acentuada do corpo literário de Nelson Rodrigues. Apesar das diferenças culturais geradas pelo tempo e a suavização dos costumes que Nelson criticava, ainda há um quê que nos escapa profundamente: a angústia da desejabilidade que temos enquanto seres humanos de natureza essencialmente transcendental. O nosso desejo se choca com o mundo e nem sempre o mundo lhe corresponde, e isto leva a um sofrimento e é deste sofrimento (desejo x contradição) que a obra de Nelson trata particularmente bem.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Anti-Nelson Rodrigues" de Nelson Rodrigues

 



Nesta obra temos uma inversão do método rodrigueano, mas executado de forma magistral. Isto é, Nelson Rodrigues escreveu uma obra em que a virtude vence o pecado. Esta fórmula inverte a fórmula muito conservadora de Nelson Rodrigues. Não compreendeu o "muito conservadora"? Pois bem, explico: enquanto a esquerda crê num otimismo antropológico, a direita crê no pessimismo antropológico. Para a esquerda, o homem é bom por natureza; para a direita, o homem é mau por natureza.


Há quem considere a obra rodrigueana como progressista, mas estes incautos caem no desconhecimento profundo do que verdadeiramente é o pensamento conservador. O pensamento conservador é aquele que crê que o homem é mau por natureza. Nelson Rodrigues fez críticas variadas aos erros sociais, fez por ser um autêntico moralista que expõe a nudez da sociedade em que vive. No entanto, tais críticas, mesmo quando direcionadas aos setores mais retrógrados e comportamentos tirânicos, não colocam Nelson no rol de pensadores progressistas.


É natural que um conservador condene a opressão desnecessária e a hipocrisia. É natural que um conservador seja um reformador social. Conservadorismo é, por excelência, um reformismo profundo dum cético abismado. A incapacidade de compreender essa essência e, por conseguinte, a intencionalidade conservadora torna o debate ininteligível para a maioria dos debatentes que tateiam no escuro sem chegar a uma conclusão real.


Se pudermos dizer, Freud também atacou opressões desnecessárias. No entanto, Freud entendia que a opressão (ou repressão) é pedra basilar no contínuo do progresso civilizacional. Neste sentido, Freud também seria perfeitamente conservador e daí surge, aparentemente, a briga que ele teve com Wilhelm Reich. Nelson Rodrigues não se torna progressista por ser aliar a esquerda no que é necessário aliar-se a ela. Visto que o conservadorismo é preservar o que deve ser momentaneamente preservado e alterar aquilo que deve ser alterado, logo a tradição conservadora não é, de forma alguma, estritamente de direita. Dualidade incompreensível para a maioria dos acadêmicos.

Acabo de ler "Viúva, porém honesta" de Nelson Rodrigues

 



"E vou provar o seguinte, querem ver? Que falsa é a família, falsa a psicanálise, falso o jornalismo, falso o patriotismo, falsos os pudores, tudo falso!"
Diabo da Fonseca (personagem da obra)

Gosto dessa obra pelo cinismo geral que a conduz. Isto é, essa peça de teatro é recheada dum cinismo que transcende uma sátira banal, é um cinismo que visa uma crítica metódica e organizada da sociedade e das organizações vigentes.

Vemos que tudo que ali existe é propriamente uma farsa: o motivo da viúva não querer trair seu marido, o jornalismo, a crítica de teatro, o psicanalista, o médico. Todos são farsantes que estão presos a vínculos meramente performáticos com suas carreiras, nunca um objetivo sincero para com o que se propõem a fazer. A obra visa, em seu fundo, demonstrar através do teatro que há um teatro na vida e este é um teatro que é, no fundo, um teatro horrendo por ser obrigatório. Graças aos condicionamentos sociais, somos obrigados a performar traindo o que nos há de mais essencial e verdadeiro. O preço do sucesso na sociedade é a perda de autenticidade, por consequência a perda do ser e, no fim, a perda de si mesmo em prol duma performance.

A obra não deixa de ser extremamente engraçada e fará o leitor dar boas risadas enquanto se delicia com os eventos tragicômicos que se sucedem. As frases que aparecem trazem uma imensa dose de efeito cômico pois possuem uma desvalorização de tudo aquilo que a sociedade tradicionalmente vê como bom, mas que intimamente não segue. A diferença é que, ali, é dito a verdade da dualidade da vida: existem regras de performance e a realidade da vida, visto que a imagem pública é para ser condicionada e a imagem privada é para ser secreta.

Qual é o sentido de tudo isto? O marido é homossexual, a viúva é fiel ao marido morto pois o melhor tipo de marido é o morto pois não enche o saco, o psicanalista é farsante, a ex-prostituta é farsante, o otorrinolaringologista é farsante, o jornal só existe para "espinafrar" e chamar atenção do público através de choques sentimentais.

Por vezes é necessário rir de si mesmo para se libertar da cegueira dos próprios olhos.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Acabo de ler "Valsa N° 6" de Nelson Rodrigues

 



Uma peça que apresenta um jogo de quebra cabeças em que a personagem precisa, pouco a pouco, esmiuçar para descobrir a própria identidade através dum soliloquio. A primeira vista, não parece muito complexa e tampouco interessante. Certamente não é uma das obras mais complexas de Nelson, todavia ainda é uma boa peça.


O que interessa nessa obra é a qualidade da estrutura psicológica de autodescoberta. Às vezes é preciso que um homem reveja seus pensamentos como se fosse um estranho para que ele entenda a si mesmo através de outro ponto. A autoanálise é uma boa forma de dialética: em primeiro lugar, o estranhamento de si; em segundo lugar, uma reflexão; e, em terceiro, um retorno a si mesmo. O ser, para descobrir-se, oculta a si mesmo para poder revelar-se mais profundamente a si mesmo.


Se isso não é, ao fim, uma demonstração de profundo entendimento psicológico da realidade do homem enquanto ser de imensa tonalidade subjetiva, não sei o que é. O fato é que Nelson demonstra sua genialidade mesmo em suas pequenas obras. Talvez essa não tenha um lado bastante voltado a uma complexificaçāo magistral, mas é sem dúvida uma peça que demonstra um rasgo sublime de seu autor.


Essa obra é também um convite: estranhar-se, alienar-se de si para si, arrancar os próprios olhos e pô-los distantes do próprio corpo. Tudo isto para se ver alienado da própria realidade. Não como uma pessoa completamente distante de si mesma, o que impossível, mas como uma pessoa que está numa eterna jornada de mergulho no oceano da própria alma.


Para que o leitor leia essa obra, recomendo que tenha lido outras obras e já compreenda a forma de trabalho intelectual do Nelson. Se não, corre o risco de passar por cima duma obra que revela traços sutis da substancialidade de um grande mestre.

Acabo de ler "Vestido de Noiva" de Nelson Rodrigues

 



"Vestido de noiva em outro meio consagraria um autor. Que será aqui? Se for bem aceita, consagrará... o público"

Manuel Bandeira


Existem aquelas obras que, quando escritas, mudam o autor. A pessoa em si já não é mais a mesma, chegou num horizonte de consciência mais elevado em abarcabilidade. Já existem obras que mudam o público, demonstrando uma diferença notória entre quem leu e quem não leu. Existem obras que marcam cidades inteiras. Porém existem obras que, quando bem entendidas, estão muito além de marcar o autor, o público, a cidade e o país. Existem obras que marcam a humanidade, tornando-a mais rica e sabedora de si mesma.


Quando falamos em "Vestido de Noiva" pensamos não em "uma" obra. Pensamos naquela exata e específica obra. Uma obra que mudou tudo de modo tão irreversível que seria impossível não pensá-la do ponto de vista duma anomalia. Existem coisas, pessoas, atos, feitos que, pelo simples fato de existirem ou terem existido, alteram estruturalmente o mundo. Ou seja, são precisamente o "sal" que dá vida à Terra.


Nesta obra, vemos diferentes planos sendo realizados de forma mais ou menos desordenada. Estes diferentes planos são uma inovação, mas igualmente são a realidade da humanidade: não vemos as coisas como são, vemos elas através de lentes múltiplas. Existe o plano da realidade, o plano do simbólico, o plano da imaginação, isto na linguagem psicanalítica de Lacan. Em certo sentido, Nelson Rodrigues trouxe este grande conflito para o plano dramaturgia.


Sua grandeza está na forma com que ele dirige as diferentes realidades, os diferentes planos, as esferas alternantes que se passam. Ele soube dar uma substancialidade que deu uma vida imensa a sua obra. Há, em cada personagem, uma imensa tonalidade de cores que revela individualmente sua inegável condição humana.


Nelson Rodrigues é um dos maiores escritores da história de nosso país e, igualmente, da história da humanidade. O verdadeiro profeta do óbvio ululante e, quiçá, nosso único profeta, visto que só profetas enxergam o óbvio.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Acabo de ler "A Mulher sem Pecado" de Nelson Rodrigues

 



Creio que a principal questão dessa peça seja a angústia que é desejar. Se o desejo é um sentimento e o sentimento é volúvel, nunca sabemos se a pessoa que amamos nos ama de verdade - ao menos não de forma permanente. Não havendo como averiguar isto de forma definitiva, fazemos por meio de testes periódicos que, muitas vezes, só demonstram nossa própria fragilidade e insegurança.


Quantas vezes pomos o "o objeto" de nosso desejo em situação constrangedora para nos sabermos amados? A ridicularidade da insegurança sempre explode em gesto amargo. O doce, quando exigido e quanto mais exigido, torna-se mais e mais salgado. Nelson Rodrigues nos fala, por meio do extremismo típico de sua obra, do patético profundo de nossa inseguridade emocional.


Há um jogo de contradição aí: é profundamente humano desejar ser desejado, todavia ser desejado não é um "direito" e tampouco uma "obrigação" do próximo e, muito menos, do nosso interesse romântico-sexual. É neste sentido que o desejo é triste: ele está sempre atado a uma complexidade dinâmica e nosso coração sempre pena por conta disto. Há sempre um jogo que escapa a compreensão de nosso intelecto e aos anseios de nossos corações.


Adequarmo-nos ao anseio do outro e coagirmos o outro a adequar-se aos nossos anseios, eis a verve tiranicamente patética de nossas relações pautadas em medos, inseguranças, cobranças e castrações. Nada mais humano, nada mais desumano, nada mais simples e nada mais complexo. Humano, demasiadamente humano e, como tal, além do bem e do mal, além dos maniqueísmos conceitualescos que escapam da tensionalidade difusa e inconceituável  que é a vida em si.


Ler Nelson é, como sempre, uma forma de libertação. Há sempre um apontamento para uma humanidade que temos em cada um de nós, mas que sempre escapa devido ao nosso medo de nos descobrirmos falhos e humanos. Ou melhor, descobrirmo-nos falhos pois somos humanos e humanos são falhos.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Notas de Logística #2 - Desafios da Administração

 



O que caracteriza um administrador? Enquanto ele se sente sobre o computador, respondendo a sua equipe ou simplesmente agindo em sua eterna solidão, não há o que se dizer: parece um trabalhador tão comum quanto todos os outros. Esta condição é fruto duma ilusão de óptica e de compreensão: o gerente é aquele que está enfrentando uma série de problemas dinamicamente. Problemas de natureza multifacetária.


Ele é obrigado a escolher, muitas vezes sem ter opção alguma. Por vezes, a escuridão é tão densa que se esquece que o Sol ainda existe. Nisso ele aposta com sua parca capacidade informacional. Pode ser certeiro, pode ser errôneo: ele será cobrado por um erro que lhe veio do acaso ou glorificado por um mero acidente que surgiu de seu momento de maior impotência. Essa condição lhe marca e o amaldiçoa.


Tem que liderar pessoas, tem que ser exemplo, tem que ser professor, tem que conhecer tecnicamente a sua área, tem que se aperfeiçoar, tem que lutar dia após dia, tem que ser um hábil negociante e ver brechas como um estrategista militar. O peso do mundo está em seus pés, mas a lei do mundo recai em sua cabeça.


O papel administrativo é o poder daquele que está condenado e preso. A dor é o resultado de sua prática e  vencer é um resultado que só lhe vem após muito custo. Seus recursos, humanos e materiais, se espatifam frente a uma realidade que esmaga os mais doces sonhos e amarga as mais vãs esperanças.


Mesmo com tudo isso, ele segue em frente pois viver é lutar. A sensação guerreira de que, mesmo não sendo absolutamente capaz, venceu uma batalha utilizando o seu vigor é algo que o satisfaz. No fundo, o gerente é um guerreiro que ama o campo de batalha e esta condição de adrenalina é o coração que pulsa seu sangue para todo o seu organismo impotente, tornando-o potente. No equilíbrio das adversidades, está a sua superação e a sua glória.